O universo fintech: pagamentos eletrônicos e bancos digitais

No texto a seguir, exploro alguns conceitos e tendências importantes para a compreensão do universo fintech no Brasil, considerando a evolução dos meios eletrônicos de pagamentos e a ascensão dos bancos digitais. Em textos posteriores, explorarei a questão do teto do rotativo de cartões e o debate entre as associações do setor, assim como o open finance e as fintechs de crédito e o fenômeno das finanças embutidas (embedded finance).

‘Clique para pagar’

O ato de pagar é o momento central da conclusão de uma venda e a oferta de opções diversificadas de pagamentos para atender às preferências de diferentes clientes aumenta a chance de fechar negócios, com uma jornada mais rápida e a incorporação de funcionalidades como descontos e recompensas por fidelidade.

Segundo o Sebrae, o comércio digital já responde por mais de 40% do faturamento de microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte.

A digitalização dos pagamentos é um fenômeno global e o Brasil serve de exemplo, dada a sua capacidade de implementar sistemas robustos como o Pix, a despeito de sua amplitude geográfica e diversidade de culturas e contextos.

O Pix encerrou o ano de 2023 como o meio de pagamento mais popular do Brasil, com quase 42 bilhões de transações (crescimento de 75% comparado a 2022), e de acordo com a Febraban, superando as transações de cartão de crédito, débito, boleto, TED, cheques, DOC, e TEC. Com respeito a valores das transações, o Pix registrou R$ 17,2 trilhões, perdendo o primeiro lugar para a TED, que somou R$ 40,6 trilhões em 2023.

Com o Pix, uma empresa pode gerar QR codes instantâneos para receber pagamentos, eliminando a necessidade de lidar com máquinas de cartão ou transferências bancárias pouco amigáveis. Ainda, pode haver a integração a sistemas de gestão financeira e de vendas, automatizando de processos de cobrança e reconciliação de pagamentos.

O Pix canibalizou alguns produtos, mas colaborou para a bancarização e abriu portas para a oferta de outros serviços tarifados.

Outras comodidades em termos de pagamentos eletrônicos envolvem, por exemplo, o link de pagamento pode ser gerado e enviado ao cliente por e-mail, mensagem de texto ou redes sociais e a cobrança por aproximação usando o celular, sem precisar de maquininha.

Com relação aos boletos, desde 15 de março, se o pagamento ocorrer até às 16h30, o credor poderá receber no mesmo dia, a depender do seu contrato com a instituição financeira.

Redução na receita de tarifas de bancos tradicionais

Segundo estudo recente divulgado pelo Ranking idwall de Experiência Digital, em parceria como Banco Central, o país alcançou 1,2 bilhão de contas bancárias ativas em 2023. Os bancos digitais responderam por 62% das contas abertas no ano e 27,6% dos usuários são exclusivamente ligados a esses novos participantes do setor.

Os grandes bancos têm sofrido com a queda nas receitas de conta corrente — uma perda de 15% entre 2019 e 2023, segundo levantamento feito pelo Valor Econômico. Apesar do aumento de 27,2% na base de clientes dessas instituições (410,7 milhões ao fim de 2023), segundo o Valor, “os cinco maiores bancos tradicionais do país — Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa e Santander — tiveram receita de R$ 28,343 bilhões em 2023 apenas com tarifas de ‘serviços de conta corrente’, como ‘pacotes de serviços’, TEDs e outras cobranças do tipo”, um decréscimo nominal de R$ 5 bilhões desde 2019 e uma perda de 19,7% para 15,5% no período na participação das tarifas da receita total desses bancos.

Além do Pix e de uma maior transparência na cobrança e uma maior conscientização dos clientes sobre o que pagam, o aumento da competição na oferta de serviços financeiros é um fator importante na redução das tarifas cobradas.

Nesse contexto, as instituições financeiras têm perseguido uma fórmula de atender clientes de baixa renda de maneira rentável. A solução passa pela oferta de serviços inovadores, de um lado, e pela revisão da estrutura de gastos, de outro.

Uma alternativa é a oferta de novos serviços. A Caixa, por exemplo, passou a oferecer em sua rede de agências produtos e serviços de cartões pré-pagos para clientes pessoa jurídica. O pacote inclui soluções para gestão de vale-transporte de funcionários, abastecimento de frotas de veículos em postos credenciados e pagamento automático em estacionamentos e pedágios.

Guerra das maquininhas

O mercado de maquininhas conta com dois grupos relevantes: de um lado, estarão as empresas controladas por bancos, com capital fechado e, de outro, as adquirentes independentes.

A Rede, que pertence ao Itaú Unibanco, assumiu a liderança do segmento em 2023, após a integração com o banco viabilizar a fidelização de pequenas e médias empresas. Se a Cielo (do Bradesco e Banco do Brasil) fechar seu capital, as três maiores forças do setor, grupo que inclui a Getnet (do Santander), serão companhias fechadas.

A expectativa dos do Bradesco e do Banco do Brasil acerca da deslistagem da Cielo é ter mais flexibilidade para praticar ofertas agressivas, tornando-as uma porta de entrada para fidelizar lojistas por meio de outros produtos, como a gestão de folhas de pagamento e crédito.

Para os bancos que controlam essas empresas, o processamento de pagamentos (adquirência) deixou de ser um negócio em si mesmo para se tornar uma porta de entrada, primeiro para o crédito e depois para outros produtos, como gestão de caixa e seguros.

