RIFs por requisição direta: STJ fecha a porta à devassa informal

No último dia 14 de maio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os RHCs 196.150, 174.173 e o REsp 2.150.571, pôs fim à controvérsia sobre o alcance dos relatórios de inteligência financeira (RIFs). Por maioria de seis votos a três, fixou-se tese vinculante segundo a qual é inviável que o Ministério Público ou a Polícia Judiciária requisitem, sem ordem judicial, a remessa de RIFs pelo Coaf.

A decisão do STJ não apenas confirma essa tese: reafirma que, como sustentei em outra passagem nesta ConJur, o combate ao crime não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.

Ao afastar a leitura ampliativa do Tema 990 do STF — que legitima apenas o compartilhamento espontâneo —, o STJ recolocou a reserva de jurisdição no centro do controle das devassas patrimoniais e financeiras, impondo um freio jurídico à prática que, sob o rótulo de “eficiência investigativa”, vinha autorizando pescarias probatórias sem contraditório.

A corte deixou claro que o compartilhamento admitido pelo Supremo não autoriza o movimento inverso, ou seja, a requisição ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Prevaleceu a compreensão de que a eficácia estatal na repressão penal não dispensa a mediação judicial, sendo inaceitável a coleta de dados sensíveis à margem das garantias fundamentais.

Como sustentado no voto do ministro Messod Azulay, não se trata de impedir a produção da prova, mas de reafirmar que sua obtenção há de respeitar os limites constitucionais que distinguem um processo penal civilizado de experimentos inquisitoriais travestidos de modernidade.

A tese assentada é direta e enfática: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial, é inviável. O Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta dos dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”.

O efeito é imediato e de largo alcance: a partir de agora, ambas as turmas criminais do STJ — que desde 2021 divergiam sobre a validade das requisições proativas — devem submeter-se à diretriz da 3ª Seção, reconhecendo como nulo todo RIF obtido sem prévia autorização judicial, ainda que requerido após a formalização de inquérito policial ou PIC. A decisão encerra a era dos “RIFs por encomenda” e exige, doravante, o indispensável crivo jurisdicional como condição de existência da prova.

Entre a pressão investigativa e o limite constitucional

Durante a sessão de julgamento, os representantes ministeriais defenderam que o enfrentamento ao crime organizado exige mecanismos céleres de investigação patrimonial. Invocaram, como pano de fundo, o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, a ocupação territorial por facções e o fenômeno da “exportação” de lideranças criminosas para outras unidades da federação. A defesa, por sua vez, evidenciou a gravidade do desvio funcional a que os RIFs vinham sendo submetidos.

Demonstrou-se que milhares de CPFs e CNPJs – até 10 mil em um único caso – foram objeto de requisição direta, sem inquérito formal, sem individualização prévia e sem qualquer controle judicial. O caso relatado de um escritório de advocacia alvo de devassa patrimonial por meio de VPI, sem sequer citação do nome em denúncia anônima, expôs o uso dos RIFs como dossiês secretos mantidos em “gavetas investigativas”. Ocultados por mais de um ano da defesa e até do próprio Ministério Público revisor, tais relatórios sustentavam investigações posteriormente legitimadas sob o pretexto de “encontro fortuito”.

A técnica foi denunciada como fraude processual sistêmica, contrariando frontalmente os postulados do devido processo legal e da paridade de armas.

Distinção entre compartilhamento e requisição

Relator da posição vencedora, o ministro Messod Azulay Neto enfatizou, com precisão didática, que o Tema 990 jamais autorizou a via inversa. O precedente do Supremo Tribunal Federal referia-se ao envio espontâneo de informações pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), condicionado a indícios prévios de ilicitude, à existência de procedimento formal e ao controle jurisdicional posterior. Segundo o voto condutor, não há na ordem jurídica qualquer respaldo – legal ou jurisprudencial – à requisição ativa de RIFs por órgãos de persecução penal.

Apenas o compartilhamento espontâneo foi validado pelo STF. Nas palavras do relator o art. 15 da Lei de Lavagem trata apenas do compartilhamento espontâneo. Não há autorização legal nem jurisprudencial para que o Ministério Público ou a polícia, de ofício, exijam o envio de RIFs sem prévia autorização judicial.

Ao contextualizar o cenário normativo e jurisprudencial, o ministro expôs a multiplicidade de entendimentos não apenas no âmbito das turmas do STJ, mas também entre a 1ª e a 2ª Turma do STF — um quadro de instabilidade interpretativa que tornou imperativa a fixação de uma tese unificada. Destacou ainda que, embora a Corte Especial do STJ tenha admitido, por maioria apertada, o acesso extrajudicial a dados cadastrais simples, os relatórios de inteligência financeira guardam conteúdo significativamente mais sensível, por isso submetidos a um regime de proteção qualificado. Para o relator, qualquer devassa em tal esfera exige a intervenção do Poder Judiciário como garantia indeclinável de um processo penal constitucionalmente legítimo.

Barreira contra o abuso institucional

O ministro Sebastião Reis Júnior, ao proferir voto paralelo, destacou com precisão o verdadeiro núcleo do debate: o STJ não está vedando a produção da prova — apenas exigindo que ela passe pelo crivo constitucional da autorização judicial. Em sua análise, os dados constantes nos RIFs não estão sujeitos a perecimento ou volatibilidade que justificasse qualquer alegação de urgência.

Por serem informações estáticas, não há razão legítima para dispensar a intermediação jurisdicional. Sua ponderação desarmou a narrativa fundada no apelo à segurança pública irrestrita, frequentemente usada para justificar mecanismos investigativos informais. “Ninguém está impedindo a produção da prova”, afirmou. “Estamos apenas exigindo que a produção obedeça aos limites legais.”

Ao colocar a exigência de ordem judicial como cláusula de estrutura e não de conveniência, o voto reafirma a centralidade da legalidade estrita no processo penal acusatório, impedindo que o combate ao crime se converta em uma válvula de escape institucional para práticas de exceção. Como assinalou o ministro, o respeito à reserva de jurisdição não enfraquece o Estado investigativo – ao contrário, o fortalece sob a luz do Estado de Direito.

O próprio ministro Reinaldo Soares da Fonseca, ao acompanhar a maioria, reafirmou a coerência de sua posição histórica: a reserva de jurisdição não diminui a legitimidade do Ministério Público, mas a projeta no exato lugar institucional que a Constituição lhe conferiu. Nenhum juiz — asseverou — negará acesso a dados sigilosos quando apresentados elementos mínimos de justa causa. O que se exige, portanto, não é um entrave, mas um filtro civilizatório, próprio de um processo penal que se pretenda democrático.

Em contraponto, os votos vencidos — liderados pelo ministro Og Fernandes e seguidos por Rogério Schietti e Ribeiro Dantas — sustentaram que o Superior Tribunal de Justiça não poderia reinterpretar o alcance do Tema 990, sob pena de afrontar a competência do STF. Ainda que fundamentados em premissas institucionais respeitáveis, esses votos não lograram convencer a maioria, que compreendeu ser inadmissível a omissão diante de um vácuo hermenêutico persistente, agravado por práticas reiteradas de informalidade persecutória.

Em nome da integridade do sistema acusatório, o STJ decidiu não apenas que podia, mas que devia firmar jurisprudência própria até que o STF venha a fixar entendimento definitivo.

Reafirmação do processo penal garantista

A decisão da 3ª Seção atua como verdadeiro antídoto contra a degeneração investigativa que vinha se consolidando nos bastidores da persecução penal. Sustentações orais e manifestações técnicas revelaram, de forma incontornável, que a requisição direta de RIFs havia se convertido em expediente quase automático – sem controle judicial, sem contraditório. Dados trazidos à tribuna apontaram aumento de 1.339% nos pedidos, expondo o uso desenfreado de uma ferramenta concebida para finalidades excepcionais. Transformado em braço informal da repressão estatal, o Coaf passou a alimentar uma arquitetura paralela de vigilância patrimonial, imune a qualquer controle defensivo.

Com a nova tese fixada, a equação jurídica se altera de modo estrutural: RIFs obtidos por requisição direta, mesmo após instauração de inquérito, passam a ser prova ilícita, atraindo a cláusula excludente do artigo 157 do Código de Processo Penal e comprometendo, por derivação, todos os atos subsequentes. Além disso, a prática reiterada por autoridades persecutórias, à revelia da decisão do STJ, poderá ensejar responsabilização funcional por violação do artigo 10 da LC 105/2001 e do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Reafirma-se, assim, o compromisso com um processo penal garantista, no qual a eficácia investigativa não se constrói à custa da legalidade, da paridade de armas ou da cláusula de jurisdição.

Olimite que garante a legitimidade

Esse resultado não tolhe investigações legítimas – apenas lhes devolve o itinerário constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição Federal, a Lei Complementar 105/2001 e o art. 3º-B, §1º, do Código de Processo Penal não são obstáculos burocráticos à persecução penal: são garantias estruturantes de um processo penal civilizado. A repressão eficaz ao crime, especialmente ao de natureza econômica e patrimonial, exige inteligência, estratégia e celeridade – mas nenhuma dessas virtudes autoriza o desprezo à reserva de jurisdição, à legalidade estrita ou ao contraditório.

Ao interditar a requisição direta de RIFs sem autorização judicial, o STJ não impõe um obstáculo arbitrário à atuação do Ministério Público ou das polícias. Pelo contrário, reforça a legitimidade de suas atribuições, submetendo-as ao controle judicial prévio, que é a moldura institucional própria de qualquer medida que atinja esferas sensíveis da intimidade financeira dos cidadãos. Não se trata de conferir privilégio a investigados, mas de garantir que, mesmo diante de investigações graves e complexas, a atuação estatal permaneça ancorada na legalidade e sujeita a controle de proporcionalidade.

Reafirma-se, assim, que a eficiência não é um valor absoluto. Quando dissociada da legalidade, converte-se em autoritarismo funcional, ainda que travestido de boa intenção. O que o julgamento da 3ª Seção expõe, com nitidez, é que a eficácia da persecução penal não pode legitimar métodos clandestinos, tampouco naturalizar práticas de exceção. Em matéria de sigilo bancário e financeiro, o controle judicial não é uma formalidade a ser superada: é a cláusula de validade, de legitimidade e de civilidade do processo penal democrático.

A decisão de 14 de maio de 2025 marca, assim, um ponto de inflexão: reequilibra a relação entre poder investigativo e garantias fundamentais, reafirma a centralidade do Judiciário no controle de medidas invasivas e devolve à dogmática processual penal a clareza que a prática vinha solapando. Ao fechar a porta da devassa informal, o STJ não enfraquece o combate ao crime – fortalece a República e o Estado democrático de Direito.

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TRF3 eliminará o 70º lote de precatórios findos e com temporalidade cumprida

Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) comunica a eliminação do 70º lote de precatórios findos com temporalidade cumprida. O edital de ciência de eliminação n. 84/2025 foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 19 de maio. O procedimento atende às determinações contidas na Consolidação Normativa do Programa de Gestão Documental da Justiça Federal de 1º e 2º graus, estabelecida pela Resolução CJF n. 886/2024.

Pessoas interessadas podem requerer documentos no prazo máximo de 45 dias, contado a partir da data de publicação do edital, junto à Divisão de Arquivo e Gestão Documental do TRF3, localizada na Avenida Paulista, 1.842, 5° andar, quadrante 2.

Os pedidos serão atendidos por ordem de solicitação, sendo que a via original será entregue apenas à(ao) primeira(o) requerente. Demais interessadas(os) poderão obter cópias do original, conforme disponibilidade do Tribunal.

Os documentos solicitados estarão disponíveis para retirada a partir do 46º dia e, caso não sejam retirados, serão eliminados conforme as regras do edital.

Fonte: CJF

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Autenticidade em crise: direitos autorais, subjetividade e paradigma Volpi na arte produzida sob Alzheimer

Este artigo propõe uma reflexão jurídica sobre os limites da autenticidade em obras de arte quando a capacidade subjetiva do artista se encontra comprometida por enfermidades progressivas, como o Mal de Alzheimer. Tomando como paradigma o caso de Alfredo Volpi (1896–1988), cuja produção entre 1984 e 1988 desperta questionamentos éticos, jurídicos e museológicos, busca-se investigar até que ponto a degradação cognitiva afeta a legitimidade da autoria artística.

A autenticidade de uma obra de arte, na concepção moderna do direito autoral, está intimamente ligada à subjetividade do autor — sua intenção criativa, domínio técnico e expressão estética. Quando essa subjetividade entra em colapso, a obra continua sendo sua? Ou se torna expressão de terceiros, ainda que elaborada com seus materiais e dentro de seu ateliê?

Este texto visa a contribuir para um amplo debate público, jurídico e interdisciplinar sobre a necessidade de atualização da Lei de Direitos Autorais brasileira, especialmente no que tange à definição da criação autoral sob condições de comprometimento neurológico. A questão de fundo é conceitual e provocadora: o artista plástico, afinal, morre antes do que o homem biológico?

Espera-se, com este artigo, promover uma discussão ampla que auxilie o Judiciário a se aparelhar de forma mais eficaz para prestar tutela jurisdicional adequada diante de casos semelhantes — que, embora tenham como marcos emblemáticos os episódios de Volpi no Brasil e De Kooning nos Estados Unidos, extrapolam essas figuras e alcançam uma complexa zona de indeterminação autoral que exige novos parâmetros técnicos, jurídicos e éticos.

Subjetividade como fundamento da autoria

A noção de autoria, no campo do direito autoral contemporâneo, transcende a simples execução técnica. Conforme a Lei nº 9.610/1998, são protegidas “as criações do espírito”, e o artigo 24º consagra os direitos morais do autor, como a paternidade da obra e a defesa de sua integridade. Esses dispositivos legais refletem uma concepção de obra como extensão da personalidade do autor.

A perda dessa subjetividade compromete a autenticidade. Ainda que tecnicamente semelhantes, obras produzidas em estado de incapacidade parcial não carregam a mesma legitimidade jurídica, pois estão desprovidas da intenção criativa que fundamenta a proteção autoral. A subjetividade, assim, não é apenas um atributo criativo. É um requisito jurídico.

Caso Volpi: técnica, isolamento e o Alzheimer progressivo

Volpi foi mestre da têmpera a ovo, técnica que exige vigor físico, sensibilidade estética e profundo controle do gesto. A partir de 1984, surgiram relatos de comprometimento cognitivo, dificuldades motoras e isolamento social. Colecionadores, críticos e amigos notaram mudanças em sua rotina e em suas obras — algumas assinadas, mas com traços distintos da deterioração visível em outras da mesma fase.

Apesar de não ter havido interdição formal, a comunidade museológica e os responsáveis pelo catálogo raisonné optaram por não incluir as obras produzidas entre 1984 e 1988. A decisão foi baseada na impossibilidade de atestar, com segurança, a manifestação subjetiva plena do artista no processo criativo, à luz da doença já instalada.

Sabemos hoje que a progressão média do Alzheimer até o óbito é de sete anos. Volpi manifestou sintomas em 1984 e faleceu em 1988. A análise médica compatibiliza esse período com os estágios moderados da doença, nos quais já se observa prejuízo cognitivo relevante.

Não se trata apenas de uma hipótese clínica ou indício testemunhal: Alfredo Volpi faleceu, oficialmente, de Mal de Alzheimer. Sua certidão de óbito, documento público e dotado de fé pública, registra de modo incontroverso o Alzheimer como causa mortis. Portanto, a doença não foi um elemento colateral de sua biografia tardia, mas a própria razão de sua morte. Essa constatação confere gravidade adicional ao debate jurídico sobre a legitimidade das obras atribuídas ao artista em seus anos finais.

Fragilidade das perícias técnicas no contexto do Alzheimer

A perícia técnica tradicional — centrada em pigmentos, composição, assinaturas e métodos materiais — mostra-se insuficiente quando o cerne da controvérsia reside na ausência de intenção criativa do artista. Obras atribuídas a Volpi após 1984 utilizam os mesmos pigmentos e suportes, mas a subjetividade que lhes conferiria autenticidade talvez já não estivesse presente.

A intervenção de assistentes, familiares ou agentes — ainda que bem-intencionada — pode produzir obras formalmente coerentes, mas juridicamente duvidosas. O direito autoral exige mais do que materialidade: exige expressão. Por isso, a análise da autenticidade nesses contextos deve ser interdisciplinar, incorporando laudos médicos, testemunhos e registros históricos do processo criativo.

Interdição, incapacidade e limites da autoria

A Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) introduziu o conceito de capacidade como um espectro, não mais como uma dicotomia. Isso, no entanto, ainda não encontrou plena ressonância no direito autoral, que continua a lidar com a autoria de forma binária: ou há intenção subjetiva, ou não há.

No caso de Volpi, a ausência de interdição formal não impede que se considere a possibilidade de parcial incapacidade autoral. Isso exige que o direito evolua, incorporando critérios que permitam aferir a integridade criativa de artistas em processo de deterioração psíquica. É nesse ponto que a interseção entre arte, medicina e direito se torna inescapável.

Enquanto o caso de Willem de Kooning, diagnosticado com Alzheimer em período concomitante ao de Volpi, gerou amplo debate público, reflexões jurídicas aprofundadas e, inclusive, influenciou a jurisprudência e o arcabouço normativo norte-americano, o Brasil permaneceu inerte. O Judiciário brasileiro, muitas vezes, fica à mercê de uma visão arcaica da perícia, centrada na análise de pigmentos, telas e outros elementos de materialidade técnica. No entanto, não se trata aqui de discutir o objeto em si — que pode perfeitamente ter saído do ateliê do artista —, mas sim a autoria. E a autoria, como instituto jurídico, reside na subjetividade.

Trata-se de um campo de análise em que a simples presença física do artista não basta. Mesmo uma supervisão parcial de uma obra por um autor com subjetividade já comprometida pode não ser suficiente para conferir-lhe legitimidade. O conceito de autoria demanda lucidez, intenção estética e domínio intelectual. A ausência parcial desses elementos deve ser cuidadosamente avaliada, sob pena de se legitimar o que não é mais expressão autêntica.

Os órgãos responsáveis pela catalogação raisonné da obra de Volpi, que optaram por não incluir as produções entre 1984 e 1988, evidenciam, com essa recusa, o alto grau de seriedade e responsabilidade metodológica de sua atuação. A decisão, longe de representar omissão, é manifestação de rigor acadêmico e jurídico diante de um cenário em que a subjetividade do artista já se encontrava diluída.

Isso reforça o caráter complexo e sensível do debate, cuja dimensão extrapola o campo da crítica de arte para exigir posicionamentos sólidos do sistema jurídico. É justamente esse o foco central do presente trabalho: provocar a reflexão profunda sobre a autoria em tempos de deterioração cognitiva e garantir que a tutela jurisdicional seja prestada de forma técnica, interdisciplinar e justa.

Caso Willem de Kooning e comparação internacional

Willem de Kooning (1904–1997), expoente do expressionismo abstrato norte-americano, foi diagnosticado com Alzheimer no final da década de 1980 e continuou a produzir até cerca de 1990. Nesse período, suas obras tornaram-se notavelmente mais contidas, com formas simplificadas e menor agressividade gestual. A mudança estilística, inicialmente interpretada como nova fase estética, logo suscitou dúvidas sobre sua autonomia criativa.

Críticos e estudiosos apontaram que, nesse período, De Kooning era cercado por assistentes, agentes e curadores que gerenciavam sua rotina de ateliê, levantando suspeitas sobre a extensão de sua participação ativa nas obras assinadas. Em 1993, a revista The New Yorker questionava se o artista, já comprometido cognitivamente, teria compreendido ou autorizado as obras produzidas em seu nome.

Ao contrário do que ocorreu no Brasil com Volpi, o debate internacional gerou eco jurídico e resultou em maior cautela nos critérios de avaliação de autenticidade. A diferença reside também na cultura documental: nos EUA, os procedimentos de ateliê foram registrados com precisão; no Brasil, o silêncio institucional e a ausência de documentação sistemática dificultam qualquer juízo inequívoco.

Desafio brasileiro: lacunas e urgência jurídica

Outros artistas brasileiros acometidos por doenças neurodegenerativas, como Nara Leão, Lygia Fagundes Telles, Nelson Sargento e Rubem Alves, também suscitam, mesmo que de modo latente, a necessidade de um debate jurídico profundo sobre a autenticidade de suas obras finais.

A jurisprudência brasileira é ainda incipiente nesse campo. O mercado, por sua vez, opera com pragmatismo comercial, aceitando obras cuja autenticidade subjetiva pode estar comprometida. Sem um marco jurídico claro, proliferam disputas silenciosas, inseguranças e falsificações legitimadas pelo tempo.

Internacionalmente, casos como os de William Utermohlen e Carolus Horn evidenciam a urgência de normativas que reconheçam a fronteira entre produção sob lucidez e produção sob deterioração. No Brasil, esse debate é ainda embrionário, mas não menos necessário.

Conclusão

O caso de Alfredo Volpi revela um paradoxo essencial: a obra pode continuar sendo formalmente coerente, mas sua alma — a subjetividade criadora — talvez já tenha se dissipado. A provocação que orienta este artigo permanece: o artista plástico, afinal, morre antes do que o homem biológico?

É imperativo que o direito autoral evolua para lidar com essa zona de transição. A integridade da obra não pode prescindir da integridade do autor. Quando esta última se dissolve, a primeira torna-se vulnerável. A resposta jurídica, para ser eficaz, precisa ouvir a arte, a medicina e a memória cultural.

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Referências (ABNT)

BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o direito autoral e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 1998.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.

MSD MANUALS. Doença de Alzheimer. Disponível aqui.

NOVO CUIDAR. Fases da demência: o que esperar à medida que a doença progride. Disponível aqui.

BVS/MS. Doença de Alzheimer. Biblioteca Virtual em Saúde – Ministério da Saúde. Disponível aqui.

THE NEW YORKER. What Did de Kooning Know, and When Did He Know It? New York, 1993.

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Respeito aos precedentes, um ponto de convergência no debate sobre o futuro do habeas corpus

Especialistas de diferentes esferas do Sistema de Justiça concordam em que a inobservância dos precedentes do STJ e do STF é uma das causas do aumento explosivo de habeas corpus nos tribunais.



Esta terceira e última parte da série de reportagens HC 1 milhão: mais ou menos justiça? propõe uma reflexão sobre como enfrentar o uso excessivo do habeas corpus sem prejudicar seu papel de garantia constitucional na proteção da liberdade. O desafio é complexo e sensível. Trata-se de equilibrar o peso das garantias fundamentais com a necessidade de racionalidade e eficiência no Sistema de Justiça penal.

No centro do debate, o que está em discussão é se é possível – e até que ponto – limitar o uso do habeas corpus em processos criminais. Várias propostas de mudanças jurisprudenciais e legislativas – como a criação de filtros de admissibilidade – estão na mesa, em um esforço para prestigiar o uso dos recursos e a própria função constitucional do HC.

Apesar de atuarem em diferentes esferas do Sistema de Justiça, os especialistas ouvidos convergem em um ponto fundamental: os operadores do direito devem seguir os precedentes fixados tanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Para muitos, a inobservância das balizas estabelecidas pelas cortes superiores – especialmente por parte de magistrados de primeiro grau, tribunais estaduais ou regionais federais, além de integrantes do Ministério Público (MP) – é um dos principais fatores que alimentam o excesso de habeas corpus.

Precedentes criam unidade nacional na interpretação de questões jurídicas

O ministro Rogerio Schietti Cruz, integrante da Sexta Turma do STJ, diz que o julgamento pelo rito dos recursos repetitivos e a afetação de casos de direito penal para a Terceira Seção ou para a Corte Especial, bem como a edição de súmulas, são alguns mecanismos do tribunal para lidar com o congestionamento de processos: “Com isso, tentamos mostrar, não só à sociedade, mas a todos os tribunais, como pensa o STJ e como deve ser a interpretação das leis federais”.

Segundo o ministro, é importante sensibilizar toda a magistratura e o MP quanto à importância de seguir os precedentes.

Imagem de capa do card

Na medida em que fixamos determinadas teses em julgamentos qualificados, com a composição ampla, em temas já pacificados, elas deveriam ser observadas por todos, de modo a criar uma unidade nacional na interpretação de questões jurídicas, evitando uma série de impetrações de habeas corpus que só ocorrem porque não há a observância dessas decisões.

Ministro Rogerio Schietti Cruz

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Guilherme de Souza Nucci também acredita que, se fossem seguidos os entendimentos consolidados pelos tribunais superiores – especialmente os que são favoráveis ao réu –, muitos processos seriam resolvidos logo no primeiro grau de jurisdição, não havendo necessidade de habeas corpus ou recursos às demais instâncias por parte da defesa.


Um olhar específico sobre a real utilidade do habeas corpus

A promotora Fabiana Costa, chefe da Coordenação de Recursos Constitucionais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), pondera que um olhar específico sobre a real utilidade do HC para a sua admissão pode ser uma medida eficaz no combate ao uso indiscriminado do instrumento, fora de suas finalidades constitucionais.

Fabiana observa que, diferentemente dos recursos no processo penal, que devem cumprir uma série de requisitos legais e formais para serem admitidos, o habeas corpus chega mais rápido para a análise do ministro relator, mesmo quando não guarda relação direta com a liberdade do paciente, nem com nulidades graves ou afrontas à jurisprudência consolidada. “Não é à toa que a maioria dos habeas corpus nem sequer são conhecidos”, enfatiza.

Outro ponto sensível destacado pela promotora refere-se à limitação da atuação do Ministério Público durante o processamento do habeas corpus: “O MP é ouvido como custos legis, mas o membro que conhece todas as peças do processo, conhece todas as cautelares, toda a tramitação daquele feito – que às vezes é extremamente complexo –, nem sequer é ouvido no momento em que o HC está sendo processado”.

Um exemplo de racionalização criado pela jurisprudência 

Em 2020, a Terceira Seção do STJ fixou um marco importante para conter a utilização excessiva do habeas corpus em situações já cobertas por recursos processuais próprios. No julgamento do HC 482.549, o colegiado entendeu que, uma vez interposto recurso cabível contra a mesma decisão judicial, o habeas corpus só poderá ser examinado se visar diretamente à tutela da liberdade de locomoção, ou se apresentar pedido distinto do recurso que reflita no direito de ir e vir.

O relator, ministro Rogerio Schietti, ressaltou que “é preciso respeitar a racionalidade do sistema recursal e evitar que o emprego concomitante de dois meios de impugnação com a mesma pretensão comprometa a capacidade da Justiça criminal de julgar de modo organizado, acurado e correto – o que traz prejuízos para a sociedade e os jurisdicionados em geral”.

Para o advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, no entanto, o habeas corpus é o instrumento mais eficaz para corrigir prisões ilegais e outros constrangimentos, e não pode sofrer restrições. “Um ponto crucial é a excessiva formalidade dos recursos. Se houvesse alguma alteração legislativa ou jurisprudencial para flexibilizar essas exigências nos recursos especial e extraordinário, isso poderia reduzir significativamente o número de habeas corpus impetrados”, opina.

Alteração do Código de Processo Penal divide opiniões

Uma oportunidade para a adoção dos aperfeiçoamentos em debate poderia ser a reforma do Código de Processo Penal (CPP), decretado por Getúlio Vargas em 1941. Diversas propostas já foram apresentadas ao Congresso Nacional nesse sentido, sendo uma delas o Projeto de Lei do Senado 156/2009, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). A proposta original, elaborada por uma comissão presidida pelo ministro do STJ Hamilton Carvalhido (falecido), buscava evitar a utilização do HC como substituto recursal, restringindo as hipóteses de seu cabimento.

De acordo com o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma, essa proposta poderia melhorar a estrutura recursal do processo penal e direcionar muitas questões para serem resolvidas por outros meios processuais mais adequados. Na avaliação do ministro, essa é uma discussão relevante, que deve envolver não apenas os operadores do Sistema de Justiça, mas também administradores públicos e representantes políticos.

Contudo, Ribeiro Dantas alerta que qualquer eventual modificação legislativa deve ser feita com extremo cuidado, já que o habeas corpus vai além de uma mera peça processual: trata-se de uma garantia constitucional fundamental. “Essa garantia é algo que muitos países não possuem, mas que no Brasil está expressamente consagrada na Constituição. Portanto, é necessário ter cautela ao tratar desse tema”, afirma.

Por sua vez, o defensor público Marcos Paulo Dutra sustenta que o CPP em vigor já contém mecanismos adequados para coibir o uso abusivo do habeas corpus. Para ele, o problema não está na ausência de regras, mas na forma como elas são aplicadas. Segundo Dutra, é preciso adotar uma análise mais rigorosa dos critérios legais existentes e, sobretudo, respeitar as balizas interpretativas consolidadas pelos tribunais superiores ao longo dos anos.

Dutra explica que, quando uma nova lei surge, há todo um processo de criação de jurisprudências, doutrinas e interpretações, que gera inseguranças e “coloca em xeque” tudo o que já foi construído sobre o assunto.

“Acredito que é adequado o caminho trilhado pelo STJ e pelo STF de construir balizas, via interpretação do próprio CPP, que permitam uma racionalização do emprego do habeas corpus. Ainda mais diante de um ordenamento jurídico que, nos últimos anos, tem se preocupado tanto em prestigiar os precedentes judiciais. Se isso for prestigiado, não tenho dúvidas de que o próprio número de habeas corpus será reduzido”, expõe o defensor.

Tutela de urgência requerida na petição do recurso especial

O advogado Caio César Domingues de Almeida, que também defende a preservação do habeas corpus nos moldes atuais, propõe uma alternativa voltada à estrutura recursal: a criação, no próprio recurso especial, de um espaço específico para que a defesa possa formular pedidos de tutela de urgência.

“Isso daria mais segurança aos advogados, que hoje temem interpor apenas o recurso e ver a matéria de direito simplesmente não ser apreciada. Atualmente, não há um mecanismo que permita à defesa fazer esse pedido diretamente na peça recursal. Instituir essa possibilidade de forma clara e regulamentada poderia reduzir a quantidade de habeas corpus e tornar o sistema mais eficiente”, argumenta.

Para o advogado, se houver uma mitigação das formalidades processuais nos recursos às cortes superiores, haverá uma redução significativa do número de habeas corpus impetrados: “O que precisa ser repensado é o funcionamento do sistema recursal, especialmente no que diz respeito aos recursos especial e extraordinário”.

Nessa mesma perspectiva, o ministro Ribeiro Dantas defende um sistema de agravos no processo penal, os quais seriam interpostos diretamente nos tribunais, com a possibilidade de concessão de tutelas penais de urgência.


Atualização da Lei de Drogas poderia reduzir o número de impetrações

Na opinião do desembargador Guilherme Nucci, outra medida que pode levar à redução do número de habeas corpus é a reforma de leis já defasadas ou carentes de regulamentação mais precisa – a exemplo da Lei de Drogas, que, segundo ele, responde pelo maior número de habeas corpus analisados atualmente nos tribunais. Para o magistrado, mais do que criar restrições, é necessário corrigir uma grande falha: a ausência de parâmetros objetivos que orientem os juízes de todo o país na aplicação da norma penal.

“Está na hora do legislador entrar em campo e definir definitivamente o que é natureza de drogas, quais são as drogas mais perigosas à saúde, quais não são ou são menos perigosas e qual é a quantidade ideal para se presumir quem é usuário e traficante – como o Supremo fez com a maconha”, avalia o desembargador.

A falta dessas definições, conclui, reflete-se inclusive no aumento de prisões, o que gera mais pedidos de habeas corpus e o aumento desnecessário da população carcerária.

Salvo-conduto para Cannabis medicinal garante direito à saúde e à liberdade

Em meio a toda essa discussão, o habeas corpus segue desempenhando um papel essencial na defesa de direitos fundamentais, até para tutelar, de forma indireta, o direito à saúde. É o que tem acontecido com pessoas que recorrem ao Poder Judiciário em busca da garantia de não serem presas nem submetidas a quaisquer medidas repressivas em razão do uso medicinal da Cannabis sativa.

Em várias decisões, o STJ já deu habeas corpus preventivos para pacientes ou familiares de pacientes que se valem do óleo de canabidiol (CBD), um composto químico da Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos, para o tratamento de diversas doenças.

O vídeo abaixo mostra um desses casos em que o salvo-conduto do tribunal permitiu que o cidadão não fosse alvo de sanções penais por cultivar a planta para fins terapêuticos: uma história sobre como os direitos à saúde, à dignidade e à liberdade foram preservados pelo instituto do habeas corpus. 

Fonte: STJ

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Projeto permite que delegado recorra de indeferimento de medidas cautelares

O Projeto de Lei 4689/24 permite que o delegado de polícia recorra do indeferimento de medidas cautelares no curso da investigação criminal. Em análise na Câmara dos Deputados, o texto altera a Lei 12.830/13, que trata da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.

“Considerando que o delegado de polícia está à frente das investigações e é o agente público que de fato conhece as necessidades e peculiaridades de cada caso, faz-se necessário que ele tenha a prerrogativa de recorrer do indeferimento”, defende o autor da proposta, o deputado Delegado Marcelo Freitas (União-MG).

O parlamentar explica que, desta forma, o delegado poderá recorrer, por exemplo, do indeferimento de pedido de prisão temporária ou preventiva; e de busca e apreensão domiciliar. 

Próximos passos
A proposta será analisada em caráter conclusivo pelas comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Fonte: Câmara dos Deputados

Veja como regularizar na Justiça o título eleitoral cancelado

Quem teve o título cancelado pela Justiça Eleitoral ainda pode requerer a regularização do documento, evitando assim impedimentos como o de votar e ser votado.

Na segunda-feira (19), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou que mais de 5 milhões de títulos foram cancelados pois seus detentores faltaram às três últimas eleições de votação obrigatória e não justificaram a ausência ou pagaram a multa estipulada pela legislação.

Além de não poder participar do pleito, seja votando ou sendo votado, o cidadão com título cancelado fica sujeito a uma série de impedimentos, não podendo tomar posse em concursos públicos, renovar matrícula em instituições de ensino pública ou tirar passaporte.

Para regularizar, o eleitor deve primeiro checar a situação de seu título, presencialmente no cartório eleitoral de seu domicílio eleitoral ou no autoatendimento pela internet. Se for confirmado o cancelamento, o cidadão pode protocolar um requerimento para que o documento seja regularizado fora do prazo.

É necessário justificar, de preferência com provas documentais, a ausência nos pleitos de comparecimento obrigatório, ou pagar as multas correspondentes. Também não adianta somente cumprir as exigências, sendo imprevisível também preencher o requerimento específico, seja no próprio cartório ou no autoatendimento online, clicando na opção Título Eleitoral e, depois, em opção 6

A verificação e o cancelamento de títulos irregulares ocorrem sempre em anos não eleitorais, como forma de manter atualizado o cadastro nacional de eleitores e conforme determina a legislação eleitoral.

Fonte: EBC

Cabe ao árbitro julgar cláusula compromissória em estatuto de associação civil

A regra que exige a confirmação da cláusula compromissória nos contratos de adesão não incide nos casos em que ela é incluída no estatuto de uma associação civil.

Essa conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a competência do árbitro para analisar a validade da cláusula compromissória inserida no estatuto de uma associação de proprietários de veículos.

A tal cláusula estabelece que eventuais litígios em uma relação contratual serão resolvidos pelo método da arbitragem, e não pela via judicial.

Nos contratos de adesão, a validade da cláusula está condicionada a uma autorização expressa por escrito, em documento anexo ou em negrito, conforme exige o artigo 4º, parágrafo 2º, da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996).

O caso concreto, no entanto, é o de um litígio envolvendo uma associação civil que incluiu a cláusula compromissória em seu estatuto. Ou seja, houve deliberação dos associados e concordância com sua existência por assembleia geral.

Assim, cabe ao juízo arbitral apreciar eventual alegação de nulidade ou ineficácia da cláusula compromissória, de acordo com a conclusão das instâncias ordinárias, que acabou confirmada pela 3ª Turma do STJ, conforme a posição da relatora, ministra Nancy Andrighi. A votação foi unânime.

O caso trata de um litígio entre a associação civil e uma de suas ex-associadas por causa de uma dívida de R$ 8,5 mil. A empresa foi ao STJ contestar a resolução por meio da arbitragem, com a alegação de que, ainda que a inclusão de tal cláusula tenha sido decidida em assembleia, isso não pode vulnerar a autonomia da vontade pertinente à adesão à arbitragem.

Votado em assembleia

A ministra Nancy explicou que o objetivo do artigo 4º, parágrafo 2º, da Lei de Arbitragem é evitar a imposição da arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias em contratos no qual não há espaço para deliberação, como o de adesão.

Esse dispositivo, porém, não incide no caso das associações porque elas se orientam pela liberdade de estabelecer e alterar, em qualquer momento, as regras de sua organização e funcionamento, por meio das assembleias.

“Desse modo, a inclusão de cláusula compromissória no estatuto de uma associação, por meio de votação em assembleia geral, é resultado de deliberação coletiva, e não de imposição unilateral”, apontou a ministra.

Isso não proíbe a ex-associada de discutir a validade da cláusula compromissória ou a sua eficácia, apenas atesta que essa discussão deve ocorrer no próprio juízo arbitral.

“Portanto, não se tratando de contrato de adesão, não incide o artigo 4º, parágrafo 2º, da Lei de Arbitragem, razão pela qual se aplica a regra geral de que cabe ao juízo arbitral decidir as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”, destacou Nancy.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 2.166.582

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STJ vai definir se fraturamento hidráulico pode ser usado na exploração de óleo e gás de fontes não convencionais

A técnica de exploração, conhecida como fracking, será analisada pela Primeira Seção em julgamento sob o rito do incidente de assunção de competência (IAC).

​A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu incidente de assunção de competência (IAC 21) para discutir a “possibilidade, impossibilidade e/ou condições de exploração de gás e óleo de fontes não convencionais (óleo e gás de xisto ou folhelho) mediante fraturamento hidráulico (fracking)”. A análise será realizada com base em normas de proteção ao meio ambiente e aos biomas, como a Política Nacional do Meio Ambiente, a Política Nacional dos Recursos Hídricos, a Lei do Petróleo e a Política Nacional da Mudança do Clima.

A relatoria do IAC é do ministro Afrânio Vilela. Para julgamento da controvérsia, o colegiado determinou a suspensão, em todo o território nacional, dos recursos especiais e extraordinários que tratam da mesma questão.

“É inviável e ilógico permitir a exploração em uma unidade da federação e impedi-la em outra, quando a atividade pode afetar indistintamente a população e o meio ambiente de ambas as localidades, notadamente no que diz respeito à possibilidade de contaminação irreversível, inclusive por radioatividade, de extensos aquíferos subterrâneos, solo e ar”, destacou o ministro.

No caso submetido ao rito do IAC no STJ, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública ambiental contra a Petrobras, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e outras duas empresas, visando, entre outros objetivos, à suspensão de licitação da ANP para exploração do gás de folhelho com a técnica de fracking na Bacia do Paraná, localizada na região oeste do estado de São Paulo.

O pedido foi atendido em primeiro grau, mas o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) deu provimento à apelação da ANP e julgou improcedente a ação, o que motivou a interposição do recurso especial pelo MPF.

Potenciais riscos ambientais exigem solução jurisdicional única

Afrânio Vilela destacou que a exploração de gás e óleo de fontes não convencionais (xisto ou folhelho) com uso da técnica de fracking desperta atualmente grande discussão científica, jurídica e política em todo o mundo.

“A matéria é uma das mais relevantes e polarizantes no embate entre ambientalistas e industriais, e coloca no mesmo polo político a agroindústria e movimentos sociais. A dissonância em torno do tema exige o debate qualificado, ampliado e democrático, viabilizado ao Judiciário por meio dos procedimentos de formação de precedentes qualificados”, observou o ministro.

Segundo o relator, ainda que o recurso especial se limite aos leilões de poucas áreas realizados em 2013, outras ações envolvendo blocos licitatórios distintos têm recebido decisões variadas de diferentes tribunais. Em sua avaliação, essa dispersão jurisprudencial, embora limitada, gera insegurança jurídica em um setor altamente regulado de interesse estratégico internacional.

“A causa, portanto, envolve relevante questão de direito, com grande repercussão social e sem repetição em múltiplos processos (artigo 947 do Código de Processo Civil), devendo ser processada na forma de IAC”, concluiu Afrânio Vilela.

IAC assegura orientação jurisprudencial uniforme

O IAC poderá ser instaurado quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, mas sem repetição em múltiplos processos. Além de permitir o tratamento isonômico entre os cidadãos, o IAC acaba com as divergências existentes ou que possam surgir entre os órgãos fracionários da corte sobre a mesma questão jurídica complexa e delicada.

Leia o acórdão de afetação do REsp 1.957.818

Fonte: STJ

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Medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar: o primeiro caso

No último 30 de abril, às vésperas do feriado do Dia do Trabalho, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados entrou com representação em desfavor do deputado Gilvan da Federal (PL-ES), por procedimento incompatível com o decoro parlamentar. Mas diante das várias representações que já tramitaram por aquela Casa Legislativa, o que isso teria de importante?

A resposta não é óbvia, mas tem um aspecto histórico: foi o primeiro caso de aplicação do artigo 15, XXX, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), que trata da competência da Mesa para propor medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar.

E o motivo desse ineditismo é patente: o dispositivo foi inserido no RICD em junho do ano passado, 2024. A propósito, a esse respeito, interessa ver como se deu sua propositura e tramitação. Lembrando que, como já mencionado em diversas ocasiões nesta coluna Fábrica de Leis, impulsionar uma proposição é algo custoso politicamente falando, necessitando de muita articulação e confluência de interesses.

Em 11/6/2024, foi apresentado o Projeto de Resolução (PRC) nº 32/2024, que alterava o “Regimento Interno da Câmara dos Deputados para dispor sobre medida cautelar de suspensão do exercício do mandato parlamentar”.

Na semana anterior à apresentação do PRC, a Câmara foi palco de diferentes ocorrências. Uma delas aconteceu durante um debate acirrado na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHM), ocasião em que a Deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), à época com 89 anos, teve um mal-estar e chegou a ser hospitalizada. Noutro episódio, os deputados André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG) discutiram no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar tendo que ser separados pela polícia legislativa, assessores e outros parlamentares. Estes e outros incidentes provocaram manifestações de lideranças de diferentes partidos demandando limites mais rígidos diante do clima de crescente hostilidade, o que teria culminado na apresentação do PRC.

Na justificação do PRC, foi consignado que o objetivo primordial seria “prevenir a ocorrência de confrontos desproporcionalmente acirrados entre parlamentares, que, em algumas ocasiões, têm culminado inclusive em embates físicos” comprometendo “o funcionamento democrático e a imagem institucional do parlamento”, a proposta buscaria, portanto, implementar mecanismos para “coibir comportamentos agressivos e garantir que as discussões […] ocorram dentro de parâmetros aceitáveis de civilidade e respeito”.

Cronologia

Na sessão do mesmo dia, 11/6/2025, tem-se uma sequência de fatos importantes: (1) foi apresentado requerimento de urgência (artigo 155, RICD), pelo deputado Doutor Luizinho (PP-RJ), do mesmo partido do então presidente, Arthur Lira (PP-AL), subscrito pelo líder do bloco União/PP/Federação PSDB-Cidadania/PDT/Avante/Solidariedade e PRD; pelo líder da federação PT-PCdoB-PV; e pelo líder do bloco MDB/PSD/Republicanos/Podemos, representando, assim, a maioria absoluta da composição da Casa; (2) o requerimento de urgência foi aprovado, retirando a tramitação do PRC da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), para onde o projeto seria encaminhado, e remetendo a matéria diretamente ao Plenário; (3) o deputado Domingos Neto (PSD-CE), corregedor da Câmara, foi designado relator da matéria no Plenário; (4) foi apresentado o parecer preliminar de Plenário pelo relator.

Originalmente, o projeto autorizava a Mesa a suspender liminarmente o mandato, um grande poder para a Mesa Diretora. Neste sentido, alguns movimentos de obstrução indicam que o PRC não era unanimidade (e.g., apresentação de requerimento de retirada de pauta, pelo PL e pelo Novo; de votação nominal da retirada de pauta, pelo Novo; de votação nominal da matéria, também pelo Novo; e de cinco destaques para emendas e para votação em separado).

Após intensas negociações, no dia seguinte, 12/6/2025 o PRC nº 32/2024 foi discutido, votado e aprovado na forma de subemenda substitutiva global (quando o relator apresenta um texto único em substituição ao originalmente apresentado, refletindo o maior consenso a que se chegou após a discussão da matéria). A votação foi quase unânime, 400 votos sim, 29 não, uma abstenção, num total de 430 votos válidos. Ato contínuo, foi aprovada a redação final; apresentado o autógrafo (documento oficial que representa a versão final do projeto aprovado e que, no caso em questão, segue para promulgação); promulgado o texto na forma da Resolução nº 11/2024, publicado no Diário da Câmara dos Deputados (DCD) no dia seguinte, 13/6/2024. Ou seja, testemunhou-se uma tramitação em tempo recorde do PRC nº 32/2024.

O texto final permite à Mesa Diretora propor a suspensão por até seis meses, por medida cautelar, do mandato de deputado federal por quebra de decoro parlamentar. A Mesa tem o prazo de cinco dias úteis do conhecimento do fato para oferecer a proposta de suspensão. A decisão deverá ser deliberada pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar em até três dias úteis, com prioridade sobre demais deliberações. Diferente de outras representações, essa não passa pela CCJC. Da decisão cabe recurso ao Plenário apresentado pelo deputado acusado, no caso da decisão pela suspensão; ou pela Mesa, no caso de decisão pela não suspensão (no texto inicial, havia a previsão de recurso apresentado por um décimo dos parlamentares – 52 deputados – ou líderes que representassem esse número). O Plenário aprecia o recurso na sessão imediatamente subsequente, em votação aberta, sendo necessário o quórum qualificado de maioria absoluta (257 deputados) para manutenção da suspensão. Igualmente, caso o Conselho de Ética não decida no prazo previsto, a matéria é enviada ao Plenário, que sobre ela deliberará na sessão imediatamente subsequente, com prioridade.

Pedagogia

Ainda que a decisão em última instância seja do Plenário da Casa, cumpre mencionar que a medida, mesmo após as modificações promovidas na redação original após a discussão da matéria, concentrou poderes nas mãos da Mesa (ainda que tenha excluído a possibilidade de decisão unilateral do presidente da Câmara sobre o tema, o que acontece para outras matérias de competência da Mesa).

O efeito pedagógico imediato da aprovação da Resolução nº 11/2024 pode ser percebido observando-se um breve histórico quantitativo de representações por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar no âmbito da Câmara dos Deputados, no horizonte recente dos últimos seis anos. Em 2019, foram 21 representações. No ano de 2020, quando foi declarada a pandemia de Covid-19, a interrupção das atividades presenciais no Legislativo e, consequentemente, o início dos trabalhos por meio do Sistema Deliberativo Remoto (tratado aqui), não foi apresentada nenhuma representação. Em 2021, os números começaram a voltar a subir, com 12 representações. Em 2022, foram 27. No ano de 2023, totalizaram 29. Entretanto, no ano de 2024, foram apenas cinco representações, todas no primeiro semestre do ano. A representação contra o deputado Gilvan da Federal é a primeira após a promulgação da Resolução nº 11/2024, e isso em quase um ano!

O pedido da suspensão cautelar do mandato do deputado Gilvan da Federal se deu por supostas ofensas à ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, proferidas durante reunião da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), na qual havia sido convocado o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, realizada em 29/4/2025.

A representação foi assinada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), pelo segundo vice-presidente, Elmar Nascimento (União-BA); pelo primeiro secretário, Carlos Veras (PT-PE); pelo segundo secretário, Lula da Fonte (PP-PE); e pela terceira secretária, Delegada Katarina (PSD-SE). O primeiro vice-presidente, que é do mesmo partido que Gilvan da Federal, não assinou o documento.

O desfecho, conforme o novo rito prevê, foi célere. O relator no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, deputado Ricardo Maia (MDB-BA), inicialmente apresentou parecer favorável à suspensão por seis meses, mas após discurso em Plenário do representado, comprometendo-se a mudar de comportamento, apresentou novo parecer sugerindo a suspensão cautelar do mandato pelo período de três meses. O parecer foi aprovado no Conselho de Ética, em 6/5/2024, por 15 votos favoráveis e quatro contrários. No mesmo dia, o despacho oficializando a suspensão cautelar foi publicado. O deputado Gilvan da Federal teria manifestado que não recorreria da decisão.

E assim parece ter chegado ao fim a primeira aplicação do artigo 15, XXX, do RICD, não em sua totalidade, uma vez que não se chegou a apresentar recurso que levaria a apreciação ao Plenário, mais ainda sim, histórica.

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Comunhão parcial não resulta, por si, em responsabilidade por dívida de cônjuge

A 3ª Câmara de Direito Comercial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, manter decisão que negou o pedido de penhora de valores depositados em conta bancária da ex-esposa de um devedor. O colegiado reafirmou o entendimento de que o regime de comunhão parcial de bens não implica, por si só, responsabilidade solidária pelas dívidas do outro cônjuge.

No caso, um posto de combustíveis buscava executar dívida contraída em 2023, durante o casamento do executado. A tentativa de penhora visava a conta bancária de sua ex-mulher, com o argumento de que os frutos da sociedade conjugal beneficiaram ambos e, portanto, a obrigação deveria recair sobre o patrimônio comum do casal.

O colegiado, no entanto, entendeu que o fato de a dívida ter sido contraída durante o casamento não autoriza, de forma automática, o bloqueio de valores em nome de terceiro não participante do processo de execução.

Segundo o relator, desembargador Gilberto Gomes de Oliveira, não se admite a penhora de ativos financeiros da conta bancária pessoal de terceiro não integrante da relação processual em que se formou o título executivo, só pelo fato de ser casado com a parte executada sob o regime da comunhão parcial de bens.

O voto destacou ainda que o regime adotado pelo casal não torna o cônjuge solidariamente responsável, de forma automática, por todas as obrigações contraídas pelo parceiro, e que impor a penhora a um terceiro que não participou do processo de conhecimento viola o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

A decisão se alinha ao entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça. Conforme precedentes citados, “a ausência de indícios de que a dívida foi contraída para atender aos encargos da família, despesas de administração ou decorrentes de imposição legal torna incabível a penhora de bens pertencentes ao cônjuge do executado”.

A turma reforçou que, para viabilizar a constrição de valores, seria necessário comprovar que a conta da ex-esposa era usada pelo devedor para movimentações financeiras ou ocultação de patrimônio — o que não foi demonstrado nos autos.

In casu, embora a parte agravante alegue que as dívidas foram contraídas durante a constância do casamento, firmado sob o regime da comunhão parcial de bens, a então esposa não figura como demandada nos autos do cumprimento de sentença originário”, escreveu o relator. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SC.

Processo 5083697-48.2024.8.24.0000

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Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados