O impacto da tributação no motor econômico do país

O agronegócio brasileiro, essencial para o crescimento econômico e a balança comercial, contribui significativamente para o PIB, representando mais de 24% desse indicador. O setor é impulsionado por inovações tecnológicas e expansão territorial, apesar das adversidades climáticas e econômicas. Ele possui um efeito multiplicador, fortalecendo setores conectados e a economia tanto interna quanto global.


Wenderson Araujo/Trilux/CNA

 

Os incentivos fiscais e subsídios são cruciais, mas adicionam complexidade ao regime tributário, exigindo vigilância constante dos operadores do Direito. Tributariamente, o agro lida com tributos federais importantes, como IRPJ e CSLL, além de contribuições como PIS/Pasep e Cofins. Os estados utilizam benefícios fiscais relacionados ao ICMS para atrair investimentos, enquanto os municípios administram o ISS e o ITR, incentivando práticas sustentáveis.

A complexidade aumenta com as frequentes mudanças na legislação que regula esses incentivos, o que impõe uma necessidade de compreensão aprofundada das normas para orientação eficaz. A reforma tributária proposta, visando substituir vários tributos por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), promete simplificar o sistema, mas traz desafios como a possível elevação da carga tributária devido à uniformização de alíquotas e incertezas na transição.

O cenário para 2024 sugere que variações climáticas e um ambiente macroeconômico global volátil poderão impactar a demanda por commodities agrícolas e a rentabilidade do setor. Além disso, o avanço tecnológico e a digitalização aumentam a necessidade de os profissionais de Direito Tributário e consultores agrícolas se manterem atualizados para navegar nesse ambiente dinâmico e competitivo.

Dinâmicas de mercado e transbordamentos setoriais

O agro está intrinsecamente ligado a vários setores, como insumos agrícolas, máquinas agrícolas e serviços logísticos, com demanda influenciada por condições de mercado e fatores econômicos internos e externos. As variações na produção agrícola podem afetar significativamente a economia local, desde emprego até o PIB de regiões dependentes da agricultura.

As flutuações nos preços internacionais das commodities e as barreiras comerciais podem alterar profundamente a rentabilidade do setor. Ademais, variações nos mercados agrícolas podem gerar incertezas que afetam as políticas monetárias e fiscais, influenciando desde a inflação até as receitas de exportação.

O setor de agroindústria depende da oferta de matérias-primas para definir preços dos alimentos e estratégias de exportação. A demanda crescente por equipamentos agrícolas modernos é impulsionada por incentivos fiscais e créditos para modernização.

No setor de serviços, há uma conexão profunda com o agronegócio, com produtos financeiros especializados e seguros agrícolas respondendo à necessidade de mitigação de riscos. A eficiência logística, crítica para a competitividade do agro, é influenciada por políticas tributárias que afetam os custos logísticos.

Regime tributário do agro: entre incentivos e obrigações

O setor agropecuário se beneficia de diversos incentivos fiscais, como abatimentos, créditos e reduções tributárias, que visam fomentar o uso de tecnologias sustentáveis e expansão produtiva. Os créditos de ICMS para a compra de insumos essenciais, como fertilizantes e sementes, permitem que os produtores recuperem parte dos impostos pagos, incentivando a sustentabilidade e a inovação.

Subsídios diretos estabilizam os preços internos e garantem renda aos agricultores em anos de produção baixa ou preços internacionais desfavoráveis, apoiando a estabilidade econômica regional e a segurança alimentar. Além disso, regimes especiais de ICMS facilitam a comercialização e exportação de produtos agrícolas, enquanto o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) oferece suporte financeiro para seguros contra perdas climáticas.

Medidas adicionais, como isenções de PIS/Cofins na aquisição de insumos e o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi), diminuem os custos de produção e melhoram a competitividade internacional. Contudo, a aplicação desses incentivos pode variar significativamente entre regiões e tipos de produção, e a frequente alteração das leis tributárias requer vigilância e compreensão profundas por parte dos advogados para oferecer orientação precisa.

Impacto da reforma no agro: detalhamento da PEC 45/2019

A PEC 45/2019, que propõe a substituição de cinco tributos por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), busca simplificar o sistema tributário brasileiro, aumentando sua transparência. Esse novo regime promete reduzir a complexidade administrativa para os produtores, permitindo uma maior alocação de recursos para investimentos. Contudo, a neutralidade fiscal do IBS pode aumentar a carga tributária efetiva ao remover incentivos específicos anteriormente disponíveis, impactando a competitividade do agronegócio.

Além disso, a reforma pode afetar o financiamento para infraestrutura rural devido a uma distribuição mais equânime das receitas do IBS entre os entes federativos, exigindo adaptações nas políticas de desenvolvimento regional. A transição para o IBS demandará uma adaptação substancial das empresas agrícolas, possivelmente aumentando a carga tributária sobre insumos e produtos com tratamento fiscal anteriormente favorecido e criando um período de incerteza fiscal que pode influenciar decisões de longo prazo.

Tributação e comercialização no agro: um estudo detalhado

A receita é primordialmente derivada da comercialização de commodities como soja, milho, café e carne, tanto no mercado interno quanto externo. Flutuações de preços dessas commodities globalmente podem impactar diretamente a receita e, consequentemente, as contribuições tributárias do setor. Impostos federais são vitais para financiar políticas públicas, enquanto o ICMS se destaca como uma importante fonte de receita estadual, crucial nas operações de venda de produtos agrícolas.

Os incentivos fiscais ao agro, incluindo isenções e reduções de ICMS na aquisição de insumos, impactam diretamente a receita tributária, sendo essenciais para a competitividade do setor, mas necessitam de equilíbrio com as demandas fiscais nacionais.

Grandes empresas do setor possuem capacidade significativa de influenciar mercados e políticas, necessitando de estruturas robustas de compliance e gestão fiscal avançada para otimizar obrigações fiscais e gerenciar riscos. Empresas médias, ágeis e adaptáveis, enfrentam desafios para acessar créditos tributários e incentivos essenciais para inovação e expansão.

Para pequenas empresas e produtores rurais, o cenário tributário pode ser oneroso, com simplificações como o Simples Nacional sendo cruciais para sua viabilidade. Todas as empresas do setor precisam adaptar-se continuamente às mudanças nas políticas fiscais, sendo a reforma tributária proposta um potencial nivelador do campo de jogo ao simplificar e prever o sistema tributário.

A gestão tributária enfrenta o desafio de conciliar incentivos fiscais com a sustentabilidade das receitas públicas, com oportunidades crescentes para usar tecnologias avançadas na administração de tributos para aumentar a transparência e reduzir a evasão fiscal.

Já as diferenças regionais no agro, com distintos padrões de cultivo e produção influenciados por fatores naturais e políticas regionais, resultam em variação significativa na tributação e arrecadação de impostos como ICMS e ISS. Estratégias fiscais estaduais e municipais variadas incentivam o desenvolvimento agrícola regionalmente, com benefícios fiscais e programas de apoio que alteram o ambiente tributário.

A variação das políticas fiscais impacta profundamente a distribuição geográfica das atividades agrícolas, influenciando decisões sobre localização e expansão de operações. A complexidade e a variabilidade da tributação estadual apresentam desafios significativos de conformidade para empresas do setor, exigindo que advogados tributários tenham conhecimento atualizado e aprofundado das legislações fiscais de múltiplos estados para prestar aconselhamento eficaz e evitar litígios fiscais.

Desafios e perspectivas futuras para o agro brasileiro

O agro enfrenta desafios decorrentes de sua vulnerabilidade a variações climáticas extremas, impactando a produção e os mercados globais. Investimentos em tecnologia, como agricultura de precisão e biotecnologia, são essenciais para aumentar a produtividade e a sustentabilidade. Diversificar as culturas e fortalecer o mercado interno pode reduzir a dependência das exportações e estabilizar as receitas.

Para apoiar efetivamente o agro, políticas públicas robustas são necessárias, incluindo subsídios direcionados, incentivos fiscais para práticas sustentáveis, e ampliação do financiamento para pesquisa. As estratégias tributárias devem ser adaptadas para refletir as necessidades específicas do setor, facilitando a conformidade e incentivando investimentos críticos, ao mesmo tempo em que fornecem recursos governamentais necessários para o suporte ao setor.

Propostas de ação e política pública

Estratégias e políticas públicas para fortalecimento do setor agropecuário:

  1. Incentivos fiscais direcionados: Propõe-se a criação de incentivos fiscais alinhados às necessidades do Agro, como deduções para investimentos em tecnologias sustentáveis e créditos fiscais para práticas conservacionistas. Tais incentivos visam promover práticas agrícolas responsáveis e estimular a inovação e competitividade no setor.
  2. Subsídios para pesquisa e desenvolvimento: É crucial fortalecer o financiamento para pesquisa, especialmente em biotecnologia e manejo de recursos naturais. Investir em ciência é fundamental para a sustentabilidade e eficiência do agronegócio a longo prazo.
  3. Infraestrutura e logística: Melhorias na infraestrutura de transporte são essenciais para reduzir custos de produção e ampliar o acesso a mercados. Projetos de melhorias em rodovias, ferrovias e portos devem ser priorizados, juntamente com a adoção de tecnologias logísticas avançadas.

Promoção da sustentabilidade e resiliência:

  1. Regulamentações ambientais equilibradas: Desenvolver regulamentações que conciliem proteção ambiental com crescimento econômico, incentivando práticas sustentáveis e penalizando a degradação ambiental de forma justa.
  2. Programas de educação e capacitação: Expandir a educação para agricultores sobre práticas sustentáveis e gestão de negócios é vital para a transformação do setor.

Desenvolvimento de políticas públicas integradas:

  1. Planejamento integrado de políticas: Implementar políticas que considerem as interdependências entre o agro e outros setores críticos, como água e energia, é crucial para o desenvolvimento sustentável.
  2. Diálogo com stakeholders: Estabelecer canais de diálogo contínuos entre governo, agricultores, cientistas e indústria para assegurar que as políticas sejam eficazes e bem aceitas.

Fundamentos para a integração:

  1. Alinhamento de incentivos fiscais com objetivos de desenvolvimento rural: Os incentivos fiscais devem ser especificamente projetados para apoiar a sustentabilidade e o desenvolvimento econômico rural.
  2. Simplificação tributária para pequenos produtores: Simplificar a tributação para pequenos agricultores pode facilitar a conformidade fiscal e incentivar a formalização de negócios rurais.

Estratégias práticas de implementação:

  1. Zonas de incentivo agropecuário: Criar zonas com políticas fiscais favoráveis pode estimular o desenvolvimento em áreas menos desenvolvidas, incentivando investimentos em agroindústrias e infraestrutura.
  2. Programas de crédito fiscal para pesquisa e desenvolvimento: Implementar créditos fiscais para investimentos em pesquisa e desenvolvimento pode acelerar inovações sustentáveis e adaptativas no setor agrícola.

Impacto das políticas integradas:

  1. Aumento da produtividade agrícola: Políticas alinhadas com o desenvolvimento rural podem significativamente aumentar a produtividade agrícola, beneficiando a economia e elevando o padrão de vida rural.
  2. Sustentabilidade e conservação ambiental: Incentivos fiscais que promovem práticas de conservação podem impactar positivamente o meio ambiente, garantindo a sustentabilidade de recursos para o futuro.

 

Análise final

O agronegócio é vital para a economia do Brasil, integrado ao sistema tributário e influente na formulação de políticas econômicas e desenvolvimento sustentável. É essencial que o governo realize avaliações regulares das políticas tributárias do setor para garantir sua eficácia e alinhamento com os objetivos de desenvolvimento sustentável. Isso pode envolver ajustes nas alíquotas, revisão de subsídios e incentivos, e simplificação do sistema tributário para reduzir custos administrativos e melhorar a conformidade.

O investimento em pesquisa e desenvolvimento no setor agrícola deve ser intensificado, apoiado por incentivos fiscais para projetos que promovam inovação tecnológica e práticas sustentáveis. A colaboração com universidades e institutos de pesquisa é crucial para a transferência de tecnologia e desenvolvimento de novas soluções.

As empresas do agro devem adotar estratégias de planejamento tributário para maximizar a eficiência fiscal, utilizando créditos fiscais e reestruturando operações para aproveitar regimes fiscais vantajosos. A precisão nas práticas contábeis é fundamental para minimizar passivos fiscais.

É importante que as empresas se mantenham atualizadas com as mudanças na legislação tributária e prontas para adaptar-se a novas regulamentações, a fim de evitar penalidades e aproveitar novos incentivos ou subsídios.

Organizações da sociedade civil, incluindo associações de agricultores e grupos ambientais, devem participar ativamente das discussões sobre políticas tributárias e defender práticas agrícolas sustentáveis e equitativas. Promover educação e conscientização sobre as implicações fiscais e econômicas das políticas agropecuárias é crucial para um entendimento mais amplo e uma participação efetiva no processo político.

As estratégias recomendadas visam orientar os stakeholders do agro para navegar em um ambiente econômico complexo e dinâmico, reforçando a posição do setor como um pilar central da economia nacional, e assegurando que suas práticas promovam o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental do país.

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Reforma do Código Civil exclui cônjuges da lista de herdeiros necessários

Entregue ao Senado Federal na quarta-feira (17/4) pela comissão de juristas responsável por sua elaboração, o anteprojeto de reforma do Código Civil apresenta uma novidade importante sobre sucessões: os cônjuges deixam de ser herdeiros necessários.

Pelas regras atuais, cônjuges têm direito a parte da herança legítima

Pela redação atual (de 2002) do artigo 1.845 do Código, os herdeiros necessários são os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.

Isso lhes garante direito a uma parte da herança legítima, que equivale a metade dos bens do falecido. Ou seja, 50% do patrimônio obrigatoriamente é destinado a todas essas pessoas e deve ser dividido entre elas.

Caso o texto sugerido pela comissão seja aprovado, o cônjuge será excluído do artigo 1.845 do Código Civil, uma medida que é bem vista por boa parte dos especialistas em Direito de Família e das Sucessões.

Regra atual

A advogada Silvia Felipe Marzagão, presidente da Comissão Especial de Família e Sucessões da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), explica que o cônjuge ou companheiro é considerado herdeiro “mesmo havendo regime de separação convencional estabelecido em vida”.

Hoje, o cônjuge só perde o direito à herança legítima se for deserdado “ou eventualmente declarado indigno”, conforme indica a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Em alguns regimes de bens, o cônjuge tem direito à meação, que corresponde à metade do total dos bens que integram o patrimônio comum do casal, adquirido em vida. Rafaella Almeida, associada de Família e Sucessões do escritório Trench Rossi Watanabe, ressalta que a proposta da comissão não altera essa possibilidade.

Mesmo se deixar de ser herdeiro necessário, o cônjuge ainda continuará na ordem de sucessão hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil. Os cônjuges ou conviventes são os terceiros nessa ordem, atrás de descendentes e ascendentes.

Isso significa que, se não houver um testamento, os bens são destinados aos descedentes e ascendentes. Na ausência deles, a tramissão é feita ao cônjuge.

Rafaella, porém, destaca que o cônjuge ainda poderia ser excluído da ordem de sucessão pelo testador, que poderia incluir tal previsão no testamento ou não contemplar o cônjuge ao dispor seu patrimônio.

Adequando o Código

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu que companheiros (de uma união estável) e cônjuges têm os mesmos direitos de herança.

Na ocasião, no entanto, a corte não deixou claro se os companheiros também poderiam ser considerados herdeiros necessários, o que gerou controvérsia. A solução encontrada pela comissão de revisão do Código Civil foi excluir os cônjuges — e, consequentemente, os companheiros — do artigo 1.845.

O presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira, afirma que a proposta “vem corrigir um grande erro do Código Civil de 2002”, que abriu uma “rota das injustiças”. O advogado sempre entendeu que companheiros não são herdeiros necessários.

Maior autonomia

Silvia Marzagão afirma que a proposta da comissão é positiva, pois “amplia a autonomia do autor da herança para dispor de seus bens”. A partir da mudança, seria possível “pensar em completa dissociação patrimonial entre os cônjuges ou companheiros, tanto em vida quanto após a morte”.

Felipe Matte Russomanno, sócio da área de Família e Sucessões do escritório Cescon Barrieu, também vê a alteração com bons olhos “porque ela permite uma maior disponibilidade sobre o patrimônio e a herança como um todo”.

Rafaella Almeida concorda que “a nova redação do dispositivo visa a promover a autonomia privada do testador, caso não seja de seu interesse dispor de seus bens ao cônjuge”.

Assim, o testador poderá organizar a herança da forma que preferir, dentro dos limites da herança legítima. “O objetivo da alteração é que o casamento deixe de ser um óbice ao direito de dispor do patrimônio próprio”, assinala a advogada.

Russomanno ressalta que, além da herança legítima, também existe a disponível, correspondente à outra metade do patrimônio. A pessoa pode dispor dessa parte dos bens da maneira como quiser.

Planejamento sucessório

Outro benefício identificado por Rafaella é o estímulo ao planejamento sucessório, que se refere às estratégias de organização para a transmissão dos bens aos herdeiros.

Segundo ela, os casais “poderão endereçar as suas vontades por meio de testamentos e pactos antenupciais, a fim de que não seja necessário escalar a questão judicialmente”.

Russomanno destaca que o planejamento sucessório “tem se tornado uma prática cada vez mais utilizada no Brasil”, embora ainda não seja popular.

Mesmo se for aprovada a alteração no texto do Código Civil, quem quiser contemplar o cônjuge com patrimônio ainda poderá usar o testamento ou outros mecanismos de planejamento sucessório. “Isso não significa necessariamente um prejuízo a cônjuges, mas, sim, uma maior disposição”, pontua o advogado.

Problemas

Por outro lado, Maria Berenice Dias diz que a regra proposta pela comissão “exclui direitos que haviam sido assegurados no Código Civil de 2002”. O problema, para ela, é que normalmente o patrimônio de um casal fica no nome do homem. Na visão da advogada, isso é fruto de uma sociedade conservadora, machista e fundamentalista.

A vice-presidente do IBDFAM reconhece que o anteprojeto estabeleceu alguns direitos sucessórios ao cônjuge e ao companheiro, “mas todos transitórios”.

Outro artigo do novo texto diz que o juiz poderá “instituir usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a subsistência” do cônjuge ou sobrevivente caso haja “insuficiência de recursos ou de patrimônio”.

No entanto, o dispositivo estipula que isso deixará de valer quando a pessoa “tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua subsistência” ou quando “constituir nova entidade familiar”.

Esta última condição é classificada por Maria Berenice como “um absurdo”, pois “acaba impondo um celibato a quem recebe esse eventual direito”.

Em outras palavras, o direito só vale se a pessoa “se mantiver fiel ao defunto”, sem a possibilidade de formar uma nova família após a morte do antigo cônjuge ou companheiro.

Outras mudanças

A advogada elogia um outro ponto do anteprojeto relacionado ao mesmo tema: a exclusão do direito dos cônjuges a um quarto da herança sobre os bens particulares — ou seja, bens que o outro cônjuge ou companheiro tinha antes do casamento ou da união estável, além daqueles recebidos por doação ou herança.

O artigo 1.832 do atual Código Civil garante ao cônjuge, caso seja ascendente dos outros herdeiros com quem concorrer, a reserva de um quarto da herança. A proposta da comissão acaba com essa regra.

Na opinião da vice-presidente do IBDFAM, a regra atual “sempre foi causa de um enriquecimento injustificado, porque esse patrimônio foi amealhado independentemente da participação do outro”.

O máximo que a advogada enxerga como possível é garantir ao cônjuge ou companheiro esse direito de concorrência sobre os bens adquiridos durante o casamento ou a união estável.

Segundo ela, são comuns as chamadas famílias recompostas, nas quais alguém divorciado ou viúvo se casa novamente com outra pessoa ou inicia uma união estável.

Hoje, o novo cônjuge ou companheiro fica com uma fatia dos bens particulares dessa pessoa. Isso, segundo Maria Berenice, gera conflitos e faz com que os filhos tentem impedir os pais (que tenham algum patrimônio) de constituir novos relacionamentos.

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Escritórios de advocacia não devem pagar guias judiciais dos clientes?

Nos últimos tempos, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) de todo o país têm proferido decisões no sentido de não conhecer de recursos interpostos pelas partes caso seja constatado que o recolhimento de custas e/ou depósito recursal tenha sido feito por um terceiro estranho ao processo.

Mas o que isso representa dizer na prática?

De acordo com essas decisões regionais, o pagamento só poderá ser efetuado pela própria parte litigante no processo judicial (reclamante ou reclamada), excluindo-se, por exemplo, o próprio escritório e/ou profissional da advocacia quem inclusive patrocina os interesses da causa, mesmo que fosse para antecipar o pagamento de tais despesas processuais mediante futuro reembolso, ainda que devidamente autorizado para tanto.

No entanto, tais decisões se olvidam que, por exemplo, no caso de custas judiciais, a guia GRU trabalhista é emitida pelo Banco do Brasil ou pela Caixa Econômica Federal, de sorte que somente os correntistas dessas instituições financeiras conseguem efetuar o pagamento via internet ou aplicativos. Do contrário, a parte precisa comparecer fisicamente em alguma agência bancária e efetuar o pagamento em espécie, presencialmente.

Legislação especializada

Do ponto de vista normativo, de um lado a CLT dispõe, no artigo 899 [2] e seus parágrafos, que em caso de recurso, a peça de irresignação deverá ser acompanhada do respectivo depósito recursal, sendo que na falta de recolhimento, o apelo não será apreciado pelo juízo. Lado outro, o artigo 789 [3] e seus incisos, no tocante à regulamentação das custas processuais, impõe a obrigação formal de que sejam elas recolhidas em guias específicas.

Nesse diapasão, para além da própria intenção de recorrer de uma decisão que a parte entenda lhe ser desfavorável, faz-se necessário o correto recolhimento do preparo recursal, sendo tal obrigação legal tida como um pressuposto recursal imperativo e intrínseco ao conhecimento do recurso.

Lição de especialista

A respeito da temática, oportunos são os ensinamentos do Advogado e Professor, Doutor Marcelo Braghini [4]:

“Ao tratarmos do preparo estamos por nos referir ao ônus processual de natureza tributária, segundo o qual o recorrente somente estará habilitado a recorrer após recolhimento das custas, compreende uma taxa, modalidade ligada a prestação de um serviço individualizado ao contribuinte (específico e divisível de acordo com o art. 145, inciso II, da CF), calculada á base de 2% (dois) por cento sobre o valor arbitrado na decisão como condenação (art. 789 da CLT), que poderá ocorrer uma única vez, ou todas as vezes que, diante da procedência de eventual recurso interposto, venha a ocorrer novo arbitramento que promova a majoração da condenação, exigindo o recolhimento da diferença para efeito do conhecimento do recurso subsequente.

Como uma característica inerente ao Processo do Trabalho, o conceito de preparo abrange não apenas custas, mas, igualmente, a exigência ao reclamado do depósito recursal em conformidade com o art. 899, § 1º, da CLT (…).”

Decisões contrárias dos TRTs ao recolhimento feito por terceiros

É sabido que existem notícias de decisões proferidas por diversos TRTs no sentido de que o pagamento de custas processuais e/ou do depósito recursal realizado por terceiros estranhos à lide caracteriza irregularidade processual, e, portanto, justifica a deserção do recurso interposto [5].

Aliás, em casos totalmente inusitados, os recursos não têm sido conhecidos pelo Poder Judiciário Trabalhista, mesmo em situações que o recolhimento do preparo recursal tenha sido feito pelo(a) advogado(a) do(a) cliente ou pelo escritório de advocacia que patrocina a causa, como ocorreu num certo processo cuja decisão foi proferida pelo TRT da 21ª Região [6].

No mesmo sentido, o TRT/SP da 2ª Região proferiu uma decisão destacando também que o preparo não pode ser realizado por empresas sejam integrantes do mesmo grupo econômico, devendo o ato ser feito apenas e exclusivamente pela parte que figura no polo passivo da ação [7].

Decisões favoráveis dos TRTs ao recolhimento feito por terceiros

Entrementes, no TRT-GO da 18ª Região, foi suscitada a instauração do denominado incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), para que fosse dirimida exatamente essa problemática, haja vista que no Estado de Goiás foram identificadas decisões colegiadas divergentes em diversos processos, sendo, ao final, firmada a seguinte tese jurídica:

TESE JURÍDICA: PREPARO. GUIAS DE RECOLHIMENTO GERADAS EM NOME DA RECORRENTE, COM A DEVIDA INDICAÇÃO DOS DADOS DO PROCESSO. PAGAMENTO REALIZADO POR PESSOA ESTRANHA À LIDE. VALIDADE. “Deve ser considerado válido o preparo quando as guias de recolhimento das custas e do depósito recursal hajam sido geradas em nome do recorrente, com a devida indicação dos dados do processo, independentemente do pagamento final haver sido realizado por pessoa estranha à lide, porquanto o contribuinte/recorrente/sacado é a figura central na efetivação do preparo.” [8]

Ora, de acordo com a referida tese, prevaleceu o entendimento de que, se o recolhimento do preparo recursal foi realmente feito em nome da parte litigante, cuja guia traz todas as informações relativas ao processo, em especial com a identificação do contribuinte/recorrente/sacado, não existe nenhum impedimento para que o pagamento seja feito por pessoa estranha ao processo, inclusive na pessoa física do(a) advogado(a) ou escritório de advocacia que antecipa e gerencia os recursos financeiros do(a) cliente.

Nesse mesmo diapasão, o TRT da 11ª Região já decidiu pela validade do ato de recolhimento das custas processuais feito por terceiro, notadamente pela impossibilidade de a parte litigante não possuir conta bancária na Caixa Econômica Federal ou no Banco do Brasil, pressuposto esse para que tal finalidade seja cumprida pelo sistema bancário digital [9].

Visão do TST

De acordo com a Súmula nº 128, item I, do TST, “é ônus da parte recorrente efetuar o depósito legal, integralmente, em relação a cada novo recurso interposto, sob pena de deserção”. E, sobre a temática, a Corte Superior Trabalhista tem se inclinado a afastar a deserção na defesa pelo conhecimento do recurso quando os elementos existentes no processo possibilitam apurar a realização do preparo recursal, a tempo e modo [10].

Nessa perspectiva, o TST também já foi provocado a emitir juízo de valor sobre o assunto, de modo que já há decisão pela inaplicabilidade da deserção quando é possível identificar na guia o nome da parte recorrente, o número do processo e o valor recolhido a título de depósito recursal [11].

Em seu voto, o ministro relator ponderou o seguinte:

“(…). Insta salientar a necessária observância dos princípios da razoabilidade, da instrumentalidade e da finalidade dos atos processuais que impede o excesso de rigor e formalismo para a prática do ato processual, se a lei assim não dispõe e se foi atingida a finalidade do ato.

Assim, existindo elementos que vinculem os valores recolhidos a título de depósito recursal à demanda, ainda que efetuado por empresa que não consta do polo passivo, mas pertencente ao mesmo grupo econômico, não há que se falar em deserção do recurso ordinário.”

Em outra situação semelhante, o TST também decidiu que, uma vez alcançada a finalidade essencial do ato processual, e, claro, desde que viabilize a identificação do recolhimento do documento de arrecadação de receitas federais, não há que se falar em deserção recursal por ter sido o pagamento feito por terceiro estranho à lide [12].

Contudo, é importante destacar que, em sentido contrário, existem algumas decisões da Corte Superior que entendem pela aplicação literal do item I da Súmula nº 128, de sorte que se o preparo, v.g., for feito por empresa integrante de grupo econômico, terceira estranha, portanto, à lide trabalhista, o recurso não será conhecido por deserção [13], devendo o ato de recolhimento bancário ser efetivado pela parte que figura no polo passivo da ação [14].

Conclusão

Impende destacar que, com os avanços tecnológicos, é bastante comum hoje pessoas físicas ou jurídicas optarem por bancos digitais. Ora, como o pagamento de guias judiciais, a exemplo da guia GRU de custas processuais, não pode ser realizado frente a qualquer banco, s.m.j., não se mostra minimamente razoável a prematura deserção do recurso quando seja possível verificar na guia os elementos essenciais que identificam o processo.

Entendimento em sentido contrário, em arremate, reafirma uma nefasta prática que fora conhecida como “jurisprudência defensiva”, cuja antiga visão panprocessualista do processo cede lugar à moderna e atual instrumentalidade. Até porque é por demais desarrazoado exigir que a parte, que não tenha conta nos chamados bancos públicos, carregue em mãos e pelas ruas dinheiro em espécie, na busca de uma agência bancária física que, a propósito, também está cada dia mais difícil de encontrar após a pandemia.

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[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Art. 899. Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora. (…).

[3]Art. 789.  Nos dissídios individuais e nos dissídios coletivos do trabalho, nas ações e procedimentos de competência da Justiça do Trabalho, bem como nas demandas propostas perante a Justiça Estadual, no exercício da jurisdição trabalhista, as custas relativas ao processo de conhecimento incidirão à base de 2% (dois por cento), observado o mínimo de R$ 10,64 (dez reais e sessenta e quatro centavos) e o máximo de quatro vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, e serão calculadas: (…)”.

[4] Direito do trabalho e processo do trabalho em volume único – 2ª ed. – Leme-SP:  Mizuno, 2022.

[5] TRT-8 – ROT: 00000066420225080106, Relator: ALDA MARIA DE PINHO COUTO, 4ª Turma, Data de Publicação: 27/06/2023.

[6] TRT-21 – RORSum: 0000275-94.2023.5.21.0013, Relator: RONALDO MEDEIROS DE SOUZA, Segunda Turma de JulgamentoGabinete do Desembargador Ronaldo Medeiros de Souza.

[7] TRT-2 – ROT: 1001146-88.2021.5.02.0019, Relator: CINTIA TAFFARI, 12ª Turma.

[8] Disponível em https://www.trt18.jus.br/portal/arquivos/2024/03/IRDR-0011549-78.2023.5.18.0000.pdf. Acesso em 15.4.2024.

[9] TRT-11 00014787620185110003, Relator: FRANCISCA RITA ALENCAR ALBUQUERQUE, 1ª Turma

[10] ARR-1000298-87.2017.5.02.0069, 7ª Turma, Relator – Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 12/05/2023.

[11] TST – RR: 00014695520155200008, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 22/03/2017, 7ª Turma, Data de Publicação: 31/03/2017.

[12] TST- Ag-AIRR-54100-48.2012.5.21.0009, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 7ª Turma, DEJT 12/08/2016.

[13] RR-11802-64.2019.5.15.0073, 4ª Turma , Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 8/4/2022.

[14] AIRR – 258-55.2012.5.03.0042, Relator Ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 24/2/2016, 7ª Turma , Data de Publicação: DEJT 4/3/2016.

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Segurado que se obrigou a manter ex-esposa em seguro de vida por acordo judicial não pode retirá-la unilateralmente

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou nula a alteração de beneficiária de seguro de vida em grupo realizada por segurado que se obrigou, em acordo de divórcio homologado judicialmente, a manter a ex-esposa como única favorecida do contrato. Para o colegiado, ao se comprometer a manter a ex-mulher como beneficiária, o segurado renunciou à faculdade de livre modificação da lista de agraciados e garantiu a ela o direito condicional (em caso de morte) de receber o capital contratado.

No mesmo julgamento, o colegiado entendeu que o pagamento feito a credores putativos – ou seja, credores aparentes – não poderia ser reconhecido no caso dos autos, pois a seguradora agiu de forma negligente ao não tomar o cuidado de verificar quem, de fato, tinha direito a receber o benefício.

Na origem, a mulher ajuizou ação contra a seguradora para anular a nomeação dos beneficiários de seguro de vida deixado por seu ex-marido falecido, que refez a apólice após o segundo casamento e a excluiu da relação de favorecidos. No processo, a ex-esposa provou que fez um acordo judicial de divórcio com o segurado, em que constava que a mulher seria a única beneficiária do seguro de vida em grupo ao qual ele havia aderido. 

O juízo de primeiro grau julgou improcedente a ação por considerar que a seguradora agiu de boa-fé ao pagar a indenização securitária aos beneficiários registrados na apólice, de modo que não poderia ser responsabilizada pela conduta do segurado. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), entretanto, reformou a sentença e determinou que a ex-esposa recebesse a indenização sob o fundamento de que a estipulação feita no acordo de divórcio tornava ilícita a exclusão da mulher como beneficiária do seguro.

Ao STJ, a seguradora alegou que o pagamento feito por terceiro de boa-fé a credor putativo é válido. Dessa forma, argumentou, ela não poderia ser responsabilizada por seguir o disposto na apólice, em situação de aparente legalidade.

Segurado desrespeitou direito garantido à ex-esposa

Segundo o relator do caso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o artigo 791 do Código Civil permite a substituição de beneficiários do contrato de seguro de vida pelo segurado, a menos que a indicação esteja vinculada à garantia de alguma obrigação ou o próprio segurado tenha renunciado a tal faculdade.

Nesse contexto, apontou, se o segurado abrir mão do direito de substituição do beneficiário, ou se a indicação não for feita a título gratuito, o favorecido deve permanecer o mesmo durante toda a vigência do seguro de vida. Segundo explicou o relator, nessa situação, o beneficiário “não é detentor de mera expectativa de direito, mas, sim, possuidor do direito condicional de receber o capital contratado, que se concretizará sobrevindo a morte do segurado”.

No caso dos autos, em razão do acordo homologado pela Justiça em que havia obrigação de manter a ex-esposa como beneficiária exclusiva do seguro de vida, o ministro Cueva entendeu que “o segurado, ao não ter observado a restrição que se impôs à liberdade de indicação e de alteração do beneficiário no contrato de seguro de vida, acabou por desrespeitar o direito condicional da ex-esposa, sendo nula a nomeação na apólice feita em inobservância à renúncia a tal faculdade”, observou.

Devedor deve demonstrar boa-fé e postura diligente

Em relação ao pagamento feito aos credores que aparentemente teriam direito ao crédito (credores putativos), Villas Bôas Cueva destacou que sua validade depende da demonstração da boa-fé objetiva do devedor. Dessa forma, segundo ele, seria necessária a existência de elementos suficientes para que o terceiro tenha sido induzido a acreditar que a pessoa que se apresenta para receber determinado valor é, de fato, o verdadeiro credor.

Por outro lado, o relator ressaltou que a negligência ou a má-fé do devedor tem como consequência o duplo pagamento: uma, ao credor putativo e outra, ao credor verdadeiro, sendo cabível a restituição de valores a fim de se evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes.

Para o ministro, a situação do processo indica que a seguradora não adotou a cautela necessária para pagar o seguro à verdadeira beneficiária.

“Ao ter assumido a apólice coletiva, deveria ter buscado receber todas as informações acerca do grupo segurado, inclusive as restrições de alteração no rol de beneficiários, de conhecimento da estipulante. Diante da negligência, pagou mal a indenização securitária, visto que tinha condições de saber quem era o verdadeiro credor, não podendo se socorrer da eficácia do pagamento a credor putativo”, concluiu o ministro ao negar provimento ao recurso especial.

Fonte: STJ

Volume de prisões preventivas mantém execução antecipada viva no Brasil

Especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmaram que parte das prisões preventivas decretadas no país funcionam na prática como um substitutivo da execução antecipada da pena.

Segundo especialistas, em alguns casos prisões preventivas servem como substitutivo de execução antecipada

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), 213 mil pessoas que estavam presas no Brasil até o fim de 2023 não tinham sido condenadas. Há 20 anos, em 2003, o número de presos provisórios era consideravelmente menor: 67 mil.

De acordo com especialistas, o dado pode ser explicado a partir de diversos fatores, como a insistência de juízes em decidir de forma contrária aos precedentes firmados por tribunais superiores e a mentalidade punitivista que se reflete na legislação e no dia a dia do Judiciário.

A maioria, no entanto, aponta para a Lei de Drogas (Lei 11.343/06) e para a falta de distinção objetiva entre porte e tráfico como os maiores problemas.

A diferenciação está em discussão no Supremo Tribunal Federal. Uma proposta de emenda à Constituição aprovada pelo Senado na terça-feira (16/4), no entanto, pode deixar a definição do assunto em suspenso. O texto considera crime o porte de drogas de qualquer quantidade.

Execução antecipada

Desde que assumiu o posto no Superior Tribunal de Justiça, em novembro de 2023, a ministra Daniela Teixeira diz que tem julgado uma média de 100 pedidos de Habeas Corpus por dia, grande parte deles envolvendo prisões por porte de drogas ou crimes patrimoniais, como o furto.

“O que eu tenho observado é uma imensa quantidade de preventivas equivocadas. A prisão é decretada como uma pena antecipada, em que se prende para dar à sociedade uma sensação de segurança, porque a punição poderia demorar”, disse à ConJur.

Por vezes, afirma, as preventivas são decretadas até quando a conclusão do caso dificilmente levaria à prisão. “Há casos envolvendo pessoa presa por furto sem violência, de bens de mínimo valor, processos aos quais ela não precisaria responder presa porque ao fim ela não será presa”, diz.

Ela cita como exemplo casos recentes que chegaram ao seu gabinete, como prisões por furto de moletom usado, shampoo e fraldas, em que, em julgamento, a tendência é a aplicação do princípio da insignificância.

“Muitas das preventivas se dão ao arrepio da lei, sem requisitos de prisão antes da sentença, o que deveria ser excepcional. Nesses casos, em média, a cada sete HCs, um eu defiro”, disse.

Prisão como ‘benefício social’

Diego Polachini, que atua no Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, tem interpretação semelhante. De acordo com ele, parte das prisões servem para “mandar um recado” à sociedade, mesmo que se saiba desde o início que depois da sentença a pessoa será solta.

“Me parece que a polícia e o Judiciário acreditam que a prisão provisória traz algum benefício social, pois utilizam esse instrumento como uma solução para todos os problemas. A prisão funciona como um suposto combate à criminalidade, sem ao menos pensarmos sobre as violações e a eficiência dessa política”, afirma.

Segundo ele, a discussão em torno das prisões provisórias é complexa para que se aponte apenas um problema. No entanto, diz, a Lei de Drogas e a falta de critérios objetivos para diferenciar tráfico e porte para consumo tem se mostrado um problema.

“A guerra às drogas é utilizada como uma desculpa para uma encarceramento de uma população preta e pobre, focando na prisão de uma população já muito vulnerável. Normalmente sem a demonstração concreta da necessidade da prisão provisória, que deveria ser algo extraordinário.”

Segundo o ministro Rogerio Schietti, do STJ, apesar de o número de prisões preventivas ser alto, ele vem diminuindo proporcionalmente nos últimos anos.

“Além da revisão a cada 90 dias, considero que a jurisprudência dos tribunais superiores exigindo maior rigor no exame das cautelas, além das alterações legislativas trazidas pela Lei 11.964/2019, foram determinantes”, disse.

“Há uma falácia no discurso geral, de que temos um número de presos provisórios de 40%. Há anos que estamos nos afastando desse percentual elevado. Hoje está na faixa dos 25%. Mas vejo pessoas insistindo em falar em quase metade de presos provisórios”, concluiu.

Tema recorrente

No STJ, discussões envolvendo prisões preventivas estão entre as mais recorrentes. Segundo dados do Boletim Estatístico da corte, 9.141 casos envolvendo esse tipo de prisão despontaram no tribunal em 2023.

Na lista de assuntos mais recorrentes, ficou atrás somente de tráfico de drogas (43.117 casos), homicídio qualificado (13.670) e roubo majorado (13.529).

Quanto aos casos de tráfico, afirmam especialistas, uma definição por parte do Supremo sobre para diferenciar tráfico e porte seria muito bem-vinda. O plenário do STF discute o tema no RE 635.659.

Até o momento, a corrente com o maior número de votos entende que devem ser presumidos como usuários aqueles que guardam, adquirem, têm em depósito, transportam ou trazem consigo até 60 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas.

Cerca de um terço dos casos em que há condenação por apreensão de maconha envolvem pessoas que portavam até 40 gramas da droga, segundo levantamento feito pelo Ipea em 2023. Assim, eventual decisão do Supremo poderia impactar não só preventivas, mas também casos em que já há sentença.

Como resposta ao julgamento, o Congresso começou a analisar uma proposta de emenda à Constituição que considera crime o porte de qualquer quantidade de droga. O texto foi aprovado pelo Senado na terça-feira.

Segundo ministros do Supremo ouvidos em reserva pela ConJur, no entanto, o julgamento poderia prosseguir mesmo com a eventual promulgação da PEC.

Isso porque o texto que está no Legislativo não trata de quantidade para diferenciar tráfico e porte, nem altera o dispositivo da Lei de Drogas que é analisado pela Corte.

Fonte: Conjur

STF começa a analisar lei que impõe restrições para laqueadura

O Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu nesta quarta-feira (17) as sustentações orais das partes envolvidas no julgamento sobre a constitucionalidade da lei que estabeleceu critérios para realização de cirurgias de esterilização voluntária de homens e mulheres, métodos conhecidos como vasectomia e laqueadura. 

Os ministros ouviram representantes de diversas entidades que atuam na defesa dos direitos das mulheres e da defensoria pública antes de proferirem seus votos. A data do julgamento do processo ainda não foi definida.

A Corte vai julgar trechos da Lei 9.263/1996, conhecida como Lei do Planejamento Familiar, a partir de uma ação protocolada pelo PSB, em 2018. Na prática, as restrições atingem principalmente as mulheres.

O texto original previa que homens e mulheres só poderiam realizar laqueadura e vasectomia se tivessem idade mínima de 25 anos, pelo menos dois filhos vivos, e após o cumprimento de intervalo mínimo de 60 dias.

No período, de acordo com a lei, homens e mulheres devem ter acesso a serviço de aconselhamento para “desencorajar a esterilização precoce”. Além disso, a norma definiu que a esterilização dependia da autorização expressa do cônjuge.

Em 2022, a Lei 14.443 promoveu alterações na norma original sobre o tema. A autorização para realização da laqueadura foi retirada, e a idade mínima passou para 21 anos. Contudo, a restrição do método continuou condicionado ao número mínimo de dois filhos.

Durante as sustentações, a advogada Ana Letícia Rodrigues, representante do PSB, afirmou que as limitações são contra os direitos reprodutivos e representam interferência indevida do Estado no planejamento familiar dos brasileiros.

“Trata-se de uma intolerável intervenção estatal, que condiciona a prática de um direito a um uso específico do corpo e sexualidade, qual seja, a concepção de filhos, reforçando uma cultura de maternidade compulsória, dificultado acesso a método contraceptivo eficaz”, afirmou.

A advogada Ligia Ziggiotti, do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), disse que a autonomia das mulheres deve ser respeitada e a esterilidade voluntária deve ser garantida para mulheres com mais de 18 anos. Para Ligia, não cabe ao Estado exigir mais maturidade ou mais filhos para condicionar a laqueadura.

“Um Estado que seja democrático de direito não pode limitar um exercício de liberdade, partindo da premissa de que a escolha de uma mulher civilmente capaz que não deseje engravidar é uma escolha duvidosa”, afirmou.

Para a defensora pública Tatiana Mello Aragão, representante da Defensoria Pública da União (DPU), somente a idade mínima de 18 anos pode ser imposta para impedir a esterilização voluntária.

“Embora a disposição legislativa seja dirigida a ambos sexos, a mulher experimenta de forma muito mais intensa essa situação. Historicamente, a ela compete o dever de evitar a concepção, tanto que a laqueadura é amplamente mais utilizada no Brasil que a vasectomia”, completou.

O novo modelo que ouve as partes em plenário antes do julgamento foi implantado no ano passado pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso. O método é utilizado pela Suprema Corte dos Estados Unidos.

Fonte:

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Ministério Público vai investigar atos de racismo em escola do DF

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) vai investigar atos de racismo registrados durante uma partida de futsal entre alunos de duas escolas particulares de Brasília. Em nota, a entidade diz que o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) instaurou notícia de fato para esclarecer o incidente e apurar as responsabilidades.

“O NED/MPDFT agendou reuniões com representantes das respectivas instituições de ensino e com o Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Distrito Federal”, informou o Ministério Público. O órgão pede ainda que todas as escolas do DF promovam ações de prevenção e enfrentamento a discriminações, integrando a comunidade escolar no debate.

Entenda

No último dia 3, alunos da Escola Franciscana Nossa Senhora de Fátima compareceram ao Colégio Galois para uma partida de futsal válida pelo torneio Liga das Escolas. Durante o jogo, os estudantes foram vítimas de preconceito social e injúria racial, conforme relato da diretora da Escola Franciscana Nossa Senhora de Fátima, Inês Alves Lourenço.

“Na ocasião, os alunos do Colégio Galois proferiram diversas palavras ofensivas aos alunos da Escola Fátima, tais como ‘macaco’, ‘filho de empregada’ e ‘pobrinho’, tornando o ambiente inóspito e deixando nossos alunos abalados”, disse. “Vale salientar que, embora diversos responsáveis estivessem no local, nenhuma providência efetiva e adequada foi adotada pelos prepostos do Colégio Galois que estavam presentes nas instalações do ginásio.”

Em nota, o diretor do Colégio Galois, Angel Andres, lamentou o que avaliou como “comportamento reprovável” dos alunos de sua instituição e concordou com a diretora do Escola Franciscana Nossa Senhora de Fátima, ao afirmar que “o preconceito racial e social não deve ter espaço em nenhum ambiente, especialmente em uma escola, onde os alunos devem ser ensinados a valorizar a diversidade e a promover o entendimento mútuo”.

“Pudemos apurar que, no intervalo do jogo, o professor do Galois que acompanhava os atletas foi comunicado pelo juiz da partida e pelo treinador da sua instituição a respeito de atitudes lamentáveis de alguns alunos que estavam na torcida. Nosso professor questionou o juiz do porquê não ter interrompido o jogo imediatamente após os insultos. Em seguida, nosso professor conversou com a torcida e o segundo tempo transcorreu normalmente.”

“Estamos identificando os responsáveis para aplicação das devidas medidas disciplinares e educativas. Ademais, estamos organizando atos de conscientização e contrição. Pedimos desculpas pelo ocorrido e agradecemos a preocupação, que também é nossa, com a boa formação e educação de crianças e jovens”, acrescenta a nota do Galois.

Repúdio

Em nota de repúdio publicada no último sábado (13), o Ministério do Esporte condenou os atos. O comunicado cita a indignação e a tristeza causadas por relatos de insulto racistas direcionados a jovens atletas.

“São profundamente perturbadores e contrários aos valores de igualdade, respeito e diversidade que defendemos”, diz o texto. “É inaceitável que episódios de discriminação racial persistam em nossa sociedade, especialmente em um ambiente tão importante para o desenvolvimento social e pessoal como o esporte escolar.”

Fonte:

Logo Agência Brasil

A Constituição mulher (licença maternidade, Carf e vinculatividade)

Eu-Mulher
Uma gota de leite

me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes — agora — o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
(Conceição Evaristo)

No último domingo, 14 de abril de 2024, acordei com a notícia de que o presidente da República houvera assinado o parecer do advogado geral da União (AGU) a respeito da extensão do direito à licença maternidade a quaisquer formas de contratação da Administração Pública Federal. Instantaneamente me lembrei de um trecho que, por ter me emocionado, grifei no livro “A Filha Perdida”, da heterônoma italiana Elena Ferrante: “no fim das contas, precisamos sobretudo de ternura, mesmo que seja fingida. Reabri os olhos.” [1]

Histórico do problema da licença maternidade no Carf

De olhos fechados, lembro que o tema da licença maternidade com relação às mulheres que foram/são conselheiras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) enquanto representantes dos contribuintes, no regime paritário adotado pelo Órgão (cf. artigo 25, II do Decreto 70.235/72), é um drama vivido desde 2015.

Isto porque, antes da operação zelotes, os conselheiros representantes dos contribuintes estavam sujeitos a um regime jurídico pelo qual: i) não eram remunerados pelo órgão; ii) podiam exercer a advocacia concomitantemente à função exercida no Carf; e iii) não estavam sujeitos a rigorosos controles e metas de produtividade.

Tal quadro modificou-se profundamente a partir de 2015, quando da reestruturação do órgão. Tal reestruturação se deu com base na publicação do Decreto 8.441, de 29 de abril de 2015, o qual dispôs sobre as restrições ao exercício de atividades profissionais aplicáveis aos representantes dos contribuintes no Carf, conjuntamente com a Portaria MF n. 343, que, em 9 de junho de 2015, estabeleceu novo Regimento Interno para o Órgão do Ministério da Fazenda.

Esses diplomas normativos estabeleceram a vedação de que conselheiros representantes dos contribuintes pudessem continuar a exercer a advocacia concomitantemente ao exercício da função de conselheiros.

Nesse contexto, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deliberou que, uma vez nomeada conselheira representante dos contribuintes, a advogada incorre na incompatibilidade prevista no artigo 28, inciso II, da Lei n. 8.906/19945, razão pela qual as advogadas nomeadas conselheiras do Carf deveriam licenciar-se da advocacia.

Não podendo viver da advocacia, as novas conselheiras não poderiam viver de ar.

Assim é que a União passou a remunerar as conselheiras representantes dos Contribuintes, mediante o que denominou gratificação de presença, forma de remuneração prevista na Lei 5.708/1971, como contrapartida à participação em órgãos de deliberação coletiva (tradicionalmente conhecida como jeton de présence, ou somente jeton), modalidade de pagamento essa utilizada para remunerar, entre outros, os chamados “agentes honoríficos”.

Importante aqui frisar que o pagamento do jeton de présence é a contrapartida pela elaboração de votos, preparação de pautas de julgamento, estudos em vistas de processos, redação de votos-vencedores e declaração de votos, atendimento dos advogados, formalização de votos, entre outras atribuições das conselheiras do Carf, em regime de dedicação integral. Não basta estar presente nas sessões de julgamento para ser conselheira.

Apesar disso, a cruel interpretação que foi dada pela Administração Pública à época em que as primeiras conselheiras do Carf começaram a ter de lidar com esse “regime jurídico”, foi de que a sua falta nas sessões de julgamento, após o nascimento de seus filhos, vale dizer, durante o período de licença maternidade, não configuraria situação extraordinária que pudesse dar direito ao pagamento do jeton de présence (cf. artigo 6º-A do Decreto-Lei n. 1.437, de 17 de dezembro de 1975, com redação trazida pela Lei n. 13.464/2017º).

Vale dizer, as mulheres cuja única (ou principal) fonte de renda, por determinação legal, eram os vencimentos pagos pelo Ministério da Fazenda, deveriam restar em seus lares, puérperas, sem direito a qualquer remuneração durante o período da licença maternidade.

Judicialização do tema

Como não poderia deixar de ser, as mulheres cujo direito constitucionalmente assegurado à licença maternidade remunerada (artigo 7º, inciso XVIII da Constituição[2] estava sendo pisoteado pela Administração Pública foram ao Poder Judiciário, via mandados de segurança, para tentar fazer valer os dizeres da Constituição.

Algumas tiveram mais sorte, mas por uma interpretação formalista dada pelas Varas de Justiça Federal, muitas conselheiras do Carf tiveram seus apelos à tutela jurisdicional negados. A resposta dada em sentenças era: o Decreto nº 8.441/2025 diz que somente há remuneração se houver presença, de modo que a falta das conselheiras durante as sessões de julgamento do Carf tinha que ter, como consequência, a falta de pagamento da licença maternidade. Que essas mulheres procurem o INSS (uma vez que contribuem à seguridade social como contribuintes individuais), disseram os juízes.

A pergunta que se fazia era: como querem, Administração e Judiciário, que as conselheiras mães peguem um avião, recém-paridas, com recém-nascidos não vacinados, para estar em Brasília para reuniões presenciais? Atualmente, perguntar-se-ia se gostariam que a mãe deixe seu filho recém-nascido de lado, enquanto participa de reuniões virtuais durante todo o dia? Vê-se o tamanho do devaneio que chegam, porque a pergunta que deveria ser feita era: ninguém leu a Constituição?

Nessa hora tenho certeza de que a Constituição é mulher e me lembro de Isabel Allende.

Em uma de suas mais recentes obras, a reconhecidíssima escritora nascida no Peru, porém cuja vida literária iniciou-se no Chile, narra que depois te ter publicado vinte livros, com tradução para mais de quarenta idiomas, um escritor chileno manifestou-se a respeito da candidatura de Isabel Allende ao Prêmio Nacional de Literatura.

Ele disse que a Allende não era escritora, era “escrevinhadora”, não merecendo nem mesmo a indicação ao prêmio. Quando esse desconhecido, então e até hoje, escritor foi questionado sobre o fundamento de sua opinião a respeito da obra de Allende, ele responde que não a tinha lido e que não a leria nem morto[3]

À licença maternidade reconhecida pelo STF e a vinculação conferida pela AGU

Para que possamos ainda ter orgulho das nossas instituições, o Supremo Tribunal Federal exerceu com maestria sua função de guardião da Constituição ao julgar o RE nº 842.844/SC. O caso concreto, que chegou ao STF por recurso extraordinário manejado pelo estado de Santa Catarina, trata de uma professora com regime de contratação temporária que teve seu direito à licença maternidade negado.

Sob a Presidência da senhora ministra Rosa Weber, o STF trouxe precedente com eficácia erga omnes, cujos dizeres principais merecem transcrição:

“3. A Constituição Federal de 1988 se comprometeu com valores como a igualdade de gênero e a liberdade reprodutiva, sendo certo que a condição da trabalhadora gestante goza de proteção reforçada, com respeito à maternidade, à família e ao planejamento familiar.

  1. O Texto Constitucional foi expresso em ampliar a proteção jurídica à trabalhadora gestante, a fim de garantir como direito fundamental a licença maternidade (art. 7º XVIIII, CF/1988), além de assegurar a estabilidade provisória no emprego. 5. A licença-maternidade, prevista como direito indisponível, relativo ao repouso remunerado, pela Carta Magna de 1988, impõe importantíssimo meio de proteção não só à mãe trabalhadora, mas, sobretudo, ao nascituro, salvaguardando a unidade familiar (art. 226 da CF/1988), como também a assistência das necessidades essenciais da criança pela família, pelo Estado e pela sociedade (art. 227 da CF/1988). (…)
  2. A proteção ao trabalho da mulher gestante é medida justa e necessária, independente da natureza jurídica do vínculo empregatício (celetista, temporário, estatutário) e da modalidade do prazo do contrato de trabalho e da forma de provimento (em caráter efetivo ou em comissão, demissível ad nutum). (…)
  3. Em sede de repercussão geral, a tese jurídica fica assim assentada: “A trabalhadora gestante tem direito ao gozo de licença-maternidade e à estabilidade provisória, independentemente do regime jurídico aplicável, se contratual ou administrativo, ainda que ocupe cargo em comissão ou seja contratada por tempo determinado, nos termos dos arts. 7º, XVIII; 37, II; e 39, § 3º; da Constituição Federal, e 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.” (g.n.)

Vê-se que, embora o caso concreto tenha partido de uma servidora pública, o STF fez questão de, em sua leitura do texto constitucional, a todo tempo frisar que o direito constitucional à licença maternidade é de toda trabalhadora mulher, independentemente de qualquer melindre do seu regime contratual ou administrativo.

Durante os votos proferidos fica claro que quando se fala em licença maternidade, está-se falando de um todo indissociável com a remuneração a ela atrelada, nos termos do próprio artigo 7º, inciso XVIII da Constituição. “Licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário”, diz o mandamento constitucional.

Nesse sentido foi fixado o Tema 542: para todas as trabalhadoras fica resguardado o direito de ter filhos e seguir sua jornada profissional plena, ou seja, garantida a estabilidade e a remuneração correspondente, nos termos da Constituição social e cidadã que vige no Brasil.

A maternidade é uma função social. É dessa premissa basal que decorre a ratio decidendi por trás Tema 542, no sentido de espancar tentativas de “categorização” de regimes de trabalho e para fins de interpretação do direito fundamental à licença maternidade remunerada. A ordem do Supremo é “descategorizem-se”, e deem efetividade aos dizeres da Constituição.

Tal decisão está na toada da bela jurisprudência do STF sobre a proteção da maternidade e da infância, bem lembrada no Parecer AGU/CGU nº 3/2024, e cuja submissão foi feita ao presidente da República para os efeitos do artigo 40, § 1º, da Lei Complementar n. 73/1993. Ou seja, embora a decisão do STF proferida no RE nº 842.844/SC tenha efeitos erga omnes, não tinha eficácia vinculante perante os órgãos da Administração Pública Federal. Com a assinatura e publicação do Parecer, tal vinculação existe.

Agora as conselheiras e ex-conselheiras do Carf representantes dos contribuintes, que tiveram seus filhos durante o exercício dos seus mandatos, podem reabrir os olhos.

Repercussão para os casos passados, presentes e futuros das conselheiras-mães

O Parecer AGU/CGU nº 3/2024 incorporou o entendimento firmando pelo Supremo no Tema 542, vinculando à Administração Pública Federal, no contexto do, em suas palavras, “necessário reconhecimento de direitos e a cultura de redução de litigiosidade, especialmente ante a formação de precedentes qualificados.”

Assim, entende-se e espera-se que todas as dificuldades enfrentadas pelas conselheiras do Carf representantes dos contribuintes deixem de existir em termos de litígios administrativos e judiciais.

Para as conselheiras que, doravante, venham a engravidar e ter seus filhos enquanto do exercício de seus mandatos, basta que informem o caso e requeiram à Presidência do Carf que, uma vez apresentada a certidão de nascimento de seus filhos, seja garantida a remuneração integral, ainda que por complementação ao teto pago pelo INSS, durante a vigência da licença maternidade.

Para aquelas conselheiras e ex-conselheiras que levaram seus casos ao Poder Judiciário e aguardam decisão final sobre o tema, certamente julgamentos contrários ao entendimento do STF no Tema 542 deverão ser reformados, por respeito ao sistema de precedentes, ainda que não vinculantes, que temos cada vez mais forte em nossa jurisdição.

Para aquelas cuja decisão já era compassada com o julgamento do Supremo Tribunal Federal, mas que aguardam decisão final sobre recurso interposto pela Fazenda Pública, não há mais o menor sentido falar em interesse de recorrer por parte dos representantes da União. Os casos devem prontamente decididos no sentido de garantir o pagamento que não fora feito pelo Carf, uma vez transitado em julgada a decisão judicial.

E, finalmente, para aquelas conselheiras e ex-conselheiras que optaram por, desde o início, mostrar do que uma mãe é capaz e trabalharam mesmo durante suas licenças — para evitar a penúria da ação judicial e a falta do devido pagamento de sua integral remuneração durante os meses de licença —, indubitável seu direito de mover a máquina Judiciária para, se não decaído (cf. artigo 1º do Decreto nº 20.910, de 06 de janeiro de 1932), ver seu direito à remuneração reconhecido e adimplido pela Fazenda Pública.

Conclusão sonora

Senti a fingimento, mas também ternura, de muitos que acompanharam a situação vivenciada pelas conselheiras do Carf sobre o tema da licença maternidade nos últimos anos. Agora, como Hilda Hilst, “contente de mim mesma me inauguro sonora”, [4] para compartilhar na coluna de hoje que finalmente tivemos evoluções substanciais, no sentido de garantir a licença maternidade remunerada das mães trabalhadoras.

Tanto o STF cumpriu seu papel ao tirar qualquer amarra do direito fundamental à licença maternidade remunerada, quanto a AGU e a Presidência da República outorgaram a necessária vinculação da Administração Federal ao tema.

Assim, ao nosso sentir, o entendimento mais adequado com a ordem jurídica é que o Parecer AGU/CGU nº 3/2024 deve englobar o caso das conselheiras do Carf. Afirmar o contrário significaria amesquinhar, mais uma vez, o direito fundamental dessas mães, que trabalham exercendo função pública inconteste dentro do Ministério da Fazenda, vale dizer, no seio da Administração Pública Federal, que é justamente a quem se dirige o Parecer AGU/CGU nº 3/2024.

Para finalizar, pergunto-me quando o busto de Hilda Hilst será colocado ao lado de Álvares de Azevedo na frente de nossa Gloriosa Facvldade de Direito do Largo de São Francisco. Já é hora. Boa hora.

______________________________

[1] Trecho da obra “A Filha Perdida”, de Elena Ferrante; tradução Marcelo Lino, 1ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Intrínseca, 2016, p. 135.

[2] “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias.

[3] Trecho da obra “Mulheres de Minha Alma”, de Isabel Allende, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021, 4ª ed., p. 79.

[4] Hilda Hilst, DA POESIA, 1ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2017, p. 141.

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Prevenção contra o assédio moral: uma questão de tipificação?

Muito se tem debatido a respeito da tipificação do assédio moral. Há quem sustente que a criação de um crime específico seria o único meio efetivo para sua prevenção. Por outro lado, muitos argumentam que a criminalização de mais uma conduta não seria a bala de prata para solucionar o crescente número de casos desse tipo que têm permeado o ambiente corporativo brasileiro.

O Projeto de Lei mais recente sobre o tema (PL 1.521/2019) está em trâmite no Senado Federal e tem por objetivo tipificar a conduta de “ofender reiteradamente a dignidade de alguém causando-lhe dano ou sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função”, com pena de detenção de um a dois anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Não há ainda definição legal de assédio moral na esfera trabalhista, sendo que, de forma geral, a doutrina e jurisprudência têm considerado assédio moral qualquer situação humilhante e constrangedora, repetitiva e prolongada, durante o trabalho e no exercício de funções profissionais, com o objetivo de desestabilizar a pessoa emocionalmente. Com base nesse conceito, a Justiça Trabalhista tem reconhecido a prática do assédio moral e indenizado as vítimas.

Na esfera criminal, a despeito de ainda não ter sido tipificado, esse tipo de comportamento pode configurar crimes já previstos no Código Penal, como Perseguição e Violência Psicológica contra a mulher (artigo 147-A e B), Difamação (artigo 139), Injúria (artigo 140), Calúnia (artigo 138), Ameaça (artigo 147) e até mesmo os recentes crimes de Intimidação Sistemática (artigo 146-A).

Não se questiona o fato de se tratar de comportamento que mereça ser reprimido e punido, diante da gravidade, seriedade e complexidade da conduta, mas sim se, assim como em outras situações, a criminalização será suficiente para seu combate e prevenção.

Isso porque, sob uma perspectiva preventiva (e até mesmo repressiva), os últimos anos têm mostrado que investimentos em mudança de cultura, políticas e procedimentos corporativos podem trazer muito mais impacto e resultados.

A corrupção, por exemplo, é considerada crime no Brasil já há vários anos e não foi o risco de responsabilidade criminal que desestimulou sua prática, ou que incentivou as empresas no Brasil a valorizarem e se engajarem em programas de integridade.

Ambientes seguros

A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que prevê a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas, bem como a pressão dasautoridades e do mercado em relação à implementação de programas de integridade trouxe um impacto e mudanças muito significativas no ambiente corporativo brasileiro, no qual, até então, muito pouco se ouvia a palavra “compliance”.

Da mesma forma, o compliance também pode ser um grande agente de mudança no combate ao assédio moral, possivelmente muito mais eficaz, a curto prazo, do que a tipificação de uma conduta específica.

Tamanha é a relevância do tema para o mundo corporativo que, na reunião conjunta realizada entre B20 [1] e G20 [2], no começo deste ano, para definir a agenda anual e as prioridades para promover o crescimento sustentável dos países pertencentes ao grupo, ficou definido que serão prioridades, entre outros temas, a garantia dos direitos humanos e o cuidado com a saúde mental dos funcionários, visando à promoção de ambientes livres de assédios [3].

A discussão desse tema entre as empresas e o mercado e a conscientização de sua relevância é essencial, para que percebam e reconheçam a importância de se investir em medidas robustas de compliance, capazes de prevenir que esse tipo de situação venha a ocorrer e, caso ocorra, seja prontamente reportada e coibida pela própria empresa (além de, é claro, eventuais outras medidas cíveis e criminais, quando cabíveis).

Para isso, é fundamental que as empresas invistam em políticas claras contra o assédio moral, que elucidem no que consiste tal comportamento, bem como estabeleçam, de forma transparente, as consequências para os eventuais infratores (sejam elas disciplinares sejam legais).

Nesse mesmo sentido, devem ser ministrados treinamentos periódicos a seus funcionários, com exemplos práticos, visando a conscientizá-los a respeito das condutas que caracterizam o assédio moral, para que saibam identificar quando estejam agindo em desacordo com as políticas da empresa ou, para que possam identificar e relatar quando sejam vítimas desse tipo de comportamento.

Canais de denúncias

Igualmente importante, as empresas devem implementar canais de denúncias acessíveis e confidenciais, para que seus funcionários se sintam confortáveis, protegidos e acolhidos, ao relatar esse tipo de conduta. E que os funcionários responsáveis por tais canais sejam especialmente treinados sobre práticas antidiscriminatórias, aptos a resolver demandas que envolvam questões de gênero, raça, etnia, religião e pessoas com deficiência.

Não menos importante, as empresas devem promover uma cultura organizacional que valorize o respeito, a diversidade e o diálogo, por meio da realização de campanhas e eventos de conscientização.

Os benefícios da prevenção ao assédio e de um programa de compliance bem implementado são diversos e rapidamente sentidos pela empresa, como um ambiente de trabalho mais positivo e saudável, redução de faltas, licenças médicas e rotatividade de pessoal. Além, é claro, da mitigação da exposição da companhia a contingências oriundas de processos judiciais, que podem gerar vultosos passivos trabalhistas e uma gestão de crise com potenciais danos à imagem empresarial.

É certo, portanto, que todas essas medidas – preventivas, informativas e de compliance – certamente trarão um retorno muito mais imediato e efetivo, na busca das empresas por um ambiente íntegro e psicologicamente saudável.


[1] O Business 20 (B20) é o fórum oficial de diálogo do G20 com a comunidade empresarial global. Este ano está sendo sediado no Brasil e organizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). O grupo possui sete forças-tarefa e um conselho de ação, dedicados a áreas específicas que ressoam o lema “Crescimento Inclusivo para um Futuro Sustentável”. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/g20-social/business. Acesso em 5.4.2024.

[2] “Grupo dos Vinte (G20) é o principal fórum de cooperação econômica internacional. Desempenha um papel importante na definição e no reforço da arquitetura e da governança mundiais em todas as grandes questões econômicas internacionais.” Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/sobre-o-g20. Acesso em 5.4.2024.

[3]     Disponível em: https://b20brasil.org/w/b20-brazil-integrity-compliance-task-force-meets-with-g20-anti-corruption-work-group. Acesso em 5.4.2024.

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PLDO/2025 repetirá ditaduras se pautar quebra dos pisos sociais

governo federal enviou o projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2025 (PLDO/2025) ao Congresso nesta segunda (15/4).

Diante das metas fiscais projetadas e das restrições impostas pela Lei Complementar 200/2023 (vulgarmente chamada de “Novo Arcabouço Fiscal”), a agenda que se avizinha para o período posterior às eleições municipais deste ano e, em especial, para o próximo exercício financeiro é a de revisão das despesas obrigatórias.

Aparentemente o que se busca é dar continuidade à pauta da PEC 188/2019 alcunhada de DDD Fiscal (porque destinada a desobrigar, desvincular e desindexar), notadamente por meio da desindexação do piso dos benefícios assistenciais e previdenciários em relação ao salário mínimo; da revogação do abono salarial; bem como retirada da relação de proporcionalidade com a arrecadação estatal dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação.

Desde a promulgação da Emenda 95, de 15 de dezembro de 2016, ou seja, há oito anos, a agenda de revisão dos pisos em saúde e educação como proporção da receita governamental passou a ser, formal e declaradamente, assumida como uma pauta de reforma fiscal, muito embora ela já fosse defendida como estratégia de austeridade fiscal desde os primórdios do Plano Real. Tais vinculações constitucionais protetivas dos principais direitos sociais são tratadas como antípoda da estabilidade macroeconômica, porque supostamente agravariam os ciclos de crise fiscal e engessariam o orçamento público com deveres de gasto mínimo atrelados ao comportamento oscilante da arrecadação estatal.

A Proposta de Emenda à Constituição 241/2016, que deu origem à Emenda 95, ajustou os pisos em saúde e educação, congelando-os em termos reais ao montante aplicado em 2017 e garantindo-lhes apenas a correção inflacionária medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), durante o período de vigência do teto de despesas primárias. Eis, portanto, o contexto em que emergiu o artigo 110 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Durante a tramitação da PEC 241/2016, tive a honra de escreve artigo em coautoria com os grandes mestres Fábio Konder Comparato, Heleno Taveira Torres e Ingo Wolfgang Sarlet, alertando que as garantias constitucionais de custeio da saúde e da educação são mínimos inegociáveis. Naquela ocasião, suscitamos fortemente que:

“Há um aprendizado histórico digno de nota na vivência da Constituição de 1988 pela sociedade brasileira: a prioridade do nosso pacto fundante reside na promoção democrática dos direitos fundamentais, com destaque para os direitos sociais, garantes de uma cidadania inclusiva e ativa. Justamente nesse contexto, o regime de vinculação de recursos obrigatórios para ações e serviços públicos de saúde e manutenção e desenvolvimento do ensino tem sido o mais exitoso instrumento de efetividade de tais direitos, ademais de evidenciar a posição preferencial ocupada pela educação e pela saúde na arquitetura constitucional.

No que concerne ao direito fundamental à educação, somente períodos ditatoriais ousaram rever o compromisso social assumido desde a Constituição Republicana de 1934 de financiamento governamental em patamares mínimos nesse setor. Ou seja, há mais de 80 anos a nação brasileira reconhece na educação pública o caminho decisivo para a progressiva e inadiável superação da dependência tecnológica, ainda que sejam lentos e complexos os esforços de associar dever de gasto mínimo a qualidade no ensino.

Os retrocessos causados pelas Constituições de 1937 e 1967/1969 certamente adiaram esse histórico processo cumulativo de buscar universalizar o acesso à escola para todos os cidadãos, com o dever de ensino de qualidade. A despeito de tais retrocessos autoritários e desde a Emenda Calmon de 1983, a sociedade brasileira parecia caminhar para horizonte civilizatório basilar, como rota progressiva de materialização da dignidade humana sob os comandos legitimamente construídos e fixados em nossa Constituição Cidadã e no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014).

Do ponto de vista do direito fundamental à saúde, havia, desde a redação originária da Carta de 1988, dispositivo que assegurava proporcionalidade mínima do custeio desse setor no bojo do Orçamento da Seguridade Social (OSS). Isso porque o artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) previa a necessidade de resguardar, no mínimo, 30% desse orçamento especial para a política pública de saúde. Se tivéssemos mantido, ao longo do tempo, tal proporção dada transitoriamente pelo Constituinte Originário, o Sistema Único de Saúde contaria atualmente com disponibilidade de custeio quase 2,5 vezes maior que a dotação prevista para o exercício de 2016.

Em 2000, para remediar a expressiva e histórica instabilidade fiscal na promoção do direito fundamental à saúde pelo Estado, foi promulgada a Emenda Constitucional 29, instituindo a proteção de custeio mínimo em ações e serviços públicos de saúde, em moldes análogos ao piso da manutenção e desenvolvimento do ensino.

[…] Por óbvio, reconhecemos que é preciso avançar e corrigir distorções, desvios e abusos. Há mesmo elevado grau de correlação entre a corrupção, a má-gestão e a baixa qualidade dos gastos mínimos em saúde e educação. Mas, para enfrentá-la, não nos parece ser resposta adequada a ampliação irrestrita da discricionariedade orçamentária, com prejuízo dos esforços em favor da educação básica obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade e no Sistema Único de Saúde, de cobertura pública integral e universal.

Tal inversão de piso para teto desprega a despesa do comportamento da receita e faz perecer as noções de proporcionalidade e progressividade no financiamento desses direitos fundamentais. Assim, o risco é de que sejam frustradas a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde de mais de 200 milhões de brasileiros. Ou de que seja mitigado o dever de incluir os cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes, de 4 a 17 anos, que ainda hoje se encontram fora da educação básica obrigatória.

[…] Estamos em pleno processo pedagógico e civilizatório de educar e salvaguardar a saúde de nossos cidadãos, o que não pode ser obstado ou preterido por razões controvertidas de crise fiscal. Nada há de mais prioritário nos orçamentos públicos que tal desiderato constitucional, sob pena de frustração da própria razão de ser do Estado e do pacto social que ele encerra.”

Desde julho de 2016, quando o artigo acima foi publicado, até agora, o cenário fiscal brasileiro se agravou. A bem da verdade, o teto foi redesenhado sucessivas vezes ao longo dos seus seis anos de vigência, tendo sido impactado – direta ou indiretamente – pelas Emendas 102, 106, 108, 113, 114 e 123, que até a Emenda 126/2022 (conjuntamente com a LC 200/2023), enfim, revogou a Emenda 95/2016. Sob um contexto política e economicamente turbulento, o teto de despesas primárias foi sucedido pelo “Novo Arcabouço Fiscal”.

Prática de ditaduras

Em 2024, o piso educacional chega ao simbólico aniversário de 90 anos, uma vez que foi instituído pela democraticamente alvissareira, mas breve Constituição de 1934. Desde então e ao longo dessas nove décadas, o piso em educação apenas foi desconstruído pelas Constituições autoritárias de 1937 e 1967/1969. Somente as ditaduras ousaram mitigar a progressividade do financiamento educacional, algo que o PLDO/2025 pode vir a pautar inadvertidamente como pressão fiscal para uma agenda de reforma do texto permanente da Constituição de 1988. Enquanto isso, a política educacional tem diante de si desafios colossais na efetividade do aludido direito, a exemplo dos impasses que se seguem:

  1. déficit de 2,5 milhões de vagas na oferta de creches;
  2. descumprimento da meta de expansão do horário integral (meta 6 do PNE), que deveria atender a 25% dos estudantes da educação básica em 2024, mas só contempla 15%;
  3. falseamento do piso do magistério e falta de valorização dos profissionais da educação;
  4. existência de 1 milhão de crianças e adolescentes fora da escola na educação básica, precisamente na faixa etária dos 4 aos 17 anos, em que tal ausência é constitucionalmente inadmissível.

Iniquidade na saúde

Na política pública de saúde, por sua vez, o Sistema Único de Saúde (SUS) provou seu valor durante a pandemia da Covid-19, protegendo mais de 200 milhões de brasileiros em todo o território nacional, apesar das severas desigualdades assistenciais e das inúmeras fragilidades operacionais que o acometem.

A maior iniquidade que perpassa a política pública de saúde, porém, reside no fato de que o gasto público no setor representa apenas 4% do PIB para atender a todos os brasileiros, sendo que 3/4 da população é exclusivamente dependente do SUS. Já o gasto privado alcança 5,7% do PIB, para atender tão somente a 1/4 da população do nosso país.

Vale lembrar que a assistência privada à saúde no Brasil é beneficiada por consideráveis gastos tributários que correspondem, em termos comparativos, a um montante equivalente a cerca de 40% do orçamento destinado ao Ministério da Saúde, algo bem circunstanciado nos estudos de Carlos Octávio Ocké-Reis (a exemplo do disponível aqui). Enquanto a saúde pública tem sido alvo de propostas de ajuste que, direta ou indiretamente, visam desfinanciá-la, a saúde privada é fomentada por meio de crescentes renúncias fiscais. Nelson Rodrigues dos Santos denuncia há muitos anos ser essa uma deliberada agenda de entregar um “SUS pobre para os pobres”.

Mitigação deliberada

A despeito da evidente precariedade na prestação de tais serviços públicos essenciais e em face dos limites fiscais inscritos no PLDO/2025, parece ser iminente a pretensão da União de desacelerar e, com isso, deliberadamente mitigar a progressividade de custeio garantida constitucionalmente para os direitos fundamentais à saúde e à educação, mediante alteração do texto permanente da Constituição que buscará rever os respectivos pisos a que estão obrigados os três níveis da federação.

Todavia é preciso lembrar que a consecução das ações e serviços públicos de saúde no âmbito do SUS e a oferta estatal da educação básica obrigatória são deveres materialmente inalienáveis, sendo responsabilidade solidária de todos os entes federados a consecução tempestiva e plena dos respectivos instrumentos de planejamento setorial. Uma boa síntese do caráter indisponível do financiamento dos direitos sociais reside no seguinte excerto do magistral voto da ministra Rosa Weber nos autos da ADI 5.595, relativo à vedação de retrocesso no piso federal em saúde, mas obviamente extensível – analogicamente – ao direito à educação:

“é possível extrair da cláusula de universalização do acesso à saúde, imposta pelo art. 196 como dever do Estado, diretriz normativa que veda o abandono dos avanços sociais nessa área uma vez que tenham sido incorporados.

Exorbitaria, nessa ordem de ideias, do poder de emenda, a definição de conteúdos que, ao redefinirem o quadro de financiamento da dimensão prestacional do direito fundamental à saúde, cria situação de afastamento do Estado brasileiro em relação ao ditame de universalização do acesso a esse direito.

Para os fins de observância do disposto no art. 60, § 4°, IV, da CF, redução substancial do montante direcionado ao financiamento da saúde, ainda que transitória, somente se justificaria, a teor dos arts. 6º e 196 da Carta, diante de uma eventual redução do custo de assegurar esse direito (uma situação hipotética em que ocorra significativa queda no custo do fornecimento das ações e serviços de saúde, de tal modo que o nível atual de prestação dos serviços, ou a sua expansão, não se faça acompanhar por incremento do custo. Um exemplo seria uma revolução tecnológica que viesse a reduzir significativamente o custo de medicamentos ou equipamentos de saúde).

Todavia, enquanto os indicadores sociais revelarem que a satisfação do direito à saúde permanece, no país, abaixo de níveis excelência, qualquer redução no seu financiamento afronta o compromisso da Carta Política com a prevalência do direito fundamental à saúde.”

Aliado à reforma tributária que altera estruturalmente grande parte da base de cálculo dos pisos, um rearranjo dessa envergadura tende a se configurar como guinada copernicana no regime jurídico dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação. Trata-se, como já dito, de proposta que visa à redução proporcional dos pisos de forma federativamente generalizada, sem que as obrigações materiais que resguardam os respectivos direitos fundamentais tenham sido equivalentemente rebaixadas.

A tendência, no médio prazo, é de explosão das demandas judiciais em busca da efetividade de ambos os direitos, isso porque a desaceleração da disponibilidade financeiro-orçamentária para o custeio vinculado dos direitos à saúde e à educação provavelmente será acompanhada da postergação e/ou do descumprimento total ou parcial das metas dos planejamentos sanitário e educacional.

Ora, é iníquo alterar o texto permanente da Constituição para rebaixar o piso da proteção social (quiçá passemos a falar em subsolo da saúde e porão da educação), em caráter definitivo e com efeitos nacionais, enquanto sequer é proposta uma correlata reflexão acerca da ilimitada e opaca pressão exercida pelas despesas financeiras sobre a dívida pública ou, ainda, enquanto persistem tantas renúncias fiscais mal monitoradas em suas finalidades precípuas. Daí se explica porque é controverso o conflito distributivo entre saúde e educação (despesas obrigatórias com controle de fluxo de pagamento), de um lado, e as despesas discricionárias que amparam as demais políticas públicas, de outro.

Nem se diga que aqui estamos a defender a imutabilidade dos pisos, porque o seu aprimoramento é medida desejável de justiça fiscal e eficiência alocativa. Reconhecemos a necessidade de superar a estrita dimensão quantitativo-formal de pisos e tetos, porque o desafio mais complexo que a sociedade brasileira tem diante de si é o da ordenação legítima de prioridades.

É preciso aprender a alocar os recursos públicos à luz da tríade inscrita no artigo 70 da Constituição: legitimidade, economicidade e legalidade, sem reducionismos maniqueístas. A grande reforma ausente na agenda governamental do país é a da qualidade e efetividade dos serviços públicos.

Debates que precisamos travar

Para quem almeja, de fato, melhores saúde e educação públicas, o ponto de partida para tanto é resgatar e enfrentar seus gargalos operacionais sistêmicos. No âmbito do SUS, o desafio é efetivamente resguardar a resolutividade da atenção primária à saúde de 80% a 90% dos problemas mais comuns de saúde da população (a esse respeito, vide estudo da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva). No financiamento da educação, nenhum impasse é mais crônico do que a falta de regulamentação do custo aluno qualidade, a que se refere o artigo 211, §7º da CF/1988, tal como Salomão Ximenes e esta articulista escrevemos aqui.

Eis uma agenda de debates que precisamos travar, com consistência teórica e compromisso institucional, sob pena de a constitucionalização permanente e federativamente generalizada do subsolo da saúde e do porão da educação abrirem espaço fiscal para ainda maior iniquidade na consecução dos principais direitos sociais inscritos em nosso ordenamento.

Não deixa de ser irônica e bastante contraditória, aliás, a hipótese recentemente aventada na imprensa de que o governo federal poderia apoiar um piso de 2% do PIB em prol de despesas militares, ao mesmo tempo em que defende a redução proporcional das vinculações orçamentárias que amparam saúde e educação.

O retrocesso dessa pauta implícita no PLDO/2025 somente é equiparável à regressividade alocativa empreendida pelas ditaduras que outorgaram as Constituições de 1937 e de 1967/1969 e desconstruíram a garantia nonagenária de piso educacional atrelado à arrecadação estatal.

Mais cedo ou mais tarde, seremos chamados a fixar estruturalmente sobre o que é, afinal, prioridade alocativa dos orçamentos públicos, sob a égide da Constituição Cidadã de 1988.

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