Rede, Cielo e GetNet têm à disposição os produtos e serviços dos controladores, mas para acessá-los, têm de se integrar a eles. Os sistemas dos grandes bancos foram construídos para operar de forma independente das credenciadoras, e vice-versa. O mesmo acontece com as equipes comerciais.

Por sua vez, os nano e microempreendedores foram trazidos para o mercado de maquininhas pela PagBank, que na década passada, sob o nome de PagSeguro, passou a oferecer maquininhas menores, sem aluguel e com preços mais baratos, o que abriu espaço para que esses comerciantes passassem a receber pagamentos com cartões.

A guerra das maquininhas também afeta as bandeiras. Em meio ao aumento da concorrência, inclusive com métodos de pagamento como o Pix, a Mastercard vem diversificando seus negócios para além do mundo de cartões. A companhia prevê que, em 2025, metade de sua receita líquida no Brasil será oriunda de serviços adicionais, o que inclui soluções de dados e analytics, antifraude, consultoria, entre outras.

Bancos versus fintechs

As instituições incumbentes alegam que existe uma assimetria regulatória que favorece os bancos digitais e que as fintechs adotam uma estratégia de conta e cartão sem tarifas, mas compensam isso cobrando juros mais altos no crédito. Ainda, enfrentam um desafio relevante no varejo massificado. Como muitos bancos oferecem isenção de tarifas para clientes que movimentam muito a conta ou têm investimentos na casa, os usuários de baixa renda acabam pagando relativamente mais.

Por isso, há investimentos em tecnologia e em novos modelos de negócios com correspondentes bancários para reduzir custos e aprimorar o relacionamento com clientes, uma vez que os bancos digitais não migrarão para agências físicas.

Além dos serviços tradicionais de uma conta corporativa, os bancos digitais estão oferecendo soluções de gestão financeira, automação de fluxo de pagamentos dentro de cadeias e ecossistemas e configuração e rastreamento do Pix.

Ainda, as fintechs seguem atacando nichos específicos ou agregando serviços complementares. Vejamos alguns exemplos.

A Stone divulgou sua estratégia de engajar clientes para que tomem capital de giro com a gente para reformar lojas, comprar estoques, além de soluções de folha para pagamento de funcionários. A empresa espera aumentar a venda de produtos financeiros e de software para os clientes das maquininhas.

A Trampay, fundada em 2020, oferece conta digital e produtos financeiros — especialmente antecipação de recebíveis — para os profissionais informais, especialmente motoboys e entregadores de plataformas de delivery. Uma parte significativa desse contingente de trabalhadores lida com o desafio da gestão financeira de despesas básicas ou inesperadas, tais como abastecer o tanque da moto, trocar um celular ou carregador e se alimentar.

O Banco Pan lançou uma nova modalidade de empréstimo com garantia. Em vez do “car equity”, que tem o carro como garantia e já é mais conhecido, agora a instituição estreia o “moto equity”. A novidade permite a obtenção de crédito com taxas a partir de 1,27% ao mês e prazo de pagamento de até 60 meses. As quantias chegam a 100% do valor de motocicletas com até 15 anos.

O Mercado Pago anunciou que passará a oferecer conta com rendimento de 105% para usuários que depositem ou recebam ao menos R$ 1.000 por mês na instituição.

Outra tendência é os bancos digitais de clubes de futebol, um dos maiores é o Nação BRB, parceria entre o banco estatal do Distrito Federal e o Flamengo, em uma joint-venture. O BMG tem acordos com Corinthians, Atlético Mineiro, Vasco e Ceará. O Palmeiras lançou no ano passado o Palmeiras Pay, plataforma criada em parceria com Pefisa (fintech ebraço financeiro do grupo Pernambucanas), Elo e Allianz Seguros. Em outubro do ano passado, o banco Inter fechou um acordo com o Fortaleza Esporte Clube e se tornou o banco oficial do time.

O aumento da competição pode beneficiar os consumidores de serviços financeiros, porém é preciso atenção para evitar que a multiplicidade de contas e produtos contratados acabe prejudicando a visibilidade dos custos e benefícios.

Apesar de tudo, ainda resta uma pergunta inconveniente: quando a inovação resultará em uma efetiva redução do custo do crédito para indivíduos e empresas?

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Os falsos anúncios com manipulação de voz e imagem por inteligência artificial serão enquadrados como fraude em projeto

O Projeto de Lei 390/24 reconhece como fraude os anúncios de produtos falsos e golpes financeiros com uso de imagem ou voz de pessoas manipulada por inteligência artificial.

 
Camila Jara fala durante reunião de comissão
Camila Jara é a autora da proposta – Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

O texto estabelece multa proporcional à gravidade da fraude e direito à indenização da vítima por danos morais. O conteúdo poderá ser retirado para minimizar os prejuízos à vítima. A proposta inclui a regra no Código Civil .

O Poder Executivo será responsável por regulamentar os critérios para graduação e aplicação de multas e outras punições.

Justificativa
Segundo a deputada Camila Jara (PT-MS), autora da proposta, essas fraudes comprometem a integridade e a privacidade dos cidadãos e provocam sérios prejuízos financeiros e emocionais para as vítimas.

“A imposição de multas e indenizações e a retirada imediata da fraude são medidas essenciais para desencorajar a prática desses ilícitos e assegurar a proteção de consumidores e usuários da internet”, disse.

Próximos passos
A proposta tramita em caráter conclusivo e será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

 
Fonte: Câmara dos Deputados

Projeto unifica softwares do Sistema de Processo Judicial Eletrônico

O Projeto de Lei 553/24 unifica softwares do Sistema de Processo Judicial Eletrônico (PJE). A proposta está em análise na Câmara dos Deputados.

Em 2006, o uso do processo judicial eletrônico foi disciplinado pela Lei 11.419/06, que trata da informatização do processo judicial e autoriza o uso de meio eletrônico na tramitação de todas as ações (cíveis, penais e trabalhistas) em qualquer grau de jurisdição.

Desde então, vários estados brasileiros implantaram seus próprios sistemas. “Os softwares são diversos, o que dificulta o trabalho do advogado”, afirma o autor do projeto, deputado Capitão Alberto Neto (PL-AM).

A unificação dos sistemas, argumenta o parlamentar, trará maior eficiência para o
Poder Judiciário e facilitará o trabalho dos advogados.

“O processo judicial eletrônico traz muitas vantagens ao cidadão: facilita o acesso à tutela jurisdicional, torna o trâmite processual mais célere, diminui a morosidade da justiça, aproxima o Poder Judiciário da sociedade e é ecologicamente adequado”, enumera Alberto Neto.

Tramitação
O projeto, que tramita em caráter conclusivo, será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Fonte: Câmara dos Deputados

A importância do processo legislativo tributário

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/23, fruto do trâmite da PEC nº 45/19, apresenta-se como fato disruptivo da realidade do sistema tributário brasileiro.

A aprovação da reforma tributária sobre o consumo decorreu do consenso sobre a necessidade de alteração de um sistema que, após a promulgação da Constituição de 1988, tornou-se regressivo, excessivamente complexo e litigioso, com grave déficit de racionalidade legislativa e dissociado do projeto constitucional.

Esse consenso já existia havia décadas, mas tentativas anteriores de reforma não prosperaram pela dificuldade de atender e compatibilizar os diversos interesses envolvidos na questão.

Nos últimos dois anos, surgiu uma janela de oportunidade, com a unicidade da visão dos estados sobre a necessidade da alteração da tributação do consumo para o destino e o amadurecimento na sociedade e nos meios empresariais da visão de que a litigiosidade/complexidade tributária se tornou insustentável, o que viabilizou a aprovação da reforma tributária.

Promulgada a emenda, cabe agora ao Congresso elaborar, discutir e aprovar as diversas leis complementares que darão o desenho efetivo da reforma tributária.

O trâmite da proposta de reforma tributária gerou um extraordinário interesse e participação dos mais diversos setores da sociedade.

O debate a respeito se deu nas mais variadas esferas, como nas inúmeras audiências públicas no Congresso, em que foram ouvidos especialistas em tributação e finanças, além de representantes da sociedade organizada.

Houve também intensa participação de parlamentares em eventos externos, reuniões em associações empresariais e presença na mídia.

Na fase final de tramitação, principalmente na Câmara dos Deputados, a movimentação dos grupos de interesse e a negociação política foram intensas, tendo provocado modificações no texto-base, inclusive no próprio dia da votação da PEC.

As alterações de última hora, validadas em acordos políticos para viabilizar a aprovação do projeto, foram objeto de críticas de parlamentares e de especialistas, por não terem sido objeto de análise prévia.

Todo esse contexto trouxe para os holofotes a importância do processo legislativo tributário, como prática e, também, como objeto de estudo.

Ciência da legislação

Entretanto, não é algo usual que a doutrina tributária brasileira conjugue os seus estudos com os instrumentos da ciência da legislação ou legística, visando a compreender como se dá a dinâmica de processamento das proposições tributárias no âmbito do Congresso e como isso foi determinante para o descasamento do sistema tributário nacional concreto e o desenho do sistema constitucional tributário. E, ainda, como o processo legislativo contribuiu para o déficit de racionalidade do nosso sistema tributário.

Tradicionalmente, a maioria dos estudos jurídicos tem como partida a lei, como realidade já dada, não considerando como relevante o processo legislativo do qual derivou a sua introdução no ordenamento jurídico.

É um fato louvável o paulatino surgimento de uma doutrina brasileira voltada à ciência da legislação, considerada como o estudo do processo legislativo de criação de normas jurídicas, em suas diversas facetas (jurídica, política e social, principalmente).

E apesar do predomínio dos estudos sobre a regulamentação formal do processo legislativo, trabalhos mais recentes têm incorporado mais temas relativos à qualidade legislativa e a avaliação do seu impacto.

O conhecimento de como se dá o processo legislativo tributário é imprescindível para avaliar criticamente a realidade do sistema tributário e quais os mecanismos políticos que determinam o seu desenho e evolução, e como é possível se trabalhar para o seu aprimoramento.

No âmbito do processo legislativo federal, a sua dinâmica foi e é marcada pelo presidencialismo de coalizão, caracterizado pelo grande poder de agenda do Poder Executivo, a necessidade de construção de maiorias no Congresso via coalizões partidárias e a concentração de poderes políticos e regimentais nas lideranças partidárias e nas mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado [1].

