Liberdade religiosa x proteção dos animais não humanos: debate na Corte Europeia de Direitos Humanos

A liberdade religiosa, como direito humano e fundamental altamente sensível e fundado na dignidade da pessoa humana, tem sido, de há muito, o centro e mesmo o pivô de importantes debates nos mais diversos foros, ocupando lugar permanente na agenda política, social, cultural, jurídica e mesmo econômica em escala global.

Dadas as constantes tensões envolvidas no embate entre culturas e diferentes práticas religiosas, mas também entre o exercício da liberdade religiosa e outros direitos humanos e fundamentais, ademais de outros bens jurídicos com estatura constitucional, como é o caso da proteção dos animais não humanos, trata-se de tema recorrentemente submetido ao crivo do Poder Judiciário, seja em nível nacional, seja no plano do direito internacional.

Como sabido, os casos que têm sido levados à apreciação pelo Poder Judiciário são da mais diversa natureza, envolvendo o uso de símbolos religiosos, discursos do ódio e os limites do proselitismo religioso, discriminação por orientação religiosa, feriados religiosos, sacrifício de animais para fins religiosos, objeção de consciência, dentre tantos outros.

Na coluna de hoje, o foco serão decisões que envolvem a discussão em torno do sacrifício de animais para fins de rituais de matriz religiosa, a começar por recente julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 13/2/2024, em ação proposta por treze cidadãos e sete organizações não-governamentais islâmicas e judaicas belgas impugnando decretos aprovados pelas regiões da Bélgica em 2017 e que proibiram o abatimento de animais para consumo da carne sem prévio atordoamento, alegando que tal medida estaria violando suas liberdades de pensamento, consciência e religião, ademais de invocarem estarem sendo injustificadamente discriminados em virtude de sua orientação religiosa.

Rituais

Apenas para recordar, no caso das religiões islâmica e judaica, o sacrifício dos animais para consumo da carne obedece determinados rituais, respectivamente conhecidos como métodos halal kosher, de acordo com os quais o abate é feito sem prévia sedação, mediante um corte no pescoço e deixando os animais sangrarem até a morte.

Para a Corte Europeia de Direitos Humanos, nesta recente decisão que parece significar clara inflexão no tratamento geral que vinha sendo dispensado ao tema, a restrição das liberdades [invocada e impugnada pelos autores da demanda] é legítima de acordo com os parâmetros da Convenção Europeia de Direitos Humanos, pelo fato de que se trata de intervenção proporcional, dado que o objetivo da medida é o de proteger os animais e assegurar o seu bem-estar, o qual, por sua vez, constitui exigência da moralidade pública e da própria dignidade humana, porquanto tais concepções têm caráter evolutivo e dizem respeito não apenas às relações interpessoais, mas também guardam ligação com o modo pelo qual os seres humanos convivem com os animais.

Corte Europeia de Direitos Humanos

Outro argumento esgrimido pela Corte, foi o de que as exigências da proporcionalidade foram observadas pelo fato de que os decretos belgas, embora tenham proibido o abate sem prévio atordoamento, deixaram em aberto alternativa viável, designadamente, ao permitirem o atordoamento reversível para o abate ritualístico, movendo-se, de tal sorte, no âmbito da margem de apreciação nacional que lhes era assegurada.

Além disso, ainda de acordo com a Corte, em que pese seja mais difícil ter acesso à carne halal ou kosher com a proibição estabelecida, não se trata de algo impossível, ainda mais que foi autorizada a importação de carne abatida de acordo com os rituais referidos de Estados ou regiões onde a prática é permitida.

Alemanha

Tal julgamento, por sua vez, destoa de decisão mais antiga e igualmente polêmica do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando este, em 15/1/2002, examinou situação envolvendo o abate de animais para consumo mediante observância de rituais religiosos.

Na hipótese, tratava-se de açougueiro turco, adepto do ramo sunita do islamismo, que teve o seu estabelecimento interditado pela autoridade administrativa por estar abatendo animais para consumo sem a prévia sedação (aturdimento), tal como exigido pela legislação de proteção da natureza.

A lei alemã exige a prévia sedação do animal, mas abre exceções, designadamente no caso de garantia da saúde pública e quando exigido por razões ligadas a rituais religiosos.

