Trabalho e dignidade humana na lei brasileira

Iniciando minhas reflexões neste ano de 2025, expresso esperanças de melhores condições de trabalho para todos que colocam sua força de trabalho em benefício de outrem e do país, prosperando o respeito à dignidade humana no mundo do trabalho, que, pelos avanços das novas tecnologias, da internet e da inteligência artificial, cada vez mais se torna um grande desafio para a humanidade.

A palavra “trabalho”, etimologicamente, tem origem nos termos latinos tripaliare e tripalium, instrumento com três estacas utilizado para martirizar e torturar pessoas. Ou seja, o trabalho era considerado, nos tempos primitivos, como castigo.

Com o passar dos tempos, o trabalho ganhou o significado de algo dignificante para o homem, para que ele possa viver do ganho com a venda da sua força a um empregador ou tomador de serviços. O trabalho é, nos dias atuais, um meio de vida, para que honestamente se ganhe dinheiro para uma vida digna e também como satisfação do homem para ser útil numa sociedade organizada.

É como consta nas leis da maioria dos países do mundo civilizado. É como consta na lei brasileira, especialmente na Constituição Federal de 1988, que no artigo 1° estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. O artigo 170 dessa mesma norma constitucional, que trata da ordem econômica capitalista, diz que esta está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da defesa do meio ambiente e da busca do pleno emprego, o que é complementado pelo artigo 196, que assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Fundamento

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana está na satisfação do bem-estar físico, intelectual, moral e psicológico do trabalhador, assegurando-se a quem vende a sua força de trabalho para outrem ambientes laborais saudáveis, para que o trabalhador possa cumprir suas obrigações contratuais e, consequentemente, obter recursos financeiros para satisfazer suas necessidades básicas, com a finalidade de melhor qualidade de vida.

A dignidade humana, pois, é o maior fundamento para a proteção contra o trabalho em condições inadequadas e inseguras.

No aspecto específico do trabalho, o artigo 7° e inciso XXII da Constituição Federal asseguram como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

O termo saúde utilizado na lei é genérico e quer dizer corpo, alma e mente, pois o objetivo maior é revelar que seu âmbito de aplicação e proteção atinge não somente a higidez física, mas também pode alcançar a capacidade intelectual e psíquica da pessoa humana, o que pode variar de pessoa para pessoa.

Quer dizer, o trabalho não é e não pode ser considerado no nosso sistema jurídico como um castigo, nem como uma forma de desgastar e danificar o ser humano trabalhador, mas como meio digno de vida.

Como assevera Christiani Marques (A Proteção ao Trabalho Penoso, p. 21. São Paulo: LTr, 2007), “É inquestionável, portanto, que o trabalho é elemento essencial à vida. Logo, se a vida é o bem jurídico mais importante do ser humano e o trabalho é vital à pessoa humana, deve-se respeitar a integridade do trabalhador em seu cotidiano, pois atos adversos vão, por consequência, atingir a dignidade da pessoa humana”.

Ao tomador de serviços cabe, ao contratar um trabalhador, seja como empregado ou autônomo, assegurar-lhe trabalho em condições dignas, em que a sua saúde e integridade física e psicológica sejam preservadas. Assim, cabe àquele adotar todas as medidas coletivas e individuais possíveis para evitar danos e desgastes ao trabalhador, pois o tratamento desumano e degradante é proibido pela Constituição do Brasil (artigo 5º, inciso III: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante).

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Combate à litigância abusiva interessa especialmente à advocacia

Até há pouco, o tema que propomos debater era adjetivado quase que exclusivamente como “predatório”. Nomeava-se o fenômeno da perspectiva do agressor, daquele que, através de expedientes antiéticos, se propunha a predar recursos do Judiciário ou da parte contrária.

Atribuímos durante muito tempo à litigância predatória uma posição ativa, de quem tem aptidão para colocar em xeque o equilíbrio do sistema processual.

O movimento semântico proposto pela Recomendação nº 159/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), portanto, é o ponto de partida deste artigo. Nela, fala-se não em “predatória”, mas em litigância “abusiva” — e, nesse processo de revisão, retira do fenômeno sua dimensão ativa, atribuindo-lhe o status passivo de quem caminha na contramão do ordenamento.

Parece pouco, mas não nos parece que seja — sobretudo se levarmos em consideração que as disputas começam sempre no campo da narrativa.

Substituir o predador pelo abusador é um ponto de inflexão relevante em um processo gradual e orgânico; e que, nos últimos meses, voltou a receber atenção da comunidade jurídica.

É daqui que seguimos.

Transformando a cultura da litigância

A eficiência do sistema judiciário brasileiro tem sido objeto de intensos debates, especialmente em razão do crescente número de processos judiciais, que sobrecarregam os tribunais e tornam a resolução dos litígios mais lenta e onerosa.

Na sessão plenária de 22 de outubro de 2024, o CNJ deu uma contribuição decisiva para racionalizar o acesso à Justiça e evitar a sobrecarga do Judiciário com processos que poderiam ser resolvidos fora das cortes, naquela que possivelmente já nasceu como a normativa mais minuciosa a se debruçar sobre o tema.

A Recomendação nº 159 do CNJ consolida entendimentos e ações que têm sido adotadas por tribunais de todo o país no tratamento da litigância abusiva, além de adicionar novas formas de identificar, diligenciar e tratar situações que envolvam esse tema.

Nessa normativa, o CNJ convoca os órgãos julgadores a adotar “medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva”, conceituando-a como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça” (artigo 1º da Recomendação).

Avocando para si a tarefa de criar um protocolo nacional para tratamento do tema, o CNJ elenca exemplificativamente medidas potencialmente abusivas (Anexo A), como, por exemplo, desistência de ações após o indeferimento de liminares, ou submissão de documentos com dados incompletos, ilegíveis ou desatualizados.

Em seguida, lista no Anexo B uma série de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva, entre eles: notificação para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação; e apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

As medidas têm o potencial de transformar a cultura da litigância no Brasil, incentivando uma visão em que o processo judicial passa a ser visto como última alternativa, e não a primeira delas.

Se bem pensadas as coisas, a recomendação de alguma maneira passa a capitanear um movimento orgânico que tem ganhado força no Judiciário — e do qual o Tema/STJ 1.198 e o Tema/TJ-MG 91 constituem claras expressões.

O primeiro deles, a essa altura, já não é nenhuma novidade: discute-se na Corte Especial do STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.

Ainda em julgamento, esse tema visa a coibir a litigância abusiva, permitindo que o juiz, ao perceber que uma ação está sendo proposta de forma irregular ou sem fundamento, exija que a parte autora apresente provas mínimas para embasar suas alegações, como contratos ou outros documentos pertinentes. Caso essa exigência não seja cumprida, a ação pode ser extinta sem julgamento de mérito.

A se confirmar a possibilidade posta em julgamento, confere-se o Judiciário instrumentos para evitar sua utilização como instrumento de pressão em litígios infundados, muitas vezes propostos com o único intuito de obter acordos forçados, sem que haja uma base fática ou jurídica sólida para a demanda.

A discussão pendente de julgamento, como o leitor já deve ter observado, teve seu ineditismo esvaziado pela recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação da parte para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação, sempre que houver dúvida fundada sobre a autenticidade, validade ou contemporaneidade daqueles apresentados no processo.

No caso do Tema/TJ-MG 91, cujos reflexos imediatos estão circunscritos aos limites estaduais da competência do tribunal, há um inequívoco avanço no esforço de racionalização no acesso à justiça, ao estabelecer que, em ações consumeristas, o interesse de agir do consumidor somente será reconhecido se for comprovado que houve uma tentativa de resolução extrajudicial do conflito — seja por meio do Procon, do Consumidor.gov.br ou outros canais administrativos.

Ao criar essa condicionante, o TJ-MG dá um passo adiante: não se trata mais de incentivar a utilização de canais alternativos de solução de conflitos, e sim de condicionar o acesso ao Judiciário à tentativa de resolução prévia e administrativa dos conflitos. A diferença é enorme.

Promovendo uma releitura do artigo 17 do CPC a partir da realidade de um Judiciário cada vez mais inchado de demandas, a decisão, ao tempo em que desestimula o ajuizamento acrítico de ações, contribui para o desafogamento do tribunal — o que, em última hipótese, tende a representar uma melhor gestão do tempo gasto na solução dos processos.

Restrição à inafastabilidade da jurisdição

Uma das questões mais prementes suscitadas por essa medida é se ela poderia representar uma restrição indevida à inafastabilidade da jurisdição, raciocínio que não resiste a um exame mais cuidadoso do tema.

Primeiro porque condicionar está ligado, antes, ao estabelecimento de circunstâncias visando à gestão adequada dos recursos (humano e estrutural) inerentes ao exercício da atividade jurisdicional.

Segundo porque a postura é adequada e necessária à finalidade a que se destina, sem descuidar das situações de urgência que, justificadamente, autorizem que se prescinda desse procedimento administrativo padrão.

Terceiro porque, como todo e qualquer princípio, o da inafastabilidade da jurisdição não é absoluto e tolera condicionamentos. Basta que se recorde, aqui, o posicionamento firmado pelo STF no Tema 350, de acordo com o qual é indispensável o prévio requerimento administrativo de benefício previdenciário como pressuposto para que se possa acionar legitimamente o Poder Judiciário.

De mais a mais, vale aqui argumento no sentido de que o recurso ao Judiciário continua disponível, apenas pressupondo a constatação de que as vias administrativas não foram eficazes.

É certo que, ao exigirem a tentativa de solução extrajudicial e coibirem a litigância abusiva, essas decisões contribuem para reduzir o número de ações desnecessárias no Judiciário, melhorando o acesso à Justiça para aqueles que realmente necessitam de uma intervenção judicial e promovendo uma maior confiança da população nos meios alternativos de resolução de conflitos.

Esse também foi o entendimento alcançado pela Recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação para apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

Apesar dos desafios, a adoção dessas medidas representa um avanço significativo na busca por um Judiciário mais eficiente e menos sobrecarregado. Ao fixar balizamentos claros para o tratamento da litigância abusiva, nos termos da normatização do CNJ; ao condicionar o acesso à Justiça à tentativa prévia de resolução extrajudicial, conforme o Tema/TJ-MG 91; e ao exigir provas mínimas em ações com indícios de abuso, conforme o Tema/STJ 1.198, o sistema judicial brasileiro se aproxima de um modelo mais equilibrado e justo, que privilegia o uso responsável dos recursos judiciais e incentiva a resolução pacífica e eficiente dos conflitos. Essas mudanças, a médio/longo prazo, fortalecem o Judiciário e trazem benefícios diretos para todos os cidadãos, que podem contar com uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz.

Em outras palavras, se conduzido de maneira cooperativa e responsável, o movimento orgânico encabeçado pelo Judiciário tem o condão de fortalecer o sistema jurisdicional como um todo e, por consequência, robustecer as garantias de acesso à justiça e ampla defesa.

O problema, como costuma acontecer, está nos excessos. E é a partir daqui que caminhamos para o desfecho deste artigo.

O papel da advocacia neste novo cenário

No Anexo C da Recomendação nº 159, em que é apresentada uma lista de medidas recomendadas aos tribunais, encontra-se a seguinte: “adoção de práticas de cooperação entre tribunais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria Pública e instituições afins, para compartilhamento de informações e estabelecimento de estratégias conjuntas de tratamento da litigiosidade abusiva e de seus efeitos deletérios sobre o sistema de Justiça e a sociedade”.

A premissa é perfeita: o tratamento de problemas complexos demanda ações inovadoras e permanente diálogo entre todos os atores que participam da construção do sistema jurídico nacional.

Nesse sentido, não deixa de ser motivo de preocupação o fato de que a recomendação, em teoria tão plural e cooperativa, tenha sido aprovada sem a participação da advocacia – o que motivou, no dia imediatamente seguinte à aprovação, um pedido de suspensão e de reconsideração subscrito pelo Conselho Federal da OAB nos autos do Ato Normativo 0006309-27.2024.2.00.0000.

Reconhecer os avanços e saudar o caráter propositivo da postura adotada pelo CNJ não nos impede de endossar a crítica do Conselho Federal no sentido de que a ausência de representantes da OAB na sessão plenária — na medida em que os dois representantes da classe ainda aguardam sabatina do Senado Federal – não se coaduna com a postura dialógica que deve informar o tratamento da questão.

Mesmo porque, em última análise, combater a litigância abusiva, inclusive com a adoção de novos recursos e de uma postura mais proposicional dos órgãos julgadores, interessa a todos — especialmente à própria advocacia. Isso porque, antes de representar uma afronta às garantias da classe, a adoção de medidas de controle da atuação de maus profissionais termina por privilegiar aqueles que trabalham de maneira ética e responsável.

Isso não significa, contudo, que os profissionais não tenham de ressignificar as suas atuações a fim de adequá-las à nova realidade.

Assessorar um consumidor a perseguir a solução da controvérsia que lhe aflige em âmbitos decisórios extrajudiciais, fomentar a atuação preventiva de órgãos de controle como agências reguladoras e, em última hipótese, exercer um juízo de valor crítico acerca dos contornos que uma pretensão venha a ser judicializado — recusando dilações probatórias infundadas, ou indenizações por danos morais inconsequentes, por exemplo — já deveriam ter sido assimiladas pela advocacia (cf. artigo 2º, VI, VII; artigo 8º, ambos do Código de Ética da OAB).  Com a mudança desse paradigma jurisdicional se tornam ainda mais prementes.

O processo de ressignificação da atuação do Judiciário, que tem sido fomentado pela atuação orgânica de seus órgãos (Conselhos, Tribunais Superiores, Escolas de Magistratura etc.) não pode prescindir da participação ativa da advocacia; e essa, por seu turno, não pode fechar os olhos para esse movimento de mudança que tem se consolidado.

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Vida reduzida a pó: a desordem do Tema nº 1.234 do STF

A primeira coisa que impressiona aquele que se apresenta a uma sala em que se debate o direito à saúde é que certos homens e mulheres, que ali atuam, vestem um uniforme, uma “divisa”. Esta tem sido a primeira impressão da Justiça. Todavia, lembro-me quando criança no escritório de Affonso Pernet, com toga, em sua sala ampla e iluminada por inúmeras candeias nas prateleiras, e fiquei de boca aberta, pois correlacionam em minha mente infantil a visão de uma armadura. Perguntei para minha mãe, então datilógrafa: mãe, por que se usa toga? Não me parece uma veste de trabalho, como é para os médicos o avental branco. Faz quase 38 anos essa pergunta.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Lembro como hoje a resposta de Affonso Pernet à pergunta infantil: a toga induz ao recato. Infelizmente, nos dias de hoje e cada vez mais, por debaixo deste aspecto que me foi respondido, a função judicial se encontra ameaçada pelos perigos da indiferença ou do orçamento. O recente julgamento do Tema nº 1.234 pelo Supremo Tribunal Federal transformou a minha visão infantil de armadura inútil, sob a pretensão de se equilibrar os gastos públicos e organizar demandas judiciais, degenerou-se todo o acabou-se constitucional e jurisprudencial desgraçadamente numa situação de desordem de quem busca garantir o direito fundamental à saúde e à vida. São cada vez mais raros os magistrados que têm severidade suficiente para reprimir a desordem, o retrocesso, dando a cada um o que lhe é seu por direito.

O Tema nº 1.234 estabeleceu e aprovou um acordo entre União, estados, Distrito Federal e municípios, estabelecendo regras para as ações judiciais em que se pede a entrega de medicamentos pelo SUS. Com isso, pretendeu-se tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde. O STF aprovou um acordo entre União, estados, Distrito Federal e municípios, estabelecendo regras para as ações judiciais em que se pede a entrega de medicamentos pelo SUS. Com isso, pretende-se tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde.

O acordo diz que as ações judiciais em que se pede medicamento que não está na lista do SUS, mas tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), serão propostas na Justiça Federal, se o valor anual do medicamento for igual ou maior a 210 salários mínimos. Nesse caso, a União pagará o custo total do medicamento. Se o valor for entre 7 e 210 salários mínimos, a ação será julgada na Justiça Estadual, e a União reembolsará 65% das despesas dos estados e municípios, ou, 80% para medicamentos oncológicos.

Essa regra só vale para ações iniciadas após a publicação da decisão. Dentre outros, o acordo também prevê a criação de uma plataforma nacional por meio da qual todos os pedidos de medicamento devem ser feitos. Os dados serão compartilhados com o Poder Judiciário, o que permitirá definir as responsabilidades de União, estados e municípios. Até que a plataforma esteja disponível, o juiz deverá pedir ao poder público que explique por que o medicamento não foi fornecido. Quando o juiz determinar a entrega de um remédio, deve garantir que ele seja comprado pelo menor preço possível, com base no valor proposto no processo de inclusão na lista do SUS ou no preço pago em compras públicas.

Verdadeiro espetáculo incivil

Eis aqui um STF o qual compreenderá o valor que tem o direito à saúde para o povo. O argumento da Corte Constitucional de tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde contrapõem-se a tudo que se escreveu e se lecionou sobre dignidade da pessoa humana, nos mostrando que cada um de nós tem suas preferências, inclusive em matéria de humanidade.

Mais precisamente, nos demonstraram os ilustres homens e mulheres que compõem o colegiado do STF que, por unanimidade, validaram um acordo construído no âmbito da comissão formada por representantes da União, dos estados e dos municípios para facilitar a gestão e o acompanhamento dos pedidos de fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas sem olhar para a cruz que fica no alto da cabeça da presidência e sem meditar o bastante os discursos de Jesus, prejudicando pessoas que sofrem de doenças raras ou não contempladas nas políticas públicas de saúde.

Não é raro escutarmos que milhares de peregrinos em todo o Brasil estão à beira da morte devido a uma avalanche de entraves burocráticos processuais e extraprocessuais impostos, dentre outros, a prova diabólica por parte dos humildes. O que deveria ser um simples processo de acesso à saúde tornou-se um calvário como o experimentado por Cristo Jesus, tanto para os humilhados, como para os que os consolam.

Nós, operadores do direito, sentimos aversão pelo desprezo pela vida humana, renegadas a segundo plano por questões burocráticas e financeiras do Estado. Não é raro decisões jurídicas que desprezam opiniões médicas de quem consola o humilhado. Não é raro decisões jurídicas que desprezam os laudos que conhecem profundamente os afligidos. Não é raro decisões jurídicas que com frequência se baseiam em pareceres desguarnecidos de humanidade. Um total desprezo pela vida humana por parte daqueles que deveriam velar.

Verdadeiro retrocesso constitucional

Digamos com claridade: a gestão de recursos públicos é um desafio, mas esse argumento não pode ser utilizado como escudo para violar direitos essenciais quando temos uma máquina judicial que consome R$ 132,8 bilhões de reais. Em 2025, o Judiciário terá um espaço extra de R$ 3,84 bilhões para gastos, de acordo com o novo arcabouço fiscal proposto pelo ministro Fernando Haddad.

Ressalta-se que cada juiz e desembargador custa aos tribunais R$ 69,8 mil por mês. Assim, a saúde do povo não pode ser tratada como privilégio ou favorecimento em situações exclusivas. Por trás das decisões judiciais, há rostos, histórias e famílias inteiras impactadas. São crianças, idosos e pessoas em situações de vulnerabilidade extrema que veem suas vidas submetidas ao risco de morte. Contudo, esse cuidado excessivo com a gestão dos recursos públicos tem levado ao extremo oposto: a negligência da saúde pública.

Salvo outro juízo, o STF, ao julgar o Tema nº 1.234, deveria ter se colocado no mesmo plano daquele a quem prometeu servir como guardião incansável e ferozmente. O que está em jogo não é apenas a interpretação fria da lei, mas o efeito real e devastador que tal julgamento terá sobre a população. O Brasil não pode sobrepor questão orçamentária às vidas humanas.

Se o Brasil deseja se colocar como um Estado que respeita e promove os direitos humanos, é imperativo que suas instituições coloquem a dignidade da pessoa humana no centro das decisões. O Tema nº 1.234, da forma como está, é um exemplo de como o Judiciário pode se distanciar das reais necessidades do povo. É urgente que as imposições inconstitucionais sejam revistas e anuladas, que os pareceres médicos sejam valorizados e que os entraves processuais e extraprocessuais sejam reduzidos para permitir o acesso pleno à saúde. Qualquer caminho diferente é um atentado à vida humana e um desrespeito à Constituição.

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As redes sociais e o condor

O uso da internet e a propagação das redes sociais favoreceram a politização dos fatos. A facilidade em apresentar fatos e a sua instantânea divulgação para milhares de pessoas conferiu grande poder de influência aos fatos gerais, transformando-os em inconscientes elementos aglutinadores das pessoas em grupos.

Cada vez mais os usuários têm postado afirmações em que acreditam, mas que, inconscientemente, são determinadas pela sua cultura e valores. Aqueles que se identificam com certos valores e, consequentemente, com grupos, tendem a recepcionar os fatos de modo particular, colorindo a realidade com as suas próprias tintas.

As pessoas se organizam em grupos para, inconscientemente, adquirirem sensação de pertencimento e, desse modo, assumirem visibilidade e dignidade numa sociedade que, cada vez mais, tende a engolir a individualidade. Isso certamente já era assim antes da era digital e sempre se manifestou de modo claro, por exemplo, nas torcidas dos times de futebol.

O mesmo ocorre diante das ideologias, partidos políticos e candidaturas a cargos públicos de maior expressão. Ter um time de futebol, uma ideologia ou um partido é algo que, para muitos, traz um sentimento de enobrecimento e acolhimento, fazendo-os compartilhar não só de rituais comuns, mas também de responsabilidades imaginárias. Na verdade, pertencer e compartilhar são pontos de uma única lógica, pois se sentir responsável por uma mesma causa, ainda que inconscientemente, é “fazer parte”, tornando a pessoa mais suscetível a assumir compromissos (nem sempre racionais) em proveito e para o bem do grupo.

É por meio do desenrolar dessa linha que se torna compreensível o motivo pelo qual as pessoas possuem prazer em compartilhar mensagens que endossam posições que resguardam e fortalecem a sua relação com os membros do seu grupo. As discussões nas redes se fundam nas mesmas fantasias e incompreensões que sempre estiveram à base dos conflitos sociais, desde muito.

Ao se sentirem pertencentes e compromissados, os usuários tendem a compartilhar alegações factuais que reforçam a sua ligação com determinados valores ou ideias, não importando a sua correspondência com a realidade. Do mesmo modo que o torcedor do time de futebol cujo jogador caiu na área do adversário sempre reclama pênalti, os usuários das redes sociais fazem alegações impelidos por uma sensação de pertencimento.

Allison Larsen, no artigo intitulado “Constitutional Law in an Age of Alternative Facts”, fala em “my team-your team facts” para designar os fatos que, diante das distorções geradas pela internet, assumem versões antagônicas sobre temas que envolvem ideologia ou posições partidárias, como, por exemplo, mudança climática e eleições.

Os “my team-your team facts” correspondem a um confronto surgido a partir de sentimentos que não se preocupam com a realidade. As pessoas afirmam os fatos ou aceitam as alegações factuais por conta da inconsciente influência que os seus valores ou cultura exercem sobre elas. Os usuários são levados a alegar ou a respostar mensagens para manterem suas relações com os membros do grupo ou para se sentirem a ele pertencentes.

A verdade

Nas redes sociais a verdade não é negada. Ela apenas possui uma importância secundária. Tome-se como exemplo o caso das leis estadunidenses que, nas últimas décadas, exigiram carteira de identidade de eleitor. As leis se basearam no fato de que a carteira de eleitor evitaria fraudes eleitorais. Muitas dessas leis foram impugnadas sob o fundamento de que violariam o direito fundamental ao voto.

A discussão polarizou-se entre republicanos e democratas. Enquanto os primeiros disseram que a carteira seria importante para evitar fraudes, os democratas afirmaram que a sua exigência suprimiria direitos das minorias, pois essas teriam maior dificuldade em ter carteira com foto. Nos parlamentos, verificou-se que, enquanto 95% dos representantes republicanos votaram a favor da carteira de eleitor, apenas 2% dos democratas restaram convencidos da sua importância. Nas Cortes, os juízes se dividiram quase tão radicalmente.

É possível acreditar que os Juízes se basearam, com sinceridade, em seus entendimentos sobre o direito, mas de uma maneira que refletiu influências subconscientes e extralegais em suas percepções sobre a legalidade. Assim, os juízes republicanos, espectadores da Fox News, “honestamente acreditaram” que a fraude eleitoral é crescente e deve ser tratada mediante legislação corretiva, enquanto os juízes democratas, que assistem à MSNBC, “acreditaram com honestidade” que a fraude eleitoral é um mito criado pelos republicanos para excluir jovens, pobres e grupos minoritários da participação nas eleições [1].

Tem-se aí dois fatos que se tornaram verossímeis pela intensa participação dos simpatizantes aos partidos nas redes sociais. Esses fatos não são falsos. A carteira de eleitor constitui instrumento que pode evitar a fraude eleitoral, assim como a sua exigência também pode, ainda que minimamente, tornar-se responsável pela não participação nas eleições.

Diante disso, como é óbvionão se pode atribuir qualquer responsabilidade aos usuários da internet. Há de se perceber que a manifestação pública, em qualquer lugar, revela integração e comprometimento, de modo que as verdadeiras razões da participação, na praça e na internet, são secundárias.

Não se quer dizer, com isso, que a proliferação de inverdades não é um problema. O que se está a dizer é que os fatos, diante das discussões sensíveis ao pluralismo democrático e à diversidade dos grupos, não podem ser submetidos às metodologias das ciências que se servem das pesquisas experimentais e, particularmente, que a censura não pode ser vista como uma forma adequada para privilegiar a verdade dos fatos no Estado democrático de Direito.

Proibir as pessoas de falar nas redes sociais, especialmente diante de fatos discutidos a partir do sentimento de pertencimento a partidos, grupos e ideologias, não apenas nada tem a ver com a busca da verdade, mas a espanta, impedindo que se possa chegar a uma solução compatível com a democratização do debate e com os direitos de liberdade de expressão e manifestação. Tiranizar a participação nas redes sociais é tão antidemocrático quanto proibir o exercício do direito de manifestação em praças públicas.

Caso a liberdade para a alegação desses fatos pudesse ser arrancada das pessoas, a autoridade estaria em condições de escolher o fato amoldado às suas preferências pessoais, como aconteceu no caso das carteiras eleitorais — em que os juízes estadunidenses votaram de acordo com os partidos responsáveis pelas suas investiduras.

Admitir a censura diante dos fatos que podem ser legitimamente vistos de forma diferente pelas pessoas é gravíssimo. Censurar aquele que tem uma visão moral acerca de um fato é negar o pluralismo democrático, permitindo-se que as autoridades, segundo as suas convicções pessoais, estabeleçam o valor que deve imperar na sociedade. Além do mais, os fatos discutidos entre os simpatizantes de grupos, partidos ou ideologias não têm qualquer razão para serem escondidos, pois devem contar com o direito de liberdade de expressão para que possam ser esclarecidos.

Os juízes, quando diante dos fatos que importam para a solução de um simples conflito entre João e José, não precisam se preocupar com a verdade dos fatos que dizem respeito ao mundo ou à vida das pessoas. Esses fatos, no entanto, assumem grande importância quando o Judiciário realiza o controle de constitucionalidade das leis, ou seja, o controle que exige uma interpretação que não pode deixar de considerar os mesmos fatos que importam ao Legislador.

A alegação de que as eleições foram fraudadas por falta de carteira de identidade, caso pudesse ser censurada pelos administradores de redes sociais, teria impedido a ampla deliberação popular, legislativa e judicial sobre o tema nos Estados Unidos. Teria obstado a discussão de um tema importante para a democracia, inibido o direito de as pessoas falarem e impedido os bons juízes de demonstrarem que o Judiciário pode legitimamente cumprir o seu papel perante a sociedade.

Embora um Juiz possa ser simpático a um partido ou ideologia, ele obviamente não ocupa o lugar de um dos membros de uma rede social ou de um grupo que empunha bandeiras em praça pública. Ele tem uma especial responsabilidade, que deriva do locus de poder que ocupa e das consequências dos seus pronunciamentos sobre a vida das pessoas e do país.

Deixá-lo decidir como um torcedor de futebol apenas porque não está em condições psicológicas para enxergar a realidade é obviamente isentá-lo da responsabilidade que condiciona a legitimidade do exercício da sua função. Assim, admitir o que se poderia ver como algo meramente curioso na história da jurisprudência dos Estados Unidos constitui uma infantilização dos Juízes e uma imperdoável falta de respeito ao Direito e à população.

Se a carteira de identidade não poderia alterar o resultado das eleições, isso obviamente não quer dizer que o Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade da lei que a exigiu. O fim da lei era claramente adequado e a medida legislativa nada tinha de excessivo e obviamente não era desproporcional diante do direito ao voto. Isso era o que bastava para o Judiciário não interferir sobre a decisão legislativa.

Tudo isso significa que, a despeito de os fatos serem contados a partir das visões pessoais dos usuários das redes sociais, os juízes não apenas sempre têm condições e responsabilidade de bem decidir, como não podem esquecer que a praça pública existe para conter a autoridade e favorecer a democracia. Afinal, as redes sociais são do povo, assim como o céu é do condor!

*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] Allison Orr Larsen, Constitutional Law in an Age of Alternative Facts, New York University Law Review, v. 93, 2018, p. 210-211.

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Pode o juiz conceder tutela de urgência ex officio

A tutela de urgência ex officio ainda é dissenso na doutrina, diante dos limites da atuação judicial em um sistema predominantemente adversarial que busca preservar a imparcialidade do juiz, consagrado no princípio dispositivo ou da inércia, e em função da necessidade de se garantir a utilidade da prestação jurisdicional, prevista no princípio da efetividade do processo.

Embora o artigo 273, caput, fosse expresso ao determinar que a tutela seria concedida após pedido da parte, no Código de Processo Civil de 1973, o artigo 797 previa a possibilidade de concessão de medida cautelar de ofício em casos excepcionais. [1] Já no Código de Processo Civil de 2015, o legislador optou por não trazer a condição de requerimento do interessado de forma expressa no texto da lei, como também nada disse a respeito da possibilidade de o juiz conceder a medida ex officio. Vale mencionar, contudo, que, no projeto “versão Senado” do CPC de 2015, o artigo 277 previa a concessão de tutelas de urgência independentemente de pedido, mas o referido dispositivo legal foi suprimido no projeto “versão Câmara”. [2]

Para Gajardoni [3], a concessão de tutela de urgência de ofício mostra-se razoável a fim de permitir o asseguramento, pelo Estado-Juiz, do resultado útil do processo. Para tanto, considera ser necessário ao deferimento de ofício a presença das seguintes condições: apenas situação de risco extremo ou quando há previsão expressa da lei que permita a concessão ex officio da medida; e existência de ação proposta (seja principal ou cautelar antecedente), pois é proibido ao juiz iniciar oficiosamente um processo. Também é favorável a concessão da tutela de urgência ex officio, em caráter excepcional, Assumpção Neves. [4]

Já para Didier Jr, Braga e Oliveira [5], a concessão de tutela ex officio é algo proibido, com exceção dos casos previstos em lei (vislumbramos, por exemplo, a Lei nº 10.259/2001, que institui os Juizados Especiais Federais e trouxe em seu artigo 4º a previsão de que o juiz poderá conceder, de ofício, medidas cautelares no curso do processo para impedir dano de difícil reparação), diante de uma interpretação sistemática da legislação processual, fundada na regra da congruência.

STJ possibilita medidas cautelares de ofício

O problema da tutela concedida de ofício, do seu ponto de vista, é a responsabilidade pelos prejuízos causados pela medida na hipótese de a decisão ser revista ou revogada (execução injusta da tutela de urgência). Por conta disso, é imperioso que a parte postulante, sob os riscos da lei (artigo 302, CPC), requeira expressamente a sua concessão, assumindo, assim, o risco de ter que arcar com os danos causados ao adversário na fruição da tutela. Filiam-se a esse entendimento Marinoni, Arenhart e Mitidiero [6].

No que diz respeito à jurisprudência, com base no poder geral de cautela do juiz (artigo 297 do CPC), o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes entendendo pela possibilidade de o juiz conceder medida cautelares de ofício, a fim de preservar a utilidade do provimento jurisdicional futuro [7]. Nenhum desses julgados, no entanto, enfrentou a questão controvertida suscitada pela doutrina a respeito da responsabilidade pelos prejuízos na hipótese de revisão ou revogação da tutela de urgência.

E, de fato, não nos parece razoável responsabilizar a parte por danos causados por tutela que não pleiteou, e, muito menos, transferir à parte adversa os prejuízos da tutela concedida ex officio. Neste caso (reversão da tutela de urgência de ofício), a responsabilidade civil pelos prejuízos poderia ser atribuída ao Estado, que, com base no artigo 37, § 6º da Constituição, responde pelos danos que seus agentes tenham causado por força da prestação da função pública jurisdicional; neste caso, independentemente da prova do dolo ou culpa do juiz, já que a responsabilidade pela execução injusta (isto é, execução provisória da medida de urgência) é objetiva.

Como visto, o tema ainda é cercado de discussões sobre os seus efeitos práticos às partes envolvidas e ao próprio juiz que concede a tutela ex officio, máxime diante das suas consequências (em caso de revogação da medida). Daí por que, em atendimento ao princípio da efetividade do processo, nas hipóteses em que, ausente pedido de tutela na demanda, o juiz verifique a existência dos requisitos para sua concessão e sua extrema necessidade (v.g., evidentíssimo o risco extremo de perecimento do direito), é aconselhável realizar a intimação da parte (beneficiada com a medida) sobre seu interesse na obtenção da medida, garantindo-se, assim, sua submissão aos riscos do artigo 302 do CPC, e, depois, o princípio da inércia jurisdicional.

Em outras palavras, toda a vez que o juiz, de ofício, vislumbrar necessidade extrema de concessão de uma tutela de urgência, deve, se possível, ouvir previamente as partes, em prazo exíguo, com o fim de garantir o devido processo legal e, notadamente, disciplinar a responsabilização pelos efeitos da eventual reversão da tutela.


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 509.

[2] LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e a tutela antecipada. In: BUENO, Cassio Scarpinella. Tutela provisória no CPC: dos 20 anos de vigência do art. 273 do CPC/1973 ao CPC/2015. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2018. E-book. p. 244.

[3] GAJARDONI, Fernando da Fonseca, et al. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 439/440.

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, op. cit.

[5] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 606/607.

[6] Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 407.

[7] AgInt no AREsp n. 2.244.318/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, j. em 8/5/2023; AgInt no AREsp n. 1.915.609/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Raul Araújo, j. em 14/3/2022; AgInt no AREsp n. 975.206/BA, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, j. em 27/4/2017; REsp 507.167/SC, 2ª Turma, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, j. em 8/11/2005.

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Transtorno mental desenvolvido no trabalho garante estabilidade acidentária

O empregado que se submete a tratamento psiquiátrico em função de transtorno desenvolvido por conta do trabalho tem direito a estabilidade acidentária e, portanto, deve ser indenizado caso seja demitido nesse período.

 

Com esse entendimento, a juíza Marcelle Coelho da Silva, da 5ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou uma empresa de moda íntima a pagar um ex-empregado pelo período de estabilidade acidentária do qual não pôde usufruir.

O trabalhador havia sido admitido em novembro de 2023 e acabou demitido sem justa causa seis meses depois, ocasião em que já fazia tratamento psiquiátrico para transtornos de ansiedade e de escoriação.

Ele afirmou ter desenvolvido o quadro de saúde em função do ambiente de trabalho, no qual sofria com ofensas homofóbicas e intimidação por parte de líderes, além de ter sido perseguido por um outro empregado.

Um perito judicial reconheceu que a condição mental do trabalhador deveria ser considerada doença laboral, já que os fatores do trabalho relatados pelo autor guardavam pertinência com as doenças desenvolvidas.

A juíza acatou, então, o pedido de reparação pela estabilidade não usufruída, ainda que, na mesma altura, outros trabalhadores tenham sido demitidos pela empresa. Ainda condenou a empresa a indenizar o autor em R$ 10 mil.

“Entendo que a dispensa de empregado sabidamente doente é abusiva e caracteriza ofensa à sua dignidade, violando os princípios fundamentais da valorização do trabalho e da função social da empresa”, escreveu.

Culpa patronal

A julgadora negou, no entanto, uma compensação ao trabalhador por ter desenvolvido o quadro de transtorno, ao entender que não houve culpa patronal nisso. Ela destacou que a empresa demitiu um empregado que perseguia o autor e suspendeu um outro. Além disso, a empregadora promoveu treinamentos contra assédio e também em favor da diversidade em resposta aos episódios.

Em sede de reconvenção, a empresa pediu indenização por danos morais e materiais em razão de postagens que o autor vinha fazendo nas redes sociais, acusando-a de homofobia. A juíza negou o pedido, ao pesar o estado de saúde mental do autor.

Ainda assim, a julgadora multou o trabalhador em R$ 15 mil, já que, em decisão liminar anterior à sentença, havia determinado que ele se abstivesse de perseguir por e-mail os antigos gestores, ordem que ele descumpriu.

Ainda devido às publicações nas redes sociais, a empresa ajuizou uma queixa-crime contra o ex-empregado pelo suposto cometimento de crime contra a honra. A demanda acabou rejeitada pela Turma Recursal Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo por falta de provas.

Processo 1001256-70.2024.5.02.0605
Processo 0005233-18.2024.8.26.9061

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Falha na digitalização pode ser comprovada por cópias certificadas de documentos, diz STJ

Em julgamento de embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça admitiu a apresentação de cópias certificadas, extraídas dos autos físicos, para comprovar que a falha na digitalização do processo comprometeu a verificação de que o preparo do recurso especial foi recolhido no prazo legal.

O entendimento foi estabelecido pelo colegiado ao reformar acórdão da 1ª Turma, segundo o qual a alegação de falha na digitalização das guias do preparo e dos comprovantes de pagamento deveria vir acompanhada de certidão específica do tribunal de origem, atestando a situação, o que não teria ocorrido no caso em discussão. Como consequência, o colegiado manteve a declaração de deserção do recurso especial.

Nos embargos de divergência, a parte apontou que, em situação semelhante, a 4ª Turma concluiu que as cópias certificadas dos comprovantes de pagamento eram suficientes para confirmar que foi feito o preparo do recurso especial.

Mesma força probatória

Segundo o ministro João Otávio de Noronha, relator dos embargos, as cópias certificadas dos documentos relativos ao preparo recursal, extraídas dos autos físicos na origem, devem ser apresentadas pela parte na primeira oportunidade que tiver e são suficientes para comprovar a falha de digitalização.

De acordo com o relator, não há fundamento legal para afastar a força probatória das cópias certificadas dos autos. Como consequência, apontou ele, deve ser dada fé pública a esses documentos.

“Com efeito, tanto as cópias certificadas quanto a certidão específica emitida pela secretaria do tribunal de origem são documentos hábeis a comprovar a alegada falha na digitalização dos autos por parte do tribunal de origem, o que não deve prejudicar a parte recorrente”, concluiu o ministro ao dar provimento aos embargos e afastar a deserção do recurso especial. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão
EAREsp 679.431

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A elaboração dos documentos do paciente como prevenção e defesa

A judicialização da saúde, especialmente no que tange ao erro médico, tornou-se um dos maiores desafios para os profissionais da saúde e para o próprio sistema jurídico brasileiro. A crescente demanda judicial por tratamentos e medicamentos, frequentemente impulsionada por erros médicos ou pela alegada omissão no atendimento, tem gerado um cenário em que os médicos não apenas enfrentam as consequências de suas ações profissionais, mas também lidam com a necessidade de construir defesas robustas por meio da documentação.

É nesse contexto que a elaboração dos documentos médicos, tanto em sentido estrito quanto de gestão, adquire papel fundamental. A documentação é, sem dúvida, um dos meios mais eficazes de prevenção de erros médicos e de defesa do profissional perante os tribunais. A existência de registros adequados e a utilização de documentos médicos e administrativos bem estruturados podem ser a chave para evitar que o profissional de saúde seja responsabilizado indevidamente por falhas no atendimento.

A judicialização do erro médico e seus reflexos jurídicos

A judicialização do erro médico ocorre quando o paciente, ou seus familiares, acionam o poder judiciário alegando falhas na conduta médica, como omissão de diagnóstico, erro no tratamento ou falha na comunicação entre médico e paciente.

Além disso, uma pesquisa recente elaborada pelo CFM, CNJ e outras instituições demonstra em dados o exponencial crescimento das ações contra médicos.

Assim sendo, o Brasil possui 573.750 processos para um total de 562.206 médicos distribuídos no País. Ainda, entre 2021 e 2022, houve aumento de 19% de processos sobre saúde.

Constata-se que o número de processos de saúde subiu 198% e o de processos gerais caiu 6%; e segunda instância, em que os processos de saúde estão 85% maiores, e os processos gerais em 32% menores.

Destaca que, apesar da queda no volume geral de processos, aqueles relacionados à saúde tiveram um aumento considerável entre 2009 e 2017 e indica que a duração média dos processos em julgamento é de 439 dias, enquanto aqueles que estão em baixa definitiva é de 747 dias.

Observa-se as regiões com o maior número de processos são:  Sul (5,11), Sudeste (3,12), Centro-Oeste (2,72), Nordeste (1,85) e Norte (0,80). Já a média de processos por médicos fica entre o Sul (1,75), Centro-Oeste (1,10), Nordeste (1,02), Sudeste (0,81) e Norte (0,58).

Diante do expressivo aumento das demandas judiciais contra médicos, a melhor forma de prevenção é reconhecer como a relação entre médico e paciente evoluiu e adotar uma postura proativa e diligente.

Existem dez grandes casos de erro médico: erro de informação, erro de diagnóstico, erro de tratamento, erro de medicação, erro de cirurgia, erro de anestesia, erro de alta hospitalar, erro de parto, erro de insatisfação com o resultado e erro em exames complementares.

Embora a maioria dos médicos atue de boa-fé, a ausência de um registro adequado pode dificultar a defesa quando há questionamentos sobre a conduta adotada. O erro médico, ao ser judicializado, frequentemente resulta em demandas por compensação de danos, sendo o médico, a instituição ou o sistema público os alvos de ações legais.

Para minimizar o impacto jurídico de um erro, a documentação médica robusta e bem elaborada desempenha papel essencial, não apenas para a defesa do profissional, mas também para evitar que litígios sejam iniciados de forma infundada. Um bom prontuário médico, por exemplo, é capaz de esclarecer as razões da conduta adotada, os tratamentos realizados, as interações com outros profissionais e, em casos de falhas, identificar em que ponto o erro ocorreu.

A Importância da Documentação Médica e Administrativa

Documentos médicos em sentido estrito

Os documentos médicos em sentido estrito são aqueles que registram a relação direta entre o profissional de saúde e o paciente, a evolução do quadro clínico e as intervenções realizadas. Dentre esses documentos, destacam-se:

Atestado Médico: Documento que comprova o estado de saúde do paciente, justificando ausências ou afastamentos.

Relatório Médico: Descrição detalhada da condição clínica do paciente, geralmente solicitado por instituições ou para fins legais.

Prontuário Médico: Conjunto de informações registradas durante o atendimento, incluindo histórico, diagnósticos, exames e tratamentos.

Receituário Médico: Prescrição de medicamentos ou terapias, indicando doses e frequências.

Laudo Médico: Conclusão sobre exames ou avaliações específicas, como laudos radiológicos ou laboratoriais.

Declaração de Óbito: Documento que certifica oficialmente o falecimento de um indivíduo, indicando causa mortis.

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): Documento que registra a concordância do paciente em se submeter a procedimentos após esclarecimento adequado.

Documentos médicos de gestão

Além dos documentos diretamente relacionados ao atendimento médico, existem documentos administrativos que visam à organização, gestão e segurança tanto para os profissionais de saúde quanto para os pacientes. Esses documentos de gestão incluem, mas não se limitam a:

Política de agendamentos e cancelamentos de consultas

Finalidade: Define regras claras para agendamentos, remarcações e cancelamentos de consultas, protegendo a agenda do profissional e reduzindo prejuízos financeiros por ausências não justificadas.

Benefícios: Melhora a gestão de horários e evita conflitos com pacientes em relação a cobranças por faltas ou cancelamentos de última hora.

  • Ficha de pré-anamnese

Finalidade: Coleta informações iniciais sobre o histórico clínico do paciente, como doenças preexistentes, alergias e queixas principais, antes da consulta.

Benefícios: Ajuda o médico a se preparar para o atendimento, evita omissões de informações importantes e otimiza o tempo de consulta.

  • Plano de tratamento

Finalidade: Documento que descreve detalhadamente o diagnóstico, os objetivos do tratamento e as etapas necessárias, incluindo intervenções e terapias recomendadas.

Benefícios: Garante clareza entre o profissional e o paciente, minimizando mal-entendidos e dando respaldo em casos de dúvidas ou reclamações.

  • Contratos

Finalidade: Formaliza a prestação de serviços médicos, esclarecendo direitos e deveres das partes envolvidas, condições de pagamento e serviços inclusos.

Benefícios: Reduz conflitos jurídicos e oferece segurança ao profissional e ao paciente em eventuais litígios.

  • Orçamentos

Finalidade: Detalha os custos dos serviços oferecidos, permitindo que o paciente tome ciência e aprove formalmente os valores cobrados.

Benefícios: Evita questionamentos futuros sobre valores e pagamentos, protegendo o consultório contra alegações de abusos.

  • Termo de cessão de imagem

Finalidade: Autoriza o uso de imagens (fotografias, vídeos ou áudios) do paciente para finalidades específicas, como publicidade, publicações científicas ou educativas.

Benefícios: Previne problemas éticos e legais relacionados ao uso inadequado ou não autorizado de imagens de pacientes.

  • Termo de quitação e satisfação

Finalidade: Declara que o paciente está satisfeito com o serviço prestado e que não possui pendências financeiras ou reclamações a registrar.

Benefícios: Reduz o risco de ações judiciais ou queixas posteriores, funcionando como prova de conclusão e aceitação do serviço.

  • Ficha de registro de atendimento

Finalidade: Registra dados da consulta ou procedimento realizado, incluindo queixas, diagnósticos e tratamentos recomendados.

Benefícios: Garante rastreabilidade e respaldo médico em eventuais revisões ou processos legais.

  • Políticas internas de privacidade e proteção de dados

Finalidade: Estabelece diretrizes para coleta, armazenamento e proteção dos dados dos pacientes, em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

Benefícios: Evita sanções administrativas e preserva a confiança dos pacientes.

  • Termo de recusa de tratamento

Finalidade: Documento que registra a recusa do paciente em seguir um tratamento ou realizar um procedimento recomendado.

Benefícios: Protege o médico contra alegações de negligência ou omissão.

  • Relatório de ocorrências clínicas

Finalidade: Registra incidentes como reações adversas, falhas em equipamentos ou condutas inadequadas de pacientes ou profissionais.

Benefícios: Facilita a gestão de riscos e a melhoria contínua da clínica.

  • Protocolo de atendimento em emergências

Finalidade: Orienta a equipe sobre os procedimentos a seguir em emergência médica.

Benefícios: Garante respostas rápidas e padronizadas, reduzindo riscos de agravamento do quadro clínico do paciente.

  • Checklists de procedimentos

Finalidade: Lista de itens para verificar antes, durante e após a realização de procedimentos médicos.

Benefícios: Minimiza erros e padroniza a prática clínica.

  • Protocolo de higienização e biossegurança

Finalidade: Define práticas obrigatórias de higienização de ambientes, equipamentos e materiais, além de diretrizes de uso de EPIs.

Benefícios: Reduz riscos de infecções e contaminações, protegendo pacientes e equipe.

Conclusão

Diante do crescente fenômeno da judicialização do erro médico, a elaboração de documentos médicos robustos, em sentido estrito e de gestão, assume papel essencial não apenas na defesa jurídica do profissional de saúde, mas também na prevenção de erros e na melhoria do atendimento ao paciente. A documentação deve ser encarada como um instrumento não apenas de defesa, mas também de transparência e de gestão eficiente dos recursos de saúde, fundamentais para garantir a qualidade e a segurança no atendimento médico.

Portanto, ao elaborar e manter registros detalhados e estruturados, o profissional de saúde não apenas protege sua prática, mas também contribui para a evolução do sistema de saúde brasileiro, fundamentando suas ações em uma sólida base jurídica e científica. A correta utilização dos documentos médicos, alinhados às diretrizes de gestão e à medicina baseada em evidências, será cada vez mais fundamental para a prevenção e a resolução dos conflitos no campo da saúde.

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No meio do caminho tinha um agravo em recurso especial

Os recursos especiais (REsps) e os agravos em recurso especial (AREsps) somados representam cerca de 70% dos processos do Superior Tribunal de Justiça. Numa total inversão de valores, para cada REsp julgado, são apreciados de quatro a cinco AREsps.

Por outras palavras, é quantitativamente mais relevante julgar a admissibilidade do REsp, pela via do AREsp, que julgar o próprio REsp.

O curioso é que, apesar de numerosos, cerca de míseros 4% dos AREsps julgados são exitosos, ou seja, o STJ julga o mérito de cerca de 4% dos REsps inadmitidos na origem — que foram objeto de AREsps.

O AREsp, do artigo 1.042 do CPC, é o recurso cabível contra a decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem, que inadmite o recurso especial, em razão da ausência de um pressuposto recursal, vale dizer, por razões formais.

Apesar de ser interposto no órgão a quo, este não realiza o juízo de admissibilidade do AREsp, razão pela qual o recurso deve ser remetido ao STJ (Súmula 727 do STF, normalmente seguida pelo STJ e algumas vezes mitigada).

No entanto, quando o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem nega seguimento ao REsp em razão da conformidade do acórdão recorrido com entendimento firmado pelo STJ em recursos repetitivos, o recurso cabível é o Agravo Interno (AgInt), do artigo 1.021 do CPC, julgado pelo próprio tribunal a quo, sem que dessa decisão caiba qualquer medida destrancadora do REsp, conforme entendimento majoritário do STJ.

Resumo da ópera: cada vez mais recursos repetitivos são apreciados pelo STJ.

Para que se tenha uma ideia, em 2024 o número de repetitivos julgados foi 34% maior que no ano anterior.

Muitas vezes uma matéria é julgada pela Corte Especial em embargos de divergência, e torna a ser julgada sob o regime dos repetitivos, exclusivamente para que, em situações similares, obstada a subida do REsp, o agravo cabível seja o AgInt (que não sobe), e não o AREsp (que sobe).

Seguindo essa linha, e assumindo posição inovadora, a 1ª Seção do STJ, sob o regime dos repetitivos, aplicou a Súmula 7 a determinada situação (Tema Repetitivo 1.246), criando uma espécie de inadmissibilidade vinculante ou obstativa de recursos especiais, ou, na feliz expressão do amigo Vinicius Lemos, “tema obstativo de recurso”.

A decisão é reveladora do esforço do STJ para diminuir o número de AREsps.

Qual STJ queremos?

As consequências do excessivo número de recursos, especialmente de AREsps, são variadas:

priorização da gestão do acervo à adequada formação de precedentes vinculantes — prova disso é o entendimento de que não cabe reclamação para garantir a observância de entendimento firmado em repetitivos; desproporcional número de decisões monocráticas; chama que não se apaga da jurisprudência defensiva; além da contribuição para a falta de padrões decisórios.

E de quem é a culpa? De ninguém. A raiz do problema está no bem intencionado transporte do writ of error americano para uma federação que nasceu estado unitário, cuja legislação federal disciplina quase tudo e cresce a cada ano, especialmente depois da CF de 1988.

Cabe ao Congresso Nacional regulamentar a relevância da questão federal, criada pela EC 125. Portanto, é a sociedade, legitimamente representada pelo processo político majoritário, que precisa fazer uma escolha: qual STJ ela quer?

Uma coisa é certa: there is no free lunch.

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O que é sobrepreço, afinal

É antiga a preocupação dos órgãos de controle [1] em evitar que a administração pública contrate a aquisição de bens ou serviços com preços superiores aos praticados pelo mercado [2]. No entanto, uma definição legal de sobrepreço só passou a existir muito recentemente, com a edição da Lei nº 13.303/16 (Lei das Estatais), conceito este reproduzido agora de forma quase que idêntica na Lei 14.133/21 (Nova Lei de Licitações):

“Art. 6º (…) LVI – Sobrepreço: preço orçado para licitação ou contratado em valor expressivamente superior aos preços referenciais de mercado, seja de apenas 1 (um) item, se a licitação ou a contratação for por preços unitários de serviço, seja do valor global do objeto, se a licitação ou a contratação for por tarefa, empreitada por preço global ou empreitada integral, semi-integrada ou integrada.”

Duas questões, porém, remanescem pouco debatidas pela comunidade jurídica. A primeira é acerca do conteúdo do conceito jurídico indeterminado “expressivamente superior”. Na prática, o cálculo do que seria o “preço de mercado” é frequentemente realizado de maneira similar à estimativa de preço na fase de planejamento da contratação pública, em que é comum extrair-se o preço médio de um conjunto de amostras como referência de preço de mercado. Resta, então, a dúvida: afinal, deve-se considerar sobrepreço – ilícito e sujeito a ressarcimento – qualquer valor acima da média de uma cesta de preços coletados pelos órgãos de controle?

A segunda questão envolve a expressão “preços referenciais de mercado”. Dada, pois, a pluralidade de valores que compõem essa cesta, quais destes deve ser tomado como preço-paradigma do valor de mercado?

Da resolução destas questões dependem os órgãos de controle para uma atuação segura quanto à caracterização do ilícito e quantificação do dano ao erário.

Expressivamente superior

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que foi feliz o legislador ao estabelecer que para um preço negociado pela administração pública ser considerado ilícito (em razão de sua antieconomicidade), deve-se estar diante de um valor desarrazoadamente mais alto do que o normal. Em outras palavras, são lícitas as contratações públicas que, apesar de terem objeto similar, são contratadas por preços significativamente diversos, dentro de uma margem que varia entre o preço quase inexequível e o preço quase excessivo.

As razões são simples: em primeiro lugar, os princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da propriedade privada (artigo 170 da Constituição) garantem ao fornecedor liberdade para, em condições competitivas, estabelecer subjetivamente o preço que lhe pareça mais adequado para seus produtos ou serviços.

Em segundo, cada contratação possui peculiaridades quanto à localidade, quantidade, forma de entrega e demais condições gerais. Embora uma boa estimativa de preços por parte do agente que faz o planejamento deva considerar esses aspectos, é praticamente impossível coletar amostras de preços negociados em condições idênticas às do órgão que planeja uma aquisição, o que torna a estimativa (perdoem-nos a redundância) uma mera estimativa.

Por fim, mesmo quando o preço médio é corretamente estimado (considerando as particularidades da contratação), ele não deve ser necessariamente estabelecido como preço máximo, pois isso pode levar ao fracasso da licitação, acarretando um aumento significativo dos custos transacionais. Apesar de a lei exigir a desclassificação de propostas com preços acima do orçamento estimado, este valor final de referência não precisa ser igual à média dos preços coletados [3].

Quão expressivo deve ser o preço para ser considerado sobrepreço?

Não será muito difícil para os órgãos de controle caracterizar sobrepreço quando o percentual em relação à média de mercado for algo notoriamente desproporcional. Se um determinado bem X é adquirido por um órgão ao custo de R$ 45 a unidade, enquanto a média de outras aquisições públicas homogêneas é de R$ 15 (supondo mesmas especificações, quantitativos próximos e mesmo local de execução), é razoável presumir, em princípio, que houve compra em patamar “expressivamente superior” (200%), caracterizando sobrepreço.

No entanto, quando nos referimos a produtos cujas amostras para fins de estimativa são escassas ou quando tratamos de serviços minimamente personalizados ao órgão contratante, uma comparação com outras aquisições se torna muito difícil, dadas as peculiaridades (nem sempre evidentes) de cada contratação. Nestes casos, é preciso cautela para não incorrer no equívoco de chamar de sobrepreço – o que induz à ideia de ilicitude – todo valor que supere a média de um conjunto de preços pesquisados, ainda que aparentemente significativos em termos percentuais. Lembremos que a metodologia utilizada para fixação do preço de referência da contratação (hoje prevista no artigo 23 da Lei 14.133/21) é inevitavelmente falha e imprecisa e aquele preço, que o órgão de controle alcança em cálculo feito em momento posterior, frequentemente será muito diferente do obtido pelo servidor responsável pela orçamentação na fase de planejamento (aliás, é provável que cada pessoa que, de forma independente, faça uma estimativa orçamentária chegue sempre a um valor diferente).

Por outro lado, em contratações de valor global elevado, especialmente obras e serviços de engenharia, é possível falar em preço “expressivamente superior” aos referenciais de mercado mesmo com variações percentuais pequenas em relação aos preços médios estimados dos itens individuais (e ainda que os preços negociados estejam em conformidade com os bancos de preços públicos, como Sinapi e Sicro). Isso ocorre quando não se considera o “efeito barganha” ou a economia de escala.

Este fenômeno ocorre porque grandes empreiteiras, devido ao seu poder de negociação e capacidade de compra em larga escala, conseguem obter insumos e serviços a preços consideravelmente inferiores aos valores de referência (o que nem sempre é fácil de estimar durante a fase de orçamentação). Consequentemente, percentuais mínimos – ou até nulos – acima da média podem, na realidade, ocultar um sobrepreço substancial. A operação “lava jato” revelou diversos casos ilustrativos deste cenário, em que obras de infraestrutura apresentavam itens orçados próximos ou ligeiramente acima dos valores de referência, mas que, na prática, resultaram em margens de lucro extraordinárias para as empreiteiras, evidenciando um sobrepreço significativo quando analisado o contexto global da contratação [4].

Daí porque o Tribunal de Contas da União (TCU) já decidiu no sentido de que não existe percentual tolerável de sobrepreço. Como exemplificado no Acórdão 1155/2012 – Plenário:

“não procede o argumento de que, por representar percentual insignificante em relação ao valor global da contratação, o sobrepreço estaria dentro da faixa de aceitação e refletiria oscilações normais de mercado, já que não existe percentual de sobrepreço aceitável.”

Em suma, não havendo como estabelecer um parâmetro objetivo em termos percentuais, resta evidente que a ideia do que é “expressivamente superior” aos preços referenciais de mercado dependerá muito das circunstâncias específicas de cada contratação.

O que nos parece razoável postular, desde logo, é que quanto maior a diferença percentual entre o preço negociado e o preço-paradigma, maior a presunção de ocorrência de sobrepreço (cabendo ao agente público responsável maior esforço quanto à justificativa do preço contratado). De modo inverso, quanto menor a diferença percentual entre o preço negociado e o preço-paradigma, maior a presunção de licitude (cabendo aos órgãos de controle maior esforço probatório em relação à ilegalidade do preço contratado).

A questão semântica

Durante muito tempo, chamou-se, irrefletidamente, de sobrepreço qualquer montante acima de uma média estimada pelos órgãos de controle. É importante que os entendimentos do TCU não sejam interpretados fora do contexto específico dos casos julgados, sob pena de gerar considerável confusão e insegurança jurídica.

O conceito legal, que é posterior ao acórdão mencionado, deixa claro que nem todo valor acima da média pode ser considerado sobrepreço, mas apenas aquele “expressivamente” superior aos preços referenciais de mercado. Portanto, se não pode haver percentual de sobrepreço aceitável (o que parece lógico, já que se trata de ilícito), deve-se considerar inaceitável a variação acima do que se considera “expressivamente superior” caso, de fato, a contratação tenha se mostrado ilícita no contexto específico analisado.

E quanto ao preço-paradigma?

O cálculo preciso do sobrepreço, para fins de quantificação do dano ao erário e eventual valor devido de ressarcimento, depende não somente da definição do conceito indeterminado “expressivamente superior”, de que se tratou anteriormente, mas da definição do “preço de mercado” que será considerado o preço-paradigma.

Não faz sentido considerar como referência de preço de mercado a média de um conjunto de amostras de preços relativos a outras contratações. Por um motivo simples: isso implicaria considerar como preço ilícito todos os preços acima da média, inclusive aqueles utilizados para compor a própria cesta de preços. Exemplificando, se para compor uma cesta de preços, utiliza-se um preço de R$ 10, outro de R$ 15 e outro de R$ 20, a média será R$ 15. Se a média for considerada como preço-paradigma, estar-se-ia afirmando que o preço de R$ 20 (que se utilizou como um dos preços referenciais de mercado) seria ilícito. Ora, se é ilícito, não poderia ter composto a cesta de “preços referenciais de mercado”, que a lei considera como aceitável.

O preço-paradigma deve ser sempre – no mais rigoroso dos cálculos – o preço mais alto utilizado para compor a cesta de preços. A propósito, a 1ª edição do “Guia de boas práticas em contratação de soluções de tecnologia da informação”, do Tribunal de Contas da União, de 2012, já alertava para esse cuidado:

“Se o preço estimado é resultado do cálculo de uma média de preços, isto significa que os preços acima ou abaixo da média usados no cômputo foram considerados como legítimos, senão não poderiam ter entrado no cálculo da estimativa.”

Infelizmente, muitos órgãos de controle – replicando acriticamente a metodologia de pesquisa de preços e orçamentação da fase de planejamento de uma contratação – utilizam como preço-paradigma o preço médio. Embora isso possa fazer sentido para fins de definição de preço referencial, não o faz para fins de cálculo de sobrepreço e eventual quantificação de dano ao erário.

Conclusão

Não se propõe aqui a resolução definitiva do conteúdo das expressões “expressivamente superior” ou “preços referenciais de mercado”, senão muito mais uma sinalização daquilo que se entende não ser possível extrair dos termos da lei.

Primeiramente, a ideia do que é “expressivamente superior” nunca pode ser descontextualizada das circunstâncias verificadas no caso concreto. Portanto não se chamar de sobrepreço (dado o conceito legal) todo preço negociado acima de um determinado preço-paradigma extraído de um conjunto de preços pesquisados, ainda que este preço esteja acima da faixa de preços considerados aceitáveis.

Mas nos parece razoável inferir que quanto maior a diferença percentual entre o preço negociado e o preço-paradigma, maior a presunção de ocorrência de sobrepreço (cabendo ao agente público responsável maior esforço quanto à justificativa do preço contratado). De modo inverso, quanto menor a diferença percentual entre o preço negociado e o preço-paradigma, maior a presunção de licitude (cabendo aos órgãos de controle maior esforço probatório em relação à ilicitude do preço contratado).

Quanto à definição do preço-paradigma, é preciso ter cuidado para não se utilizar do preço médio de uma estimativa como preço-paradigma, sob pena de acabar se considerando como ilícito preços que, pela própria construção da estimativa, foram previamente validados como legítimos. No mais rigoroso dos cálculos, apenas o maior valor pode ser considerado preço-paradigma.

Em síntese, uma melhor compreensão do conceito legal de sobrepreço é essencial para conferir maior segurança jurídica no âmbito da administração pública e robustez às análises dos órgãos de controle. Um entendimento alinhado às particularidades de cada contratação, e com a metodologia correta, permite evitar interpretações arbitrárias, garantindo maior consistência e credibilidade à atuação controladora.


[1] Aqui me refiro, sobretudo, à Polícia Federal, Ministérios Públicos e Tribunais de Contas.

[2] Naturalmente, essa preocupação tem fundamento constitucional, particularmente no princípio da economicidade (art. 70, caput).

[3] A Instrução Normativa nº 65/2021 do Ministério da Economia, em seu artigo 6º, § 2º, permite que se acrescente ou subtraia um percentual do preço estimado, visando aliar a atratividade do mercado e mitigar o risco de sobrepreço.

[4] Um exemplo ilustrativo do efeito barganha e da economia de escala em grandes obras foi revelado na Operação Lava Jato. Na construção da Refinaria Abreu e Lima (Ipojuca/PE), o preço do aço (exclusive instalação) foi de R$ 4,93/kg, enquanto em uma obra de pequeno porte no interior do Paraná (Creche Tipo II – Proinfância em Rio Azul/PR), o preço do aço (inclusive instalação) foi de R$ 4,40/kg. Ou seja, uma pequena empresa conseguiu melhores condições de preço para a administração pública do que uma grande empreiteira, ainda que esta última tivesse adquirido uma quantidade 4 mil vezes maior. VALLIM, João José de Castro Baptista. Engenharia forense: metodologias aplicadas na operação “lava jato”. Curitiba: Juruá, 2018. p. 190.

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