A matéria tributária, deve-se reconhecer, sempre esteve vinculada ao difícil equilíbrio político dos interesses dos principais grupos envolvidos no contexto do presidencialismo de coalizão.

O Poder Executivo, vinculado ao interesse de implementar o seu programa de governo e de conseguir o patamar de arrecadação considerado necessário para a sua viabilização; os congressistas, notadamente dos partidos da coalização governista, priorizam avaliar os efeitos políticos das propostas tributárias, principalmente em face do objetivo principal de ganhos visando à reeleição; os grupos de interesses organizados, por sua vez, possuem grande capacidade de influência no Congresso, inclusive através das frentes parlamentares que têm capacidade de barrar o avanço, ou conseguir modificações de propostas que entendam contrárias aos seus interesses.

Outro fator relevante é a inegável complexidade da matéria tributária. Isso dificulta a análise das proposições pelos parlamentares, decorrente do déficit informacional e capacidade de avaliação de dados econômicos, estatísticos, orçamentários, entre outros.

Esse quadro contribui para que em várias situações o Congresso tenha uma função homologatória de medidas gestadas pela tecnoburocracia tributária federal. O que, entretanto, não pode ser considerada uma regra absoluta, principalmente no que se refere a medidas mais polêmicas ou que contrariem interesses econômicos, políticos ou setoriais com maior poder de influência no Legislativo federal.

Benefícios fiscais

No Congresso, prepondera a avaliação com base na escolha racional, implicando que a produção legislativa tributária federal seja muito vinculada à concessão de benefícios tributários, regimes especiais tributários e programas de anistiais fiscais. Depois de instituído esse tipo de benesses, é difícil e tem custo político muito alto a sua revogação ou alteração.

Essa percepção, que já era deduzível pelo acompanhamento da produção legislativa tributária do Congresso pós promulgação da Constituição, tem sido confirmada por recentes estudos empíricos [2].

Pode-se afirmar que a aprovação de benefícios fiscais é a pauta legislativa tributária considerada pela maioria dos legisladores brasileiros como a que traz mais ganhos políticos, eleitorais e junto aos mais fortes grupos de interesse que atuam no Congresso.

Nesse aspecto, a Emenda Constitucional nº 132/23 deverá marcar uma mudança significativa na forma de operação política e administrativa da matéria tributária, ao dispor que o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses expressamente previstas no texto constitucional.

Essa alteração no estado de coisas tem potencial de gerar um sistema tributário mais estável, equilibrado e previsível. A estabilidade e simplificação da dinâmica tributária, no que se refere ao consumo, deverá trazer ganhos de segurança jurídica, incentivando o investimento produtivo. Contudo, exigirá maturidade de todos os operadores, principalmente os legisladores, para entender a nova realidade. O modo de fazer política se alterará significativamente.

Em termos de qualidade democrática, existem reconhecidos problemas no processo legislativo tributário federal, com o forte predomínio das lideranças partidárias e das mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado e a utilização comum dos regimes de urgência e urgência urgentíssima, o que, em várias situações, obsta o debate amplo e democrático das proposições tributárias com os mais diversos setores da sociedade.

De fato, em muitos casos o regime de urgência acelera exagerada e desnecessariamente o rito legislativo, com o comprometimento da qualidade do processo e a possibilidade de que os congressistas e os órgãos de assessoria tenham tempo e capacidade de utilização dos recursos como as audiências públicas, obtenção de estudos e informações técnicas, participação de especialistas, etc., para que se tenha uma correta avaliação ex ante.

O estudo e a análise mais profunda do processo legislativo implicam o reconhecimento da existência de uma “lógica de ação” própria, que traz consigo uma racionalidade específica, de caráter fortemente instrumental (o agir político).

Acordos políticos

Pode-se destacar como uma das características mais marcantes do raciocínio legislativo o seu caráter consequencialista, fazendo com que a elaboração legislativa seja, ao mesmo tempo, uma atividade essencialmente conflitiva e cooperativa, o que se traduz nas emendas parlamentares e acordos políticos, em que a deliberação a respeito dos fins e dos valores tem papel fundamental, com a forma e o conteúdo das leis devendo estar de acordo com esses fins e valores. O que torna imprescindível a aproximação da ética com a política.

Todo esse modus operandi deve ser objeto de preocupação e estudo dos especialistas da área tributária, já que afetam diretamente a produção legislativa, e a qualidade e racionalidade do seu produto final.

As atenções que foram voltadas para o trâmite da PEC nº 45/19 agora devem ser direcionadas ao processo legislativo de produção das leis complementares.  Sendo que, consoante determina a emenda constitucional, o Poder Executivo tem o prazo de até 180 dias para enviar os projetos de lei complementar referentes à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Espera-se que esse momento histórico também marque uma virada de chave na ótica dos estudos jurídicos, com o reconhecimento da importância do processo legislativo tributário e a sua relevância como objeto de perquirição.


[1] A partir da promulgação das Emendas Constitucionais nº 86/2015 e 100/2019, que trouxeram relevantes alterações na sistemática de execução orçamentária, com a introdução do chamado orçamento impositivo e a redução do nível de discricionariedade do Executivo na execução das emendas individuais, visualiza-se o processo de alteração do presidencialismo de coalizão. Estudiosos tem indicado o surgimento de um semipresidencialismo de fato, com a drástica redução da prerrogativa do Presidente da República de contingenciar e liberar recursos, inclusive de emendas parlamentares.

[2]  LAZZARI, Eduardo; ARRETCHE, Marta; MAHLMEISTER, Rodrigo. O que o Congresso brasileiro prefere em matéria tributária. Políticas públicas, Cidades e Desigualdades, Nota Técnica 17, de 06 de junho de 2022.

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Cidadania na esfera penal: os direitos individuais e coletivos diante do sistema de segurança pública

A segurança pública faz parte da cidadania, mas a atuação das forças públicas também pode gerar atrito com os direitos do cidadão. Nos últimos 35 anos, coube ao STJ se manifestar sobre o tema em diversos casos.

A relação da cidadania com o direito penal e o sistema de segurança pública pode ser vista sob diversos aspectos, mas um deles é especialmente reconhecido como fonte de tensões sociais: a atuação policial e o respeito aos direitos do cidadão.

No Brasil, são constantes os relatos de desrespeito aos direitos fundamentais em investigações e operações de combate ao crime, especialmente em locais pobres e contra aqueles que sofrem discriminação histórica, como a população negra.

Uma pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, realizada em parceria com o Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege), identificou que foram feitas ao menos 90 prisões injustas a partir de reconhecimento fotográfico entre 2012 e 2020. Em 81% dos casos, os apontados eram pretos ou pardos.

Quanto às localidades, um levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em novembro de 2023, revelou que residências de bairros ricos e com população de maioria branca são quase imunes à entrada da polícia em busca de drogas. Nas cidades analisadas, 84,7% dos ingressos em domicílios ocorreram em bairros ocupados predominantemente por negros, e 91,2% se deram em áreas com renda domiciliar mensal per capita de até um salário mínimo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem examinado diversas situações de conflito entre os direitos fundamentais e a atuação dos órgãos de persecução penal. Nesta sexta reportagem da série especial Faces da Cidadania, são apresentados precedentes em que o tribunal garantiu a preservação de direitos do cidadão diante do sistema policial e da Justiça penal. 

Segurança pública é tema de responsabilidade compartilhada

Presidente da Terceira Seção do STJ, colegiado especializado em matéria penal, o ministro Ribeiro Dantas liderou a comissão de juristas responsável por apresentar à Câmara dos Deputados uma proposta de atualização da Lei de Drogas, em 2019, e é relator de julgados relevantes na área criminal. Para o magistrado, segurança pública e cidadania são conceitos indissociáveis.

“Como alguém pode ser cidadão em plenitude se não tem segurança para ir e vir? Para trabalhar, para estudar, para passear, mesmo para ficar em casa? Uma sociedade insegura, além disso, é mais vulnerável – enquanto grupo social – na sua tranquilidade para tomar decisões mais serenas e coerentes. O medo gera mais violência, em um círculo vicioso”, refletiu o ministro.

A percepção de Ribeiro Dantas se ampara no artigo 144 da Constituição Federal, que define segurança pública como a ação exercida para preservar a ordem e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Partindo desse dispositivo, a delegada da Polícia Civil de Santa Catarina Ana Silvia Serrano, autora do artigo A relação entre cidadania e segurança pública: implicações para a doutrina de polícia, lembra que a Constituição vincula cidadania e segurança em outros momentos: além do artigo 144, o tema da segurança é tratado como um direito de natureza individual (artigo 5º) e, ao mesmo tempo, coletivo ou social (artigo 6º).

“Em sua acepção mais ampla, cidadania inclui o reconhecimento de direitos civis, políticos e sociais e a possibilidade de exercê-los. Assim, a segurança pública foi estabelecida como direito dos cidadãos, e também como responsabilidade de todos: pessoas e Estado. Sua importância se confunde com a própria razão de existir do Estado”, destacou a delegada.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 – não à toa conhecida como Constituição Cidadã – vai além de comandos gerais ao prever direitos e garantias inovadores na proteção da cidadania. Entre outros exemplos, estão o compromisso com tratados e convenções internacionais de direitos humanos – por meio da Emenda Constitucional 45/2004 –, a proteção do silêncio do réu, a inviolabilidade do domicílio, o fortalecimento das defensorias públicas e uma série de regras que buscam afastar as violações de direitos da atividade repressora estatal.

Fonte: STJ

STJ recebe listas do MP e TRFs de candidatos a duas vagas de ministro

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu até às 23h59 desta sexta-feira (15), do Ministério Público (MP) e dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), as listas com os candidatos às vagas abertas decorrentes da aposentadoria das ministras Laurita Vaz e Assusete Magalhães.

Ao todo são 41 nomes indicados pelo MP (lista consolidada pelo STJ após envio dos nomes do Ministério Público Federal e dos MPs estadual e o distrital) e 17 pelos seis TRFs.

Confira a lista completa do MP.

Confira a lista completa dos TRFs.

Ainda não há data marcada para a sessão do Pleno do STJ que irá formar as duas listas tríplices a serem encaminhadas à escolha do presidente da República.

Sobre o processo de escolha e a composição do tribunal

Cabe à Presidência da República a indicação dos nomes que, na etapa seguinte, serão enviados ao Senado Federal para sabatina na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Após a aprovação pela CCJ e pelo plenário do Senado, os indicados são nomeados e empossados como ministros.

A composição do STJ está definida no artigo 104 da Constituição Federal. O tribunal é composto de, no mínimo, 33 ministros, que são nomeados pelo presidente da República entre brasileiros com mais de 35 anos e menos de 70 anos, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado.

Segundo a Constituição, as cadeiras do STJ são divididas da seguinte forma: um terço entre juízes dos TRFs e um terço entre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio STJ; um terço, em partes iguais, entre advogados e membros do Ministério Público Federal, estadual, do Distrito Federal e dos Territórios, alternadamente, indicados na forma do artigo 94 da Constituição.

Fonte: STJ

Proposta assegura concordância da mãe na definição do nome do bebê

O Projeto de Lei 487/24 estabelece regra para garantir que nome dado a recém-nascido tenha concordância da mãe. Pelo texto, se o registro for feito somente pelo pai, será exigido documento assinado pela mãe concordando com o nome e o sobrenome dados à criança.

Natália Bonavides discursa na tribuna do Plenário

Natália Bonavides busca igualdade na definição do nome dos filhos – Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Caso haja algum impedimento médico para a mãe se manifestar, comprovado por atestado médico, a proposta garante direito de alteração do nome da criança em até 45 dias após o restabelecimento de sua saúde.

Segundo a deputada Natália Bonavides (PT-RN), autora da proposta, o texto garante a efetividade da igualdade dos genitores, inclusive na condução da família, bem como o direito da criança de receber um nome que retrate fielmente a vontade de seus pais. “É preciso estabelecer garantias às mães de que não serão surpreendidas com o nome registrado para seu filho ou sua filha à revelia de sua vontade”, afirmou.

Bonavides disse que, quando a mãe precisa estar na maternidade em repouso, é comum que o pai vá sozinho ao cartório realizar o registro da criança.

Próximos passos
A proposta tramita em caráter conclusivo e será analisada pelas comissões de Defesa dos Direitos da Mulher; de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Foonte: Câmara dos Deputados

Em caso de dúvida, prova do consentimento do morador para entrar na residência é responsabilidade do Estado

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou que, em caso de dúvida sobre o consentimento do morador para que a polícia entre na residência para apuração de algum crime, a prova da autorização cabe ao Estado.

O entendimento foi definido ao negar recurso do Ministério Público contra decisão monocrática do relator, ministro Sebastião Reis Junior, que concedeu habeas corpus para declarar a nulidade de flagrante por tráfico de drogas, em razão do entendimento de que houve invasão da casa do réu pela polícia.

Em fevereiro de 2023, os agentes policiais, em resposta a uma denúncia anônima de tráfico de drogas em uma residência específica, dirigiram-se ao local e encontraram o suspeito arremessando uma sacola para cima da laje do banheiro. Durante a busca na casa, foram descobertos diversos entorpecentes, armas de fogo, munições, uma balança e um colete balístico.

Justiça de Minas considerou dispensável termo escrito ou outro registro de consentimento

Inicialmente, em primeira instância, o juízo considerou que a ação policial tinha justificativa, dada a suspeita de flagrante delito, dispensando a exigência de termo escrito ou registro audiovisual do consentimento do morador. A legalidade do ingresso dos policiais foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

Posteriormente, o réu foi condenado em primeiro grau a cinco anos de reclusão, em regime semiaberto.

Ao STJ, a defesa do réu alegou invasão de domicílio e ausência de autorização de entrada, especialmente pela falta de registro do consentimento pelos policiais. Apontou, ainda, que é incabível sugerir que alguém permitiu que os policiais entrassem em sua casa, após o investigado supostamente ter jogado algo no telhado da residência, ciente de que havia armas, munições e drogas no interior.

Divergências nos depoimentos afastam indícios para justificar entrada sem permissão

O ministro Sebastião Reis Junior destacou que a entrada em domicílio sem autorização judicial só é admissível quando o contexto anterior à invasão sugere a ocorrência de crime que exige ação imediata para a sua interrupção.

O ministro também apontou divergências nos depoimentos dos policiais e a falta de descrição do conteúdo da sacola arremessada pelo réu, o que sugere que os elementos eram insuficientes para justificar a entrada na residência sem consentimento claro e voluntário dos moradores.

 “A ação policial não foi legitimada pela existência de fundadas razões – justa causa – para a entrada desautorizada no domicílio do agravado, pois a fundamentação na natureza permanente do delito, a existência de mera denúncia anônima, desacompanhada de outras diligências preliminares, e a ausência de documentação do consentimento do morador para ingresso em domicílio maculam as provas produzidas na busca e apreensão domiciliar sem autorização judicial”, apontou o ministro.

Citando precedentes do STJ, Sebastião Reis Junior lembrou que é responsabilidade do Estado provar a legalidade e a voluntariedade do consentimento para entrada na residência do suspeito e a prova do consentimento deve ser registrada em áudio e vídeo e preservada durante todo o processo.

Leia o acórdão no HC 821.494.


Fonte: STJ

STJ define plano de contingência para indisponibilidade total dos sistemas e procedimentos para exame de matérias urgentes

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou a Resolução STJ/GP 6/2024, que define um plano de contingência para situações em que houver indisponibilidade total dos sistemas informatizados judiciais do tribunal, além de estabelecer protocolo emergencial para a análise de matérias urgentes.

De acordo com a resolução, o plano deverá ser acionado pela presidência do STJ, por meio de ato específico que definirá o seu período de vigência. O plano não é aplicável no caso de indisponibilidades temporárias de sistema ocorridas durante o expediente – hipóteses que continuam reguladas pela Resolução 10/2015.

A nova resolução prevê que, durante a validade do plano de contingência, o STJ funcionará em regime de plantão e os prazos processuais serão suspensos, voltando a correr com o restabelecimento dos sistemas informatizados judiciais.

Durante o plantão, não serão analisadas petições cujo tema não se enquadre nos casos previstos no artigo 4º da Instrução Normativa 6/2012. Os temas previstos para atuação do STJ no plantão judiciário são os seguintes:

I – habeas corpus contra prisão, busca e apreensão e medida cautelar decretadas por autoridade sujeita à competência originária do STJ;

II – mandado de segurança contra ato de autoridade coatora sujeita à competência originária do STJ cujos efeitos ocorram durante o plantão ou no primeiro dia útil subsequente;

III – suspensão de segurança, suspensão de execução de liminar e de sentença e reclamações a propósito das decisões do presidente cujos efeitos se operem durante o plantão ou no primeiro dia útil subsequente;

IV – comunicação de prisão em flagrante e pedidos de concessão de liberdade provisória em inquérito ou ação penal da competência originária do STJ; e

V – representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público que visem à decretação de prisão preventiva ou temporária, de busca e apreensão ou de medida cautelar, justificada a urgência e observada a competência originária do tribunal.

Durante o plano de contingência, também não serão analisadas petições cujo objeto seja prisão, busca e apreensão ou medida cautelar decretadas ou mantidas em grau de recurso por tribunais locais.

Os pedidos que não se enquadrem nos casos que serão analisados no plantão devem aguardar o restabelecimento dos sistemas do STJ e ser encaminhados por meio da Central de Processo Eletrônico (CPE).

Pedidos urgentes devem ser feitos via SEI, mediante cadastro prévio

Segundo a Resolução STJ/GP 6/2024, pedidos sobre medidas urgentes devem ser realizados por meio do Sistema Eletrônico de Informações (SEI), disponível no portal do STJ, após credenciamento da pessoa interessada.

Cumprida essa etapa, o interessado receberá novo e-mail confirmando a liberação do cadastro, com instruções sobre o acesso ao SEI para peticionamento. ​​​​​​​​​​​​

Resolução prevê procedimentos se houver indisponibilidade do sistema SEI ou de e-mail

No ambiente SEI, o interessado deve escolher o tipo de processo “Peticionamento Judicial Emergencial”. Ao receber as petições de urgência, o sistema SEI vai gerar um número de identificação do processo, por meio do qual será possível acompanhar o andamento da ação.

O sistema receberá apenas documentos no formato PDF. Não serão aceitos links externos para acesso a arquivos.

Após o encerramento do período emergencial, o recebimento de petições via SEI será interrompido e os cadastros dos usuários serão inativados. Os processos recebidos durante o plantão serão convertidos para o sistema judicial oficial de tramitação de ações no STJ.

Caso também haja indisponibilidade do sistema SEI, excepcionalmente, será disponibilizado e-mail específico para o recebimento de petições – devendo ser observadas, nesse caso, as mesmas regras sobre os temas emergenciais e o formato dos arquivos.

Por fim, se também estiver indisponível o peticionamento via e-mail, será necessário o peticionamento físico nas dependências do STJ, aplicando-se, nessa hipótese, as mesmas regras das petições via e-mail

Fonte: STJ

Valores fixados para penas de multa contrastam com miséria dos presos brasileiros

Quando a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça revisou pela quarta vez sua tese sobre a extinção da punibilidade sem o pagamento da pena de multa, no fim de fevereiro, os valores que eram cobrados dos autores dos recursos julgados pelo colegiado não eram muito altos.

Thathiana Gurgel/DPRJ

Presos saem do sistema carcerário mais miseráveis do que quando entraram

Os réus eram homens condenados por roubo majorado e furto qualificado. E eles não tinham condições financeiras de arcar com R$ 406 e R$ 466,41, respectivamente.

Sem o pagamento da pena de multa, eles tinham a extinção da punibilidade travada e a ressocialização, severamente ameaçada, como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico em reportagem publicada nesta quarta-feira (13/3).

Essa situação mostra por que o valor cobrado na pena de multa, ainda que nos patamares mínimos, acaba por contrastar gravemente com a miserabilidade fartamente encontrada no sistema carcerário brasileiro.

A revisão feita pelo STJ foi um importante passo para corrigir essa distorção. A partir dessa decisão, a mera declaração de pobreza do apenado — que poderá ser contestada com base em indícios de que ele possui bens — será suficiente para extinguir a punibilidade sem o pagamento da multa.

Esse cenário é particularmente grave nos três crimes que mais levam a condenações no país: furto, roubo e, principalmente, tráfico de drogas.

Como funciona a multa

A pena de multa está prevista no artigo 32 do Código Penal. É uma das três punições possíveis para quem comete o crime — as outras são a pena privativa de liberdade e a restritiva de direitos.

O cálculo é feito em dias-multa, cujo valor pode variar entre um trigésimo do salário mínimo da época dos fatos e cinco vezes o mesmo salário. A previsão está no artigo 49 do CP, e quem estabelece o valor é o juiz da causa.

A regra geral no Código Penal é de que a pena de multa deve ser de, no mínimo, dez dias-multa e, no máximo, 360 dias-multa. Novamente, a escolha é do magistrado.

Atualmente, com o salário mínimo em R$ 1.412, o dia-multa em seu valor mínimo é de R$ 47,06. Isso significa que a pena varia entre R$ 470,66 (dez dias-multa) e R$ 16,9 mil (360 dias-multa).

Em regra, o valor da multa será alterado para cima ou para baixo de acordo com as majorantes ou minorantes da pena.

Há casos em que o rigor da lei é maior, com a imposição de um valor mínimo específico para a pena de multa. No crime de tráfico de drogas, por exemplo, ela é de 500 dias-multa. Para os condenados em 2024, isso equivale a R$ 23,5 mil.

Wilson Dias/Agência Brasil

Pena de multa no Brasil se tornou fator de marginalização dos ex-presos

Já a pena máxima é de 1,5 mil dias-multa, ou R$ 70,5 mil. Esse é um valor que os grandes traficantes têm condições de pagar, devido ao alto rendimento de sua atividade ilícita.

Para os pequenos traficantes, a lei oferece o tráfico privilegiado: o redutor do artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, que diminui a pena em até dois terços e é destinado ao réu primário, de bons antecedentes e sem ligação com facções criminosas.

Nesse caso, a pena corporal mínima de cinco anos pode cair para um ano e oito meses. Isso significa que a multa é reduzida para 166 dias-multa, ou R$ 7,8 mil. E isso é um problema, porque esse é um valor que o pequeno traficante muito provavelmente terá dificuldades para pagar.

Pobreza generalizada

O cenário é esse no Brasil porque a realidade do sistema carcerário é de pobreza generalizada. O caso levado ao STJ é da Defensoria Pública de São Paulo, que atende às pessoas vulneráveis no estado que tem a maior população presa do país.

Dados da instituição indicam que, de 2020 a 2022, 55% das intimações recebidas para pagamento da pena de multa tinha valores inferiores a R$ 1 mil.

Até abril do ano passado, 67% das execuções ajuizadas na 1ª Vara de Execuções Criminais da Capital, responsável por quase 30% de todos os processos de execução de pena de multa em andamento no estado, não ultrapassavam esses mesmos R$ 1 mil.

A multa, ainda que em valores irrisórios, é impagável porque os assistidos pela Defensoria Pública, em sua maioria, já chegam ao sistema carcerário em condição de miséria.

Levantamento feito a partir das intimações de agravo em execução das execuções de pena de multa destinadas à Defensoria Pública paulista em novembro de 2023 mostra que apenas 11% dos assistidos tinham renda mensal de mais de R$ 2,5 mil quando foram presos.

Lucas Pricken/STJ

Voto do ministro Rogerio Schietti no STJ elencou dados sobre população carcerária

Os mesmos dados mostram também que 36% deles recebiam menos de R$ 1,2 mil. E que 81% dos assistidos no período não tinham declaração sobre bens imóveis, e apenas 20% possuíam casa própria — 43% viviam em habitações coletivas e outros 9% estavam em situação de rua.

No mesmo período, 66% dos assistidos não tinham declaração sobre empregou ou ocupação, e 95% deles não possuiam declaração sobre depósitos bancários.

O resultado, segundo informações do Departamento Estadual de Execução Criminal do Tribunal de Justiça de Ssão Paulo (TJ-SP), é que, entre fevereiro de 2020 e abril de 2022, há a indicação de pagamento da pena de multa em apenas 10% das execuções.

Nos outros 90% — ou seja, 240,2 mil execuções —, o valor seguia pendente, impedindo a extinção da punibilidade dos presos que já cumpriram sua pena corporal.

Objetivo da execução da pena

“É muito triste ver como a miserabilidade da população carcerária foi exacerbada em virtude da pena de multa. É o Estado atuando de maneira ativa para manter a pessoa alheia à sociedade”, avalia Glauco Mazetto, defensor público de São Paulo.

Ele atuou nos recursos que levaram à mais recente revisão de tese pela 3ª Seção do STJ. O defensor diz que perdeu a conta do número de casos em que os assistidos não tinham renda para pagar a multa por serem moradores de rua ou desempregados.

Um relatório do grupo Conectas sobre o tema concluiu que esse cenário faz com que um número expressivo de pessoas deixe a prisão em situação de maior vulnerabilidade do que quando entrou.

O trabalho, intitulado “O Preço da Liberdade — Fiança e Multa no Processo Penal” (clique aqui para ler), foi publicado em outubro de 2019 e usado no voto do relator dos recursos no STJ, ministro Rogerio Schietti.

O magistrado destacou no acórdão que o artigo 1º da Lei de Execução Penal fixa que ela tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

“Não se mostra, portanto, compatível com os objetivos e fundamentos do Estado democrático de Direito que se perpetue uma situação de sobrepunição dos condenados notoriamente incapacitados a, já expiada a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, solver uma dívida que, a despeito de legalmente imposta, não se apresenta, no momento de sua execução, compatível com os objetivos da lei penal e da própria ideia de punição estatal.”

Clique aqui para ler o acórdão do STJ
REsp 2.024.901
REsp 2.090.454

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