No caso concreto apreciado, em sede de relação constitucional, o açougueiro alegou, além da quebra do princípio da igualdade (já que a prática seria tolerada quando levada a efeito em estabelecimentos judaicos), a violação de sua liberdade religiosa e de sua liberdade de profissão, porquanto o abate seria exercido obedecendo estritamente ritual consagrado no âmbito do islamismo, mas também pelo fato de que a proibição do abate de acordo com tal ritual afetaria de modo desproporcional o negócio do reclamante, pois sua clientela era formada justamente por integrantes de comunidade religiosa que somente pode ingerir carne quando obtida de acordo com os ditames da religião.

O Tribunal Constitucional Federal alemão acabou reconhecendo a tese do reclamante, de modo a incluir o sacrifício dos animais na esfera da exceção prevista na legislação infraconstitucional, dando prevalência à liberdade religiosa, muito embora por ocasião da decisão (e é relevante que se o refira!) a proteção da fauna ainda não tivesse sido formalmente incorporada ao texto da Lei Fundamental alemã.

De todo modo, o Tribunal alemão não afastou a possibilidade de medidas de fiscalização do abate, da perícia na degola e mesmo da clientela, de modo a preservar ao máximo o dever de proteção dos animais.

Tribunal da UE

Por outro lado, no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia, decisões relativamente recentes, levando em conta a discriminação (ao menos indireta) que acaba afetando negativamente as minorias religiosas referidas, indicavam aos Estados a necessidade de admitir a exceção do abate religiosamente motivado e parecem acenar para uma diretriz de acomodação mais razoável, como explica o eminente catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada e catedrático Jean Monnet de Direito Constitucional Europeu José María Porras Ramírez:

“Así, en relación al sacrificio de animales realizado por algunas comunidades religiosas, conforme a prácticas rituales establecidas, el Derecho de la Unión, en su Reglamento 1099/2009, que trata de garantizar, con carácter general, que la muerte de los animales se produzca sin dolor, sufrimiento o angustia, contempla una excepción a la obligación impuesta de aturdimiento previo a la muerte del animal, basada en motivos religiosos, si bien exigiendo que el sacrificio se realice, cuando menos, en un matadero autorizado” (STJUE de 6 de julio de 2018, C-426/16, Asunto Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW y otros contra Vlaamst Gewest).
Posteriormente, el TJUE ha insistido en que los Estados no pueden rechazar la excepción contenida en el Reglamento, que permite el sacrificio ritual sin aturdimiento previo, pues ello supondría actuar en contra del Derecho de la Unión, sensible, en este caso, con los derechos de las minorias (STJUE de 17 de diciembre de 2020, C-336/19, Asunto Central Israëlitisch Consistorie van België y otros). No obstante, también se determinó, polémicamente, que la carne procedente de animales que hayan sido objeto de un sacrificio ritual, realizado sin aturdimiento previo, tal y como exige, con carácter general, la legislación de la Unión, no podrá llevar la etiqueta ecológica, a pesar de ser aquélla una práctica excepcionalmente permitida al amparo de la libertad religiosa (STJUE de 26 de febrero de 2019, C-497/17, Asunto OABA v. Ministerio de Agricultura y Alimentación de Francia)” [1]

CEDH acabou, sem contudo mencionar diretamente, reconhecendo aquilo que se tem designado como uma dimensão ecológica da dignidade humana, tal como, aliás, já foi objeto de referência em decisões do STJ e do STF brasileiros.

STF

E por falar em STF, não é demais lembrar a decisão paradigmática no que tange ao sacrifício ritual de animais tomada em 2019, oportunidade em que a Corte Suprema, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 494.601/RS (28/3/2019), nos termos do voto do ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme. Na ocasião, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o ministro Marco Aurélio, que assentava a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.

Sendo certo que há regra constitucional explícita que proíbe a crueldade (e tipificada a conduta de maus-tratos no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, inclusive atualizado pela Lei nº 14.064/2020), de fato a vedação não deixa de ser redundante — é dizer, para ficar muito claro, o sacrifício ritual assegurado não pode configurar maus-tratos/crueldade contra os animais; ainda, a destinação em si da carne obtida é fato posterior que depende de outras variáveis (até mesmo qual o animal sacrificado, que eventualmente poderia não ser próprio para consumo, sendo evidente, também, que há uma reserva implícita de que não poderia recair sobre espécie em risco de extinção, como parece comezinho que eventuais considerações sanitárias quanto aos despojos podem ser legítimas) e não faz parte essencial da liberdade de culto que prevaleceu.

O desafio, que permanece — até recrudesce em nível europeu, como visto —, é harmonizar a dimensão ecológica da dignidade humana, numa perspectiva intercultural inclusiva e progressiva, com a promoção da liberdade religiosa e o combate à intolerância (como orienta, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, Resolução CNJ Nº 440, de 7/1/2022), um cenário no qual a tutela das minorias sempre é uma questão frontal e um campo no qual os fundamentalismos estão sempre à espreita.

________________________

[1] – PORRAS RAMÍREZ, José María. Las minorías en la Unión Europea: la tensión entre la demanda de reconocimiento y la preservación de la identidad nacional. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC Vol. 24, n. 1 (jan./jun. 2024), pp. 1-27. São Paulo: ESDC, 2024. ISSN: 1983-2303 (eletrônica). Disponível em: http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/357.

O post Liberdade religiosa x proteção dos animais não humanos: debate na Corte Europeia de Direitos Humanos apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Uma súmula do TST pode valer mais do que um dispositivo do CPC?

1. O relato de um caso de desvio hermenêutico de sentidos

O advogado José Ramiro Pimentel Cordeiro de Almeida escreveu interessante artigo aqui na ConJur (ver aqui). Mostrou um interessante caso de desvio hermenêutico de sentidos. O caso demonstra o modo como, no estado atual do relativismo interpretativo em que nos encontramos, até os casos fáceis (easy cases), em que qualquer olhar textual resolveria, transforma-se, por meio de voluntarismos hermenêuticos, em tragic cases.

O caso: oriundo da Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (ROT – 298-02.2018.5.05.0000), tratou-se de acórdão proferido em recurso ordinário contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região que acolheu a decadência e extinguiu uma ação rescisória.

Para o TRT-5, era um easy caseo termo inicial do prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória conta-se da data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O TRT-5 tão-somente leu corretamente o que diz o CPC (artigo 975). Para explicar: segundo o TRT-5, o prazo decadencial começou exatamente no dia do trânsito e não no dia seguinte. A parte perdeu porque ingressou com a rescisória contando o prazo a partir do dia seguinte do trânsito. Essa questão de “um dia” fez toda a diferença. E, por isso, foi ao TST.

2. Onde está escrito x, leu-se y: o entendimento da SDI-II do TST

O que aconteceu? Ao julgar o recurso ordinário do autor, a Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do TST entendeu que o prazo decadencial para a propositura da ação desconstitutiva iniciou-se no dia seguinte ao trânsito em julgado. Por isso, não estaria configurada a decadência. Isto é, haveria um dia a mais. E, assim, a rescisória estaria no prazo.

O TST citou a seu favor precedente do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgRg na AR 3.792/PR, 1ª Seção, de 2014, relator o ministro Mauro Campbell Marques, assim como a Súmula 100, I, do próprio Tribunal, de edição anterior ao CPC-2015. Além do julgado do ministro Campbell ser anterior ao CPC, tratou de caso distinto, falando da contagem do prazo apenas em obiter dictum porque a questão central a ser decidida era a aplicabilidade do prazo em dobro para procuradores diversos que haviam sido constituídos no transcurso do processo.

No caso do precedente citado, a decisão que se postulava rescindir foi publicada no Diário de Justiça da União em 23 de maio de 2005, transitando em julgado na data de 7 de junho de 2005, após escoar-se o prazo para interposição de recurso extraordinário, e a ação rescisória somente foi protocolada em 22 de junho de 2007. Portanto, neste caso já havia passado o prazo da rescisória; de qualquer sorte, só seria cabível em caso de prazo dobrado em razão dos procuradores diversos.

Aqui surge um problema: quando se dá efetivamente o trânsito em julgado. A decisão do STJ referida é de 2014 e o acórdão que transitou em julgado é 2005. Portanto, é anterior a Lei n° 11.419/06, que regulamentou o processo eletrônico, a qual é expressamente referida no caso julgado pelo TST. No caso do STJ os autos eram físicos, no caso do TST os autos são digitais.

Como o trânsito em julgado nos autos digitais se dá no dia subsequente ao fim do prazo de interposição de recurso, o TST aplicou a Súmula 100 do tribunal, que diz em seu inciso ‘I’: “O prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do dia imediatamente subsequente ao trânsito em julgado da última decisão proferida na causa, seja de mérito ou não”.

Quanto à Súmula 100, o TST já se manifestou por diversas vezes referindo que esta permanece hígida e que não há antinomia entre a súmula e a nova redação do código de processo civil (A compatibilidade entre as novas diretrizes do CPC e a Súmula nº 100 já foi tema enfrentado por esta SBDI-II, que concluiu inexistir antinomia jurídica alguma entre eles. [Ação Rescisória nº 1000481-86.2021.5.00.0000, rel. min. Amaury Rodrigues Pinto Junior, julgada em 14/09/2021]).

Portanto, de um lado existe o TST invocando uma antiga súmula; de outro, o STJ (e o CPC). Quando do julgamento do Tema 552 (19/11/2014), rel. min. Laurita Vaz, estabeleceu-se que: “O termo “a quo” para o ajuizamento da ação rescisória coincide com a data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O trânsito em julgado, por sua vez, se dá no dia imediatamente subsequente ao último dia do prazo para o recurso em tese cabível”. Portanto, para o STJ o prazo começa a fluir do dia efetivo do trânsito em julgado, com o efetivo computo do dia; enquanto o TST entende que o prazo passa fluir a partir do dia seguinte.

De todo modo, mesmo em tempos de crescente jurisprudencialização do direito legislado, (o direito que vale é o que os tribunais decidem), vale ler o artigo 975 do CPC: “O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo”.

A literalidade também faz parte do direito. Não é proibido fazer coincidir texto e sentido do texto, mormente quando se trata de datas e aferição de prazos. Por exemplo, se o prazo é de 15 dias, não pode ser 16. Há casos claros no direito.  E não há proibição de sinonímias. No caso em discussão, contar do trânsito em julgado não admite dizer “no dia seguinte à data do trânsito em julgado”. Há, ademais, vários julgados do STJ nesse sentido [1].

Em suma: para além dos casos concretos, parece claro que o que deve valer é a dicção do artigo 974 do CPC.

3. O problema dos limites textuais

Afinal, o que é interpretar? É dar sentido. Mas não qualquer sentido. Deixemos sempre que o texto nos diga algo, antes de qualquer outra coisa.

Aqui não se pode nem dizer que haja divergência de opiniões entre o TST e o STJ, uma vez que o TST está utilizando uma sumula que contraria previsão expressa do CPC. E isso é inadequado em termos hermenêuticos. Divergência existe quando é possível que qualquer das duas teses tenha plausibilidade. No caso, é impossível dizer que a Sumula 100, I, valha mais do que o artigo 975 do CPC. Mesmo que a súmula estivesse “correta”, ainda assim não se pode deixar de dar validade à lei. O sistema jurídico ainda é civil law. Não existe antinomia entre o CPC e uma súmula do TST.

Ou isso ou perderemos a dignidade epistemológica da legislação. E então deveremos assumir que o sentido do direito é o que o Tribunal diz, mesmo que esse sentido contrarie a lei.

Estas reflexões pretendem contribuir para o debate. Um debate sobre o valor da lei e da dignidade da legislação. E questionar a crescente jurisprudencialização do direito. O objetivo central é esse.

Precisamos falar sobre esse assunto. E tantos outros. Os advogados que o digam.

Por isso, o processo em pauta, trazido pelo causídico José Ramiro, pode ser um importante marco na discussão dos limites hermenêuticos.


[1] AR 5.931/SP, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Ratificação de voto; 2ª Seção, DJe 21/06/2018), na Ação Rescisória Nº 7667 – SE (2024/0038681-8), relator ministro Herman Benjamin (DJ 27/02/2024) e Agravo em Recurso Especial nº 2.473.909 – PR (2023/0317312-1), relator ministro Herman Benjamin (DJ 11/3/2024).

O post Uma súmula do TST pode valer mais do que um dispositivo do CPC? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Lista de bens sem direito a crédito dá segurança à reforma tributária, dizem tributaristas

projeto de regulamentação da reforma tributária, apresentado pelo governo federal ao Congresso no último dia 25, prevê uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais, e que, por isso, não darão direito a créditos dos impostos a serem implementados — Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Em projeto de regulamentação da reforma, governo propôs listar bens e serviços de uso e consumo pessoal – Freepik
 

 

 

Para a maioria dos tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o assunto, a opção de propor tal lista é positiva, pois garante segurança jurídica e previsibilidade quanto às hipóteses nas quais não haverá crédito — ao contrário do que ocorre hoje e do que havia sido previsto na emenda constitucional anterior à regulamentação da reforma.

No sistema tributário atual, chegam ao Judiciário muitas discussões sobre o direito a créditos em diversas situações, já que os critérios variam conforme os diferentes impostos e suas previsões legais abrem margem para diversas interpretações.

O que diz a proposta

A primeira — e, até o momento, única — versão do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 proíbe a “apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição” de uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais.

São eles: joias, pedras e metais preciosos; obras de arte e antiguidades “de valor histórico ou arqueológico”; bebidas alcoólicas; derivados do tabaco; armas e munições; e “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”.

O artigo 29 prevê de forma expressa uma exceção à regra proposta: haverá direito a crédito quando os bens e serviços citados “forem necessários à realização de operações pelo contribuinte”.

O dispositivo também explica que os bens da lista são considerados necessários para as operações do contribuinte “quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados”.

As armas e munições precisam ser utilizadas por empresas de segurança para dar direito a crédito. Já os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos” entram na exceção quando “forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

Problema da emenda

A primeira etapa da reforma tributária, incluída na Constituição, previu a possibilidade de não haver direito a crédito para bens de uso ou consumo, mas não definiu esse conceito. Em vez disso, delegou essa tarefa a uma futura lei complementar regulamentadora.

Isso foi visto como um problema. A advogada Ana Cláudia Utumi explica que a preocupação é “a amplitude que pode ter essa definição”. Tal amplitude dá à fiscalização a possibilidade de identificar e questionar o que seriam uso e consumo pessoais.

“O conceito de excluir o creditamento dos bens de uso e consumo pessoais é uma medida ruim”, pontua ela. De qualquer forma, isso já passou pelo Congresso no fim do último ano e está previsto na Emenda Constitucional 132/2023.

Maurício Barros, sócio do escritório Cescon Barrieu, sinaliza que a falta de definição do conceito de bens de uso e consumo na EC 132/2023 abriu brecha para que muitas polêmicas sobre o tema fossem levadas ao Judiciário.

Muitos casos tributários que hoje chegam ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça discutem, por exemplo, se determinado bem é considerado essencial ou relevante para a atividade da empresa. Ou seja, a definição sobre o direito ou não ao crédito muitas vezes só é feita no Judiciário.

Isso ocorre porque, na legislação, existem critérios diferentes sobre esse direito para cada tributo não cumulativo (PIS, Cofins, ICMS e IPI).

“No sistema atual, a restrição ao direito de crédito é objeto de enorme contencioso, dado que sempre se optou por utilizar expressões genéricas para definir o que daria, ou não, direito a crédito”, aponta Luiz Gustavo Bichara.

Com isso, surgiram “discussões enormes sobre o conceito de insumos, o que seria essencial para uma indústria ou um prestador de serviços, ou o que se incorpora ao produto final”. Para Bichara, esses debates são muito subjetivos e trazem insegurança.

O intuito da reforma tributária é simplificar o sistema atual e corrigir seus erros e brechas. Mas, segundo Barros, a emenda constitucional reproduziu um “vício” do sistema atual ao não definir o conceito de bens de uso e consumo.

A chance de consertar

Por isso, a criação de uma lista para definir os bens de uso e consumo pessoais é vista como uma forma de contornar a brecha aberta pela EC 132/2023. Isso porque a proposta gera, segundo Barros, “precisão sobre o que não vai dar direito a crédito”.

De acordo com o advogado, “trazer uma lista fechada daquilo que não dá direito ao crédito é bom, porque objetiva” as situações — algo diferente do que ocorre no sistema atual.

Assim, sair do cenário atual para um sistema com uma lista é, para ele, “um avanço enorme”. Barros considera que a lista é, “no geral, uma boa opção legislativa”.

Bichara também acredita que a opção é positiva: “A lista restritiva é mais clara e confere certeza”.

Ana Cláudia tem a mesma opinião. Ela entende que a listagem das situações é boa, “na medida em que não deixa espaço para a interpretação caso a caso pela fiscalização”.

Para Fábio Pallaretti Calcini, professor da FGV Direito SP, a lista é um “direcionamento bem-vindo”, que “daria uma ótima previsibilidade e segurança jurídica neste início de caminhada”.

Ele também destaca a boa opção do governo em não sugerir uma “vedação absoluta” — já que há a exceção para bens e serviços necessários às operações do contribuinte. “Negar crédito de antemão, na minha visão, seria inconstitucional.”

Calcini, porém, faz uma crítica à proposta. Na sua interpretação, a lista é exemplificativa. E o tributarista considera que “deveria ser um rol taxativo” — ou seja, com a regra limitada aos itens listados.

Itens podem ser debatidos

De acordo com Ana Cláudia, “a lista contida no artigo 29 do PLP é bastante razoável”. Ela não vê itens que deveriam ser retirados.

“Ainda que possa haver alguma divergência quanto a um ou outro item, pelo menos temos uma definição clara do que não dará direito a crédito”, afirma Bichara.

Já Calcini ressalta que, caso haja questionamentos, a lista ainda pode ser alterada durante a tramitação no Congresso.

Barros, por sua vez, preocupa-se apenas com o “subjetivismo” da regra sugerida para os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”, já que há a exceção “quando forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

O problema, para ele, é saber o que seria “preponderantemente” e quem precisaria provar isso — se o próprio contribuinte ou o fiscal. Na visão dele, isso pode gerar alguma confusão.

Discordâncias

Apesar dos fartos elogios, há quem não concorde com a criação de uma lista para o tema. É o caso do advogado Fabio Florentino, sócio do Demarest. “A escolha adotada pelo governo federal para o PLP não me parece ser a mais adequada.”

Embora ele veja sentido em “restringir o aproveitamento de créditos às atividades do contribuinte” e excluir “os gastos não relacionados com o negócio da empresa”, Florentino diz que a ideia de criar uma lista de bens “não soa salutar”.

Isso porque um mesmo bem “pode ser de uso pessoal para o contribuinte de um determinado setor da economia”, mas ao mesmo tempo “pode ser ligado à operação de outro”.

Como exemplo, ele cita as pedras preciosas. Elas podem ser usadas “como joias para ornamento das pessoas físicas”, mas diamantes também podem ser utilizados “em equipamento de cortes no processo industrial da indústria de vidros”.

O post Lista de bens sem direito a crédito dá segurança à reforma tributária, dizem tributaristas apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto acrescenta a pena de multa à prisão para crimes de homicídio e lesão corporal

O Projeto de Lei 717/24 acrescenta a previsão de multa à pena já estipulada em lei para os crimes de homicídio, feminicídio, lesão corporal e violência doméstica. Hoje, o Código Penal estabelece pena privativa de liberdade para esses crimes, sem referência a multas. A proposta está em análise na Câmara dos Deputados. 

 
Audiência Pública - Aeroporto de Barreiras/BA. Dep. Neto Carletto (PP - BA)
O deputado Neto Carletto é o autor da proposta – Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Autor do projeto, o deputado Neto Carletto (PP-BA) observa que, para outros crimes já está prevista, de forma cumulativa, a aplicação de pena privativa de liberdade e multa, como é o caso dos crimes patrimoniais. 

“No entanto, observamos que, para crimes contra a vida e de lesão corporal, não está previsto esse tipo de sanção”, afirma. “Tais delitos demandam um incremento na punição de seus autores devido à sua gravidade, e a estipulação de sanção financeira é mais uma ferramenta para desestimular a prática desses atos odiosos”, avalia.

Tramitação
A proposta será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Fonte: Câmara dos Deputados

Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados