A alegoria do doutorando Coelho e seu orientador, Dr. Leão

Uma estorinha antiga envolvendo coelhos, leões, lobos, professores e juízes

Em 2012, escrevi uma sátira do relativismo e do livre convencimento — ideia que pode hoje ser estendida aos tempos de “narrativas” e “pós-modernidades” jurídica. Basta abrir as redes sociais. Para os céticos do direito — que dizem que o direito é indeterminado —  eis minha contribuição.

Como dizem alguns professores, o direito não espelha a sociedade; logo, não tem muito o que fazer e o resultado dos julgamentos é produto das convicções pessoais… É o que dizem os céticos.

Bom, se eu aceitar esse tipo de pessimismo, tenho de parar de lecionar. E até de lidar com o direito. Esse tipo de pessimismo epistêmico tem consequências. Graves. Será que os professores (céticos-realistas) não se dão conta? Que tipo de juristas estamos formando desse modo? “É assim mesmo, diz o doutor”?

Bem, se é assim, vamos todos pra casa.

Volto à estorinha. Antiga. Construída por autor — ao que tudo indica — desconhecido, para mostrar a “vontade do poder” do orientador de teses de mestrado e doutorado (qualquer semelhança com o que ocorre em decisões judiciais não é mera coincidência, mormente no que concerne ao livre convencimento, livre apreciação e decisões em embargos de declaração; não esqueçamos que o TJ-SP diz que o erro judiciário pelo qual Edmilson foi condenado a 170 anos decorreu do livre convencimento — vejam, não é alegação minha; é do TJSP). Na época, a coluna fez mais de 80 mil leitores. Em meia hora.

Então. Esse tipo de pessimismo epistêmico tem consequências. Perguntem ao Edmilson.

A tese de doutoramento do jovem Coelho

Num dia lindo e ensolarado, o coelho saiu de sua toca-triplex com o notebook e pôs-se a trabalhar, bem concentrado. Usava óculos de aros grossos, o que lhe dava uma aparência séria e intelectual. Pouco depois, passou por ali a mestranda raposa (ela fazia dissertação sobre o relevantíssimo tema “O Papel dos Embargos e por que milhares são fulminados sem que sejam lidos: Um Olhar Retrospectivo”), e viu aquele suculento coelhinho, tão distraído, que chegou a salivar. No entanto, ela ficou intrigada com a atividade do coelho e aproximou-se, curiosa:

R – Coelhinho, o que você está fazendo aí tão concentrado?
C – Estou redigindo a minha tese de doutorado – disse o coelho sem tirar os olhos do trabalho, apagando o cigarro nervosamente.
R – Humm … e qual é o tema da sua tese?
C – Ah, é uma teoria provando que os coelhos são os verdadeiros predadores naturais de onívoros como as raposas.
R – Ora! Isso é ridículo! Nós é que somos os predadores dos coelhos! Isso está em qualquer livro que trata do assunto, como, por exemplo, o recém-lançado “Manual da Cadeia Jurídico-Alimentar para Estagiários”. Há, ainda, um outro, chamado “Manual Simplificado da Alimentação dos Onívoros)”. Mas, diga-me: qual é a sua teoria de base? Epistemologicamente falando (ele usava o conceito correto de epistemologia e não como hoje se usa por aí, confundindo análise com as condições da análise — a raposa lera Bachelard).
C – Minha tese está sustentada na Jurisprudência dos Interesses. Isto é: embora a lei diga que as raposas são os predadores dos coelhos e outros animais, fui buscar, a partir de uma análise sociológica, os interesses que moveram o legislador. Logo, fiz uma “ponderação”  à brasileira e encontrei a solução. E fez sinal com as patinhas como se estivesse pesando coisas…! De todo modo, vou detalhar isso melhor. Venha comigo à minha toca-biblioteca, que lhe mostrarei toda a bibliografia.

O coelho e a raposa entram na toca-biblioteca. Livros à mancheia. Poucos instantes depois, ouvem-se alguns ruídos indecifráveis, alguns poucos grunhidos e depois silêncio. Em seguida o coelho volta, sozinho, e mais uma vez retoma os trabalhos da sua tese, como se nada tivesse acontecido.

E o coelho é inquirido pelo recém-formado bacharel Lobo

Meia hora depois passa um lobo, recém-formado e ativo nas redes sociais (já produzia “conteúdos” o malandrinho). Levava debaixo do braço sua mais recente aquisição, o livro “Como Aprender Direito Por Meio de Raciocínios Pequeno-gnosiológicos”.

Ao ver o apetitoso coelhinho tão distraído, agradece mentalmente à cadeia alimentar por estar com o seu jantar garantido. No entanto, o lobo também acha muito curioso um coelho trabalhando naquela concentração toda, manejando o seu flamante Apple. O lobo então resolve saber do que se trata aquilo tudo, antes de devorar o coelhinho:

L – Olá, jovem coelho. O que o faz trabalhar tão arduamente?
C – Minha tese de doutorado, bacharel Lobo – e acendeu mais um Cohiba. “Nós, coelhos, somos os grandes predadores de vários animais carnívoros, inclusive dos lobos.”
O lobo não se contém e farfalha diante da petulância do coelho.
L – Caríssimo coelhinho! Isto é um despropósito. Nós, os lobos, é que somos os genuínos predadores dos coelhos. Até aquele livro, “Direito dos Animais Descomplicado”, que já vendeu mais de 20 edições, diz isso. Também o livro “ABC da Predação das Espécies sem as partes chatas” aponta nessa direção. Tem também as publicações plastificadas que explicam bem isso. E na internet está cheia de artigos mostrado isso. Os coaches dizem isso. Mas, diga-me: qual é a sua matriz teórica?
C – Minha tese – e fez uma pausa para uma baforada fazendo círculos de fumaça no ar – está fulcrada na Jurisprudência dos Valores. Sim, a Wertungsjurisprudenz (era terrível esse coelho; agora já estava lançando mão de outro aporte). Por debaixo da lei que diz que, vocês, lobos, são os nossos predadores, estão os valores da sociedade. São esses valores que devem guiar o intérprete no momento da aplicação do direito. E eu os descobri. Descobri também o princípio da famelicidade (que garante aos coelhos famintos o seu quinhão alimentício). São cláusulas abertas. O direito é indeterminado, não sabe? Tenho também o princípio da “evidência”, dos filósofos Chitão e Xororó. Isto é, a lei é apenas a ponta do iceberg. O ius difere da Lex… O barco dos textos jurídicos bate na parte invisível do iceberg (neste instante, seu olhar de superioridade parecia insuportável para o Bel. Lobo). A propósito, se você quiser, eu posso apresentar a minha prova. Você gostaria de me acompanhar à minha toca-biblioteca, para um chá, um charuto e uma discussão teórica de alto nível?

O Lobo não consegue acreditar na sua boa sorte. Ambos desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o Coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Mastiga, agora, um Partagás, cuja cinza ameaça cair a todo instante…

E o Coiote cursando mestrado profissional encontra o Coelho

No dia seguinte, passa um Coiote, este cursando mestrado profissionalizante. Seu trabalho de conclusão versaria sobre “Como Construir Petições no ChatGPT melhor que o advogado – um (novo) Olhar Gestional” (genial ele, não?). Mesma história. Diálogo parecido. E o Coiote, rolando de tanto rir, faz a mesma pergunta: e em que você se baseia? Li tudo a respeito no livro “Como Aprender O Direito Natural dos Animais em 15 minutos”, já em sua 30ª edição”.

E o Coelho responde: baseio-me na “ponderação de princípios” (ou valores, porque princípios são valores, você bem sabe… — pelo menos para os adeptos do caráter teleológico dos princípios). Na verdade — e, com isso, o doutorando Coelho já estava na sua terceira “matriz teórica” — “fiz um sopesamento e facilmente cheguei à conclusão de que, entre os valores em jogo, facilmente se conclui que são os coelhos os predadores dos coiotes.”

Afinal, se um princípio qualquer inventado pode derrotar o Código Civil ou uma ponderação pode derrotar um precedente de ADC (e citou alguns casos), por qual razão…e continuou falando por mais quinze minutos, atordoando o Coiote. E concluiu: afinal, discricionariedade por discricionariedade, mormente como ela é aplicada em terrae brasilispreferi a ponderação, a “pedra filosofal da interpretação”. É mais charmosa… Pego um princípio (ou um valor) em cada “mão”, pondero, e, pronto… Aí está a solução. E nem preciso construir a regra adstrita. Lembro, ainda, disse o Coelho, “que até fiquei tentado a usar algumas teses pragmaticistas-realistas, retiradas do direito norte-americano. Daria no mesmo”. E, fazendo ar de desdém, deu por encerrada a discussão, não sem antes convidar o visitante a visitar a sua imensa toca-biblioteca.

Na sequência, ambos — coelho e coiote — desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Seu olhar, agora, era blasé. Como se tivesse pena do mundo.

E o segredo da força do Coelho é, finalmente, revelado ao mundo

Na cena que só pôde ser vista em circuito fechado, dentro da toca-biblioteca do Coelho vê-se uma enorme pilha de ossos ensanguentados e pelancas de diversas ex-raposas e, ao lado desta, outra pilha ainda maior de ossos e restos mortais daquilo que um dia foi de lobos, além de ossos de coiotes…

Ao centro das duas pilhas de ossos, charutos cubanos e garrafas de Dom Perignonum enorme Leão, satisfeito, bem alimentado e sonolento, a palitar os dentes… Na camiseta que usava podia-se ler a frase: Orientador. Que o leitor(a) pode substituir por… bom, cada um saberá.

Moral da estória (se é que preciso explicitar):

– Não importa quão absurda é a tese (ou causa) que você pretende sustentar;

– Não importa se você não tem o mínimo fundamento científico;

– Não importa o tipo de livro que você está lendo;

– Não importa se os seus experimentos nunca cheguem a provar sua teoria;

– Não importa nem mesmo se suas ideias vão contra o mais óbvio dos conceitos cunhados pela tradição da teoria (no caso, do direito)…

– O que importa, mesmo, é o poder (discricionário ou o nome que se dê), é o subjetivismo, é o solipsismo que está por trás do seu argumento (ou quem seja o seu orientador, se estivermos a tratar de uma tese…). O que importa é a “vontade do poder”; o que importa é que a “interpretação seja um ato de vontade”, seja essa “vontade” entendida como poder discricionário, arbitrário, busca dos interesses, dos valores etc (se estivermos a tratar de uma decisão judicial…). Importa mesmo se você tem poder para dizer — por exemplo, para dizer o que é um precedente. Com isso, sempre se terá a resposta que se quiser.

Metáforas, estórias, histórias, metonímias etc., servem para ajudar a entender a realidade.

Esta coluna, que reproduz algo que escrevi em 2012 (e nada mudou de lá para cá) é uma homenagem aos otimistas que acreditam que vale estudar, que a doutrina tem papel relevante, que existem fatos, que não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

O ensino jurídico vai bem? Se assim está bem para você, retiro tudo o que disse. E cada um pode sair por aí dizendo “qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Igual ao coelho da alegoria acima. Basta procurar em seu armário gnosiológico uma teoria prêt-à-porter. Sempre haverá alguma tese doutrinária ou algum “precedente” de caráter solipsista para sustentar que Chimbinha é genial. E se a “corte de vértice” disse… então é porque é. Evidente.

Como bem disse outro dia o grande L.F. Veríssimo: rios são metáforas fortes. Contundentes. Daí o mistério de buscar a nascente dos rios. Imagine-se a emoção dos exploradores da National Geographic quando descobriram os pingos da geleira do Nevado Mismi, no Peru, onde aparece o filete d’água que se transforma no Amazonas. E a alegria de Joseph Conrad quando encontrou os primeiros pingos do Nilo, no coração escuro da floresta do Congo. Diz Veríssimo: as nascentes são metáforas mais obscuras: do começo e da razão profunda de tudo. Do primeiro mistério.

Concluo com Guimarães Rosa: “só na foz dos rios é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes”. Talvez o que falte para o direito é buscar a nascente.

Acham que não? Perguntem o que o Edmilson acha. Edmilson existe.

Post Scriptum: este artigo foi produzido em ambiente controlado, por profissional habilitado e nenhum coelho, raposa, lobo ou coiote foi maltratado durante a sua realização!

E vejam que belos óculos usa o professor Leão.

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Insatisfação geral: planos de saúde na berlinda

A regulação dos planos de saúde completou 26 anos, importante revisitá-la para aperfeiçoá-la à luz do Código de Defesa do Consumidor. Deve-se comemorar que no Brasil há lei específica, a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, e uma agência reguladora, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), incumbida de regulamentar, fiscalizar e monitorar o mercado de saúde suplementar, com foco na qualidade da assistência à saúde.

A relação, entre os consumidores e as operadoras de planos de saúde, que oferecem serviços de assistência à saúde, está amparada pelo CDC. A Lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, determina que o Código de Defesa do Consumidor tem aplicação cumulativa e complementar à Lei dos Planos de Saúde. Da lei geral extraem-se os comandos principiológicos aplicáveis à proteção do consumidor, ao passo que à legislação específica caberá reger, de forma minudenciada, os planos de saúde.

O legislador veio pacificar positivamente, o que sempre defendemos, que o CDC se aplica complementarmente a todos os contratos de planos de saúde, sejam antigos ou novos, sem nenhuma ressalva. Portanto, os consumidores de planos de saúde têm o direito de ver, reconhecidos, todos os direitos e princípios assegurados pela lei consumerista.

Nesse diapasão, a ANS deve observar os ditames do CDC ao regular e fiscalizar o setor de saúde suplementar, especialmente seus princípios que se destacam, em primeiro plano, a vulnerabilidade do consumidor, o direito à informação e transparência, a boa-fé objetiva e o equilíbrio dos contratos, além de interagir com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, na busca de um mercado sustentável, eficiente e socialmente justo e que o consumidor seja beneficiário de suas ações.

Claro que além dessa vitória, avanços são inegáveis nesses anos, como por exemplo, também, recentemente positivado, o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, ser dinâmico, isto é, admitir a cobertura de procedimentos não listados nele, desde que o médico ou odontólogo assistente comprovem a eficácia de acordo em evidências cientificas e plano terapêutico ou forem recomendados pelo Conitec/SUS ou órgão de avaliação em tecnologia em saúde internacional.

Entretanto, a regulação do setor de saúde suplementar ainda necessita de aperfeiçoamentos, especialmente em pontos que não se coadunam com o CDC, tais como os planos de saúde coletivos, que têm reajustes não autorizados pela ANS, podem suspender ou rescindir unilateralmente seus contratos, e não são obrigados a fornecerem aos consumidores as condições gerais dos contratos.

Por conta disso, nestes anos os conflitos têm aumentado consideravelmente e o Poder Judiciário provocado a dirimir as ações judiciais de consumidores em face às operadoras de planos de saúde.

Desde 2006, encontram-se inúmeros Projetos de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados apensados ao PL 7.419, inclusive com relatório satisfatório elaborado pelo deputado Duarte Junior, para apreciação.

Ocorre que as operadoras há muito tempo insatisfeitas com as regras vigentes têm tido comportamento alheio aos interesses de seus consumidores, alegando estratégias empresariais. Isto é, deixaram de comercializar planos individuais ou familiares devido as regras serem mais exigentes; têm rescindido unilateralmente contratos coletivos de consumidores, especialmente de idosos e portadores de doenças raras; vêm dificultando autorizações de coberturas assistenciais; não têm cumprido decisões judiciais. Além de defenderem publicamente proposta de alteração legislativa, permitindo a comercialização de planos subsegmentados, acessíveis ou populares, que são planos com coberturas assistenciais reduzidas.

Diante disso, há descontentamento dos consumidores, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) notificou empresas para se manifestarem e o presidente da Câmara dos Deputados convocou somente as operadoras para reunião e, informou pelas redes sociais, que firmou verbalmente um acordo. Sabe-se que este acordo deu-se, em contrapartida à abertura de uma CPI, desde que elas readmitam os consumidores cancelados e que a casa legislativa retornará a analisar o tema em regime de urgência.

Insatisfação geral

Infelizmente, mais uma vez os planos de saúde voltaram à berlinda, o descontentamento é geral. Entende-se que é obvio haver sustentabilidade social, econômica e ambiental, com todos os atores satisfeitos.

Nesse diapasão, é importante o aperfeiçoamento do marco regulatório dos planos de saúde, o qual deve se dar a partir de um debate amplo com todos os atores envolvidos na saúde suplementar e, também, não deve haver retrocessos referentes às conquistas alcançadas até o momento.

Ressalta-se que, as operadoras têm que compreender que prestam no mercado de consumo assistência à saúde, isto quer dizer, que seus clientes devem ter um atendimento assistencial de qualidade de todas as doenças previstas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e os consumidores devem utilizar seus planos de saúde com responsabilidade além de pagar em dia suas mensalidades.

Causa tristeza o setor regulado há tantos anos continuar a desrespeitar seus consumidores, portanto é imprescindível que o debate se inicie imediatamente de forma transparente.

Sugere-se alguns desafios para tentar alcançar consensos

  1. A ministra da Saúde deve estar alinhada com os membros do Consu (Conselho da Saúde Suplementar) para estabelecer diretrizes para o setor da saúde suplementar;
  2. A ANS deve fiscalizar com afinco as operadoras infratoras;
  3. O Poder Legislativo deve convocar toda a sociedade para um diálogo transparente;
  4. A necessidade da integração informacional entre o SUS e o sistema privado, justamente para definir as políticas públicas do setor de saúde;
  5. A indicação de diretores para a ANS e para os seus cargos comissionados de profissionais técnicos capacitados de notório saber e ilibada reputação;
  6. No que se refere, especialmente, à possível proposta de regulação de planos subsegmentados, acessíveis ou populares, com cobertura reduzida e custos mais baixos, seria oportuno ouvir o Ieps (Instituto de Estudos em Políticas de Saúde), criado pelo economista Arminio Fraga, que tem estudo sobre o tema e entende que esta ideia sobrecarregará o SUS e aumentará a desigualdade no acesso e na judicialização da saúde;
  7. É importante também a adequação das normas de defesa do consumidor na regulação dos planos de saúde, isto é, a compatibilização ao CDC. Os principais pontos: a entrega do contrato para os consumidores de planos coletivos; vedar a possibilidade de rescisão ou suspensão do contrato de planos coletivos; o reajuste financeiro dos planos coletivos deve também ser autorizado pela ANS, como já acontece com os planos individuais;
  8. Em relação ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, que trata da cobertura mínima obrigatória pelas operadoras de planos de saúde, entende-se que foi um avanço a aprovação recente da Lei 14.454/2022, mas vê-se com preocupação a possibilidade da indicação de um procedimento ou medicamento, indicado por um médico, que possa não ter comprovação científica ou não aprovação de um órgão técnico regulador (ex: pílula do câncer ou cloroquina). O legislador deveria ter utilizado a locução aditiva (e) e não a alternativa (ou);
  9. Outro tema, que merece atenção, é a necessidade do atendimento integrado com prontuário eletrônico pessoal e, também, tornar definitiva as práticas de telemedicina e teleconsultas;
  10. Aperfeiçoar modelos de remuneração dos profissionais de saúde vinculados à qualidade e à eficácia, como alternativa ao fee for service, que é muito utilizado e gera desperdício;
  11. É muito importante tipificar crimes contra fraude e de desvios de recursos na saúde;
  12. Seria oportuno criar um órgão técnico único para avaliar a incorporação de novas tecnologias, pautado na medicina baseada em evidência, tanto para o SUS como para saúde suplementar.

Por fim, todo o debate da saúde deve ser focado no cidadão e consumidor, lembrando sempre que o atendimento deve ser humanizado, respeitando a dignidade humana. É fundamental para construirmos um país mais justo, igualitário e solidário estarmos todos unidos, dialogando para encontrarmos um caminho com políticas públicas eficazes.

Mãos à obra!

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Ilusionismo trabalhista: o show tem que acabar

Hoje, terça-feira (25/6), será o lançamento da obra que reúne artigos escritos aqui nesta coluna. Um dia de festa. Publicado pela Editora Venturoli, que me acolheu provando que ainda há espaço para a diversidade de ideias no cenário acadêmico, a obra “Ilusionismo trabalhista: o show tem que acabar” busca ser mais do que o registro das minhas opiniões.

Trata-se de um grande alerta para colocarmos a Justiça do Trabalho novamente em sua verdadeira missão: ser uma Casa de Justiça para trabalhadores e empresários.

Para registrar o dia, queria apenas expressar minha gratidão. E, para tanto, transcrevo os agradecimentos que se encontram no livro, pois jamais conseguiria forças para realizar a obra sem a contribuição de cada uma das pessoas que cito abaixo.

“Esta obra não constitui um esforço meramente teórico, pois construída com todos os elementos que constituem a própria vida. Foram momentos de felicidade, tristeza, alegria, depressão, orgulho, desesperança, coragem e medo para finalmente chegar na aceitação.

Ela surgiu conforme seguia o rumo das minhas atividades, com o único intuito de expressar o que via e sentia, contribuindo para a melhoria da instituição a que pertenço, a Justiça do Trabalho.  A obra surge no ano em que completo 30 anos de casa, três como servidor e 27 como magistrado.

Gostaria de aproveitar o momento para expressar minha gratidão a quem viabilizou a concretização deste projeto.  Primeiro, ao Conselho da Editora Venturoli, que corajosamente abraçou a ideia de publicar textos polêmicos, sem qualquer tipo de discriminação.

Segundo, ao meu querido amigo e colega de magistratura Rodrigo Dias da Fonseca, que por semanas a fio realizou a revisão dos textos, sempre com sugestões prontamente acolhidas pelo autor, enriquecendo o conteúdo da publicação.

Terceiro, ao professor Nelson Mannrich, pela acolhida em momento tão difícil da minha carreira no seio do GetrabB — USP, grupo de pesquisas por ele coordenado e que constitui verdadeira usina de ideias e inovação.

Quarto, ao professor José Pastore, que, ao emprestar sua história em prefaciar esta obra, me concedeu o maior prêmio que poderia obter em toda minha carreira.

Finalmente, agradeço à minha esposa, Roberta Torres Calvet, pela diuturna troca de ideias, embates, discussões, conclusões e genialidade na percepção do mundo que nos cerca e, principalmente, pelo suporte emocional que me permite continuar em atividade.  Sem você, eu simplesmente desistiria.

Dedico este livro aos meus filhos e enteados, Nina, Tais, Bernardo, Ricardo, Thomaz e Ingrid: que vocês nunca sejam seduzidos por ilusões.

Para todos os leitores, mesmo os que ainda não me compreendem, renovo a gratidão por dedicarem algum tempo de suas vidas compartilhando meus pensamentos. Iremos juntos até o final.”

E quem puder, coquetel de lançamento nesta terça-feira, 25/6/2024, às 17h, no Convento do Carmo, centro, Rio de Janeiro. Será um prazer recebê-los.

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30 anos do Plano Real: entre DRU e sistema de metas de inflação

O Plano Real completa 30 anos em 2024. Institucionalmente, sua origem coincide com a edição da Medida Provisória nº 542, de 30 de junho de 1994.

A MP nº 542/1994 foi reeditada e alterada diversas vezes até ser formalmente convertida na Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o Real, e dá outras providências”.

Entre os diversos instrumentos normativos que lhe subsidiaram a consecução ao longo dessas três décadas, destacam-se os institutos da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e o Sistema de Metas de Inflação (SMI).

A desvinculação de receitas foi estabelecida e redesenhada sucessivas vezes nos artigos 71, 72, 76, 76-A e 76-B do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) ao longo dos seus 30 anos de vigência. O Sistema de Metas de Inflação, por seu turno, foi fixado pelo Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999, onde persiste há 25 anos de forma relativamente estável, sem maiores alterações.

Originalmente, a desvinculação de receitas foi concebida como Fundo Social de Emergência (FSE), com posteriores redesignações para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e desvinculação de receitas da União, a qual foi estendida ulteriormente aos estados e aos municípios, donde a tríade DRU, DRE e DRM.

O FSE foi instituído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1º de março de 1994, para viger até 1995, “com o objetivo de saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica”. Supostamente os recursos parcialmente desvinculados seriam “aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social”.

O decurso do tempo comprovou que a alegada finalidade de desvincular parcela significativa das receitas destinadas à seguridade social supostamente para custear as ações de saúde, previdência e assistência social era falaciosa. A bem da verdade, a razão estrutural dos instrumentos de desvinculação FSE/FEF/DRU era mitigar a relação de instrumentalidade entre as contribuições sociais e o Orçamento da Seguridade Social previsto nos artigos 165, §5º, III, 195, §2º, 198, §1º e 204, todos da Constituição de 1988.

Desde sua instituição até os presentes dias, foram 12 Emendas Constitucionais, que cuidaram — direta ou indiretamente — da desvinculação de receitas, prevendo-a, redesignando-a, ampliando-a e, sobretudo, prorrogando-a no ADCT. A tabela abaixo contempla os respectivos dados basilares:

Como se não bastassem tantas alterações, começa a ser aventada a 13ª emenda constitucional sobre a desvinculação de receitas, vez que o governo federal tem buscado alternativas de ajuste fiscal que mitiguem a necessidade de uma revisão imediata da Lei Complementar 200/2023 (Regime Fiscal Sustentável, alcunhado vulgarmente de “Novo Arcabouço Fiscal”) já em 2025.

A pauta que começa a ser ventilada na imprensa seria não só a de prorrogar a DRU para além de 31/12/2024, como também de estender seus efeitos sobre a sistemática dos pisos em saúde e educação. Tal proposta de ampliar o escopo da DRU para mitigar o alcance do dever federal de gasto mínimo em saúde e educação trata-se de um inconstitucional e incoerente retrocesso em relação ao artigo 5º da Emenda 59/2009 e artigo 2º da Emenda 103/2019, que, respectivamente, acrescentaram ao artigo 76 do ADCT os §§3º e 4º, visando a excluir tais recursos vinculados da incidência daquele instituto.

Aliás, a redação atualmente vigente dos artigos 76, 76-A e 76-B é contrária à inserção dos pisos em saúde e educação nas hipóteses de desvinculação de receitas da União, dos estados e dos municípios:

“Art. 76. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2024, 30% (trinta por cento) da arrecadação da União relativa às contribuições sociais, sem prejuízo do pagamento das despesas do Regime Geral de Previdência Social, às contribuições de intervenção no domínio econômico e às taxas, já instituídas ou que vierem a ser criadas até a referida data.

[…]

§ 2° Excetua-se da desvinculação de que trata o caput a arrecadação da contribuição social do salário-educação a que se refere o § 5º do art. 212 da Constituição Federal .

[…]

§ 4º A desvinculação de que trata o caput não se aplica às receitas das contribuições sociais destinadas ao custeio da seguridade social.

Art. 76-A. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2032, 30% (trinta por cento) das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes.

Parágrafo único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput:

I – recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da Constituição Federal;

[…]

Art. 76-B. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2032, 30% (trinta por cento) das receitas dos Municípios relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes.

Parágrafo único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput:

I – recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da Constituição Federal;

[…]”

Segundo José Roberto Afonso [1], “[…] vale criticar um pouco mais a ideia da desvinculação, que as autoridades federais enxergam como o caminho necessário para se racionalizar o gasto [público] e implantar políticas fiscais anticíclicas”, porque “[…] não há relação de causa e efeito — isto é, nem vincular, muito menos desvincular, por si só, asseguram boas ou más performances do gasto”. Embasam a afirmação em pauta as constatações feitas pelo citado autor (2004, p. 19-21) de que:

a) “num exemplo extremo, se as contribuições para a seguridade social fossem convertidas em impostos de livre aplicação, por si só, isso não significaria desobrigar a previdência social de pagar aposentadorias e pensões, nem mesmo aos que ainda trabalham, mas têm direitos adquiridos”; embora seja sempre “alegado que, sem tal processo [de desvinculação], seria impossível cumprir as metas fiscais, porém, as mais duras firmadas com o FMI, inclusive após a elevação da meta de superávit primário para patamar nunca observado na história recente, foram sucessiva e plenamente cumpridas”;

b) “após a implantação do caixa único do Tesouro Nacional, sempre há opção de simplesmente contingenciar as dotações orçamentárias e manter entesourado os recursos, como atalho mais curto para assegurar a geração do superávit”;

c) “no âmbito estadual e municipal, o atendimento das metas de superávit primário tem sido fruto justamente de uma vinculação: de proporção da receita corrente para pagamento mensal do serviço da dívida renegociada com o Tesouro Nacional”;

d) existe severa contradição no “discurso oficial recente de que a vinculação prejudica a eficiência e a eficácia da provisão de serviços sociais básicos, porque elas [as vinculações de receitas para a seguridade social e de percentual mínimo de gastos para saúde e educação] foram aprovadas no Congresso justamente com o objetivo inverso”;

e) enquanto “o pretexto [da desvinculação] foi de assegurar a continuidade do financiamento e da despesa com benefícios e serviços sociais básicos, inclusive para permitir a pactuação de uma nova divisão de responsabilidades entre esferas de governo que promovesse a descentralização das ações e também para custear o aumento dos gastos correntes resultantes das novas e maiores inversões esperadas”, efetivamente, “é inegável que a política fiscal do governo federal foi e continuará sendo beneficiada pela desvinculação de 20% de sua receita tributária”, sendo que “o maior efeito prático desta medida era liberar contribuições da seguridade (Cofins, CSLL) para financiar os benefícios dos servidores [públicos] inativos”, o que seria burla à diferenciação dos regimes geral e próprio de previdência social; e, enfim,

f) cumpre lembrar o relevante papel de poupança interna da “[…] vinculação que foi desenhada com um regime especial, visando gerar uma poupança pública no presente que financie o gasto futuro, ou mesmo procure evitá-lo — caso particular da destinação constitucional da contribuição sobre receitas (do PIS/PASEP) para aplicações através do BNDES e para custeio do seguro-desemprego, no âmbito do Fundo de Amparo aos Trabalhadores (o FAT)”.

Em meio a tantas controvérsias e inconsistências, fato é que a desvinculação — que fora criada para durar inicialmente dois anos — já se prolonga por três décadas. O supostamente provisório se perenizou de forma errática em meio a 12 Emendas Constitucionais (ECR nº 1/1994, bem como EC’s nº 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007, 59/2009, 68/2011, 93/2016, 103/2019, 126/2022 e 132/2023).

Tamanho redesenho no arranjo constitucional da desvinculação de receitas (independentemente do nome que a veicule: FSE/FEF/DRU/DRE/DRM) contrasta com a manutenção praticamente inalterada do Decreto 3.088, de 1999, que fixou o Sistema de Metas de Inflação.

Passados 25 anos desde sua edição, não houve mudança significativa no Decreto 3.088, nem mesmo em função da edição da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021, que modificou profundamente o regime jurídico do Banco Central. A autoridade monetária passou a gozar de mandato fixo para seus dirigentes, para que pudesse não só perseguir as metas de inflação, mas também para que devesse institucionalmente “zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”, na forma do parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021.

Muito embora a institucionalidade do Sistema de Metas de Inflação pareça mais estável, ela é, em essência, lacunosa. A forma como a política monetária tem sido conduzida no Brasil traz consigo severos impactos sociais, econômicos e fiscais, que mereceriam debate mais detido e aprimoramento intertemporal.

Diferentemente do que se sucede com a DRU, há uma interdição temática à reflexão sobre como aprimorar o devido processo da política monetária em que se dá o manejo da taxa básica de juros pelo Banco Central, visando a entregar a inflação dentro dos limites de oscilação da meta projetada pelo Conselho Monetário Nacional.

No Texto para Discussão 2403, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Luís Carlos Magalhães e Carla Rodrigues Costa suscitam que as despesas financeiras decorrentes, majoritariamente, da atuação finalística do Banco Central seriam uma categoria ausente na tematização da agenda de ajuste fiscal do Brasil:

“a elevada despesa com serviços de juros da dívida pública federal é um fator importante que dificulta a obtenção do equilíbrio fiscal, como também o crescimento econômico do país. As evidências apresentadas no trabalho sugerem que a obtenção de equilíbrio fiscal sustentável requer alteração da atual institucionalidade da gestão da dívida pública, herdada do período de alta inflação. Além disso, por diversas regras de funcionamento dos mercados primários e secundários da dívida pública, discutidas no trabalho, este equilíbrio impede que a despesa pública com serviço de juros convirja para padrões internacionais. Ao custo fiscal do arranjo institucional da gestão da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), somam-se os custos das complementaridades institucionais construídas nas últimas décadas com a política monetária e cambial. Essas complementaridades criam uma rede de arranjos institucionais com atributo de path dependence, o que dificulta sua alteração de forma a reduzir esses custos fiscais.” (Magalhães; Costa, 2018, p. 7)

Larissa Dornelas e Fábio Terra oferecem diagnóstico semelhante sobre o mercado da dívida pública no Brasil, que congrega tanto a gestão de liquidez da política monetária, quanto o resultado da política fiscal no âmbito do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic):

“[…] houve no Brasil uma fusão dos mercados monetário e de dívida pública com a criação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), em 1979, de modo que se passou a ter no País um único e grande mercado de dívida pública, chamado de mercado SELIC, no qual se marca a taxa básica de juros no Brasil, a taxa Selic. Nele utilizam-se os mesmos títulos públicos, emitidos pelo Tesouro Nacional (TN), para a realização tanto da política monetária quanto para a gestão da dívida pública. Dessa forma, no mercado SELIC instrumentalizam-se operações de mercado aberto, além de se transacionarem títulos para fins fiscais, já que todas as transações que envolvem títulos públicos se dão em seu âmbito.

[…] a estrutura do sistema financeiro nacional (SFN) convencionou-se e habitou-se com o perfil da circulação de títulos no tempo da zeragem automática e da alta inflação: a demanda por ativos financeiros centra-se em compor carteira com investimentos de curto prazo, com liquidez elevada, que gere rentabilidade com baixo risco.

[…] por conta da pós-fixação dos títulos públicos componentes da dívida mobiliária (inclusive nos usados nas operações compromissadas), a taxa de juros básica do BCB precisa permanecer em patamares elevados para ter eficácia no controle inflacionário. Porém, como esta taxa é a mínima que remunerará outros ativos no País, inclusive do rendimento dos títulos públicos para fins fiscais, gera-se assim, uma contaminação da política monetária na gestão da dívida pública, cuja volatilidade da taxa Selic, quando ocorre, impregna-se nos juros dos títulos da política fiscal e, dada a elevada taxa básica historicamente praticada, tem-se um alto custo para o financiamento do governo. Como se não bastasse o alto e volátil custo do financiamento da dívida pública, cria-se um ciclo vicioso: cobram-se altos prêmios pela falta de credibilidade de um governo que emite dívida de curto prazo e, com a continuidade desse perfil de dívida, o custo dela aumenta.”

As análises coincidem, mas sequer chegam a ser debatidas amplamente nas arenas públicas mais expressivas de reflexão sobre os rumos das contas públicas, a despeito de as despesas com juros alcançarem cerca de 8% do PIB ao ano. Nesse contexto, soa contraditória, quando não enviesada a preferência por pautar a desvinculação dos gastos sociais (pisos em saúde e educação, garantia de que os benefícios da previdência e da assistência social não sejam inferiores ao salário mínimo etc), antes de qualquer retomada séria desse ajuste ausente sobre as despesas financeiras.

Neste aniversário de 30 anos do Plano Real, desvendar tamanho impasse é ponto de partida e dever de equidade, para que seja possível tanto lhe corrigir os rumos, quanto lhe resguardar sustentabilidade e legitimidade para as próximas décadas.


[1] AFONSO, José Roberto. LRF: por que parou? Rio de Janeiro, 2004, p. 19-21.

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STF vai reiniciar análise sobre multa de 150% por sonegação fiscal

Um pedido de destaque do ministro Flávio Dino interrompeu, na última sexta-feira (21/6), o julgamento de repercussão geral no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal discute a validade da multa de 150% aplicada pela Receita Federal em casos de sonegação, fraude ou conluio.

Com isso, a análise do caso será reiniciada em sessão presencial, ainda sem data marcada. Antes do pedido de destaque, o julgamento era virtual, com término previsto para a próxima sexta-feira (28/6).

Até então, apenas dois ministros haviam se manifestado. Ambos consideraram legítima a aplicação da multa de até 150% do débito tributário em casos de reincidência.

Multa de 150% é aplicada pela Receita em casos de sonegação, fraude ou conluio

Contexto

O recurso em questão contesta uma multa de 150% aplicada com base na antiga redação do inciso II do artigo 44 da Lei 9.430/1996, que previa tal sanção nos lançamentos de ofício em casos de sonegação, fraude ou conluio.

 

No último ano, essa lei foi alterada. Na redação atual, a multa para tais casos é de 100% do débito tributário. Se houver reincidência, a taxa sobe para 150%.

No caso concreto, a Receita multou um posto de combustível em 150%, por entender que o estabelecimento fazia parte de um grupo econômico, mas se separava das demais empresas com o intuito de não pagar impostos.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região validou a multa. Em recurso extraordinário, o posto alegou que o percentual tinha caráter confiscatório e argumentou que o inciso IV do artigo 150 da Constituição proíbe o uso de tributo com efeito de confisco.

Voto do relator

Antes do pedido de destaque de Dino, o ministro Dias Toffoli, relator do caso, já havia depositado seu voto, acompanhado por Alexandre de Moraes.

Para os dois ministros, até que seja aprovada uma lei complementar sobre o tema, os percentuais definidos em 2023 (100% para primeiras ocasiões e 150% em caso de reincidência) são os tetos para multas tributárias por sonegação, fraude ou conluio.

Eles propuseram que o entendimento tenha validade a partir da data da publicação da ata do julgamento e não seja aplicado a ações judiciais pendentes de conclusão até essa data.

Além disso, sugeriram que os entes federados ainda tenham competência para criar regras diferentes, desde que mais favoráveis ao contribuinte.

No voto, Toffoli considerou que a gravidade das condutas justifica o percentual elevado da multa, proporcional ao ilícito cometido.

De acordo com ele, não é justo penalizar no mesmo patamar um contribuinte que deixa de pagar ou de declarar um tributo sem intenção e outro contribuinte que sonega, frauda ou age em conluio.

Neste último caso, a punição deve ser mais severa. Para o relator, o percentual de 150% é razoável, porque reprime tais condutas.

O magistrado ainda destacou que a ideia de confisco envolve atingir uma parcela significativa do patrimônio ou da renda do contribuinte, capaz de ameaçar sua sobrevivência.

Em casos de sonegação, fraude ou conluio, há enriquecimento ilícito. Por isso, é difícil diferenciar a riqueza lícita da ilícita, e consequentemente saber se a multa ultrapassa as possibilidades do contribuinte.

Toffoli ainda ressaltou a necessidade de gradação da multa até o teto de 150%, “levando-se em conta a individualização da conduta do agente”.

No caso concreto, como o TRF-4 não mencionou reincidência do posto, o ministro considerou necessário reduzir a multa para 100% do débito tributário.

Clique aqui para ler o voto de Toffoli
RE 736.090

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Contratação de empresas sancionadas? Exceção da MP nº 1.221/2024

O § 2º do artigo 13 da Medida Provisória nº 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, aponta que “na situação excepcional de, comprovadamente, haver apenas uma fornecedora do bem ou prestadora do serviço será possível a sua contratação, independentemente da existência da sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o Poder Público”.

Certamente um dos artigos mais polêmicos da referida MP, tendo em vista o habitual rigorismo adotado pelo legislador brasileiro, nos mais variados diplomas normativos, quanto à impossibilidade de contratação de empresas e demais licitantes que tenham sido, em processos sancionatórios, impedidos de contratar ou de participar de licitações com o Poder Público, tendência também seguida pelos órgãos de controle.

Trata-se de um dispositivo legal cuja aplicação é altamente restringida, não sendo, portanto, um autorizativo para que a Administração priorize contratação com empresas já penalizadas, tanto que o § 3º do mesmo artigo 13 da referida Medida Provisória exige a obrigatoriedade de prestação de garantia nas modalidades de que trata o artigo 96 da Lei nº 14.133, de 2021, que não poderá exceder a 10% do valor do contrato.

A contratação pública franqueada pela norma prevista no referido § 2º do artigo 13, por ser excepcional, tem de ser amplamente motivada, havendo uma circunstância fática exclusiva que deve ser comprovada na prática: ser a única fornecedora do bem ou a única prestadora do serviço.

Ocorre que a MP nº 1.221/2024 não menciona qual critério territorial deve ser levado em consideração quanto à correta interpretação do referido § 2º do artigo 13. É dizer, não há qualquer menção de como proceder à comprovação de ser a empresa contratada a única fornecedora do bem ou a única prestadora do serviço, razão pela qual a motivação dada pela Administração Pública pode, posteriormente, ser considerada inservível.

A insuficiência da motivação, nesse cenário, é um tanto mais gravosa, porque tem, inclusive, o potencial de atrair uma tipificação penal, especialmente o crime de contratação direta ilegal (artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro).

Partamos para uma situação em concreto. Um município do interior do estado do Rio Grande do Sul pretendeu adquirir um bem de um pretenso fornecedor único, assim considerado nos limites territoriais do mesmo município, o qual fora, em outra quadra sancionatória, impedido de contratar com o Poder Público, nos termos previstos na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Claramente, não restam dúvidas de que o possível licitante se encontra apenado.

Entretanto, suponhamos que no Rio Grande do Sul (ou na vizinha Santa Catarina) existam outros fornecedores aptos a contratarem com o município, porém, apesar de não terem sofrido quaisquer sanções, possuam restrições trabalhistas e fiscais, além de um preço significativamente superior ao preço praticado pelo licitante que tenha sido sancionado, seja quanto ao impedimento ou quanto à suspensão.

Considerando tais apontamentos, quem contratar?

Percebe-se, portanto, que a MP nº 1.221/2024 não elimina tais questionamentos de difícil solução consensual e, ao tempo em que contempla a possibilidade de contratação, não exclui possível ilicitudes (penais, cíveis e administrativas).

Dito isso, para que seja factível efetivar a contratação com empresas impedidas de contratar ou suspensas de licitar não devem restar quaisquer alternativas ao gestor público, razão pela qual o motivo da escolha deve ser precedido de fundamentação que demonstre, cabalmente — e após método excludente —, restar apenas um licitante.

Cabe ao gestor reunir elementos mínimos que evidenciem a restrição no fornecimento do bem ou serviço objeto da contratação, bem como a comprovação de haver uma única (e disponível) fornecedora, além de ser obrigatória a relação de pertinência entre o objeto licitado e o enfrentamento da situação emergencial ou de calamidade.

Evidentemente, é imprescindível que os órgãos de controle devem ponderar os motivos pelos quais se efetivou a contratação, não se descuidando de agravantes específicas, como a negativa de um ou mais fornecedores em concretizar a relação contratual com o Poder Público.

Pragmaticamente, o controlador tem o dever legal de avaliar que nem todos fornecedores de bens ou prestadores de serviço público encontram-se obrigados a contratarem com a Administração, fato este que, em situações de calamidade ou emergência, são acentuados pela demanda oriunda da iniciativa privada, desgarrada da burocracia que chicoteia — e, necessariamente, estorva — o Poder Público.

Fonte: Conjur

Limites do poder judicial na democracia: o óbvio que ainda precisa ser dito

No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem sido intensamente discutida devido ao seu papel mais ativo nos últimos anos. As decisões a respeito das eleições de 2022, Inquérito das Fake News, 8 de janeiro, uso da tese de legítima defesa da honra no júri, prisão em segunda instância… são vários os exemplos de temas que geraram intensas discussões na imprensa, entre especialistas e na sociedade civil.

O ponto comum de todas essas questões é: qual o papel do Judiciário e qual é o limite do seu poder? Qual a linha que difere a atuação judiciária republicana, que respeita a separação de poderes, e o ativismo judicial?

Há quem defenda que não existe ativismo no Brasil, e que o papel do Poder Judiciário é de ser luz para guiar o povo, fazendo avanços democráticos que as vias legislativas não permitem, ou seja, defende-se uma postura iluminista do Judiciário, que deveria proteger direitos fundamentais e promover justiça, especialmente quando os demais Poderes falham (Barroso, 2019).

A crítica não tarda e nem é nova. A defesa do “papel iluminista” das cortes constitucionais sugere uma ausência de limitações externas, confiando apenas na vontade dos juízes – os iluminados.

É bom lembrar

Obviamente que não é possível defender, de igual forma, que o papel dos juízes se limita a ser uma máquina de aplicação da lei. O Judiciário é um espaço de tensionamentos e construções sociais, o que, por isso mesmo, exige um estudo atento de suas funções e limitações. Importa lembrar que não existe texto totalmente descolado da norma, mas a interpretação judicial não pode ser arbitrária.

O óbvio que continua sendo necessário reafirmar é: a interpretação deve estar sempre vinculada à lei.

O problema surge quando a expansão resulta em “decisionismos”, em que as decisões judiciais se baseiam mais na vontade individual dos magistrados do que em princípios jurídicos sólidos. Essa abordagem, embora pretenda corrigir falhas representativas, corre o risco de se distanciar de uma interpretação estritamente legal em favor de considerações morais ou pessoais.

Vácuo de representação

A crise de representação enfrentada pelas democracias modernas é um fator chave para compreensão da expansão do Poder Judiciário. Muitos cidadãos sentem que não são ouvidos ou que seus representantes não agem em seu interesse, gerando uma desconfiança crescente nas instituições democráticas. Essa desconexão incentiva a busca por respostas nas decisões judiciais, criando a ideia de que o STF (e as instâncias infraconstitucionais) é uma espécie de guardião mais próximo dos direitos individuais e coletivos, o que, ironicamente, tem um potencial enorme de violar esses mesmos direitos a eles confiados.

Além disso, esse tensionamento entre os poderes – que tem um sem-número de outras razões além dessas explicitadas aqui – mostra a debilidade das funções governamentais e sua falha em cumprir as promessas constitucionais pós 88.

Esse vácuo de representação cria espaço para que o Judiciário assuma um papel mais ativo e interventivo, na tentativa de suprir as falhas dos outros Poderes. No entanto, a história recente demonstra que essa expansão tem ocorrido sem o devido controle democrático, libertando-o das amarras constitucionais.

Essa crise de representação, uma das causas “de baixo” dos “poderes selvagens” que Ferrajoli enumera, é alimentada e retroalimentada pela própria incapacidade das instituições em responder às demandas sociais de maneira efetiva, do que se aproveitam alguns setores da magistratura para ocupar esse espaço de poder, decidindo de acordo com suas consciências e valores.

Salvadores da pátria

Ainda que se argumente que há pautas necessárias, que jamais avançariam sem a intervenção do Judiciário, é preciso também reconhecer que o “ativismo do bem” também é “ativismo do mal”, especialmente quando degenera para deturpar, distorcer e negar direitos fundamentais, gerando a revolta e desconfiança do jurisdicionado.

Quando isso ocorre, o que se vê é uma verdadeira autofagia do Poder Judiciário. Quando expande, degenera. Quando cresce, reduz confiança. Quando é preponderante, ameaça o próprio poder.

Ter um Judiciário “pop” — cujas pautas são constantemente discutidas na imprensa e seus membros estão assiduamente concedendo entrevistas, que são replicadas e comentadas infinitamente nas redes sociais — tem um preço alto para a democracia: cria um imaginário de juiz herói, apresentado como salvador da pátria, como ocorreu, por exemplo, no caso do mensalão com o então ministro Joaquim Barbosa e com Sergio Moro na Operação Lava-Jato.

Incomoda a visão de que essas figuras heroicas sejam apontadas como necessárias – e incensadas – para tutelar o povo, como se este não soubesse o que é melhor para si.

O populismo, como ideia de chefe como encarnação da vontade popular, ou seja, pela sua personalização – um dos poderes selvagens “do alto” – mostra que não apenas o chefe do Executivo pode se utilizar dessa forma de governar. O populismo se infiltra na esfera judicial, tornando os limites constitucionais um obstáculo ilegítimo à ação do poder daqueles que utilizam desse artifício.

Mais uma ironia. O “guardião e intérprete da Constituição” se descolando da própria em prol de um dito avanço civilizacional.

Constranger os excessos

Um Judiciário que atua como instância moral suprema, escapando aos controles democráticos essenciais, tenta se mostrar como um “superego da sociedade” (Maus, 2000), tornando crucial que a sociedade civil constantemente constranja os excessos para garantir que o Judiciário não se transforme em uma instância hegemônica, mas sim uma peça equilibrada dentro da democracia.

Não se quer, com essa constatação, sustentar a volta do juiz “boca da lei”, mas apontar o perigo da quebra dos limites constitucionais na função de julgar, permitindo que os magistrados apliquem, como regra, seus valores e ideologia, denunciando a elevação destes a fontes do Direito, transformando a esfera judicial em um jogo de azar.


Referências:

ABBOUD, Georges. Direito Constitucional pós-moderno. São Paulo: Thompson Reuters, 2021. E-book.

ABBOUD, Georges. Ativismo Judicial: os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situações e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004

BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalismo Democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 9ª ed, São Paulo: SaraivaJur, 2022. E-book.

FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexander Araújo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014.

MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. In: Novos Estudos, nº 58, 2000, p. 183-202.

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Ao limitar efeitos da confissão no campo penal, STJ ajuda a reduzir erros judiciários

decisão do Superior Tribunal de Justiça de limitar os efeitos da confissão é positiva, pois o Brasil só terá menos erros em casos penais quando exigir provas mais sólidas para prender, indiciar, denunciar e condenar, de acordo com o entendimento dos especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Na semana passada, a 3ª Seção da corte aprovou posições jurisprudenciais destinadas a limitar os efeitos da confissão da pessoa suspeita de um crime no destino da investigação e do processo penal.

STJ sede prédio
STJ vem atuando para melhorar a qualidade das provas no processo penal, de acordo com especialistas no assunto  – Gustavo Lima/STJ

Ficou decidido que a confissão extrajudicial (aquela feita antes do processo) só terá alguma validade se for feita em ambiente institucional (delegacia). Ainda assim, não servirá para embasar uma decisão judicial, apenas para indicar possíveis fontes para investigação.

Já a confissão judicial (feita perante o juiz) poderá ser usada na sentença para corroborar as provas produzidas no processo, mas não para, isoladamente, levar à condenação do réu.

Avanço, ainda que pequeno

A decisão do STJ representa um avanço no processo penal, mas não resolve o grande problema, que é cultural, segundo Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

“Nós só vamos ter processos de qualidade, o que significa ter uma margem pequena de erro, quando entendermos que prova se faz no processo, não na investigação. Porque o que se faz no processo é com contraditório, independentemente de o réu confessar ou negar o fato.”

De acordo com Lopes Jr., o Brasil precisa se libertar da ideia autoritária e inquisitória de que a confissão é “a rainha das provas”. Hoje, a confissão não é suficiente para provar a materialidade do crime, nem a autoria. Portanto, não exime o Estado do dever de investigar, diz o professor.

“É preciso combater a ideia de que a confissão tem algum valor probatório, pois isso fomenta a cultura de torturar, de pressionar pessoas para obter a confissão. Agora, caso se entenda a confissão apenas como um meio de defesa, pode ser positivo. Se a pessoa confessa algo que possa servir para se defender, ou seja, apenas um indicativo para que se investigue, tira-se o peso e reduz-se o nível de violência para obter a confissão”, opina o processualista.

Qualidade das provas

A limitação dos efeitos da confissão é uma medida que pode melhorar a qualidade das provas dos processos penais, afirma Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“A admissão da confissão extrajudicial, no local dos fatos, confirmada posteriormente pelos policiais, diz respeito à validade do depoimento dos próprios policiais. Em realidade, trata-se de depoimento policial, e não de confissão, depoimento policial por ‘ouvir dizer’. O debate se insere na linha do necessário estabelecimento de critérios para validação do testemunho policial, o que o próprio STJ já está, corretamente, realizando. O impacto é grande e reforça a posição de que o depoimento policial não pode ser tomado como prova suficiente para condenação.”

É próprio da lógica inquisitória que a confissão ou os testemunhos sejam suficientes para a condenação, diz Carvalho. Devido ao peso da confissão, ressalta ele, isso estimula todas as formas de adquiri-la, incluindo a tortura. Por isso, é fundamental e democrático que os tribunais exijam provas técnicas de qualidade, o que deve incentivar o investimento em tecnologia nas polícias e no Ministério Público, opina o professor.

Salo de Carvalho também afirma que estabelecer standards mínimos, como o de que a confissão judicial só serve para corroborar as provas já produzidas, reforça o dever de fundamentação dos magistrados e “cria blindagens contra decisionismos e subjetivismos”.

“Qualquer manifestação deve ser amparada por provas de corroboração autônomas e independentes. Por outro lado, a atividade do juiz não é livre, no sentido de que pode concluir algo apesar da prova. A sentença deve guardar coerência com a prova produzida e, no processo penal, essa prova deve garantir certeza fática, o que não se tem apenas com a confissão.”

Memórias falsas

A exigência de que a confissão extrajudicial ocorra em um ambiente institucional assegura o direito à não autoincriminação, avalia Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo.

“Não era incomum que alguém, por exemplo, preso em flagrante delito chegasse à delegacia e dissesse ‘vou me reservar o direito de permanecer calado’ quando alertado pela autoridade policial. Mas, antes disso, os policiais militares que fizeram abordagem na rua o interrogaram informalmente. E, nesse caso, embora a pessoa presa dissesse em um ambiente institucional que desejava permanecer calado, os policiais eram ouvidos e diziam o que eles teriam ouvido daquele investigado, o que era uma forma de burlar o direito à não autoincriminação.”

Isso também afasta a presunção de veracidade do depoimento dos policiais, algo que não se justifica do ponto de vista epistêmico, conforme Badaró. Primeiro porque a memória humana é falha e, na maioria das vezes, os erros são inocentes, e não decorrentes de má-fé, segundo o docente.

“O policial participa de várias ocorrências semelhantes. Quando comparece em juízo para depor, muito tempo depois, pode lembrar do fato de forma diferente do que aconteceu devido a fatores intercorrentes, confusões com eventos posteriores, dificuldades de evocação daquele acontecimento ou problemas na percepção no momento que ele se realizou. O depoimento do policial, assim como o de qualquer ser humano, deveria ser insuficiente para qualquer conclusão sobre o fato”, opina o processualista.

Além disso, destaca ele, o entendimento do STJ também evita a má qualidade das investigações diante do que pode ser denominado de “visão de túnel” — por exemplo, quando os policiais se prendem a uma confissão e descartam outras linhas de apuração. Fora que há confissões falsas, como quando alguém busca proteger outro acusado.

“Com essa decisão, o STJ continua a promover uma verdadeira revolução epistêmica em termos de prova no processo penal. Foi assim com o reconhecimento pessoal e fotográfico, com as buscas pessoais, com as buscas domiciliares, com a cadeia de custódia da prova digital, e agora com a confissão. A corte vem procurando fazer um diálogo importantíssimo entre o regime legal da prova, a epistemologia e ciências afins, como psicologia cognitiva e outras áreas do conhecimento, para que tenhamos decisões mais bem fundamentadas, reduzindo a chance de erros judiciários e de condenações de inocentes”, opina Badaró.

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Juiz não pode decretar prisão preventiva na sentença sem requerimento do MP

Desde a entrada em vigor da lei “anticrime”, em 2019, o sistema acusatório não permite mais a decretação da prisão cautelar de ofício — seja na conversão da prisão em flagrante, durante a tramitação da ação penal ou na sentença condenatória. A prisão preventiva depende sempre de requerimento prévio do Ministério Público, do autor da queixa-crime ou do assistente de acusação.

Prisão, presídio, grades
Juiz decretou prisão preventiva de ofício na sentença condenatória

Assim, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, revogou na última sexta-feira (14/6) uma preventiva que havia sido decretada sem requerimento do MP. No processo, a defesa ainda apontou que os crimes foram cometidos em 2016 e que o réu permaneceu em liberdade desde então.

O homem foi condenado a três anos e seis meses de reclusão e a dois anos e dois meses de detenção em regime fechado por posse irregular de arma de fogo de uso permitido e disparo em local habitado.

Antecedentes criminais

Na sentença, o juiz decretou a prisão preventiva de ofício. Ele ressaltou que o acusado era reincidente e tinha diversos antecedentes criminais.

Os advogados Lucas Ferreira Mazete Lima e Núbia Martins da Costa, responsáveis pela defesa, tentaram a anulação da decisão pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mas o pedido foi negado.

No STJ, o ministro Reynaldo da Fonseca notou que o MP pediu apenas a condenação e, após o trânsito em julgado, a suspensão dos direitos políticos do réu — e não a prisão preventiva.

O magistrado ainda ressaltou que a decretação da prisão na sentença, “sem a apresentação de fato novo a justificar a instauração da custódia, revela-se ilegal”.

Isso porque, conforme precedente da 6ª Turma do STJ, a prisão cautelar exige “a contemporaneidade dos fatos justificadores dos riscos que se pretende com ela evitar”.

Clique aqui para ler a decisão
HC 920.825

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Aprovada sem dados sobre impacto no DF, nova lei limita eleição de foro

Sancionada no último dia 5, a Lei 14.879/2024 alterou as regras sobre eleição de foro para ações judiciais relacionadas a contratos privados. E os advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico entendem que a norma restringe a liberdade das partes de escolher o melhor local para resolver eventuais disputas.

A proposta foi concebida com o pretexto de desatolar a Justiça do Distrito Federal, mesmo sem dados que corroborassem tal necessidade. Profissionais que trabalham com Direito Civil, Processual e Empresarial percebiam, na verdade, uma preferência muito maior por São Paulo, que não era contestada.

O texto da lei diz que a escolha do foro precisa “guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação” — exceto em contratos de consumo nos quais o foro eleito seja favorável ao consumidor.

Com a nova regra, se as partes escolherem um foro aleatório, que não cumpra tais requisitos, o juiz poderá, de ofício, declinar a competência para analisar a ação e enviá-la a outra comarca.

SP fora da rota

De acordo com a experiência de advogados que lidam com casos do tipo, especialmente envolvendo empresas, os clientes tinham preferência por determinadas comarcas. A Justiça de São Paulo era um dos alvos prediletos.

A advogada Renata Cavalcante de Oliveira, sócia do Contencioso Cível do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, conta que muitos clientes de outros estados costumavam eleger foros em São Paulo, devido principalmente à “celeridade” e à “especialidade” das varas.

Além disso, segundo ela, o Tribunal de Justiça paulista “tende a ser mais pró-contratual”. Ou seja, as decisões costumam ter “menos surpresas”. E a nova lei limita essa opção.

Carlos Braga, sócio da área de resolução de disputas do escritório Cescon Barrieu, afirma que existia, no geral, uma “tendência de eleição de foro em São Paulo” nos casos de empresas estrangeiras.

O advogado indica que isso é especialmente forte com relação às Varas Empresariais do estado, “reconhecidas por serem especializadas, técnicas e eficientes” — em outras palavras, “dão muita segurança para as partes”.

Mas, mesmo empresas brasileiras, principalmente de maior porte, tinham costume de eleger a Justiça paulista. É o que aponta Giuliana Schunck, sócia de Contencioso Cível do Trench Rossi Watanabe.

Isso acontecia porque o estado tem “uma boa Justiça, com Varas Empresariais bastante especializadas, que se destacam pela capacitação e sofisticação dos juízes”. Tais magistrados “estão acostumados a decidir casos grandes e complexos, o que muitas vezes se traduz em bons julgamentos (bem técnicos)”.

Assim, o Judiciário de São Paulo era bastante escolhido como “um foro isento”, mesmo quando não era o local de domicílio de qualquer uma das partes.

A preferência também ocorria para evitar insegurança jurídica. Oliveira exemplifica: em Minas Gerais, a comarca de Belo Horizonte possui a Central de Cumprimento de Sentença (Centrase), especializada nesta fase do processo para casos cíveis.

“Essa vara é super abarrotada”, diz a advogada. “As coisas lá não andam”. Por isso, quando havia possibilidade de escolher foro em MG ou SP, ela sempre optava por levar os casos para São Paulo, para evitar que as ações ficassem travadas na Centrase mineira.

De acordo com Diego Herrera de Moraes, sócio de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho, o impacto negativo da nova lei é amplo e atinge não só o Judiciário paulista.

Ele acrescenta que a escolha do foro levava em conta não apenas a especialização das varas, mas também o “nível de congestionamento do tribunal”, a “estabilidade da jurisprudência” e outros fatores.

Já Braga acredita que, com a nova regra, haverá “um novo impulso para as arbitragens” — outra alternativa que as partes têm no momento da contratação para encaminhar eventuais disputas relacionadas ao negócio.

Liberdade afetada

Oliveira diz que a nova legislação “limita a liberdade das partes de colocar o foro que entendem como o melhor para decidir um eventual litígio”.

Na sua visão, isso viola a Lei da Liberdade Econômica, segundo a qual “os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes”.

Já Moraes entende que “a nova lei vai na contramão do espírito do Código de Processo Civil, que permite de forma ampla a realização de negócios jurídicos processuais”.

Schunck concorda que a mudança promovida pela nova lei foi “ruim para o ambiente dos negócios”. De acordo com a advogada, a Lei 14.879/2024 não é positiva porque acabou com a possibilidade de escolha do foro mais conveniente e isento.

Para ela, a regra que obriga a escolha do foro de domicílio de uma das partes pode restringi-las a varas menos especializadas ou mesmo “com mais vieses, que podem levar a algum tipo de proteção (ainda que inconsciente) para a empresa local”.

O advogado Júlio César Bueno, sócio do Pinheiro Neto Advogados e coordenador da área contenciosa do escritório, considera que “a alteração contraria a tendência de consensualidade e contratualização do processo, estabelecida pelo CPC e pela Lei de Liberdade Econômica”.

Outro problema, segundo ele, é a incerteza gerada pela indefinição quanto à vara para o qual o processo deve ser enviado caso o juiz decline a competência. Bueno ainda ressalta que “já existia previsão legal para o controle de ofício de cláusulas abusivas pelo magistrado”.

Já Moraes acredita que a norma também gera insegurança jurídica aos contratos “sujeitos à cláusula arbitral, em especial nos casos em que a arbitragem é antecedida ou sucedida de disputa perante o Poder Judiciário”.

Isso porque, agora, há uma “incongruência” entre a escolha do foro arbitral — que ainda é ampla, pois não sofreu alterações — e a eleição do foro estatal (judicial), restringida pela nova lei.

Forum shopping em Brasília?

A Lei 14.879/2024 foi aprovada com a justificativa de evitar a sobrecarga de processos na Justiça do Distrito Federal. O deputado federal Rafael Prudente (MDB-DF), autor do projeto de lei aprovado, disse ter identificado nas comarcas locais muitas ações com partes de outros estados.

Já a deputada Érica Kokay (PT-DF), relatora do PL na Câmara, apontou que a Justiça distrital acumulava tais processos porque é mais rápida e tem custas mais baratas.

A justificativa da proposta, assinada por Prudente, dizia que o TJ-DF vinha “recebendo uma enxurrada de ações decorrentes de contratos que elegeram o Distrito Federal como foro de eleição para julgamento da causa, mesmo sem qualquer relação do negócio ou das partes com a localidade”.

Mas, na opinião de Schunck, a alegação de que a Justiça brasiliense estaria atolada não é suficiente para “uma mudança tão importante e impactante para os negócios do país inteiro”.

A advogada também afirma que as empresas do Sul e Sudeste, com as quais ela costuma lidar, geralmente optam pelos foros de São Paulo ou outros da região, e não do Distrito Federal.

Se a ideia da lei é evitar a prática do forum shopping — ou seja, a escolha dos foros mais favoráveis aos interesses da parte —, Bueno alerta: “Não há evidências empíricas de que o congestionamento do Judiciário seja causado pela eleição de foro”.

Em dezembro do último ano, quando o PL ainda tramitava no Congresso, o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) se manifestou de forma contrária à proposta. A entidade apontou justamente a falta de estudos e estatísticas que comprovassem “congestionamentos processuais” ou a escolha reiterada de varas e tribunais com “melhor desempenho”.

Segundo o IBDP, “pode até existir a preferência de empresas estatais federais pelo foro de Brasília, mas nenhuma tendência similar é visível a olho nu na iniciativa privada”. O instituto apontou a inexistência de uma “rota migratória única” ou de “oásis jurisdicionais que atraiam os litigantes aos milhares”.

Na justificativa do PL de Prudente, não havia qualquer dado sobre o suposto acúmulo de processos na Justiça do DF em função de cláusulas de eleição de foro.

Questionada pela ConJur, a assessoria de imprensa do deputado disse não ter um levantamento do tipo. Já o TJ-DF afirmou que não é possível levantar tais dados, pois as estatísticas são feitas com “base nas tabelas processuais unificadas do Conselho Nacional de Justiça”.

Injustiça injustificada

Durante a cerimônia de sanção, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, defendeu a nova lei e criticou a regra que valia até então: “Se o particular puder escolher o foro, ele penaliza a parte contrária, que terá de se deslocar, ou penaliza os tribunais mais eficientes”.

Mas Oliveira explica que a lógica do deslocamento não se aplica, pois a escolha do foro ocorre apenas em comum acordo entre as partes, no momento da assinatura do contrato.

Isso é diferente da situação em que uma das partes aciona a Justiça e a outra é pega de surpresa. Nesses casos, em que o autor teve tempo para se preparar, há critérios mais benéficos à parte contrária: o foro deve ser o local de domicílio do réu ou o local de cumprimento da obrigação.

A advogada discorda que a regra antiga penalizava a parte contrária, porque a cláusula de eleição de foro é estabelecida com antecedência. “Não pega ninguém de surpresa”, pontua.

De acordo com Schunck, na prática, “as partes escolhiam de livre vontade” e o foro podia ser o de domicílio de uma delas. Nesses casos, a parte que não fosse do mesmo local “já sabia de antemão que teria que se deslocar”.

Da mesma forma, era possível escolher um local em que nenhuma das partes estivesse localizada, o que seria mais “imparcial”.

Braga ressalta que o foro eleito não é necessariamente mais benéfico para o autor. “Quem tem mais poder de barganha no momento do contrato vai puxar para onde acha melhor”, assinala.

Schunck ainda lembra que, com o processo eletrônico, praticamente tudo é feito de forma virtual e o deslocamento quase não acontece.

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Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados