As emendas parlamentares entre a autocontenção e o ativismo

No último dia 27 de junho foi realizada no STF audiência pública acerca das ADIs 7.688, 7.695 e 7.697 que tratam das emendas parlamentares, sob relatoria do ministro Flávio Dino, na qual tive a oportunidade de expor meu ponto de vista sobre o tema, em conjunto com diversos acadêmicos e autoridades. Para quem, como eu, prefere ler a assistir, será feito aqui um breve resumo do que foi exposto oralmente.

Veja abaixo a participação deste colunista na audiência:

Existe um pêndulo político envolvendo o poder financeiro em nosso país nos últimos dez anos. Antes da EC 86, de março de 2015 (que analisei à época de sua edição aqui), os membros do Poder Legislativo dependiam do Poder Executivo para a realização das despesas nas quais destinava recursos públicos para seus interesses eleitorais.

O Executivo usava esse modelo financeiro para aprovar os projetos de lei de seu interesse no Congresso, pois ficava com a chave do cofre e os deputados e senadores ficavam com o pires na mão pedindo a liberação desses valores. O pêndulo do poder financeiro estava com o Executivo.

Depois da EC 86, seguiram-se as EC 100, 102, 105 e 126, que criaram diferentes tipos de Emendas Parlamentares Impositivas: (1) Emendas individuais com transferência direta (emendas Pix), (2) Emendas individuais com finalidade definida; (3) Emendas de bancada; (4) Emendas de comissão e (5) Emendas de liderança. Isso consome 2% da Receita Corrente Líquida da União para as Emendas Individuais e de 1% para as Emendas de Bancada, o que implica em R$ 50 bilhões no âmbito da União em 2025.

Controle do orçamento

Com isso, o correu uma mudança do pêndulo, com o Poder Legislativo assumindo diretamente o controle financeiro do espaço orçamentário discricionário, ficando o Executivo refém da liberação dessas verbas para ter sucesso em suas políticas no Legislativo (aqui).

Parece óbvio que não se pode voltar a deixar o Legislativo nas mãos do Executivo, pois a chave dos cofres públicos deve estar no Legislativo, que tem o dever de destinar e controlar a despesa pública, mas isso deve ocorrer no interesse geral da sociedade, e não no interesse particular de cada parlamentar; porém, com o desenho atual, as emendas parlamentares têm sido usadas para interesses eleitorais particulares, que podem ou não estar em conformidade com o interesse geral da sociedade.

Entendo que o atual sistema infringe pelo menos três princípios constitucionais: (1) o Princípio Republicano; (2) o Princípio Democrático e  (3) o Princípio da Separação de Poderes.

Há infringência ao Princípio Republicano quando se verifica que os recursos públicos passaram a “ter dono”, pois o que era público se tornou privado. Presenciei o discurso de um Reitor agradecendo aos deputados que dirigiram verbas de emendas para a Universidade Federal que dirigia. Isso demonstra que o dinheiro público passou a ser reconhecido como sendo de propriedade dos específicos parlamentares, mesmo que destinado a causas que podem ser identificadas como justas e adequadas, sem cogitação de qualquer espécie de irregularidade em sua aplicação.

Ademais, há baixa transparência da origem, do destino e da aplicação dos recursos, não se sabendo ao certo como o plano de aplicação dos recursos é executado.

Além disso, há flagrante desrespeito ao planejamento da ação governamental, pois a lógica política parlamentar é microjurídica, isto é, individualizada pela busca de votos. É insuficiente estabelecer que o valor deva ser gasto em saúde; é necessário que seja realizado de conformidade com o planejado de forma macrojurídica para realização de políticas públicas de saúde. Exemplos: a verba de cada emenda parlamentar pode ser destinada para construção de um hospital em uma cidade sem verbas para sua manutenção; ou a verba das emendas serem destinadas para reforma de um posto de saúde, embora faltem recursos para políticas de vacinação. Nos dois casos há um desarranjo no planejamento governamental.

A infringência ao Princípio Democrático se identifica pela violação à paridade de armas eleitoral, reduzindo a possibilidade de renovação do Congresso. Os com-mandato recebem recursos para sua reeleição (além dos fundos eleitorais), enquanto os sem-mandato não possuem a mesma fonte de recursos públicos, que se tornaram eleitoralmente privativos. Isso deturpa a democracia, acarretando muitas vezes uma espécie de renovação meramente simbólica, pois endógena ao mesmo grupo político.

E a infringência ao Princípio da Separação de Poderes também se verifica, pois a função administrativa, que inclui o planejamento e a execução financeira e orçamentária, é atribuída ao Poder Executivo, mas está sendo exercida pelo Poder Legislativo, cuja função primordial é a legislativa.

Além disso, a despesa é diretamente determinada pelo Legislativo, mas este não responde pela qualidade do gasto e nem por seus eventuais desvios, com a responsabilidade ficando a cargo do Executivo.

Na prática, o modelo atual instituiu o parlamentarismo financeiro no presidencialismo brasileiro, com infringência à Constituição. E isso foi replicado por simetria a todos os entes federativos. O governador Mauro Mendes, presente à audiência pública representando o Fórum de Governadores, mencionou que no Estado de Mato Grosso foram alocados R$ 600 milhões de emendas parlamentares estaduais. Recebi a informação que o mesmo está ocorrendo no município de Guaratinguetá, no estado de São Paulo. O problema se alastra em todo o país.

A conclusão seria que o mecanismo jurídico das emendas parlamentares é inconstitucional, porém, interpretar o Direito é também um exercício de prudência, o que consta da gênese da função jurisdicional, que é a criação de jurisprudência (juris + prudência)Declarar inconstitucionais todas as EC que instituíram as emendas parlamentares anulará atos legislativos aprovados por 513 deputados e 81 senadores, em dois turnos de votação, em cinco distintas ocasiões (EC 86, 100, 102, 105 e 126), ao longo de dez anos, o que poderá ocasionar um furacão político em nosso país, já bastante polarizado pela desarmonia entre os Poderes — ver, por todas, a recente disputa envolvendo a instituição de IOF por Decreto do Poder Executivo, que foi suspenso por Decreto do Poder Legislativo.

Dentre as múltiplas possibilidades para solucionar juridicamente o problema atual sem retornar ao sistema anterior, vislumbra-se a aplicação do mecanismo jurídico da Interpretação Conforme a Constituição. Caso seja seguida essa trilha, seria possível considerar as emendas parlamentares como constitucionais, desde que interpretadas como sendo financeiramente subordinadas aos três Princípios acima referidos. Para tanto, as emendas parlamentares devem ser aderentes às finalidades do planejamento governamental para as políticas públicas estabelecidas pelo Executivo, permanecendo sua execução impositiva, reforçando as dotações dos programas já existentes na Lei Orçamentária.

Não basta a vinculação quantitativa; é necessário que os recursos sejam agregados à finalidade estabelecida. Atualmente é lido de forma isolada o artigo 166, §9º e §10, no qual se vê apenas a determinação quantitativa de direcionamento do montante das emendas parlamentares nas políticas públicas, mas sem aderência às suas metas e objetivos finalísticos. A Interpretação Conforme a Constituição, fazendo prevalecer os Princípios mencionados, implica em dar aderência as emendas parlamentares às metas e objetivos finalísticos das políticas públicas do Executivo, além daqueles meramente quantitativos. Isso reforça o caixa (quantidade de dinheiro) da política pública, consoante as finalidades (objetivos) nela estabelecidas.

É como se o Executivo oferecesse um cardápio de políticas públicas aos deputados e senadores, que escolheriam em qual delas colocariam os recursos de emendas parlamentares que lhe são atribuídas. Exemplo: um deputado federal do Maranhão poderia de reforçar as dotações orçamentárias para o programa Saúde da Mulher, alocando verbas para o município de Codó, e divulgar em seu reduto político.

Para tal tipo de interpretação existem diversas normas constitucionais que devem ser lidas em conjunto com as do artigo 166, §§9º e 10, acima referidos, como a do artigo 165, §4º, que determina que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso. Há também o artigo 165, §7º, que estabelece que os orçamentos fiscal e de investimento devem ser compatibilizados com o plano plurianual. Outra norma é a do artigo 166, §3º, ao estabelecer que as emendas ao projeto de lei orçamentária somente podem ser aprovadas caso sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

No mesmo sentido o §4º ao artigo 166, quando determina que as emendas ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias não poderão ser aprovadas quando incompatíveis com o plano plurianual. Em todas essas normas, dentre várias outras, as expressões ressaltam a necessária aderência ao planejamento da ação governamental, como se verifica no uso das expressões “consonância” e “compatibilização”.

Utilizado o mecanismo da Interpretação Conforme a Constituição, as emendas parlamentares podem ser consideradas constitucionais, desde que aderentes às finalidades das políticas públicas estabelecidas pelo Poder Executivo, não apenas sob o aspecto quantitativo. Isso ocorre por meio da programação financeira vinculada ao PPA + LDO + LOA. É preciso observar a finalidade (objetivo) das políticas públicas estabelecidas pelo Executivo, às quais as emendas parlamentares agregarão valor (maior quantidade de dinheiro), permanecendo impositivas.

Na prática, o Poder Executivo apresenta as políticas públicas na LOA e as emendas parlamentares serão consideradas constitucionais se estiverem aderentes às suas finalidades, agregando recursos financeiros a elas. Isso reforçará o planejamento governamental e permitirá que venham a ser liberadas verbas orçamentárias para as despesas discricionárias, o que tem feito falta em nosso país, sufocado financeiramente pelos juros da dívida pública, como expus em outras ocasiões.

O pêndulo do poder financeiro deve permitir a harmonia entre os Poderes da República. Embora esta não seja a solução ideal, parece-me ser a possível, nesse verdadeiro estado de coisas inconstitucional no qual este assunto se insere. Trata-se daquilo que o ministro Flávio Dino mencionou, aludindo à música (aqui) de João Bosco e Aldir Blanc, como “a esperança equilibrista entre autocontenção e ativismo” (vídeo, minuto 2h09min50: aqui).

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Julgamento virtual realizado durante recesso forense é nulo, decide Terceira Turma

O colegiado anulou acórdão do TJSP (foto) por entender que a sessão no recesso, mesmo sendo virtual, fere a legítima expectativa quanto à ausência de atividade que exija atuação do advogado.

Por entender que é vedada a realização de sessões virtuais de julgamento durante o recesso forense – e não só de sessões presenciais –, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou um acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e determinou que o recurso indeferido seja novamente julgado.

O colegiado considerou que a corte estadual violou o artigo 220, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil (CPC), o qual prevê a suspensão dos prazos processuais e a proibição de audiências e sessões de julgamento entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro.

O relator do processo, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, afirmou que a modalidade virtual não afasta a garantia de participação dos representantes das partes no julgamento e que, por isso, a realização da sessão durante o recesso prejudica o exercício do direito de defesa, “na medida em que fere legítima expectativa quanto à ausência de atividade que demande atuação do procurador”.

Na origem do caso, um advogado ajuizou ação alegando ter atuado conjuntamente com o réu no patrocínio de processos previdenciários, razão pela qual teria o direito de receber mais de R$ 1 milhão em honorários. A ação foi julgada improcedente nas instâncias ordinárias.

No TJSP, o julgamento ocorreu na sessão virtual de 18 a 20 de janeiro de 2023, datas inseridas no período de recesso forense. Diante do pedido de anulação da decisão, a corte estadual afirmou que a vedação à realização de julgamentos nesse período valeria para as sessões presenciais, mas não se estenderia às virtuais.

Não observância da vedação legal representa claro prejuízo à parte

Ao analisar o recurso especial do autor da ação, Villas Bôas Cueva comentou que não há objeção à forma de julgamento escolhida pelo TJSP, a qual deve respeitar as mesmas garantias processuais da modalidade presencial. Para ele, não houve prejuízo à parte em decorrência da modalidade em si, ainda que tenha sido rejeitado o pedido de encaminhamento à pauta presencial.

Contudo, segundo o ministro, há nulidade no fato de o tribunal não ter observado a suspensão dos prazos processuais e a vedação à realização de sessões entre 20 de dezembro e 20 de janeiro.

“O prejuízo restou caracterizado com a impossibilidade do pleno exercício de defesa, a exemplo do envio de memoriais em prazo hábil ou envio de sustentação oral ao julgamento virtual, além do próprio resultado desfavorável”, declarou.

Natureza patrimonial do processo afasta possível análise no recesso forense

Villas Bôas Cueva explicou ainda que o julgamento em período no qual os advogados estavam, por lei, dispensados do exercício de sua atividade violou uma expectativa legítima, especialmente porque a natureza do processo analisado é meramente patrimonial, ou seja, não se enquadra em nenhuma exceção que justifique eventual urgência para ser decidido durante o recesso.

“Configurada a violação do artigo 220, parágrafo 2º, do CPC, necessária a cassação do julgamento da apelação para que haja novo julgamento, a ser realizado na modalidade que a corte local entender adequada, fora do período do recesso forense, a fim de garantir o devido processo legal e o pleno exercício do direito de defesa dos interesses do recorrente”, concluiu o ministro.

Leia o acórdão no REsp 2.125.599.

Fonte: STJ

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