Regimento interno do STF e ‘coletividade-vítima’: hora da legitimação penal subsidiária?

Frente à eventual inércia, a legitimação penal “isolada” do procurador-geral da República (PGR) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) vem sendo apontada como uma questão a ser desafiada democraticamente.

Nesse sentido, Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) denunciou que a legitimação isolada do PGR nesses casos de inação decorre de um “poder imperial” e, por isso, indica a necessidade de alteração constitucional para fixar os legitimados frente à referida omissão junto ao STF. Isso porque, embora a ação penal privada seja garantia constitucional (artigo 5º, LIX), a teoria aponta dúvidas sobre a legitimidade subsidiária diante da prática de crimes com “vítima-coletiva” — como nos crimes contra o Estado democrático de direito, a saúde pública e a economia popular.

Neste ponto, cresce ainda mais em importância o movimento de atualização do Regimento Interno do STF (cuja comissão integrada por notáveis juristas é regida pela Portaria nº 249, de 27/12/2024), o qual pode contribuir dando visibilidade regimental ao tema. Isso porque o atual regimento interno já possui regras relacionadas à ação penal privada. Com isso, a adaptação terminológica para “ação penal subsidiária traria redação atual, pois alcançaria, como se verá, os múltiplos legitimados subsidiários no interesse da coletividade-vítima.

Outrossim, antes de prosseguir, registra-se que, em outras sedes jurisdicionais, o sistema processual penal prevê saídas “interna corporis” em hipóteses de “ações penais públicas subsidiárias da pública” [1] nas quais a legitimação subsidiária recai sobre o próprio Ministério Público: (1) Decreto-Lei nº 201/1967 (artigo 2º, 1º); (2) Lei nº 7.492/1986 (artigo 27); (3) Código Eleitoral (artigo 357, §§ 3º e 4º).

Com essa visão geral, perguntar-se: existiria um amplo rol de legitimados penais subsidiários extraídos diretamente da ordem jurídica brasileiraA reposta é sim e, contudo, isso parece permanecer silenciado nos debates profissionais e acadêmicos.

Para responder à questão processual penal é, antes de tudo, imprescindível sair do direito processual penal e ir além, em outras fronteiras, para, em seguida, realizar um inevitável retorno a ele — ou, dito poeticamente: “É preciso sair da ilha para ver a ilha” (José Saramago).

Soluções normativas à subrepresentação coletiva

Mais precisamente, é preciso ir até o “mar” do direito processual coletivo, no qual a “vulnerabilidade organizacional” [2], em sua dimensão coletiva, é vista e tratada. Já na década de 1970, Cappelletti e Garth [3] notaram o problema da subrepresentação de interesses difusos e afins, indicando que as soluções ao redor do mundo seriam de matriz privada ou pública. Como se sabe, as normas do Brasil (em especial a Lei nº 7.347/1985, a Lei da Ação Civil Pública — LACP) seguiram um “modelo misto, atribuindo legitimação às instituições públicas e aos particulares.

Dito isso, a referida expedição caminha até o direito do consumidor e a importante Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor — CDC), na qual o supracitado “modelo misto” foi adotado (artigo 82), distribuindo legitimação coletiva entre entes públicos e privados.

Com efeito, o CDC é uma das mais importantes legislações do microssistema de processo coletivo, incidindo em diálogo com outras normas (artigo 117). E, nesse código, a coletividade-vítima não é uma ilustre desconhecida — ao contrário, encontra fundamento normativo direto, seja pelo viés do “consumidor-vítima” (artigo 17) e da própria coletividade-consumidora (artigo 2º, parágrafo único). Assim, o advento do CDC fortaleceu e viabilizou sobremaneira a defesa das coletividades, em especial, das coletividades-vítimas.

Além da centralidade ocupada pelo CDC no microssistema de processo coletivo, é preciso convir que o Código possui dimensões penais (há crimes previstos entre os artigos 61-79) e até mesmo processuais penais (artigo 80) — sobre a qual cabe um olhar diferenciado.

Ilustre esquecido artigo 80 do CDC: modelo misto de legitimação subsidiária?

O artigo 80 do CDC é uma regra de direito processual penal muito esquecida, o que não combina com sua potencial importância. Isso porque tal artigo criou um rol de legitimados subsidiários à ação penal em relação aos crimes contra o consumidor. Nesse passo, o CDC remete essa legitimação subsidiária aos incisos III e IV do seu artigo 82 — ou seja, entes públicos e associações privadas.

Em outras palavras, para fins de legitimação subsidiária em ação penal, o CDC adotou um “modelo misto” para correção do problema da subrepresentação de interesses penais da coletividade-consumidora. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a legitimação coletiva decorrente do inciso III do artigo 82 do CDC, por exemplo, para Comissões das Assembleias Legislativas (AgRg no REsp nº 928.888/RJ [4]) e à Defensoria Pública (REsp nº 555.111/RJ [5]) — criando óbvios reflexos sobre o artigo 80 do CDC.

Nesse ponto, especialmente em relação à Fazenda Pública e à Defensoria Pública como legitimadas penais subsidiárias, o pioneirismo de Franklyn Roger Alves Silva deve ser destacado e inspirar a presente reflexão.

Superando os limites do CDC e mirando a “comunidade-vítima”

A esta altura, o(a) leitor(a) já compreendeu que existe regra, direta e óbvia, estabelecendo um rol de legitimados subsidiários à ação penal pública. Contudo, também não deve ter passado silenciosamente se tratar de regra voltada aos crimes contra o consumidor. Nesse contexto, vale a crítica de Esteves [6] e Roger [7]: “Não pode a relação de consumo ter uma proteção jurídica mais intensa do que outros bens jurídicos ocupantes do mesmo pedestal de proteção estatal.”

Nesse passo, para além das relações de consumo, Franklyn Roger agregou como fundamento à legitimidade penal subsidiária da Defensoria Pública a LC nº 80/1994 e a responsabilidade constitucional expressa da instituição para a promoção de direitos humanos. Nessa senda, agrega-se também o conceito de “obrigações processuais penais positivas em relação à proteção das vítimas, as quais não se aplicam somente ao Ministério Público, mas ao Estado Brasileiro como um todo.

Mais tarde, foram trazidos, expressamente, elementos normativos integradores[8] do Microssistema de Processo Coletivo com a proteção penal da coletividade-vítima. Desse modo, os artigos 21 da LACP e 117 do CDC passam não somente a expandir a aplicação das regras do CDC para outros direitos coletivos, como também para alcançar as legitimidades penais decorrentes do artigo 80 c/c artigo 82, inc. III e IV, desse Código.

Sem olvidar o atuar da Defensoria Pública como “defensora do grupo” [9] e em favor da comunidade de vítimas [10][11] (seja como desdobramento da promoção dos direitos humanos ou a partir da cláusula de extensão do artigo 117 do CDC), há legitimidade penal subsidiária de outros órgãos públicos despersonalizados [12] (artigo 82, III), de associações (artigo 82, IV) e das comunidades indígenas (artigo 232). Nessa senda, há um rol de legitimados em prol da coletividade-vítima [13], potenciais legitimados a acionar o STF frente à inércia ministerial.

Receio da invasão ‘punivista’

O exercício de eventuais papéis de persecução penal pela Defensoria Pública incomoda o “senso comum” jurídico. Ainda assim, diante de regras positivadas e do papel protetivo da instituição, a questão deve ser refletida seriamente e sem corporativismo. Neste ponto, o debate “Silva vs. Cacicedo”, trouxe contrapontos à legitimação penal da Defensoria Pública [14].

Em verdade, a reflexão de Cacicedo é essencial para que a legitimação penal supletiva e subsidiária não se torne mera reprodução de um sistema penal abusivo; igualmente, a pesquisa de Roger Silva apresenta ferramenta importante para o combate à invisibilidade e à violação dos direitos da coletividade-vítima — guardando certa afinidade com as preocupações emitidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Favela Nova Brasília”, quanto à questão da participação da vítima.

Obviamente, poder-se-ia questionar a presença de membros da Defensoria Pública nos dois polos da ação penal. Contudo, nesse caso, trata-se de representação do interesses da comunidade vítima, não havendo muita distinção da situação de existirem dois advogados (vinculados à OAB, portanto) atuando em polos distintos ou dois membros do Ministério Público ocupando posições processuais distintas ao mesmo tempo (Custos Iuris e parte-recorrente), guardadas as distinções.

Ademais, existem normas autorizadoras da atuação colidente de membros defensoriais (LC nº 80/1994, artigo 4º-A, V), reforçadas por precedentes (STJ, RMS 45.793/SC), tudo em diálogo com as regras que atribuem à instituição a defesa dos direitos humanos das vítimas (individuais ou coletivas) — em especial: LC nº 80/1994, artigo 4º, XI, XV e XVIII e o próprio artigo 134 da CRFB/1988.

O que impede o STF?

Os fundamentos normativos de uma legitimidade supletiva, subsidiária e excepcional de instituições públicas, associações privadas e comunidades indígenas em prol do interesse das “coletividades vítimas” foram expostos. E o que impediria o STF de (a)firmar tais legitimidades? Para o jurista Lenio Streck, a ação penal subsidiária seria pouco utilizada nesse cenário por desconfiança social e porque o sistema se autoprotege, inobstante seja um instrumento de controle democrático corretivo.

Para além de tais problemas, é necessário alcançar os ministros do STF. Ou seja, os pretensos legitimados devem propor tais ações, quando então serão decididos alguns pontos cruciais, tais como: o alcance da regra do artigo 80 do CDC a outras categorias de crimes, desde as regras de extensão (LACP, artigo 21 e CDC, artigo 117); a adoção do modelo subsidiário público, privado ou misto [15]; os contornos processuais penais da Defensoria Pública enquanto garantia constitucional dos direitos humanos, inclusive das vítimas, especialmente a partir da EC nº 80/2014.

Embora longe de definir a questão, o movimento de atualização do Regimento Interno do STF pode(ria) representar um farol a iluminar debates atualizados, inclusive garantindo a intervenção ministerial nas situações aqui discutidas. E, se for validada mais à frente pelo STF, a legitimidade penal subsidiária não deverá ser vista como substituta da importante legitimação do PGR, mas, sim, vista como uma garantia democrática eventual, subsidiária e excepcional para evitar a violação massiva de direitos humanos das coletividades-vítimas.


[1] SILVA, Franklyn Roger Alves. Legitimação Não Tradicional da Ação Penal – A Tutela de Bens Jurídicos por Outras Instituições Públicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 3, n. 1, p. 367-404.

[2] Sobre Vulnerabilidade e Processo, conferir especialmente a seguinte pioneira obra: TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

[3] CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Norhfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

[4] STJ, AgRg no REsp n. 928.888/RJ, rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. 16/5/2013, DJe 21/5/2013.

[5] STJ, REsp n. 555.111/RJ, rel. Min. Castro Filho, 3ª Turma, j. 5/9/2006, DJ 18/12/2006, p. 363

[6] ESTEVES, Diogo. SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 471

[7] SILVA, Franklyn Roger Alves. Legitimação Não Tradicional da Ação Penal – A Tutela de Bens Jurídicos por Outras Instituições Públicas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 396.

[8] CASAS MAIA, Maurilio. Novas intervenções da Defensoria Pública: Custos Vulnerabilis e o Excepcional Amicus Communitatis no Direito Processual Penal. In: SILVA, Franklyn Roger Alves. O Processo Penal contemporâneo e a perspectiva da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 125-159.

[9] ZANETI JR., Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. A Defensoria Pública e os grupos vulneráveis em colisão de interesses: reflexões sobre o “defensor público do grupo” (Defensor Publicus Coetus). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1070, Dez 2024, p. 47-85.

[10] A criação da expressão é de Daniel Gerhard, sendo a publicação mais antiga: GERHARD, Daniel. CASAS MAIA, Maurilio. O Defensor-hermes, o amicus communitas: a representação democrática dos necessitados de inclusão discursiva. Informativo Jurídico In Consulex, Brasília, v. 22, p. 11-12, 1º jun. 2015.

[11] Com ênfase na proteção dos direitos humanos: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. GERHARD, Daniel. MAIA, Maurilio Casas. A Defensoria Pública como “amiga da comunidade” (amicus communitatis) e a “Comunidade amiga” (amicus communitas): a representatividade comunitária na colisão de comunidades vulneráveis e no combate à sub-representatividade. In: AKERMAN, William; e MAIA, Maurilio Casas. Novo perfil de atuação da Defensoria Pública. Brasília: Sobredireito, 2023. p. 253.

[12] Sobre essas figuras: UZEDA, Carolina. PANTOJA, Fernanda Medina. FARIA, Marcela Kohlbach de. TEMER, Sofia. Entes organizados despersonalizados e capacidade de ser parte: grupos e associações de fato em juízo (Art. 75, IX, do CPC). Civil Procedure Review, v. 12, n. 1, p. 165-205, 2021.

[13] Para outra discussão e abordagem da “vítima coletiva”, conferir: MENDES, Soraia da RosaProcesso Penal Feminista. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 99 ss.

[14] CACICEDO, Patrick. Crítica científica de “Legitimação não tradicional da ação penal”: Defensoria Pública e a tutela de direitos por meio do direito penal – uma recusa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 3, n. 1, 407-416, Mar. 2017.

[15] No caso do HC coletivo, por exemplo, o STF, no HC n. 143.641/SP, parece ter se inclinado a um modelo público, aplicando a analogia para permitir a sucessão ativa pela DPU, à luz da Lei do Mandado de Injunção, Lei n. 13.300/2016.

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STF afasta ITCMD sobre VGBL e PGBL: implicações para o planejamento sucessório

No último dia 8 de janeiro, foi publicado acórdão do Tema 1.214, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu ser inconstitucional a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre os valores recebidos pelos beneficiários dos planos de previdência privada, o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) e o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL). A decisão, além de ser um precedente qualificado, abre margem para reflexão sobre o planejamento sucessório e a relação entre contratos de seguro e herança.

A tese fixada pelo STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 1363013/RJ [1], foi a seguinte:

“É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) quanto ao repasse, para os beneficiários, de valores e direitos relativos ao plano Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) ou ao Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) na hipótese de morte do titular do plano.”

A conclusão da qual chegou o plenário da Corte Suprema baseia-se em uma distinção crucial: o repasse de valores do VGBL e PGBL não se configura como herança, mas como uma execução contratual de um seguro de vida.

Assim, os planos de previdência privada não são objeto de sucessão de bens, seja qual for, mas de uma relação oriunda de um contrato entre as partes, o que, portanto, exclui sua tributação pelo ITCMD, como ocorria em certos estados, à vista de Rio de Janeiro (Lei nº 7.174/2015), Goiás (Lei nº 18.002/2013), Minas Gerais (Lei nº 22.549/2017) e Sergipe (Lei nº 8.348/2017).

Vale ressaltar, ainda, que esse novo precedente não é apenas uma vitória jurídica para os beneficiários dos planos, mas um convite à reflexão sobre os possíveis impactos dessa decisão no planejamento sucessório. Isso porque, diante da complexidade tributária brasileira, busca-se a melhor estratégia a fim de reduzir a parcela paga a título de ITCMD.

Natureza do VGBL e PGBL: contrato de seguro e não herança

As duas principais formas de previdência são a previdência social e a previdência complementar. A primeira, pode-se resumir em um sistema público, “de caráter contributivo e de filiação obrigatória”, que busca garantir o mínimo necessário para o bem-estar dos cidadãos, como aposentadoria, benefícios por invalidez etc. A previdência complementar, por sua vez, é um plano privado, de adesão voluntária regulamentada pela Lei Complementar nº 109/01.

A previdência complementar, ou comumente “previdência privada”, ainda se divide em: fechada, quando destinada a um grupo específico, como os funcionários de uma empresa; ou aberta, acessível a qualquer pessoa que deseje aderir.

É justamente a previdência complementar aberta que inclui planos como o PGBL e o VGBL. Resumidamente, além de serem planos por sobrevivência, são instrumentos para a rentabilidade dos fundos aplicados.

Em linhas gerais, ambos os planos têm o objetivo de complementar a renda, mas a escolha entre PGBL e VGBL depende da estratégia tributária que se deseja adotar em relação ao Imposto de Renda (IR), que incide sobre os rendimentos no VGBL e sobre o montante total resgatado no PGBL.

Feita essa digressão, a tese firmada pelo STF, no Tema 1214, reflete uma análise detalhada da natureza desses planos de previdência privada, que, ao contrário do que ocorre com a herança, são regidos por um contrato misto (capitalização financeira e seguro de vida). Embora a Superintendência de Seguros Privados (Susep) considere que apenas o VGBL é um contrato de seguro de pessoas, ao passo que o PGBL é um plano de previdência complementar, visto que os benefícios já podem ser recebidos após o titular alcançar certa idade.

Fato é que, independentemente, o STF tratou os planos como equivalentes, sendo inconstitucional a incidência do ITCMD sobre qualquer um deles.

Esse entendimento foi sustentado pelo ministro Dias Toffoli, que argumentou que, no momento do falecimento do titular, o repasse dos valores aos beneficiários do plano ocorre em razão de um vínculo contratual, e não como parte de uma sucessão de bens, conforme artigo 794 do Código Civil: “no seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito”.

Até porque, ainda segundo o Diploma Civil, no artigo 426, “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.

O tema não é novo, visto que a temática já foi problematizada, especialmente, nos estados da União que instituíram leis específicas para a incidência do ITCMD sobre o VGBL e PGBL. Matéria que, aliás, alcançou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e foi pacificada pela 2ª Turma, no julgamento do REsp nº 1.961.488/RS [2], no qual se decidiu que o VGBL não caracteriza herança e, dessa forma, não inclui a base de cálculo do ITCMD.

No acórdão do referido REsp, a ministra relatora Assusete Magalhães declarou que “a natureza securitária e previdenciária complementar desses contratos é marcante, no momento em que o investidor passa a receber, a partir de determinada data futura e em prestações periódicas, os valores que acumular ao longo da vida”.

Logo, retomando a distinção feita pelo STF entre a transferência de valores desses planos de previdência e uma sucessão regular de bens após a morte de uma pessoa, o ministro Toffoli explicou que, ao contrário do que ocorre nas situações típicas de herança, onde há uma transferência gratuita de bens ou direitos — hipótese de incidência do ITCMD — sem a intervenção de um contrato no caso dos planos VGBL e PGBL. Além disso, destaca-se que o titular do plano tem a liberdade de indicar um beneficiário e que o valor transferido não se configura como uma doação ou herança, mas sim como uma execução de um contrato de seguro.

Por essa razão, a tributação do ITCMD, que incide justamente sobre a transmissão gratuita de bens, não se aplica nesse contexto.

Efeitos da decisão do STF: planejamento sucessório

Mas, e os efeitos práticos dessa decisão?

Para os beneficiários de planos VGBL e PGBL, a decisão do STF representa uma significativa economia tributária, que pode ser crucial, principalmente para aqueles que dependem desses valores para a sua aposentadoria ou para a manutenção da sua qualidade de vida. Com o afastamento do ITCMD, por ora, não será mais necessário pagar o imposto sobre os valores recebidos em caso de falecimento do titular do plano, o que torna mais vantajoso o planejamento sucessório com a utilização desses produtos.

Veja-se que, se um herdeiro e/ou beneficiário, após a morte do titular do plano VGBL ou PBGL, precisar de aporte financeiro rápido, a adesão à previdência privada pode facilitar o acesso aos recursos, sem inclusive a incidência do ITCMD. Inegavelmente, a certeza de que não haverá mais ITCMD sobre os valores recebidos dá uma previsibilidade muito maior aos beneficiários, que até então enfrentavam uma grande insegurança jurídica, dependendo do estado em que residiam.

Então, poderiam os planejamentos sucessórios burlarem os parâmetros legais da legítima, por exemplo?

Evidentemente que não. É certo que a legítima constitui metade dos bens da herança e pertence exclusivamente aos herdeiros necessários (CC, artigo 1.845 e 1.846). Nesse sentido, o ministro Dias Toffoli é bastante duro para com a necessidade de combate a eventuais práticas fraudulentas ou abusivas que busquem simular o fato gerador do imposto. Ou seja, se o planejamento for realizado de maneira a burlar a legislação tributária, o Fisco terá o direito de fiscalizar e atuar para reverter tais dissimulações.

Todavia, a transferência patrimonial pode ser planejada a fim de minimizar a carga tributária do ITCMD, com escolha da melhor estratégia conforme os objetivos familiares. Assim, são normalmente utilizadas as vias jurídicas das doações em vida e a criação de holdings familiares, bem como, as vias financeiras dos seguros de vida e do planejamento de aposentadoria.

Para tanto, aconselha-se que os interessados procurem orientação de profissionais qualificados, que possam traçar plano sucessório personalizado.

Discussões no Congresso: novo capítulo

Como é de praxe nas discussões tributárias brasileiras, o entendimento da Corte Suprema pode vir a ser ultrapassado, nesta eterna queda de braço entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Portanto, é importante destacar que a inconstitucionalidade da incidência do ITCMD sobre os planos VGBL e PGBL é tema que poderá ser revisado.

Isso porque o Congresso segue discutindo a reforma tributária, e com ela, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024, que, entre outras propostas, propunha a tributação do ITCMD sobre os planos de previdência. Embora a versão final do projeto tenha retirado essa previsão, os estados demonstraram interesse em reincluir essa cobrança quando o texto for analisado no Senado.

Tal discussão apenas evidencia a importância de um bom planejamento sucessório (personalizado), que ganha um novo contorno, com o VGBL e PGBL sendo cada vez mais visados como uma alternativa vantajosa em relação aos métodos tradicionais de transferência de patrimônio.

O fato de que, embora o STF tenha decidido pela inconstitucionalidade da cobrança, a discussão sobre a tributação desses planos ainda não tenha sido resolvida no âmbito legislativo e que os Estados demonstrem interesse na inclusão da hipótese de incidência no PLP nº 108/2024, deixa claro que a segurança jurídica, por ora, é relativa. Por isso, para aqueles que pensam em se beneficiar do novo entendimento exarado pelo STF, a vigilância sobre os próximos passos no Congresso é imperativa.

Esse é um ponto crucial que merece nossa atenção: a estrutura tributária no Brasil, frequentemente instável e marcada por embates fiscais entre entes federativos, ainda pode ressurgir com tentativas de reinstituir a tributação sobre os planos de previdência. A decisão do STF não impede que novas tentativas de mudança surjam no futuro, isso porque a questão da tributação dos planos de previdência continua a ser uma história em aberto, um novo capítulo desse calhamaço que é a reforma tributária, e será preciso continuemos atentos ao desenrolar das discussões no Congresso e no próprio Poder Judiciário.


[1]https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6318604&numeroProcesso=1363013&classeProcesso=RE&numeroTema=1214

[2]https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27RESP%27.clas.+e+@num=%271961488%27)+ou+(%27REsp%27+adj+%271961488%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja

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Reforma tributária e superação da Súmula 160 do STJ

A reforma tributária criou novas regras que passaram despercebidas pelo público em geral. Já nos manifestamos neste ConJur sobre a “contribuição BBB” [1] criada pela reforma.

Tema da reforma que promete polêmica é a inclusão de regra prevendo a possibilidade de alteração da planta genérica de valores sem que haja necessidade de lei municipal a cada ano. Não se trata de uma exceção ao princípio da legalidade, já que, necessariamente, uma prévia lei municipal deverá, expressamente, prever a forma de atualização.

Assim:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana;

(…)

§1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

(…)

III – ter sua base de cálculo atualizada pelo Poder Executivo, conforme critérios estabelecidos em lei municipal.” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

A questão que surge é: a nova regra introduzida na Carta Federal de 1988 modifica a jurisprudência do STF e do STJ?

Jurisprudência superada pela EC 132

No RE 648.245, o STF firmou o entendimento de que “É inconstitucional a majoração do IPTU sem edição de lei em sentido formal, vedada a atualização, por ato do Executivo, em percentual superior aos índices oficiais”

Também a Súmula 160 do STJ resta superada pela reforma tributária. Assim, prevê:

“É defeso, ao município, atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária. (SÚMULA 160, 1ª SEÇÃO, julgado em 12/06/1996, DJ 19/06/1996, p. 21940)”.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, porém, previu que, havendo lei é possível a atualização da base de cálculo pelo Poder Executivo, conforme critérios estabelecidos em lei. Trata-se, como na sistemática anterior à reforma de mera atualização. A diferença é que a atualização pode ter parâmetros do valor efetivo do imóvel e não necessariamente, parâmetros de mera correção monetária. Ou seja, a atualização pode majorar ou reduzir a tributação.

Ora, o significado desta regra é a de que o valor utilizado como base de cálculo é o valor real do imóvel conforme índice estabelecido em lei municipal.

Desta forma, superada a limitação aos índices oficiais de inflação já que os índices devem refletir a real valorização/desvalorização e, não necessariamente, índices oficiais. Superado o precedente do colendo STF, RE 648.245 e superando a Súmula 160 do STF.

Nada impede, por exemplo, que o IPTU tenha sua base de cálculo reduzida em razão de desvalorização imobiliária. Cada vez mais as regras públicas se enquadram nos parâmetros de mercado. O negacionismo de mercado é uma patologia extremista que deve ser combatida, conforme já nos manifestamos nesta ConJur [2]. O mercado é uma realidade do mundo e o negacionismo de mercado é a versão da extrema esquerda ao “terraplanismo” da extrema direita.

Índices a serem utilizados

O índice Fipezap seria um índice para a correção da planta genérica de valores do município desde que haja tal previsão em lei municipal. Nesta hipótese um decreto apenas procederia à atualização do valor com base nesse índice previamente estabelecido.

A primeira crítica que poderia ser feita é a de que tal índice refletiria somente a realidade de mercado das capitais já que é o parâmetro utilizado pelo índice.

A mesma crítica poderia ter sido feita à utilização da tabela Fipe para lançamento do IPVA já que, sabidamente, os preços de veículos no interior podem ser bem menores do que os valores praticados na capital.

A Fipe é uma respeitada instituição e, sem dúvida, é o melhor índice a ser utilizado para veículos e, também, para imóveis.

Ainda que haja diferença entre os métodos do Fipezap e do Fipe veículos, o fato é que refletem o mercado tanto dos veículos como dos imóveis. A valorização imobiliária acaba se refletindo por todo o país e o índice colhido nas capitais é parâmetro para todo o Brasil.  Ainda que a valorização (ou desvalorização) dos imóveis numa capital possa demorar algum tempo para refletir no interior, o fato é que a valorização (ou desvalorização) acaba se estendendo a outras localidades.

Outros índices, como VAR, IGP-M e IPCA e IPCA-E refletem outras circunstâncias do mercado de imóveis e, não seriam índices fidedignos para o valor do imóvel para fins de IPTU.

O VAR (FGV) reflete o valor do aluguel. O aluguel, apesar de ser um indicativo do valor do imóvel, pode sofrer variações significativas conforme a oferta de imóveis para locação. O aluguel pode variar (grosso modo) entre 0,3 % a 1,5% do valor do imóvel. Logo, o uso do VAR para fins de IPTU teria uma margem muito grande de possíveis variações. Logo, não recomendaríamos esse índice.

O IPCA e IPCA-E são índices inflacionários. Nada impede, por exemplo, que numa situação de aceleração inflacionária, os imóveis tenham valorização acima dos índices inflacionários em razão da busca de ativos reais pelos investidores. Logo, esses índices não medem, com precisão, o exato valor do imóvel.

O IGP-M reflete preços do atacado e sofre influência do dólar. Relação distante dos valores do mercado imobiliário.

Porém, a FGV, economistas, contadores, auditores ou a própria Fipe, dentre outros podem indicar índice melhor, caso exista. O mais relevante, nesse momento, é que a atualização pode e deve ser feita com parâmetros do mercado e da realidade dos preços dos imóveis. A era da ficção dos valores venais foi extinta pela reforma tributária.

Combate à regressividade

A reforma tributária inseriu previsão escancarada de combate à regressividade. Isso significa que a carga tributária deverá ser imposta com maior peso nos impostos pessoais e reais e reduzidos nos impostos sobre o consumo.

Assim:

“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

(…)

§3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

§4º As alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

Algumas medidas para viabilizar a redução da carga no consumo que onera, igualmente, paupérrimos e milionários seria onerar IPTU, ITR, IR e criar o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas).

O IGF jamais será implementado enquanto não curarmos a “corrupção endêmica” [3] por nós mencionada em tema licitatório e aplicável, também, no âmbito tributário. Gente com dinheiro é gente que pode cortar ajuda às campanhas…..

Assim, a forma viável para a civilidade tributária é a redução dos impostos de consumo e o aumento, combinado, dos impostos pessoais e reais.

Conclusão

Recomendamos aos municípios, a aprovação de lei municipal prevendo a utilização do índice Fipezap como índice de correção do IPTU. Tal como ocorre com o IPVA, os valores de referência do valor real no mercado sempre são a melhor referência. O fundamento é o artigo 156,§1º, III da Carta Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 132/2.023 (reforma tributária) que tornou superada a jurisprudência do STF e a Súmula 160 do STJ.


[1] https://www.conjur.com.br/2024-nov-04/reforma-tributaria-e-contribuicao-bbb/

[2] https://www.conjur.com.br/2025-jan-07/negacionismo-de-mercado-na-nova-lei-de-licitacoes-e-contratos/

[3] https://www.conjur.com.br/2024-dez-18/como-enfrentar-a-corrupcao-endemica-que-assola-a-administracao-publica-no-ambito-das-licitacoes/

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TST julgará se controle de idas ao banheiro é dano moral presumido

O Tribunal Superior do Trabalho deve julgar, em 2025, um recurso repetitivo que trata do controle de idas ao banheiro e sua influência no cálculo do Programa de Incentivo Variável (PIV). O tribunal vai avaliar se esse tipo de controle fere a dignidade do trabalhador, configurando dano moral presumido, que é quando não é necessária comprovação de sofrimento da vítima.

Controle de idas ao banheiro pode se tornar dano moral presumido, de acordo com TST

O caso analisado trata de trabalhadores de teleatendimento, mas a decisão valerá para todas as categorias profissionais. Em abril de 2024, a 3ª Turma do TST considerou que a prática caracteriza abuso de poder, ao analisar o caso de uma atendente que foi indenizada em R$ 10 mil.

Decisões diferentes sobre o mesmo tema também foram publicadas em 2024. Em agosto, a 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve decisão que negou indenização por dano moral a favor de uma trabalhadora de teleatendimento, que acionou o Judiciário por ter o uso do banheiro limitado.

“Fato de haver controle pelo empregador de eventuais afastamentos dos empregados do local de serviço, como nas idas ao banheiro, não constitui constrangimento capaz de justificar o pagamento de indenização por dano moral”, escreveu a desembargadora Dulce Maria Soler Gomes Rijo, à época, sobre o caso.

Os trabalhadores de telemarketing têm um regime de horários e pausas que difere da maioria das outras categorias. De acordo com a Norma Regulamentadora 17, eles devem ter uma jornada de seis horas diárias com pausas obrigatórias de 40 minutos, divididas em uma de 20 minutos para alimentação e duas de dez minutos. Com informações do jornal Folha de S. Paulo. 

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Acesso a dados bancários pelo Fisco: desafios da falta de regulamentação estadual e o uso indevido de dados

A revolução digital transformou profundamente a fiscalização tributária no Brasil. Com o advento dos meios de pagamento eletrônicos e a digitalização das operações financeiras, os Fiscos estaduais passaram a acessar um volume sem precedentes de informações. Contudo, essa evolução trouxe à tona um problema crucial: a utilização de dados obtidos sem a devida observância do processo legal e a falta de regulamentação específica nos estados.

O marco legal federal e as garantias constitucionais

O Supremo Tribunal Federal estabeleceu um arcabouço jurídico robusto sobre o acesso a dados bancários pelo Fisco. Em 2016, nas ADIs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, acorte definiu que tal acesso é possível, mas deve seguir um roteiro procedimental rigoroso. O voto condutor do ministro Dias Toffoli enfatizou a necessidade de instauração de procedimento administrativo fiscal regular, notificação prévia do contribuinte, oportunidade para esclarecimentos e requisição fundamentada de informações.

Esse entendimento foi reforçado no RE 601.314 (Tema 225), com repercussão geral, que destacou que o acesso aos dados bancários não viola o sigilo bancário desde que as etapas procedimentais sejam observadas.

Trocas de informações entre Fisco e administradoras: uma prática irregular

Apesar do arcabouço federal, práticas comuns como as trocas de informações entre Fisco e administradoras de cartões de crédito são manifestamente irregulares. Esses dados, frequentemente obtidos sem a instauração de um procedimento administrativo regular e sem a notificação prévia do contribuinte, violam as garantias constitucionais previstas pelo STF.

As malhas de cartões, que cruzam informações de transações financeiras para identificar possíveis inconsistências tributárias, são outro exemplo de violação do devido processo legal. Esses mecanismos utilizam dados obtidos diretamente das administradoras, muitas vezes sem uma requisição formal e fundamentada, o que compromete a validade jurídica das autuações fiscais.

A era digital e os riscos do vácuo regulador

O julgamento da ADI 7.276, em 2023, que analisou o Convênio ICMS 134/2016 do Confaz, ressaltou a necessidade de procedimentos regulares e do uso exclusivo dos dados para fins fiscais. Entretanto, a ausência de regulamentação estadual detalhada amplia os riscos de arbitrariedades.

Sem normas específicas, os estados atuam com base em interpretações amplas das diretrizes federais. Isso é comparável a ter regras gerais de trânsito sem um código local, criando insegurança jurídica tanto para o Fisco quanto para os contribuintes.

Consequências das violações e o uso indevido de dados

A utilização de dados obtidos sem a observância do devido processo legal tem consequências graves: nulidade de lançamentos tributários, pois os dados obtidos irregularmente contaminam os atos fiscais, comprometendo a validade de autuações e lançamentos tributários; dificuldade para o direito de defesa, já que, sem notificação prévia ou acesso ao procedimento administrativo, os contribuintes ficam impossibilitados de exercer plenamente seu direito de defesa; e violência aos direitos fundamentais, dado que o sigilo bancário é um direito constitucional, e sua violação por práticas irregulares representa afronta direta ao Estado democrático de direito.

O caminho para a regularização

É urgente que os estados regulamentem os procedimentos para acesso a dados bancários, com especial atenção à formalização do início da fiscalização, documentação das etapas do procedimento, notificação prévia do contribuinte, estabelecimento de prazos claros e definição de garantias contra abusos.

Além disso, a conscientização dos contribuintes sobre seus direitos e a busca por profissionais qualificados para orientá-los em casos de autuações fiscais baseadas em dados obtidos irregularmente são essenciais. A defesa intransigente das garantias constitucionais e o questionamento judicial de práticas abusivas são ferramentas poderosas para coibir arbitrariedades e garantir que a fiscalização tributária seja realizada dentro dos limites da lei.

Essas medidas não são apenas necessárias para dar efetividade à fiscalização, mas também para garantir que os lançamentos fiscais respeitem as garantias constitucionais. Enquanto esses procedimentos não forem estabelecidos, o uso de dados obtidos irregularmente deve ser considerado nulo e manifestamente inconstitucional.

A era digital da fiscalização tributária exige mais do que tecnologia: exige respeito ao Estado democrático de direito e à segurança jurídica, equilibrando a eficiência fiscalizatória com a proteção dos direitos fundamentais dos contribuintes.

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Pretensão punitiva do Estado diante de suspensão e extinção do crédito tributário

O lançamento tributário é um procedimento essencial, pois formaliza a obrigação tributária, permitindo que o Estado cobre tributos de maneira legal e organizada, observando o conceito, as características e os tipos do lançamento tributário descritos na legislação vigente (artigo 142 do Código Tributário Nacional). O lançamento tributário é o ato administrativo [1] que formaliza a exigência do tributo, constituindo o crédito tributário.

O lançamento é um ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individuação e concreção da norma tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo [2], tem-se demonstrado um instituto típico do Direito Tributário, sendo que suas normas só podem ser introduzidas por lei complementar, conforme dispõe o artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal [3].

Importante ressaltar que tais normas somente podem esclarecer o que está contido na Constituição, sem inovar, apenas declarar. No âmbito do Código Tributário Nacional, concebe-se três tipos de lançamento: a) de ofício (artigo 149 – CTN) [4], b) por declaração (artigo 147 e 148 do CTN) [5], c) por homologação (150, CTN) [6].

O lançamento tributário representa a formação definitiva do crédito tributário, e uma vez constituído, existem hipóteses envolvendo representação penal para fins fiscais, em que a pretensão punitiva do Estado depende da interpretação do Fisco acerca dos fatos e da legislação referente à obrigação fiscal, iniciando, nesse caso, o procedimento a ser apurado pelos agentes de polícia e pelo Ministério Público.

Especificamente no âmbito jurídico tributário, protege-se o bem jurídico da integridade do erário, da arrecadação ou da ordem tributária, esta última entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos. No campo penal, a Lei nº 8.137/90 definiu os crimes contra a ordem tributária.

Para admitir a possível configuração de crime, a lavratura do auto de infração deve evidenciar o dolo e a fraude praticada pelo contribuinte, com a devida aplicação da multa qualificada ou agravada pelo dolo, do contrário, não sendo considerado, em “tese”, pelo agente fiscal o ilícito tributário mediante dolo ou fraude, não há qualquer parâmetro legal para embasar a representação fiscal para fins penais [7].

No entanto, a afirmação pelo fisco da existência dolo ou fraude, não é, por si só, elemento hábil a respaldar a existência de ilícito penal [8]. Explica-se: as conclusões exaradas em sede tributária pelo agente fiscal permitem delimitar aquilo que sequer é capaz de configurar um ilícito tributário, no entanto, a sua caracterização não conduz à automática existência de um ilícito penal. Daí por que, a eventual afirmação da existência de dolo ou fraude em sede administrativa não presume ou comprova ocorrência de ilícito penal fiscal [9].

Frente a esse contexto, em relação aos tipos do artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, estamos diante de um crime material, e ao levar o contribuinte a responder a um processo penal, a pretensão do Estado repousa na sua função arrecadatória, sendo que, por vezes, esse ato pode ser considerado uma forma de tirania fiscal, uma vez que o pagamento do tributo extingue o crédito tributário e, consequentemente, a pretensão punitiva do Estado, de maneira que, utilizando desses meios punitivos, o objetivo final estatal é sempre a arrecadação.

Suspensão e extinção do crédito

Fixadas essas premissas quanto às hipóteses envolvendo inquérito policial de apuração ou ações penais em andamento, passamos à análise das questões de suspensão e extinção do crédito tributário, e por consequência, ao exame da pretensão punitiva do Estado.

No âmbito administrativo, existe o PER/DCOMP – Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento ou Reembolso e Declaração de Compensação, instituído pela Instrução Normativa nº 1.717/2017 [10]. Por meio desse sistema, o contribuinte pode preencher e validar eletronicamente solicitações de restituição de tributos pagos indevidamente, em excesso, ou que foram acrescidos ao produto, para serem reembolsados pela Receita Federal do Brasil.

Ao efetuar o pedido – PER/DCOMP, o contribuinte comunica à Receita Federal a existência de crédito a ser compensado, ressarcido ou restituído, e após a análise do direito ao crédito, o Fisco efetua as providências necessárias em relação ao contribuinte.

Nesse campo, oportuno destacar que o Código Tributário Nacional autoriza, em seu artigo 170 [11], a compensação por ato praticado pela administração pública (artigo 37, CF/88), configurando uma forma de pagamento do crédito tributário.

A Lei nº 9.430/96 estabelece no artigo 74 as diretrizes para a restituição, ressarcimento ou reembolso e declaração de compensação, regulamentada pela IN/SRF nº 1.717/2017 e posteriormente pela IN/SRF nº 2.055/2021, enquanto a Lei nº 8.383/91, em seu artigo 66, autoriza a compensação em relação às contribuições previdenciárias e de terceiros.

Portanto, o PER/DCOMP constitui um processo administrativo, e sendo assim, até que seja feita a conclusão do pedido efetuado pelo contribuinte, a cobrança do crédito tributário deve ser suspensa, nos moldes do artigo 151, III [12], do Código Tributário Nacional.

Estando suspenso o crédito tributário e havendo inquérito policial ou ação penal em andamento, estes também devem ser imediatamente suspensos. Isso ocorre porque, se o Fisco concluir favoravelmente ao contribuinte e, consequentemente, extinguir a cobrança do crédito tributário por via de compensação administrativa, a pretensão punitiva do Estado também será extinta pois, de acordo com o artigo 156 do CTN [13], a compensação extingue o crédito tributário [14] e o pagamento é causa de extinção da punibilidade do crime fiscal (artigo 9º, §2º, da Lei 10.684/2003).

Também dentro da legislação, destaca-se a possibilidade de haver a suspensão da cobrança do crédito tributário, mediante a utilização de fiança bancária ou seguro garantia [15]. Nesse particular, entendemos que ocorre a suspensão da ação de cobrança do crédito tributário, porém, com o uso da fiança bancária ou seguro garantia tem-se configurada a extinção da pretensão punitiva na seara penal.

A fiança bancária ou carta de fiança, é um tipo de contrato de fiança no qual a instituição financeira, no papel de fiadora, se compromete a garantir o cumprimento do avençado entre o afiançado e seu credor [16]. O seguro garantia se trata de um instrumento financeiro pelo qual uma seguradora emite uma apólice no valor do crédito tributário, assumindo, perante a Fazenda Pública, a responsabilidade de efetuar o pagamento, caso o contribuinte não venha a fazê-lo.

Como se verifica, o valor do crédito tributário a ser pago está devidamente assegurado pela instituição seguradora ou financeira, portanto, caso o contribuinte seja vencido na demanda em questão, o crédito tributário será devidamente pago.

O ponto aqui não reside na espera pela conversão do pagamento da apólice ou da carta de fiança, mas sim quando o crédito já está garantido, resultando na extinção da pretensão punitiva do Estado no âmbito penal. Sobre o tema, Tanegerino e Olive afirmam que “a fiança bancária deveria ensejar a extinção da punibilidade em face da certeza que geraria quanto ao adimplemento da obrigação tributária, insistindo que a caução, o seguro e a penhora, por garantirem a satisfação do crédito tributário, tornando certo o pagamento futuro, deveriam implicar a extinção da punibilidade” [17].

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o RHC nº 48.687/MG, manifestou posição diversa, pronunciando que o “oferecimento de garantia em embargos à execução fiscal, ainda que potencialmente capaz de saldar, ao final daquele feito, o débito fiscal questionado, não é causa extintiva de punibilidade penal prevista como tal em nosso ordenamento, sendo descabida, por razões óbvias, sua equiparação a quitação integral do débito a que se refere o art. 9º, § 2º, da Lei nº. 10.684/2013” [18].

Na mesma toada, o depósito judicial integral garante plenamente o crédito tributário, suspendendo a cobrança fiscal [19], logo, sendo o contribuinte vencedor, levantará o valor depositado em juízo e, sendo vencido, será de responsabilidade da Fazenda Pública efetuar o levantamento do montante depositado, convertendo-o em renda. Oportuno realçar, nesse campo, que a suspensão acontecerá apenas se “ocorrer o depósito em sua totalidade e em dinheiro” [20].

Diante disso, com o depósito judicial integral do crédito tributário extingue-se a pretensão punitiva do Estado, pois a importância se destina à satisfação do resultado do processo judicial.

O Direito Penal Tributário gera intensos debates, notadamente quanto ao mau uso desse poderoso instrumento estatal para o atendimento de finalidades distintas da tutela de bens jurídicos. De todo modo, para atender a finalidade arrecadatória, o legislador brasileiro possibilita que o acusado por crime contra a ordem tributária formalize o pagamento dos valores devidos e extinga a punibilidade a qualquer tempo.

É nesse contexto que a compensação do crédito tributário, ao gerar a extinção do crédito tributário, possui relevante repercussão na seara penal, de modo que, uma vez reconhecida a compensação pelo fisco, a extinção da punibilidade estará, igualmente, caracterizada. Entre o pedido de compensação e a análise definitiva pelo fisco, mostra-se cabível a suspensão do procedimento persecutório penal, essa suspensão pode ser fundamentada no artigo 93 do Código de Processo Penal.

Finalmente, a fiança bancária, o seguro garantia e o depósito judicial integral do valor devido, por assegurarem o pagamento do tributo, devem repercutir imediatamente na esfera criminal, acarretando a extinção da punibilidade do agente.


[1] XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, p. 18-19

[2] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª. ed. Atual. Misabel Abreu Machardo Derzi. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p. 784

[3] Art. 146. Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (…) b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

[4] Realizado pela autoridade fiscal sem a participação do contribuinte, geralmente em casos de omissão, erro ou fraude por parte do sujeito passivo.

[5] O contribuinte fornece as informações necessárias à autoridade fiscal, que calcula e formaliza o crédito tributário com base nesses dados.

[6] O contribuinte apura e paga o tributo antecipadamente, e a autoridade fiscal posteriormente homologa esse pagamento. A homologação pode ser expressa ou tácita, ocorrendo esta última se não houver manifestação da autoridade dentro do prazo legal.

[7] De todo modo, ainda que a partir de uma visão equivocada, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que, em respeito à independência das instâncias: “as decisões civis ou administrativas, via de regra, não vinculam o exercício da jurisdição penal. Dessa forma, ainda que a Autoridade Fazendária tenha entendido pela inexistência do dolo específico de fraude ou simulação, essa decisão não impede a discussão na esfera penal sobre a existência do dolo para os fins penais.” (AgRg no REsp n. 1.368.252/RS, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 10/4/2018, Dje de 25/4/2018)

[8] Segundo a doutrina, não é raro, na prática penal, a transposição de conceitos do direito tributário, “a resultar em acusações incapazes de expressar, ainda que minimamente, uma pretensão jurídico-penal legítima.” D´AVILA, Fabio Roberto; BACH, Marion. O ilícito-típico de sonegação: incompreensões sobre o ilícito penal em âmbito tributário. In: Direito e Liberdade: estudos em homenagem ao professor Doutor Nereu José Giacomolli (e-book). São Paulo: Almedina, 2022, p. 330-331.

[9] Embora admitindo a independência entre as instâncias para justificar que as conclusões do fisco não vinculam o Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça entende que “permanece a obrigação de o juízo penal fundamentar a contento a valoração da prova, explicando o porquê de, no mesmo conjunto de provas, alcançar conclusão diversa.” (AgRg no AREsp n. 2.454.137/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 6/8/2024, DJe de 13/8/2024).

[10] Revogada pela IN/SRF nº. 2.055/2021, que passou a reger as regras do PER/DCOMP. Art. 1º Esta Instrução Normativa regulamenta a restituição, a compensação, o ressarcimento e o reembolso, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), no caso de: I – restituição e compensação de quantias recolhidas a título de tributo administrado pela RFB; II – restituição e compensação de outras receitas da União arrecadadas mediante Documento de Arrecadação de Receitas Federais (Darf) ou Guia da Previdência Social (GPS); III – ressarcimento e compensação de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras (Reintegra); e IV – reembolso de quotas de salário-família e de salário-maternidade.

[11] Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública. Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.

[12] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (…) III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

[13] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: (…) II – a compensação

[14] Lei 9.430/96, art. 74, § 2: A compensação declarada à Secretaria da Receita Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação.

[15] Lei nº. 6.830/80. Art. 9º: Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá: (…) II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;  

[16]https://www.genebraseguros.com.br/faq-items/o-que-e-carta-fianca/#:~:text=A%20carta%20de%20fian%C3%A7a%20%C3%A9,o%20afian%C3%A7ado%20e%20seu%20credor. Acesso em:10/01/2025.

[17] TANGERINO, Davi; OLIVE, Henrique. Crédito tributário e crime: efeitos penais da extinção e da suspensão da exigibilidade. São Paulo: InHouse, 2018, p. 65-66

[18] Sexta Turma, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 19/12/2014. Em sentido similar, a Corte entendeu que “a fiança bancária apenas assegura o juízo da execução para que a parte possa avançar na discussão sobre o débito fiscal exigível. Não equivale a pagamento (hipótese de extinção da obrigação tributária) e não está prevista na lei penal como causa extintiva de punibilidade da sonegação fiscal. Assim, não é obstáculo às investigações nem causa de sua suspensão” AgRg no REsp n. 1.618.392/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/5/2020, DJe de 4/6/2020.

[19] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (…)  II – o depósito do seu montante integral;

[20]  Súmula 112, STJ. Igualmente, na doutrina, afirma-se que “uma vez efetuado o depósito, sua destinação está necessariamente vinculada ao resultado do processo. Se extinto o processo sem resolução do mérito, por qualquer fundamento, o depósito há de ser levantado pelo próprio contribuinte, uma vez que a decisão judicial não provocou nenhuma modificação na relação tributária de direito material. Por outro lado, se o processo foi extinto com resolução de mérito, há duas possibilidades: julgado procedente o pedido, o contribuinte tem direito ao levantamento da quantia depositada; se ocorrer a improcedência, o depósito deverá ser convertido em renda da Fazenda Pública” cf. HELENA COSTA, Regina. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. 12 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 276-277.

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Seguros Contemporâneos – Projeções 2025

Observando com atenção, as modificações implementadas pelo primeiro diploma projetarão efeitos tanto sobre os contratos de seguros individualmente considerados em todas as suas espécies – danos, vida, responsabilidade civil etc. – e grupos – massificados e grandes riscos, quanto sobre os contratos de resseguro.

Já o segundo diploma – o projeto de lei das cooperativas e associações – aumentará substancialmente o rol de participantes do mercado segurador convencional, agregando as cooperativas em geral, além das associações de proteção patrimonial mutualista. A sanção do Projeto de Lei Complementar nº 143/2024 não deve tardar. Segundo o site do Senado, o prazo estabelecido para a Presidência da República finda em 16 de janeiro de 2025 – a ensejar mais uma lei a ser cumprida pelos participantes do mercado [1].

Conforme assinalado no plano de regulação da Superintendência de Seguros Privados (Susep) para 2025, as normas relativas à Lei nº 15.040/2024 e, ao que tudo indica, à futura lei das cooperativas e associações vêm sendo tratadas em regime de primeira prioridade, o que requer ainda mais atenção do mercado [2].

Observando os limites editoriais desta coluna, deseja-se sublinhar aspectos legais considerados chaves à análise da Susep e do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) para fins de elaboração dos atos normativos pertinentes, sempre atentando-se ao fato de que a regulação, com a imparcialidade que sempre lhe deve nortear, deverá atender aos interesses de todos os participantes do mercado de forma isenta e equilibrada.

Por fim, a projeção aponta para os precedentes qualificados em gestação no Superior Tribunal de Justiça.

Lei dos contratos de seguro

Em 9 de dezembro de 2024, o presidente da República sancionou a Lei nº 15.040/2024, publicada no dia seguinte (10) com previsão para entrar em vigor no prazo de 1 ano contado da publicação, ou seja, no dia 11 de dezembro de 2025, de acordo com a regra de transição da LC nº 95/98 (artigo 8º, § 1º).

A Lei nº 15.040/2024 encerrou um processo legislativo iniciado com o Projeto de Lei nº 3.555/2004, revogando o capítulo XV do Código Civil e dispositivos do Decreto-Lei nº 73/66, para estabelecer uma lei específica para os contratos de seguro no Brasil. Projeto extremamente polêmico, passou por várias versões até que, apoiado pelo atual governo, conseguiu finalmente a adesão formal de algumas entidades do mercado segurador, vindo a ser aprovado no Congresso Nacional.

A nova lei modifica a estrutura dos contratos de seguro e resseguro desde a fase de formação do negócio até sua execução pelos procedimentos de regulação e liquidação do sinistro. Trata de todos os agentes da relação, segurado, beneficiários, intermediários (corretores, estipulantes, representantes), seguradora, ressegurador, retrocessionário, terceiros prejudicados e reguladores de sinistro.

São vários os pontos sensíveis, dentre os quais merecem destaque as regras de formação e interpretação do contrato voltadas a tutelar o segurado, sem fazer qualquer distinção entre seguros massificados (consumo) e de grandes riscos (empresariais). É louvável o esforço no sentido de exigir mais clareza e transparência na prática contratual, mas o exagero na regra “interpretatio contra proferentem” (contra o ofertante) demandará dos tribunais e da doutrina temperos mais equilibrados em sintonia com o sistema do Código Civil e a lei de liberdade econômica.

O regime do agravamento do risco ganhou amarras mais rígidas para configurar a situação patológica que justifica a perda do direito à indenização. Nos termos da nova lei, configura agravamento o comportamento intencional do segurado que conduza ao aumento significativo e continuado da probabilidade de realização do risco descrito no questionário de avaliação ou da severidade de sua realização. O segurado deve comunicar à seguradora o fato relevante assim que tomar conhecimento dele. Se não o comunicar por dolo, perderá a garantia, sem prejuízo da dívida de prêmio e do ressarcimento da seguradora. Se não comunicar por culpa, pagará a diferença de prêmio ou perderá a garantia se esta for tecnicamente impossível ou o fato corresponder ao tipo de risco não subscrito pela seguradora.

No capítulo da regulação e liquidação do sinistro, os impactos serão enormes, a exigir mais temperamentos. O relatório de regulação e liquidação do sinistro é considerado documento comum às partes, mas isso não pode significar uma porta ampla e irrestrita para acessar assuntos confidenciais/sigilosos da companhia de seguros e seus agentes. Aqui, é curioso o dispositivo que aparenta proteger o sigilo dos documentos com a ressalva “salvo em razão de decisão judicial ou arbitral” (artigo 83, § único). O inciso X do artigo 5º da Constituição não declara que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra das pessoas, salvo em razão de decisão judicial ou arbitral.

A lei impõe prazo máximo de 30 dias para a seguradora se manifestar sobre a cobertura, sob pena de não poder mais negá-la, sujeito a duas suspensões. Em sinistros de veículos automotores e seguros com importância segurada não superior a 500 vezes o salário-mínimo vigente, admite-se apenas uma suspensão. Por outro lado, nos grandes riscos, o tema ficará a cargo da Susep, que poderá fixar prazo superior a 30 dias para seguros cuja regulação implique maior complexidade, respeitado o limite máximo de 120 dias. Reconhecida a cobertura, a seguradora terá o prazo máximo de 30 dias para pagar a indenização ou o capital segurado.

Estes e muitos outros pontos estão a desafiar o mercado de seguros e resseguro a partir de 11 de dezembro de 2025.

Lei das cooperativas e associações

Passemos aos principais contornos do Projeto de Lei Complementar nº 143/2024. Um aspecto marcante do texto submetido à sanção presidencial é sua abertura e generalidade, considerando que a especificação de obrigações relevantes ficou a cargo do órgão regulador. Confira-se o disposto nos artigos: 24-A, 88-A e 88-C em relação às cooperativas, e os artigos 88-D, 88-E, 88-F e 88-L em relação à operação de proteção patrimonial mutualista, todos a serem inseridos no Decreto-Lei nº 73/66.

Nascido como PLP nº 519/2018, o projeto passou pela Câmara dos Deputados e em regime de urgência seguiu sua tramitação no Senado como PLP nº 143/2024, onde foi aprovado em 17/12/2024 e encaminhado à sanção presidencial. Entre outros aspectos, o PL introduz no mercado de seguros privados, isto é, à fiscalização da Susep e à regulação do CNSP, as cooperativas de seguros, os grupos, associações e as administradoras de operações de proteção patrimonial mutual, além das seguradoras, resseguradoras e corretores de seguros, somando-se a alguns outros participantes.

O movimento não é sem razão. O mercado de cooperativas de seguros movimentou cerca de R$ 9 bilhões no último ano sem regulamentação. Entretanto, a falta de supervisão tem permitido a atuação de intermediadores informais, o que prejudica a arrecadação de tributos e o pagamento de comissões aos corretores. Há estimativas de que estes deixaram de receber cerca de R$ 1,4 bilhão em comissões devido à ausência de regulamentação.

Ao introduzir estes personagens no sistema, o objetivo do legislador é aumentar a penetração do seguro na sociedade brasileira. Noutras palavras, onde os seguros convencionais não chegam, por questões de preço, apetite pelo risco, condições econômicas desfavoráveis etc., esse objetivo poderá ser alcançado por intermédio das cooperativas e associações com benefícios aos consumidores finais.

O cumprimento dos objetivos acima será positivo aos destinatários dos produtos oferecidos por todos os participantes do mercado, sejam os incumbentes, sejam os novos entrantes. Resta saber se haverá interesse dos novos entrantes, a partir de então, em subordinarem-se aos termos da nova legislação e toda a carga obrigacional que ela traz. A constituição de reservas técnicas e o regime de responsabilidade mais severo para seus administradores serão do interesse das cooperativas, associações e entidades de proteção patrimonial mutualista?

As cooperativas de seguros que se constituírem de acordo com a futura lei poderão operar em qualquer ramo de seguros privados, exceto (1) em operações de seguro estruturadas nos regimes financeiros de capitalização e de repartição de capitais de cobertura e (2) naqueles ramos expressamente vedados em regulação editada pelo CNSP, que deve estar alinhada ao porte, à natureza, ao perfil de risco e à relevância sistêmica das cooperativas.

Ao oferecerem seguros, as cooperativas poderão operar somente com seus associados, podendo o CNSP prever situações em que serão admitidas operações com não associados. A limitação, por certo, não parece vantajosa aos futuros cooperativados.

Em relação às operações de proteção patrimonial mutualista, o PL nº 143 se limita a indicar que o CNSP definirá os danos materiais próprios dos participantes ou de terceiros afetados pelo evento coberto que estarão compreendidos nos riscos patrimoniais passíveis de serem garantidos, além de dispor que a operação de transporte de carga nestes moldes deverá ser alvo de regulamentação específica.

Caso esta forma de atuar seja interessante, as associações que desejarem regularizar suas operações deverão, no prazo de 180 dias, contado da publicação da lei, se adaptar ao disposto no artigo 88-E, cadastrar-se perante a Susep e cessar as atividades como antes praticava.

Para além disto, ao aceitarem se submeter ao crivo da Susep, as associações de operações de proteção patrimonial mutualista e suas administradoras, bem como as cooperativas, passam a se sujeitar a um severo regime sancionador, com multas que poderão alcançar R$ 35 milhões, além de possibilitar a suspensão das atividades e a inabilitação de seus administradores por até 20 anos.

Em resumo, seja pela grande quantidade de matérias delegadas à regulação pelo CNSP, seja pela indefinição da atratividade para os novos entrantes, o PL nº 143 é mais um tema cujos impactos em 2025 deverão ser acompanhados bem de perto.

Precedentes qualificados do STJ

Por fim, as projeções para 2025 apontam para alguns julgamentos paradigmáticos em matéria securitária, ainda em fase de formação de precedentes qualificados no Superior Tribunal de Justiça.

O primeiro caso envolve o Tema 1.282, que afetou três recursos especiais ao regime dos casos repetitivos para resolver a seguinte controvérsia: “Definir se a seguradora sub-roga-se nas prerrogativas processuais inerentes aos consumidores, em especial na regra de competência prevista no art. 101, I, do CDC, em razão do pagamento de indenização ao segurado em virtude do sinistro” (REsp 2.092.308-SP, relatora ministra Fátima Nancy Andrighi).

A questão envolve um instituto fundamental da teoria geral das obrigações – a sub-rogação, pretendendo deliminar até que ponto a companhia de seguros pode substituir o segurado na relação perante o causador ou responsável pelo dano [3]. A transmissão à seguradora de direitos e pretensões do segurado alcança todas as regras processuais e materiais? A substituição se dá somente nos institutos de direito material, excluindo as regras de competência previstas para tutelar o consumidor? Qual será o reflexo desse precedente em temas adjacentes como a inversão do ônus da prova? A Corte Especial dará as respostas com impacto relevante na condução de muitos litígios espalhados pelo território nacional.

O segundo precedente em gestação está no Tema 1.039, que discute a seguinte questão: “Fixação do termo inicial da prescrição da pretensão indenizatória em face de seguradora nos contratos, ativos ou extintos, do Sistema Financeiro de Habitação” (REsp 1.799.288-PR, relatora ministra Maria Isabel Gallotti). Aqui, a discussão está em saber qual é o fato gerador que autoriza a contagem do prazo de prescrição para exercício da pretensão indenizatória por vícios no imóvel em contratos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Conta-se do encerramento do financiamento imobiliário ou esse prazo começa a correr da ciência do vício de construção surgido mesmo após a vigência do contrato e respectiva apólice? A Corte Especial do STJ dará a última palavra.

Por último, o Tema 1.263, afetado à 1ª Seção do STJ (Direito Público), está voltado a definir se a oferta de seguro garantia tem o efeito de obstar o encaminhamento do título a protesto e a inscrição do débito tributário no Cadastro Informativo de Créditos não quitados do Setor Público Federal (Cadin). A discussão envolve questões do sistema tributário e processual para entender se o seguro, atendidas as condições mínimas de idoneidade, constitui espécie de caução apta a suspender a exigibilidade do crédito tributário, especificamente o protesto da Certidão de Dívida Ativa e a inscrição no Cadin. Caso atualmente pautado para a sessão do dia 6 de fevereiro de 2025.

Esses temas estão projetados para ter definição ao longo do ano, sem prejuízo de outros que compõem a pauta da Corte Superior provindos dos demais tribunais da federação.

Conclusão

Como se viu, as cortinas do ano se fecharam com duas modificações significativas na estrutura legislativa do mercado, e com temas importantes na agenda jurisprudencial para fins de formação de precedentes. O ano de 2025 terá certamente grandes movimentos no mercado, no órgão regulador e na jurisprudência dos tribunais. Desejamos a todos uma excelente preparação para que os impactos sejam absorvidos da melhor forma, sempre com responsabilidade, transparência e equilíbrio.


[1] Conforme informações disponíveis em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/165332, visitado em 2/1/2025.

[2] O plano de regulação da SUSEP para o ano de 2025 encontra-se disponível em https://www.gov.br/susep/pt-br/documentos-e-publicacoes/normativos/plano-de-regulacao, visitado em 2/1/2025.

[3] CC, Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

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A ‘tirania silenciosa’ da IA no Direito e o neotaylorismo! Viva a Ópera!

1. A maravilha que é a ópera

Escrevo esta coluna tarde da noite, depois de assistir à ópera Aída [1] (Verdi), no Lincoln Center (NY). E daí, alguém dirá? É que a ópera é uma criação, uma obra de arte, um espetáculo. Imaginem no século 19 alguém montando essa peça. Que, re(a)presentada centenas de vezes (ou mais), ainda provoca emoções. Silêncios. Aplausos. É de arrepiar quando a princesa cativa Aída canta “minhas lágrimas são meu crime” – porque dividida entre o amor por Radamés e a fidelidade à sua terra natal, em guerra com o Egito. E o que dizer de outra ópera a que assisti, La Boheme (Puccini), quando Rodolfo pega nas mãos de Mimí e entoa a ária Che gelida manina? Puro encanto e magia.

Na contramão de AídaLa Boheme etc., avança a inteligência artificial, anticognição, antiarte, anti-humana.

Por isso resolvi escrever o texto a seguir.

2. A tirania silenciosa denunciada pelo professor francês

O professor Dominique Wolton acompanhou uma série de transformações tecnológicas e suas implicações. Em longa entrevista quando de sua visita ao Brasil para receber uma honraria, diz que vivemos uma  “tirania silenciosa” provocada pela tecnologia.

Na sequência mostrarei como isso tem a ver com o Direito.

Para ele, a evolução técnica favoreceu dois movimentos contraditórios. O primeiro é que cada um pode trabalhar sozinho, onde quiser, em qualquer lugar do mundo: é a individualização. E isso, de fato, é uma mudança extraordinária. O segundo movimento, mais discutível, é que existe uma economia de massa, onde tudo é padronizado e racionalizado. É uma padronização que empobrece. Isso também é fato.

Isso resulta em uma perda da individualização. Essa é uma mudança que as pessoas não percebem. E isso acarreta empobrecimento da iniciativa individual. Isso é verdade porque o trabalho está entrando em uma nova etapa de taylorismo.

Para o professor, nas relações entre técnica e trabalho, é a técnica que vence.

“Dizem que é maravilhoso, que é mais rápido. Sim, mas… O ser humano perdeu. Ele não está tão forte”.

Por isso, acrescenta Dominique, o homem precisa ser capaz de inventar, então, não temos necessidade disso. Existe uma perda total de autonomia:

“Porque todos estão, digamos, separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas para ele todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Como consequência, vivemos uma (nova) alienação:

“É como quando nós trabalhávamos em linhas de montagem, um século atrás, para fabricar automóveis, com Taylor e Ford. Se dizia que aquilo era formidável, porque faríamos muito mais carros do que antes, e é verdade, se fazia muito mais carros. Mas o trabalho em linha de produção, a divisão do trabalho era 10 vezes pior. Então, foram os operários que perderam, e os trabalhadores. É o mesmo desafio hoje, mesmo que as técnicas não sejam as mesmas.  Vivemos uma tirania da pseudoliberdade. Com os recursos tecnológicos, com o modo de vida, tudo caminha para a singularização e a segmentação. E todo mundo acha que isso é formidável”.

3. Por que somos reféns da perda da iniciativa no direito

Tem razão o professor francês. Trazendo a discussão para o Direito – ele faz pertinentes críticas da tecnologização no jornalismo e na educação – temos que o avanço da IA provoca um neojustaylorismo. E ficamos reféns dessa perda de iniciativa. Perda da autonomia.

Pior: cada vez lemos menos livros. As faculdades ensinam por resumos e esquemas. Crescem as mentorias.

O que estamos pesquisando no direito? Simples: novas formas de encontrar precedentes. Ou não é isso? As grandes “novidades” no direito são:

(i) ter um ChatGPT para chamar de seu (inclusive com um avatar) e que elabore petições e faça resumos de textos;

(ii) ter um robô que melhor encontre precedentes em um país sem precedentes (aqui recomendo fazer uma pausa e ler este texto: Um país sem Precedentes – é só clicar). Sim, o grande produto não é mais a doutrina, as “invenções teóricas”. O produto agora é o espiolhamento de julgados. Dia após dia aparecem novos robôs, inclusive no âmbito dos tribunais, neste caso para buscas internas.

E, por quê? Porque fomos “singularizados” pelo “sistema de justiça”, como denuncia o professor francês.  Fomos segmentados. E, como diz o professor, “todo mundo acha que isso é formidável”. Porque sequer pensamos que isso possa não ser a coisa certa; não pensamos em uma alternativa.

4. E caímos em uma armadilha…

Isto é, caímos em uma armadilha. Assim como as crianças foram arrastadas para esse mundo da tecnologização. Veja-se que no mundo todo estão proibindo telas em salas de aula. Estão proibindo, acertadamente, o uso de celulares nas escolas. Logo proibirão o uso de telas e smartphones nas faculdades.

Interessante é que no Judiciário e nas práticas jurídicas, ocorre o inverso: incentiva-se a “terceirização” (a palavra é por minha conta) da escrita e das decisões. E, fundamentalmente, das pesquisas.

Não é por acaso que o avanço da IA no Direito está relacionada diretamente à busca insana pela simplificação da linguagem [2]. Cada advogado ou professor acha que tem o domínio do mundo. Por meio da técnica. Como um operário que fabricava automóveis dez horas por dia. Quem perdeu? O operário. E agora temos esse neotaylorismo. A diferença é que produzimos via tok toc e insta em “linha de produção”. Importa é quem descobre melhor o último precedente, esquecendo que nosso sistema é civil law. Esquecendo que o que deve vincular é a lei do qual se extrai o precedente e não o precedente que substitui a lei. Estamos sendo ludibriados.

O modo como estamos “fazendo direito” é uma armadilha. Caímos na contradição secundária. Os “CEOs” da dogmática jurídica dita(ra)m a linha de produção. Fizeram uma espécie de “manual de instruções” acerca do que deve e pode ser produzido. Afinal, o sentido do produto é o que o establishment diz que é. E na pseudoliberdade que leva à tirania é que está a ilusão da liberdade, em que a linha de produção do direito esqueceu a doutrina. Pior: o que parte da doutrina está fazendo apenas retroalimenta a era da técnica. Buscam novas formas de atalhar. A grande invenção neotaylorista: robôs que elaboram petições, relatórios, sentenças e acórdãos. E examinam recursos. E que atuam como exterminadores de recursos. Como snipers anti epistêmicos, que atiram no padre e acertam sempre na igreja. Por isso o percentual de recursos admitidos é tão pífio.

5. O que restará para o estudo do direito? Metaforicamente: ainda haverá espaço para a ópera?

O que faz a linha de produção? Busca encontrar melhores meios de auxiliar essa técnica. Quem consegue mais rápido encontrar o precedente? Esse é o novo mundo, disse um professor dia desses, entusiasmado. Pode ser. Mas o que restará para o estudo do direito? Será apenas um jogo de estrategistas? Quem descobre primeiro o melhor precedente? Mas, o que faz esse robô face ao robô do próprio tribunal? Será uma briga de algoritmos?

Mas, antes disso: o que é isto – o precedente? Tudo isso leva a um paradoxo: se der certo, dará errado. Sim, porque se a técnica funcionar, já não precisaremos sequer dos estagiários e advogados que procuram os “melhores precedentes”. Como no comércio, os funcionários são substituídos por totens. Os robôs encontram a solução para os advogados nesse jogo que é o direito. E quem aplicará será outro robô – o do tribunal.

No meio disso ficará a terra arrasada: os escombros da doutrina e do que um dia foi o sistema de direito da civil law. E a teoria do direito? Desnecessária. Tudo agora é tecnologização. É a era do dispositivo – Ge-stell. É o botão que se aperta.

Assim como cada cidadão se transformou em jornalista, comentarista, cientista político, médico, influencer, coach etc. manuseando as redes sociais apenas com uma telinha na mão, no direito cada “operador” (mais qualificado ou não) se transformou em um teórico e especialista, com “plena liberdade de escolhas profissionais”, como ironiza o professor francês.

Isso, todavia, empobrece(u)-o individualmente. “Dispensado” de leitura, recebe, por meio da (era da) técnica, um discurso prêt-à-porter, prêt-à-parler e prêt-à-penser (como no sarcasmo de Warat). Repetindo o dizer do professor francês,

“todos estão separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Só que a inovação está amarrada aos limites impostos de antemão pela linha de produção. O ditame condutor é:

(i) o direito é indeterminado;

(ii) quem faz a determinação dessa indeterminação são os tribunais;

(iii) portanto, o seu trabalho, caro operador, é encontrar um modo de melhor aplicar esse produto prê-à-porter: a tese, o precedente (sem que se saiba, afinal, a diferença entre um e outro).

(iv) mas tem um plus: mesmo que o operador encontre o precedente, caberá ao órgão de cúpula (pensem no controle de qualidade na fábrica) dizer se o precedente ou a tese é persuasiva ou qualificada.

(v) afinal, os produtos que não se encaixam são descartados na linha de produção.

Claro, nisso tudo deve ser juntado uma dose considerável de análise econômica e consequencialismo, o que retirará o que resta de juridicidade da discussão. Claro, é fundamental essa estratégia para o triunfo dessa era dos algoritmos. Se o direito serve (deveria servir) para impedir que a política, a economia e a moral o corrijam, é fundamental, para o triunfo da era da técnica, que o próprio direito seja fagocitado, anulado. Portanto, já não será direito. Será apenas uma estratégia de poder.

Parece que o causídico e o professor de direito acreditaram na tese da professora Lee Epstein, da consagrada Universidade de Harvard, em palestra na USP: não é necessário estudar teoria do direito – melhor é entender as regras do baseball, disse ela. Pronto: uma simples técnica.

Bom, Machado de Assis já sabia disso no século 19. Para ele, nas palavras de um personagem, melhor que escrever um tratado sobre carneiros é comprar um, assar e convidar os amigos.

Os gênios da revolução da IA arriscam muito. No mundo todo. Sabem tudo de algoritmos, dados, padrões, mas podem esquecer que alguém deve fazer as perguntas. E programar o robô. Sabem tudo, mas, pergunta-se: não deveriam ler Searle, Gadamer, Wittgenstein, por exemplo? Ou os cientistas que criticam o “produto IA”? Como Chomsky, por exemplo. A propósito, há países como a França, por exemplo, preocupados com o avanço do uso da IA no âmbito das práticas judiciárias. Ao contrário do Brasil, em que parece não haver limites. A ver, pois.

Talvez devessem ler os poetas que criticam a IA. Como Jorge Gomes Miranda, autor português muito premiado, que escreve:

Um algoritmo olha/para o abismo/e o nada que vê/não permite compreender/a natureza humana”.

Numa palavra: paradoxalmente, a revolução da IA no direito é anti-intelectual. A um, porque rejeita a possibilidade de uma objetividade possível no pensamento jurídico. A dois, porque é cega à filosofia. No fundo, é como o triunfo do Know Nothing, o partido do Saber Nenhum, na distopia de MacIntyre dos anos 80. Na distopia, quando alguns corajosos (stoic mujic…) resolvem resistir, só encontram fragmentos. Daí meu aviso. Quando, como na distopia de MacIntyre, buscarmos recuperar os livros, as obras completas, os fatos jurídicos algoritmizados, poderá acontecer de só nos restar fragmentos. ChatGPTizados. Frutos da árvore envenenada pela Meta-IA (aliás, o psicólogo Álvaro Machado Dias, em curso que ministra na Folha de S.Paulo, fala em Metamodernidade, além da “psicologia das máquinas”).

Talvez estejamos meta ferrados. Nada artificialmente.

E, de novo, não venham com schumpeterismo, falando em “destruição criativa”. Para Schumpeter, a destruição criativa é o processo de criação de algo novo, que implica a destruição do que já existia. OK. Mas, se é isso, então o novo é a robotização e o velho é a teoria e o estudo do Direito? Isso deve ser destruído?

Numa palavra, ainda há espaço para reflexões? Para óperas?


[1] Por várias vezes o computador alterou Aída para Ainda. Sintoma…!

[2] Aliás, minha coluna intitulada  “Com ‘linguagem simples’, mundo jurídico se apequena e vira um brechó” sofreu fortíssimos ataques, mormente decorrentes do analfabetismo funcional, pelo qual quem acessa consegue ler (se chegar ao fim do texto), mas não consegue interpretar; o simbólico disso foi um causídico (sic) que, pelo fato de eu ter utilizado uma anedota sobre Einstein e a simplificação da teoria da relatividade, acusou-me de “comparar” física e direito – o que mostra o tamanho do buraco em que nos metemosOutros “interpretaram” o texto como uma ode à elitização; um professor (sic) criticou-me por incentivar essa elitização, enquanto ele, na sala de aula, “se esforça para simplificar…”.  Pior: muitas críticas vindas de bacharéis que separam sujeito e verbo. E ainda querem simplificar…

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O federalismo e o mito do barco de Teseu após da reforma tributária

Um dos temas mais candentes acerca da Reforma Tributária do Consumo aprovada pela Emenda Constitucional 132/23 diz respeito ao federalismo.

A autonomia federativa no âmbito arrecadatório foi modificada, pois o que cada ente federado tinha competência para cobrar isoladamente, passou a ser compartilhado federativamente, isto é, antes, nos termos de leis complementares, cada estado poderia cobrar o ICMS, e cada município cobrar o ISS. Após a EC 132/23, foi estabelecido que tais entes federados arrecadarão de forma compartilhada o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por meio do Comitê Gestor, cuja lei complementar está em trâmite no Congresso.

Há quem entenda que tal procedimento fere a cláusula pétrea do federalismo (artigo 60, §4º, I, CF), sendo inconstitucional; outros discordam, entendendo que a modificação não foi tão relevante assim; e há quem louve tal alteração, afirmando que essa nova dinâmica melhorará a federação.

Dentre os que louvam está Tercio Sampaio Ferraz Jr, emérito professor de filosofia do direito da USP, que afirmou em texto veiculado no jornal Valor Econômico intitulado Reforma tributária: reinvenção do Brasil:

“ao exigir-se deliberação conjunta no Comitê Gestor, mantêm-se o princípio da diferença e o dever de unidade que informa a federação solidária. Não se trata de decisão unitária e superior, apenas de deliberação conjunta. O que, afinal, sustenta a autonomia dos entes estaduais e municipais em face da União. Ao invés de um princípio geral (organizacional) que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal com a predominância de interesses (geral, regional e local), caminha-se para a realocação de competências tributárias em sede de uma lei complementar uniforme para os entes federados, enquanto partes cooperativas”.

Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, diriam os antigos

A alteração efetuada não tem o condão de violar a clausula pétrea federativa, conforme já firmei, embasado no fato de que o federalismo não diz respeito apenas à arrecadação, mas também à dívida e ao gasto. O federalismo brasileiro foi fortemente abalado, mas não extinto. Todavia, entendo não haver motivo para louvação, pois não me parece ter havido o surgimento de “partes cooperativas” com a modificação realizada pela EC 132. O que vejo ter ocorrido foi uma forte redução da autonomia dos entes federados, que antes tinham limites em sua autonomia na forma de leis complementares, e agora perderam completamente a autonomia arrecadatória sobre a maior fonte tributária que dispunham. Estados e municípios foram garroteados, e a federação se tornou ainda mais centralizada.

Esse debate lembra um antigo mito grego sobre o barco de Teseu, relatado por Plutarco. Em tempos históricos, cerca de 1.200 a.C., Atenas estava subjugada a Creta, e era obrigada a enviar parte de suas riquezas e de seus jovens ao dominador, visando manter a relação de subordinação. Depois de algum tempo nessa situação, o ateniense Teseu foi a Creta, matou o lendário Minotauro, destruiu a máquina de dominação e libertou seu povo daquele jugo. Em júbilo, a população preservou o barco de Teseu como um símbolo daquele feito heroico. Ao longo dos séculos partes do barco se deterioraram e ele foi sendo restaurado. As madeiras que haviam sido substituídas eram despejadas em um armazém.

Certo dia, um forasteiro, entusiasmado com a história de Teseu, pediu para ver seu barco e os atenienses lhe mostraram o restaurado, o que o decepcionou. Pediu então para ver o original, tendo-lhe sido apresentado os destroços acumulados no armazém. Partiu decepcionado, pois o original era apenas um amontoado de tábuas velhas, e o que então se apresentava não era aquele do herói ateniense, mas uma réplica.

Muitos filósofos discutem esse mito, que se tornou conhecido como o paradoxo do barco de Teseu ou o paradoxo da substituição, o que aponta para a complexidade do assunto, que pode ser assim descrito: até que ponto a substituição de partes de um todo, mantém o todo original?

Parece-me que o federalismo brasileiro é como o barco de Teseu. Modificam-se as partes, sob a mesma denominação, até um ponto que não se sabe qual formato corresponde mais de perto ao original – sabe-se que representam um barco, embora não seja exatamente o de Teseu.

Após o advento a EC 132/23, e a instituição das receitas compartilhadas entre estados e municípios por meio do IBS, não se sabe ao certo se o federalismo brasileiro atual corresponde ao original, tantas foram as peças modificadas. Todavia, afirmar que a réplica, mesmo que parcial, é melhor que o original, é um passo que não ouso dar.

Respeito as posições contrárias, mas vejo ter havido uma “reinvenção do Brasil”, não no sentido positivo, como afirmado, e não creio que haverá efetiva cooperação daí decorrente. Do agrilhoamento não surge cooperação, mas redução de autonomia. Essa solução pretende que haja maior segurança jurídica, pois reduziu os polos de produção normativa autônoma, mas não estou seguro de que venha a haver maior justiça fiscal a partir dela. Trata-se do velho embate entre a segurança e a justiça.

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Cláusula arbitral é inaplicável em contrato de DIP financing, decide STJ

Em contratos entre empresas que dependem de autorização do juízo de recuperação judicial para serem firmados, as cláusulas arbitrais são inaplicáveis.

Esse foi o entendimento do ministro Raul Araújo, do Superior Tribunal de Justiça, para declarar a competência da 1ª Vara Cível de Carpina (PE) e confirmar decisão que anulou contrato de DIP financing — modalidade de crédito direcionada às empresas em processo de recuperação judicial para que possam obter novos recursos.

Raul Araújo entendeu que se o contrato precisa ser autorizado pelo juízo da recuperação judicial é dele a competência para mediar conflitos

A decisão foi provocada por ação de conflito de competência ajuizada pela Ramax Pará que pedia o reconhecimento de duas cláusulas de contrato estabelecido com o Frigorifico Tavares da Silva (FTS) que apontavam a Câmara de Arbitragem de São Paulo como instância competente para julgar conflitos entre as duas empresas. 

A FTS passa por recuperação judicial, de modo que o Juízo da 1ª Vara Cível de Carpina declarou nulas as cláusulas contratuais e determinou a rescisão do contrato por ele ser prejudicial à empresa. 

A 2ª Vara Empresarial e dos Conflitos de Arbitragem de São Paulo, por sua vez, proferiu decisão em que declarou ser absolutamente competente para julgar qualquer questão relativa ao contrato. 

Cláusula inválida

Ao analisar o caso, o ministro apontou que o artigo 69-A da Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, determina que o juiz poderá, depois de ouvido o comitê de credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento. E isso foi exatamente o que a 1ª Vara Cível de Carpina fez. 

“Desse modo, se a própria contratação do DIP finance dependeu da autorização do juízo recuperacional, insere-se na sua competência resolver o contrato firmado pelo devedor, regulando, ademais, as providências cabíveis decorrentes diretamente dessa decisão”, registrou. 

O advogado Gabriel de Britto Silva, árbitro e participante da comissão de arbitragem da OAB-RJ, acredita que a decisão do STJ abre um precedente perigoso.

“A existência ou não de culpa por uma das partes, a configuração ou não do inadimplemento e a ocorrência de lesão ou não a qualquer dos contratantes é matéria a ser dirimida pelo árbitro ou pelo tribunal arbitral. O STJ mostra-se um defensor e guardião do instituto da arbitragem, de modo que essa decisão monocrática mostra-se isolada. Espera-se que seja reformada em caso de recurso à turma”.

Clique aqui para ler a decisão
CC 203.888

Fonte: Conjur

Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados