A responsabilidade do sócio retirante por dívidas trabalhistas

A questão da responsabilidade do sócio retirante sempre foi um assunto que causou inúmeros debates na Justiça do Trabalho. Isto porque, quando o processo se encontra na fase de execução, a busca de bens em face da pessoa jurídica nem sempre obtém resultados positivos.

Nesse sentido, surgem algumas dúvidas: o (ex) sócio poderá ser incluído no polo passivo da lide caso a empresa não quite o débito na fase de execução? Existe prazo para essa inclusão no processo? A CLT disciplina tal questão? E, mais, qual o posicionamento jurisprudencial sobre a matéria?

Por certo, considerando a polêmica sobre o assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na Coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur[1], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, após o a advento da Lei 13.467/2017, foi inserido na CLT o artigo 10-A [2] que preceitua que os sócios retirantes poderão responder de forma subsidiária pelos débitos da sociedade. Entretanto deverá ser obedecida a seguinte ordem de preferência: (i) a empresa devedora; (ii) os sócios atuais; e (iii) os sócios retirantes. Ainda, o parágrafo único do referido disposto legal [3] dispõe que em caso de comprovação de fraude na alteração societária a responsabilidade do sócio será solidária.

De outro norte, os artigos 1.003 [4] e 1.032 [5] do Código Civil também abordam a temática no sentido de que o ex-sócio responderá pelos débitos da sociedade pelo período de até dois anos, depois de feita a averbação da modificação na sociedade no órgão competente.

A respeito da temática, oportunos são os ensinamentos de Rafael Guimarães, Ricardo Calcini e Richard Wilson Jamberg, na clássica obra Execução Trabalhista na Prática, publicada pela Editora Mizuno [6]:

“A questão do sócio retirante sempre esteve presente nas execuções trabalhistas, pois, não raro, a única pessoa que tem algum patrimônio que possa responder pelo crédito exequendo é o sócio que se retirou da sociedade.

No entanto, antes da reforma trabalhista, a questão era analisada levando-se em conta a limitação temporal da averbação da retirada do sócio do contrato social, considerando-se como tal marco a data de distribuição da ação trabalhista e não a data da inclusão do sócio da execução, e ainda, a contemporaneidade da prestação de serviços do exequente e o período em que o sócio fazia parte do quadro societário, com divergência quanto ao alcance e natureza da responsabilidade, pois havia entendimento de que a responsabilidade era solidária e pela totalidade do crédito, ao passo que outra corrente entendia ser a responsabilidade subsidiária e alcançava apenas o período que o sócio se beneficiou da mão de obra daquele trabalhador.”

À vista disso, antes da alteração promovida pela lei reforma trabalhista, na prática havia discussão na doutrina e na jurisprudência quanto à aplicabilidade dos dispositivos do Código Civil (artigos 1.003 e 1.032). Para alguns, com a saída do sócio, este responderia por dois anos, havendo a discussão quanto à necessidade de averbação no órgão competente; para outros, bastaria que o sócio integrasse o quadro societário, na época da prestação de serviços pelo trabalhador, para a sua responsabilização.

Entrementes, o entendimento que até então vigorava era no sentido de que, se o sócio se beneficiou da mão de obra no período em que fazia parte da sociedade, não haveria que se falar em ausência de responsabilidade, uma vez que este trabalhador teria gerado lucros no período em que fazia parte da empresa. Vale dizer, o sócio poderia ser responsabilizado, ainda que o trabalhador tivesse saído há mais de 2 anos da sociedade.

Nesse contexto, o novo artigo 10-A da CLT disciplinou o que já vinha acontecendo no cotidiano forense, ou seja, conquanto o resultado da execução fosse infrutífero, o redirecionamento dos atos executivos poderá se voltar gora em relação aos sócios, sendo que primeiro são incluídos no polo passivo os atuais sócios, para somente depois incluir os sócios retirantes.

Aliás, no passado, para que fosse feita essa inclusão no polo passivo da execução, por meio do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, era utilizada a teoria menor calcada no artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor [7]. Com isso, o ex-sócio poderia ser incluído até mesmo de ofício pelo juiz ou mediante simples requerimento da parte, após a demonstração de que ele, de fato, integrava a sociedade.

Atualmente, pós lei da reforma trabalhista, para que o sócio retirante seja incluído no polo passivo da ação, na fase de execução, se faz necessária a abertura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica — IDPJ, previsto no artigo 855-A da CLT [8].

Limite do prazo

De mais a mais, a partir da vigência da Lei 13.467/2017, pacificou-se o entendimento jurisprudencial quanto ao limite do prazo para fins de responsabilização do sócio retirante. De igual modo, exceto nos casos de fraude, o encargo pelas dívidas da sociedade ao sócio será subsidiário, obedecendo-se ainda a ordem de preferência.

Outro ponto que merece atenção é que, via de regra, na Justiça do Trabalho a instauração do IDPJ se dá com base nos documentos emitidos pela Junta Comercial, a exemplo da ficha cadastral que traz o quadro societário da companhia. Todavia, é preciso se atentar ao fato de que a empresa pode ter sofrido modificações e alterações societárias.

Nesse diapasão, uma análise açodada da documentação pode ensejar a inclusão indevida de pessoa estranha à lide, mesmo tendo ocorrido o seu desligamento da sociedade há anos. Da mesma forma, pode haver restrições nos bens dessa pessoa, mediante a utilização das ferramentas eletrônicas utilizadas pelo Poder Judiciário, com prejuízos irreparáveis.

Em arremate, sabe-se que um dos maiores gargalos processuais é justamente a fase de execução, tanto que no TRT-SP da 2ª Região, por exemplo, a taxa de congestionamento da execução processual para o ano de 2022 era de 63,05% [9], de modo que uma das metas da Justiça do Trabalho neste 2024 é a redução dessa taxa [10].

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[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] CLT, Art. 10-A. O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência:

I – a empresa devedora; II – os sócios atuais; e III – os sócios retirantes.

[3] Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato.

[4] CC, Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade. Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

[5] CC, Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.

[6] Execução trabalhista na pratica – Leme., SP. Mizuno, 2021 – página 386.

[7] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (…). § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[8] Art. 855-A.  Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil.)

[9] Disponível em https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/taxa-de-congestionamento-da-execucao-processual-cai-de-90-para-63. Acesso em 8.5.2024.

[10] Disponível em https://www.csjt.jus.br/web/csjt/-/conhe%C3%A7a-as-metas-da-justi%C3%A7a-do-trabalho-para-2024#:~:text=JUSTI%C3%87A%20DO%20TRABALHO%3A%20Reduzir%20em,fase%20de%20execu%C3%A7%C3%A3o%3A%2065%25.&text=TRIBUNAL%20SUPERIOR%20DO%20TRABALHO%3A%20as,at%C3%A9%2031%2F12%2F2021. Acesso em 8.5.2024.

Fonte: Conjur

Projeto de lei busca aumentar prazo decadencial em casos de violência doméstica

O Projeto de Lei nº 1.713, de 2022, que busca alterar o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), prevê prazo maior para representação criminal em contexto de violência doméstica e tem pareceres favoráveis no Congresso Nacional.

Fruto das pesquisas de várias mulheres de diversas áreas de atuação, o PL 1.713, idealizado por estas subscritoras e minutado pela Comissão Nacional da Mulher Advogada Criminalista da Abracrim (Abracrim Mulher), encontra-se com parecer favorável na Comissão da Defesa dos Direitos da Mulher, na Câmara dos deputados.

Aprovado em decisão terminativa na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o PL busca ampliar o prazo decadencial de seis para 12 meses para o exercício da “representação” e a propositura de “queixa-crime”, em casos de violência doméstica.

Tempo hábil

Considerando o ciclo de violência e toda a estrutura patriarcal existente na sociedade, a pretendida alteração legislativa é de suma relevância, pois permitirá que mulheres vítimas de violência doméstica tenham tempo hábil para buscar o apoio do sistema de justiça criminal sem atropelar seu próprio tempo.

Além disso, o projeto leva para a sociedade uma maior compreensão sobre a complexidade do ciclo de agressão sofrido pelas mulheres vítimas de violência doméstica, ciclo muitas vezes não compreendido, o que gera ainda mais sofrimento e preconceito, impondo às mulheres vítimas de violência ainda mais sofrimento e violência.

Acréscimo

A redação final aprovada no Senado Federal acresce o parágrafo único ao artigo 103 do Código Penal, passando a vigorar com a previsão de que para os crimes que se processam mediante representação criminal, no contexto de violência doméstica e familiar contra pessoa do gênero feminino, a ofendida decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 12 (doze) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime.

No que se refere às alterações previstas na Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), temos o acréscimo do artigo 16 – A que de fato aumenta para 12 (doze) meses o prazo para o exercício do instituto da representação pela vítima em situação de violência doméstica e familiar.

Referidas propostas efetivarão alteração na Lei Processual, que passará a viger adequando-se à nova e necessária disposição legal.

Importante destacar emenda acolhida e incorporada ao relatório final da CCJ, que acrescenta o artigo 394-B ao Código de Processo Penal com a previsão da celeridade e prioridade na tramitação processual, e que também independerão, em todos os graus de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas, salvo em caso de má-fé.

A única discussão divergente no projeto é quanto à utilização dos termos “gênero feminino”, “sexo feminino”, “mulher”, porém, todos os pareceres até o momento são uníssonos quanto à necessidade da alteração da lei com a ampliação do prazo para representação criminal, permitindo, assim, que o sistema de Justiça resguarde direitos.

O projeto, que se encontra com um texto substitutivo devido às emendas apresentadas e incorporadas ao texto, após apreciação conclusiva nas comissões, vide artigo 24, II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, retornará ao Senado Federal, onde a casa originária decidirá pela manutenção das alterações realizadas na Câmara dos deputados, ou pela manutenção do texto aprovado pela casa iniciadora.

Ciclo da violência

Vale mencionar que o maior estudo de referência no mundo para compreensão do impacto da violência doméstica na mulher, foi realizado pela psicóloga clínica e forense norte-americana Eleonor E. A. Walker (2017).

Eleonor identificou em pesquisa de campo realizada com cerca de 1.500 mulheres, um padrão de abuso da mulher, que a pesquisadora cunhou como “ciclo da violência doméstica”, para se referir à repetição da violência doméstica em que a mulher está inserida.

O resultado da pesquisa apontou os reflexos na vida e na saúde mental da mulher, além de descrever os mecanismos psíquicos que justificam a enorme dificuldade da mulher em sair destas situações.

Segundo a justificativa apresentada no texto original, a intervenção precoce e mais efetiva em níveis menores de violações pode interromper ou amenizar a evolução do ciclo da violência, vindo a prevenir crimes menores que se agravam e desaguam no feminicídio. Dilatar o prazo decadencial é intervir em fases anteriores da violência e precursoras do feminicídio.

Sobre a complexidade do ciclo da violência doméstica e a perda de prazos decadenciais pelas vítimas imersas em situação de violência doméstica, Izabella Borges tratou do tema nesta coluna em duas oportunidades, em janeiro de 2021 [1], em texto escrito em coautoria com Bruna Borges, e em fevereiro do mesmo ano [2].

A minuta do projeto de lei foi elaborada por estas subscritoras, Izabella Borges – idealizadora da ideia – e Ana Paula Trento – presidente Nacional da Abracrim Mulher, além de Izadora Barbieri – diretora legislativa da Abracrim Mulher Nacional –, Layla Freitas – secretária-geral da Abracrim Mulher Nacional –, Simone Cabredo – diretora de assuntos Acadêmicos da Abracrim Mulher Nacinal – e pela psicanalista e psicóloga Forense Tamara Brockhausen.


[1] https://www.conjur.com.br/2021-jan-20/escritos-mulher-decadencia-ambito-violencia-domestica-prazo-fatal/ (acessado em 14 de maio de 2024).

[2] https://www.conjur.com.br/2021-fev-24/escritos-mulher-violencias-genero-instituto-decadencia-parte-dois/

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Três anos de vigência da Lei do Superendividamento. O que mudou?

No dia 2 de julho de 2024, a Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) fará três anos de sua publicação e vigência. Depois do Código de Defesa do Consumidor, foi a lei mais importante que já tivemos em nosso país. E por quê? Porque dificilmente tivemos uma lei que possua a capacidade de alterar significativamente e de modo tão direto a vida de quase 1/5 da população de um país (quantidade de superendividados no Brasil) [1].

É sabido que o superendividamento causa uma exclusão social, acarretando sérias consequências sociais como desemprego, divórcio, baixa escolaridade dos filhos nas famílias atingidas, aumento de moradores de rua, aumento da criminalidade, abuso de substâncias ilícitas, suicídios, etc. [2][3]

Além da mudança drástica que a lei pode promover na vida de 20% da população e da repercussão social gerada pela solução dessa “doença social”, a lei instituiu um estatuto geral da concessão do crédito no Brasil, com especificações claras de deveres a serem observados pelo concedente de crédito, de modo a respeitar a boa-fé objetiva (informação, transparência, lealdade, etc) e o princípio do crédito responsável, em que o crédito não pode mais ser concedido de maneira aleatória e irrestrita, havendo responsabilidades na concessão, de modo a ajudar o cidadão/consumidor a manter uma vida digna (não entrando no superendividamento).

Dessa forma, considerando que somos um país de endividados (que necessita de créditos para aquisição de bens em vez de poupar para adquirir), a lei, ao tratar da concessão de crédito, sobretudo com o seu viés preventivo, tem uma capacidade de influenciar a vida de quase todos os brasileiros (se não, de todos!).

Mas passados três anos, o que mudou?

Será que a lei conseguiu atingir o seu objetivo maior, prevenindo as situações de superendividamento e tratando os consumidores que se encontram nessa situação degradante de exclusão social?

Infelizmente a resposta é negativa.

Percebe-se que muito pouco foi feito (pelo menos considerando a expectativa que se tinha com relação a sua efetividade.)

Então, o que está faltando para que a lei consiga atingir a sua real finalidade, promovendo uma revolução na concessão do crédito e “curando/tratando” essa doença social chamada de “superendividamento”?

A dimensão social da lei

Primeiramente, é preciso conhecer a lei a fundo. Percebe-se, infelizmente, que muitos magistrados simplesmente desconhecem a lei e a sua correta aplicação. A lei do superendividamento trouxe um novo procedimental no tocante ao tratamento judicial (artigo 104-A do CDC). Assim, é preciso que os juízes e tribunais se atualizem, principalmente buscando entender a ratio da lei (que busca como finalidade, ao menos no tocante ao artigo 104-A, tratar o consumidor superendividado, resgatando a sua dignidade na sociedade).

São várias decisões de ações de repactuação de dívidas impondo requisitos inexistentes (como a necessidade de o plano de pagamento apresentado pelo consumidor na petição inicial contemplar o principal da dívida; a exigência de apresentação de todos os contratos celebrados quando é sabido que, na maioria das vezes, os contratos não são entregues aos consumidores; extinção da ação sem a realização da audiência conciliatória; necessidade de indicação de ordem cronológica das dívidas para conhecimento do procedimento; obrigatoriedade do consumidor apresentar o plano de pagamento na petição inicial, etc.).

Ao contrário do espírito da lei, percebe-se que o tratamento do consumidor superendividado, no âmbito judicial, só acontece de modo excepcional, quando, na verdade, uma vez superendividado, todo consumidor merece ser tratado (com a definição do plano de pagamento de acordo com a realidade da vida econômica do consumidor e de sua família – manutenção do mínimo existencial).

Nesse sentido, uma premissa é fundamental de ser melhor compreendida. O superendividamento causa exclusão social, causando enormes males sociais como os já citados. O tratamento do superendividamento passa, antes de mais nada, por uma solução social, de conotação coletiva e que precisa ser resolvida urgentemente.

Enquanto considerarmos o tratamento do consumidor superendividado como meramente uma questão humanitária, de respeito somente à pessoa do cidadão que busca o Judiciário para resolver os seus problemas financeiros, não teremos a dimensão correta para aplicarmos a lei de maneira efetiva.

O confronto a ser feito não é o direito de crédito X  dever de pagar (ao menos o principal) para que credores não tenham prejuízos, mas sim “tratar” o consumidor que superendividou, de modo a resgatar a dignidade do mesmo, evitando as mazelas advindas do superendividamento e que atingem a toda a sociedade [4].

Uma nova postura institucional

Um outro aspecto que precisa ser alterado é com relação à atuação mais efetiva dos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, principalmente os Procons, inseridos no artigo 104-C do CDC [5][6].

É necessário um novo agir destes órgãos. Realmente é um grande desafio! Atender 20% da população que está superendividada e que já merece o tratamento não é fácil, principalmente pensando em estrutura física, pessoal, logística, etc, sem falar que o tratamento é multidisciplinar, carecendo de outros profissionais para a sua realização (economistas, contadores, psicólogos, assistentes sociais, etc).

Ao mesmo tempo que é um grande desafio, é uma grande oportunidade de esses órgãos, principalmente os Procons, se estruturarem e assumirem o protagonismo em um problema que irá impactar profundamente toda a sociedade brasileira (principalmente considerando a resolução de várias mazelas sociais, como a diminuição dos moradores de rua, entre outros).

Mas como os Procons, que em sua grande maioria, não possuem servidores suficientes nem para os problemas cotidianos e estrutura compatível com um órgão de defesa do consumidor conseguirá dar vazão a esse enorme desafio, possibilitando o tratamento multidisciplinar de centenas e até milhares de consumidores em sua localidade?

Plataforma

Em artigo publicado aqui no ConJur e quando da minha participação no grupo de trabalho instituído pelo CNJ, defendi a necessidade do uso de uma plataforma, com utilização de banco de dados e uso da inteligência artificial.

Rememorando, trago as inúmeras vantagens que uma plataforma de tratamento do consumidor superendividamento implementada pelos Procons traria:

1) A possibilidade de a plataforma abranger todo um município ou estado (e até mesmo o país inteiro), sem necessidade de ter, necessariamente, um procon, defensoria pública ou ministério público na localidade;

2) A facilidade de o consumidor enviar todos os dados das dívidas (contratos), bem como inserir os dados dos custos de vida através de um site ou aplicativo, não precisando se deslocar presencialmente para solicitar o tratamento;

3) Possibilidade, caso o consumidor requeira ou a própria plataforma sugira, de atuação de um psicólogo ou assistente social, que poderá atender o consumidor de maneira online (pela própria plataforma);

4) Possibilidade de o consumidor, de modo fácil, através do celular, enviar uma denúncia de abuso na concessão do crédito (podendo enviar fotos, documentos, etc), e a plataforma notificar o fornecedor imediatamente da reclamação/denúncia (caso este fornecedor já esteja cadastrado). A participação do consumidor como “fiscal da concessão do crédito”, denunciando os abusos praticados no mercado, é importante para concretizarmos a fase preventiva da lei;

5) Possibilidade de o envio das intimações e/ou notificações dos credores pela própria plataforma, com comprovação de recebimento, não necessitando do envio de cartas por AR, gerando economia de tempo e custo;

6) Possibilidade de elaboração de um plano de pagamento automatizado, a partir dos dados inseridos pelo consumidor superendividado (dívidas e renda), com parâmetros do mínimo existencial, não necessitando de um profissional de economia para a realização de cada plano;

7) Possibilidade de a plataforma mostrar, com base no big data disponível, gráfico que indique propostas, considerando o credor e o tipo de dívida, com maiores chances de êxito;

8) A possibilidade, embora a lei não preveja, de o credor poder enviar uma proposta de pagamento (os termos em que aceitaria uma repactuação), mesmo antes da apresentação do plano de pagamento, gerando praticidade e transparência;

9) Possibilidade de realização de audiências assíncronas (as partes não precisam estar em contato ao mesmo tempo – simultaneamente), com o envio do plano de pagamento para todos os credores, possibilitando em um determinado prazo que cada um se manifeste pela anuência ou não e, em caso negativo, que esclareça as razões pelo não aceite do plano apresentado. Dentro deste prazo, cada credor terá tempo suficiente para avaliar os dados e a proposta enviada pelo consumidor, podendo aferir, por exemplo, a veracidade das informações.

10) A realização da audiência assíncrona é eficiente porque:

a) O consumidor e os credores não precisam se deslocar até a sede do procon ou defensoria pública para a realização da audiência;

b) Facilita a participação dos credores que não precisam manter representantes e advogados em cada cidade do país;

c) Possibilita um tempo para que os credores avaliem a veracidade das informações prestadas pelo consumidor;

d) Possibilita um tempo de análise do plano de pagamento por parte dos credores;

e) Evita o constrangimento de o consumidor estar por algumas horas sendo exposto aos credores;

f) Gera economia porque não necessita de estrutura física para as audiências globais e nem de servidores (conciliadores e mediadores) para os atos;

g) Em caso de aceite do credor ao plano de pagamento, é gerado automaticamente termo de acordo, não necessitando de servidor para redigir o termo;

h) Em caso de não aceite do credor ao plano, há possibilidade (em caso de convênio) de envio direto ao poder judiciário para o ajuizamento da ação de revisão e repactuação de dívidas (artigo 104-B) com atuação de um advogado ou defensor público;

11) Possibilidade de registro do resumo histórico da negociação, principalmente em caso de não acordo, para subsidiar o magistrado na definição do plano de pagamento compulsório (artigo 104-B), avaliando principalmente se o credor se portou com boa-fé ao tentar conciliar;

12) Possibilidade de acompanhamento do pagamento das prestações do plano acordado e/ou do plano compulsório instituído pelo magistrado.

13) A desjudicialização do tratamento do superendividamento. Sendo efetiva e com acesso facilitado o consumidor irá optar pelo tratamento extrajudicial, deixando o judiciário somente para as hipóteses de não acordo (plano judicial compulsório), gerando economia de custos para a sociedade, uma vez que o processo judicial é extremamente caro.

Assim, essas são algumas das inúmeras vantagens que o uso de uma plataforma pode proporcionar no tratamento do consumidor superendividado.

A contratação da plataforma poderia ser dar no âmbito estadual (com recursos do fundo estadual), disponibilizando o seu acesso para todos os residentes daquele estado da federação. Uma só contratação atendendo a todo o Estado. Assim, não seria preciso estruturar, física e pessoalmente, cada Procon de determinado estado para que possibilite o tratamento do consumidor superendividado de forma ampla e rápida.

Espera-se com isso que os Procons possam assumir, verdadeiramente, o protoganismo na resolução deste problema social, uma vez que envolve a temática da qual é expert e para o qual foi criado: atuar nas relações de consumo, protegendo os consumidores que precisam de sua ajuda.


[1] Após dois anos de histórica lei, superendividamento salta e especialistas procuram soluções. Consulta em 08/05/24: https://valorinveste.globo.com/produtos/credito/noticia/2023/07/19/apos-dois-anos-de-lei-historica-superendividamento-da-salto-no-brasil-e-especialistas-procuram-solucoes.ghtml

[2] LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. Ed. Revista dos Tribunais, 2014, pg.27.

[3] A pesquisa realizada em 2018 pela Confederação Nacional de Dirigentes e Logistas (CNDL) e SPC Brasil intitulada “Inadimplência: Impactos nas Emoções”, demonstrou que as pessoas inadimplentes há 90 dias tiveram vários sentimentos maléficos como ansiedade, estresse, angústia, culpa, depressão, tristeza, desânimo, vergonha, sentimentos de derrota e fracasso, falta de paciência, irritação, entre outros. Disponível em: https://www.spcbrasil.org.br/wpimprensa/wp-content/uploads/2018/10/analise_perfil_inadimplente_emocoes.pdf. Acesso em: 11/11/2021.

[4] Como base nesta premissa e no princípio da dignidade da pessoa humana é que defendemos que o plano de pagamento pode conter valores abaixo do principal ou até mesmo que o consumidor não pague nada durante o período de 5 anos, caso não tenha condições de efetuar o pagamento de nenhuma prestação.

[5] O tratamento do consumidor superendividamento está sendo feito majoritariamente pelo judiciário (art. 104-A) porque os órgãos do SNDC não têm se estruturado para realizar este desafio.

[6] O art. 104-C não constava inicialmente do Projeto de Lei dos juristas. Foi incluído, logo no primeiro relatório no Senado Federal por mim e pela Dra. Sandra Lengruber, com base nas sugestões do Brasilcon.

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CNJ coordena programa de emissão de documentos para população vulnerável

O corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, participou, nesta terça-feira (13/5), da abertura simbólica da 2ª Semana Nacional do Registro Civil — “Registre-se!”, evento que se uniu ao Mutirão de Atendimento à População em Situação de Rua (Pop Rua Jud), na cidade de São Paulo.

Salomão durante a abertura dos trabalhos nesta terça

A Semana Nacional do Registro Civil é uma iniciativa da Corregedoria Geral da Justiça dedicada à emissão de documentação civil básica à população socialmente vulnerável.

A ação integra o Programa de Enfrentamento ao Sub-registro civil e de ampliação ao acesso à documentação básica por pessoas vulneráveis, criado pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Em São Paulo, o Registre-se! é organizado pelo Tribunal de Justiça paulista, enquanto o Pop Rua Jud é promovido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Eles acontecem em conjunto até a próxima sexta-feira (17/5), na Praça da Sé, entre as 9h e as 15h.

O objetivo das iniciativas, em conjunto, é oferecer apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade por meio de regularização de documentos, inclusão em programas sociais, orientações jurídicas, atendimento de saúde e alimentação etc.

Enquanto o Registre-se! oferece serviços de emissão de documentos como RG, CPF, certidões, título de eleitor, certificado de reservista e carteira de trabalho digital, o Pop Rua Jud fornece suporte aos moradores de rua em diversos assuntos, como ajuizamento de ações e questões assistenciais, previdenciárias, trabalhistas, criminais e de saúde.

Outros órgãos e entidades também aderiram às iniciativas. Dentre eles, o Ministério Público paulista, a Defensoria Pública estadual, a Defensoria Pública da União, a OAB-SP, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, o Governo de São Paulo, a Prefeitura de São Paulo, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o Exército e algumas organizações não governamentais (ONGs).

Também participaram da abertura o desembargador Fernando Antonio Torres Garcia, presidente do TJ-SP; o desembargador militar Enio Luiz Rossetto, presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo; e o ministro Paulo Sérgio Domingues, do Superior Tribunal de Justiça.

O Registre-se! está sendo promovido nos demais estados. As Corregedorias dos tribunais estaduais são os órgãos responsáveis pela organização da Semana Nacional do Registro Civil em suas respectivas localidades.

No Rio Grande do Sul, a Corregedoria Nacional de Justiça criou uma força-tarefa especial, devido ao impacto das enchentes ocorridas nos últimos dias. A ideia é ir até os abrigos e verificar quais pessoas estão sem o documento de registro de nascimento, para emitir uma segunda via. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SP.

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Conceito de valor de mercado na reforma pode gerar judicialização

Apresentado pelo governo federal ao Congresso no fim do último mês, o projeto de regulamentação da reforma tributária prevê algumas situações nas quais a base de cálculo da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) — futuros tributos, ainda não implementados — será o valor de mercado dos bens ou serviços.

O §4º do artigo 12 da proposta diz que o valor de mercado é “o valor praticado em operações comparáveis entre partes não relacionadas” — ou seja, partes sem vínculo societário. No entanto, tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico avaliam que essa definição de valor de mercado pode gerar discussões administrativas e judiciais.

Contexto

A base de cálculo é a grandeza econômica sobre a qual se aplica a alíquota do tributo, para calcular a quantia a ser paga pelo contribuinte.

Conforme diz o artigo 12 do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, a base de cálculo do IBS e da CBS é o valor da operação, “salvo disposição em contrário prevista nesta lei complementar”.

Já o §4º estabelece que a base de cálculo será o valor de mercado dos bens ou serviços (em vez do valor da operação) nas seguintes hipóteses: falta do valor da operação; operação sem valor determinado; valor da operação não representado em dinheiro; e operação entre partes relacionadas.

Apesar da definição de valor de mercado contida no mesmo parágrafo, o advogado Thiago Amaral, sócio da área tributária do escritório Demarest, afirma que podem existir discussões sobre esse conceito, “a depender de eventual regulamentação”.

Paralelo com o IPI

Amaral lembra que, historicamente, definições do tipo geram divergências, como ocorreu com o valor tributável mínimo do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

A legislação do IPI determinava que o valor tributável não poderia ser menor do que o preço no mercado atacadista da “praça do remetente” quando o produto era enviado a outro estabelecimento da mesma empresa ou outra empresa vinculada a ela.

Fabio Florentino, sócio do Demarest, lembra que o termo “praça” era muito abrangente e causou décadas de discussão. Foi apenas em 2022 que a Lei 14.395 definiu praça como “o município onde está situado o estabelecimento do remetente”.

Segundo Amaral, sua preocupação é com o risco de retomada de discussões sobre conceitos “subjetivos ou um pouco vagos”, e consequentes disputas.

Valor questionável

O advogado destaca que o Fisco pode ter “alguma dificuldade em aceitar o valor dito de mercado do bem”. Ou seja, se os conceitos são muito abertos, o Fisco pode, por exemplo, argumentar que o valor de mercado é maior do que o apontado.

Também é possível que existam variações do valor de mercado conforme o “local da ocorrência da operação”, já que o Brasil tem dimensões continentais.

“É importante que esse tipo de tema tenha sua definição bastante explorada e esgotada para que se evite a ampliação ou restrição de conceitos na determinação do valor de mercado, a ponto de gerar discussões”, assinala Amaral.

Ele espera que haja uma regulamentação melhor para resolver isso. Por enquanto, o advogado tem o receio de que, no futuro, a definição subjetiva gere uma grande judicialização.

Para Florentino, mesmo com uma definição geográfica (como no caso recente do IPI), não existe uma fórmula eficiente para dizer quais são as “fontes efetivamente comparáveis”.

Ele cita o vinho como exemplo: “Duas garrafas de vinho contendo a mesma quantidade, produzidas com a mesma uva, na mesma época e na mesma região terão necessariamente o mesmo preço? Diria que provavelmente não”.

Segundo o advogado, “não são raras as vezes em que poderemos ter uma determinada garrafa sendo vendida por algumas dezenas de reais, enquanto outra — aparentemente semelhante — é negociada por até milhares de reais”.

A ideia geral é que o valor de mercado de um item pode não ser tão uniforme.

Outra possibilidade é a operação de uma máquina que só tenha uma espécie no Brasil. Nesse caso, faltariam informações para chegar a um valor de mercado justo.

Florentino entende a preocupação de criar uma norma “que anteveja formas de definir preços para fins de exigência do tributo”, mas ressalta que “há um relevante risco de judicialização caso se deixe uma expressão aberta”, como a usada no PLP 68/2024.

Na sua visão, “o tema poderá ser objeto de muitos questionamentos, seja pelos contribuintes no momento de atribuir a base de cálculo em determinadas operações, seja no caso de as autoridades fiscais ‘desafiarem tais valores’ por meio de comparações, eventualmente, questionáveis”.

A advogada Ariane Guimarães, sócia de Tributário da banca Mattos Filho, lembra a existência de “operações não comparáveis, o que faz com que se presuma, muitas vezes, os aspectos concretos da operação, gerando questionamentos”. Por isso, ela prevê contencioso sobre o tema.

Sócio da área Tributária do Bichara Advogados, Murillo Estevam Allevato Neto também considera que o valor de mercado ainda não está definido. O problema, segundo ele, não é a expressão “valor de mercado” em si, mas os critérios para apurá-lo.

“Todo mundo sabe que o valor de mercado é o preço pelo qual um bem seria negociado entre partes não dependentes.”

Segundo o tributarista, é fácil identificar esse valor em casos de commodities ou bens com preços divulgados no mercado. Mas também há casos nos quais as empresas “negociam bens que não possuem similares no mercado, com determinado período de utilização”. Assim, “sua mensuração não é fácil”.

De acordo com Allevato Neto, é importante estabelecer quem terá a função de provar que o preço está fora ou dentro dos parâmetros de mercado e quais métodos podem ser usados para isso.

“É possível apresentar laudo de avaliação por empresa independente? É possível utilizar os métodos de preços de transferência estabelecidos para legislação do Imposto de Renda?”, indaga o tributarista. “Isso tudo deve ser definido pelo regulamento.”

Quando definir?

Thiago Amaral destaca que o projeto de lei complementar, embora trace “linhas mais específicas do que a Constituição”, ainda delega muitas passagens do texto a um regulamento futuro.

Para ele, a lei complementar já poderia ser mais específica — como fez, por exemplo, ao criar uma lista de bens de uso e consumo pessoal, que não darão direito a créditos de IBS e CBS.

“Dentro dessas discussões de regulamentação de lei complementar e distorção de conceitos, é importante que não se deixe muita margem para discussão”, afirma Amaral.

Allevato Neto, por sua vez, acredita que a lei complementar até poderia tratar do assunto, mas ele não considera isso algo fundamental. Na sua visão, a norma deve estabelecer apenas as diretrizes gerais do IBS e da CBS.

Por outro lado, “tendo em vista que a definição do preço de mercado interfere na base de cálculo do tributo”, o advogado considera que o tema também não deveria ser tratado em uma norma infralegal.

O ideal, segundo ele, seria a regulamentação por meio de uma lei ordinária, “após a matéria ser submetida a consulta pública, de modo que a sociedade civil possa participar de sua elaboração”.

Já Florentino entende que o tema pode ser tratado por lei ordinária ou por regulamento infralegal. Mas, “se o regulamento extrapolar o razoável em termos dos critérios de comparabilidade, certamente teremos um longo contencioso pela frente”.

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Dívida prescrita deve ser averbada na matrícula de imóvel, decide juiz

Por entender que os réus admitiram o não pagamento das taxas de condomínio, o juiz Mucio Monteiro Magalhães Junior, da 3ª Vara Cível da Comarca de Betim (MG), julgou procedente uma ação ajuizada por um residencial para declarar a existência de dívida prescrita e ordenar sua inclusão na matrícula de um apartamento.

Segundo os autos, os proprietários do apartamento deixaram de pagar as taxas de condomínio entre maio de 2015 e março de 2016.

Após cinco anos, as dívidas prescreveram, encerrando a possibilidade de cobrança judicial das taxas. Houve uma tentativa de negociação, que não prosperou. Diante disso, o condomínio levou o caso à Justiça.

Na ação, o residencial pediu que, apesar da prescrição, a existência da dívida fosse reconhecida judicialmente e, na sequência, averbada na matrícula do apartamento junto ao cartório de registro de imóveis. Os proprietários foram citados no processo, mas não se manifestaram. Com isso, foram julgados à revelia.

Silêncio eloquente

Para o juiz Magalhães Junior, a falta de resposta dos réus leva à conclusão de que eles reconheceram a existência da dívida e que os fatos alegados pelo autor são verdadeiros.

Em seguida, o juiz analisou a convenção do condomínio e uma planilha que detalhou a situação dos réus. Segundo ele, os débitos não só ficaram comprovados como, de fato, estavam prescritos.

Magalhães Junior também deu razão ao residencial ao lembrar que o Supremo Tribunal Federal entende que é válida a cobrança de “contribuições associativas” pelo condomínios, mesmo em relação a proprietários que não estejam associados.

“Ante o exposto e por tudo mais que dos autos consta, julgo procedente o pedido inicial”, completou ele, ordenando o envio de ofício ao cartório de imóveis para que a existência do débito prescrito seja registrada na documentação do apartamento.

O condomínio foi representado pelo escritório Carneiro Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5003925-92.2023.8.13.0027

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Com texto defasado, prisão temporária envelhece mal e desafia sistema cautelar

A mudança legislativa promovida em 2019 pelo pacote “anticrime” igualou, na prática, duas possibilidades de detenção no curso da investigação policial: a prisão preventiva e a temporária. Isso porque o artigo 311 do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação:

Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Prisão temporária segue sendo criticada por parte da comunidade jurídica – Freepik

Dessa forma, nas apurações policiais cabe tanto o pedido de prisão temporária quanto o de preventiva. Há, porém, um grave problema: além de idêntica a um tipo de preventiva, a lei de prisões temporárias (Lei 7.960) se tornou obsoleta e inaplicável em determinados crimes, em razão de nomenclaturas antigas e das determinações impostas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de uma ação que questionou sua constitucionalidade.

Em 2022, o STF delimitou a aplicação desse instituto, que era — e continua sendo — visto por parte da comunidade jurídica como uma extensão legal da “prisão para averiguações”. No julgamento, a corte rechaçou essa hipótese e reafirmou as semelhanças entre a preventiva e a temporária, utilizando critérios da primeira para formatar a segunda.

 

 

 

A principal crítica, todavia, ainda é sobre a “razão de existir” da prisão temporária. Para seus detratores, ela é incompatível com o conceito de sistema cautelar, que é baseado na presunção de inocência, ainda que se preserve a possibilidade de um indivíduo ser preso antes do fim do processo.

Nas análises mais otimistas coletadas pela revista eletrônica Consultor Jurídico, especialistas dizem que a prisão temporária ainda tem sua importância no decorrer da investigação, mas reconhecem que as mudanças no texto da lei diminuíram seu alcance.

 

Justificativas genéricas

Regulamentada pela Lei 7.960, que vigora desde 1989, a prisão temporária teve origem em uma medida provisória assinada pelo então presidente José Sarney. A norma foi inserida no ordenamento brasileiro com justificativas genéricas como o combate à criminalidade e o suposto aumento do número de crimes à época.

“A prisão temporária já surge com a marca da inconstitucionalidade, pois nasce de uma medida provisória, um meio ilegítimo de criar norma processual penal. Mas acabou se consolidando, em que pese o vício formal. Sem embargo, materialmente ela também se mostrou inconstitucional, pois virou uma prisão para obter confissão/colaboração do investigado, em flagrante violação da presunção de inocência e do direito de não autoincriminação”, afirma o criminalista Aury Lopes Jr., um crítico da prisão temporária.

O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, segue pelo mesmo caminho: “Nós temos um vício de origem, de inconstitucionalidade formal. Ao meu juízo, isso não está superado.”

“Trata-se de um instituto ultrapassado, que mesmo quando introduzido no ordenamento sempre pareceu um ‘corpo estranho’, porque não é um instituto compatível com a presunção de inocência e com o direito a não se autoincriminar, garantias constitucionais consagradas”, diz o vice-presidente da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Leonardo Sica.

 

A origem e os vícios

Antes da Carta de 1988, a prática da prisão “para averiguações” era comum nas polícias — para elas, nada mais era do que uma forma de detenção para pressionar o indivíduo a “colaborar” com a investigação, seja com um depoimento, seja para produção de provas ou outra finalidade policial. A doutrina, todavia, diverge quanto à institucionalização da prisão “para averiguações” por meio da sanção da lei da prisão temporária, em 1989.

 

 

No Supremo, mesmo antes da tese firmada em 2022, houve diversos questionamentos à validade da norma. A decisão mais detalhada, no entanto, foi mesmo a de dois anos atrás, quando prevaleceu o voto do ministro Edson Fachin, que determinou que a prisão temporária tem de seguir cinco requisitos cumulativos:

“1) For imprescindível para as investigações do inquérito policial; 2) Houver fundadas razões de autoria ou participação nos crimes dispostos na lei aprovada em 1989; 3) Justificativa de fatos novos; 4) For adequada à gravidade concreta do crime; e 5) Quando não for suficiente a imposição de medidas cautelares diversas”.

Na ação que tramitou no STF, houve discussões sobre a compatibilidade do instituto com a Constituição e, no final, a solução foi torná-lo “mais rígido”, adotando requisitos que eram típicos das prisões preventivas.

O professor e procurador da República Andrey Borges de Mendonça, estudioso do tema, tem ressalvas à argumentação de que a prisão temporária fere a presunção de inocência, mas acha a discussão válida. Ele cita outro ponto importante do debate: o standard (qualidade) das provas, fragilidade constante no Direito Penal brasileiro que fica mais evidente nos casos de prisão temporária.

“É uma decisão valorativa do legislador. Eles pensaram: ‘Como estamos no início de uma investigação, não temos provas suficientes em princípio, (temos) menos indícios de autoria’. Faz parte de uma investigação. Mas a prisão pode se tornar necessária por um determinado período de tempo”, diz Mendonça.

“É uma discussão. Se pode prender alguém com uma prova (com padrão) ‘mais baixa’ do que da prisão preventiva? Isso não é uma forma de burlar a temporária? Eu não defenderia isso, mas compreendo que é uma argumentação razoável.”

 

É raro, mas acontece muito

Na prática, no entanto, há uma quantidade considerável de casos em que não são observadas todas essas condições impostas pelo STF de forma cumulativa. Além disso, os requisitos são subjetivos e carecem de maior fiscalização (como no caso das preventivas), resultando inevitavelmente em ilegalidades.

“Hoje, o Estado possui inúmeros instrumentos para que se possa fazer uma investigação bem mais adequada sem a necessidade da prisão temporária. Essa medida é nada mais, nada menos do que um instrumento intimidador”, diz o advogado Fabio Menezes Ziliotti.

Um caso recente ilustra esse problema: em abril, um professor foi preso por um crime que havia sido cometido a 200 quilômetros de sua casa e de seu trabalho. A prisão temporária foi decretada apenas com base no reconhecimento fotográfico do homem pela vítima, e o Tribunal de Justiça de São Paulo soltou o acusado após pedido de Habeas Corpus.

Como se nota em outros casos semelhantes (HC 192.778, por exemplo), o reconhecimento pessoal ou fotográfico, que não tem eficácia comprovada e é questionado inclusive por membros do Ministério Público, é utilizado como “fundada razão de autoria” e respalda detenções temporárias.

Outra situação criticada por advogados é a prisão temporária que visa ao depoimento, o que é considerado ilegal. No dia a dia, todavia, é difícil fiscalizar se, de fato, o investigado é instado a depor logo após o cumprimento da medida cautelar.

Ziliotti propõe uma reflexão para demonstrar o tamanho do problema e a ineficácia da prisão temporária: “Quando o acusado é preso temporariamente, ele tem direito ao silêncio. E esse silêncio não pode ser utilizado em prejuízo do mesmo. Por isso a prisão temporária é desnecessária no Estado de Direito”.

Mesmo com o respaldo da lei pelo Supremo, “acredito que ela tem uma convivência que não merece prestígio porque não traz, concretamente, juízo de cautelaridade”, afirma Renato Vieira.

“O Supremo Tribunal Federal, para dizer que a lei de prisão temporária é constitucional, teve de se valer de argumentos próprios e específicos de prisão preventiva”, complementa o presidente do IBCCRIM.

A ideia da prisão para averiguação acabou rechaçada pela corte, mas a sua natureza cautelar e a própria eficácia do instituto não foram devidamente esclarecidas. “Se desde 1989 havia um vício de origem por ela suceder uma medida provisória, e havia o risco de ela ser vista como sucedâneo de prisão para averiguação, no frigir dos ovos, a prisão temporária não tem autonomia para subsistir em um regime de cautelaridade”, diz Vieira.

 

Útil, porém defasada

Logo que o Supremo estabeleceu as novas diretrizes para a prisão temporária, de certa forma tentando afastar do mecanismo a pecha de “prisão para averiguações”, o procurador Galtiênio da Cruz Paulino questionou, em artigo publicado na ConJur“Afinal, ainda existe prisão temporária?”.

Para Paulino, que também é membro-auxiliar na Assessoria Criminal do Superior Tribunal de Justiça, a existência de uma vertente da prisão preventiva “muito parecida” com a temporária esvaziou o instituto, mas ele ainda permanece com suas funções.

“Em determinados casos é necessária a prisão do investigado para colheita de provas relacionadas àquele fato, tanto que a prisão temporária tem tempo, e se o objetivo é atendido, a pessoa pode sair. A intenção em si não é forçar que alguém venha a tomar alguma outra atitude”, diz ele, discordando da argumentação de que o instituto é utilizado para coagir os investigados.

Paulino, no entanto, endossa a crítica de que o texto está defasado. Para ficar em um exemplo, a lei cita “quadrilha e bando” quando já há lei específica sobre organizações criminosas.

“O instituto e as nomenclaturas dispostas na lei são arcaicos”, diz o advogado Eugênio Malavasi, que não entende por que a prisão temporária permanece no ordenamento e sendo aplicada pelos juízos.

“Já se pode decretar prisão preventiva no curso das investigações, para garantir a investigação. Portanto, tornar-se-á despiscienda a lei da prisão temporária.”

Galtiênio Paulino cita mais um exemplo de obsolescência: “Se pegarmos na literalidade em si, alguns dispositivos já não poderiam ser aplicados. Se a gente pegar a decisão do Supremo, em tese, não caberia mais prisão temporária para crimes de organização criminosa, por exemplo”.

O procurador também destaca que, após a decisão do Supremo, não cabe mais o uso do mecanismo em determinados crimes que não têm pena maior do que quatro anos, tendo em vista que o tribunal determinou a aplicação do artigo 313 do Código de Processo Penal (que estabelece os parâmetros da prisão temporária).

“Tem alguns crimes na Lei 7.960 em que a pena é menor do que quatro anos. Ou seja, em tese, já que o Supremo mandou aplicar o artigo 313, não caberia mais a temporária para esses crimes”, diz Paulino, citando o caso do crime de sequestro e cárcere privado, que, pela lei, também não é passível de decretação de temporária.

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Juiz reconhece direito de dependente químico a auxílio do INSS

O trabalhador que tem dependência química e desenvolve transtornos mentais e comportamentais por causa do uso de drogas tem direito ao auxílio por incapacidade temporária, desde que seja segurado e esteja dentro da carência necessária no momento do requerimento do benefício.

Com base nesse entendimento, o juiz José Luis Luvizetto Terra, da 4ª Vara Federal de Passo Fundo (RS), reconheceu o direito de um segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ao benefício desde a data em que fez o requerimento administrativo.

No caso concreto, o autor da ação estava internado em um hospital psiquiátrico para reabilitação e não teve condições de comparecer à perícia médica marcada pelo INSS — que deve ser feita presencialmente.

Uma perícia posterior constatou que o trabalhador sofre de transtornos mentais e comportamentais provocados pelo uso de cocaína — síndrome de dependência. Em razão dessa patologia, ele estava temporariamente incapacitado para o trabalho desde 10 de maio 2023.

Ausência justificada

Na decisão, o juiz destacou que o autor comprovou que não compareceu à perícia por estar internado e que, por isso, deveria receber os valores referentes ao benefício desde 17 de maio de 2023 — quando fez o requerimento administrativo.

O julgador também entendeu que a data indicada pela perícia para o fim do pagamento do benefício (10 de janeiro de 2024) vedou o direito do autor de pedir a prorrogação do auxílio administrativamente. Por isso, ele determinou a sua implantação e manutenção por mais 60 dias.

“Registro que é facultado à parte demandante, caso entenda persistir sua incapacidade para o trabalho, requerer a prorrogação do auxílio por incapacidade temporária, na forma prevista no regulamento, ocasião em que será submetida a uma nova perícia administrativa, ficando o amparo automaticamente prorrogado até o dia da avaliação médica.”

O autor foi representado pelos advogados Jane Marisa da SilvaGuilherme Henrique Santos da Silva e Luccas Beschorner de Souza, do escritório JMS Advogados.

Processo 5005900-49.2023.4.04.7104

Fonte: Conjur

Dia das Mães trabalho invisível e dupla jornada

A ideia de comemorar o Dia das Mães surgiu nos Estados Unidos, no início do século 20, com Anna Jarvis, cujo intento era homenagear a sua mãe, Ann Jarvis, conhecida por realizar trabalho social com outras mães, no período da Guerra Civil Americana [1].

No Brasil, o dia foi oficializado na década de 1930, pelo Decreto nº 21.366/32, instituído por Getúlio Vargas, ao considerar que “um dos sentimentos que mais distinguem e dignificam a espécie humana é o de ternura, respeito e veneração, que evoca o amor materno”.

Mas será que esse amor materno, muitas vezes chamado de instinto maternal, que designa um amor puro e incondicional, realmente existe, ou é uma invenção moderna, construído a partir de uma sociedade patriarcal, que impõe às mulheres a obrigação e a responsabilidade pelos cuidados com os filhos e a família?

Frases frequentemente ouvidas, como “mãe só tem uma” ou “ser mãe é padecer no paraíso”, valorizam a importância materna, como se a mãe fosse insubstituível no dever de amar os filhos e na obrigação de realizar todas as tarefas decorrentes dessa “atribuição natural”, que ao final, só lhe trará felicidade!

Aliás, segundo a visão tradicional, a maternidade é elemento essencial da identidade feminina, de forma que a mulher só seria genuinamente plena ou conheceria o amor verdadeiro após ser mãe!!!

Trabalho invisível

No próximo domingo, dia 12 de maio, muitas famílias comemorarão o Dia das Mães, com almoços e presentes, sem, no entanto, lembrar que as mulheres são responsáveis por mais de 75% do trabalho não remunerado, conforme o relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global de desigualdade”, realizado pela Oxfam Brasil[2].

Segundo a OIT, o trabalho de cuidado não remunerado, também conhecido como trabalho invisível, consiste na prestação de cuidados diretos, pessoais e relacionais, como alimentar uma criança ou cuidar de um familiar doente; e, no exercício de cuidados indiretos, como cozinhar, limpar e lavar.

A prestação desses cuidados não remunerados é considerada trabalho e contribui de maneira significativa para a economia do país, assim como para o bem-estar individual e da sociedade [3].

Portanto, o trabalho invisível, normalmente atribuído às mulheres, é aquele que garante a sobrevivência das pessoas, a manutenção do lar, e o apoio àqueles que dependem de suporte material ou emocional.

Dupla jornada e discriminação

A realização do trabalho invisível e a necessidade de garantir a subsistência própria e da família com o trabalho produtivo acarretam a conhecida dupla jornada, já que além de executar atividades remuneradas, as mulheres ainda acumulam a responsabilidade pelas atividades reprodutivas (de trabalhos domésticos e de cuidados).

A Convenção nº 156 da OIT, relativa à Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres [4], ainda não ratificada no país, determina que os trabalhadores com responsabilidades familiares e que possuam dependentes não sejam alvo de discriminação.

O objetivo principal da convenção é erradicar a exclusão de trabalhadoras e trabalhadores que enfrentam dificuldades para conciliar a vida familiar e o trabalho, além de criar políticas e medidas de igualdade de oportunidades de forma a evitar que os encargos familiares sejam um empecilho para a participação plena e equitativa no mercado de trabalho.

Diante dessa complexa realidade, que impõe às mulheres a felicidade plena com a maternidade, mas também o sacrifício com a sobrecarga de trabalho e a dupla jornada, compete às famílias, neste dia de comemoração, refletir sobre o verdadeiro papel de cada um no exercício do trabalho de cuidado.

Feliz Dia das Mães.


[1] https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-das-maes.htm

[2] https://www.oxfam.org.br/blog/o-papel-da-multiplicacao-de-riquezas-na-evolucao-das-desigualdades/

[3] https://webapps.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/publication/wcms_767811.pdf

[4] A Convenção n. 156 da OIT foi adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho na sua 67ª sessão, em Genebra, em 23 de junho de 1981, entrando em vigor na ordem internacional, em 11 de agosto de 1983. A referida Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil, mas já teve seu processo iniciado, em março de 2023, com a assinatura de mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional (https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-468754338)

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Epistemologia, senso comum teórico no direito e o habitus dogmaticus

1. Por que paramos de perceber o que é terrível

Cass Sunstein e Tali Sharot cunharam o conceito de “habituação” no livro Olhe de Novo – O Poder de Perceber o que Sempre Esteve Lá (Look Again: The Power of Noticing What Was Always There). Ali, aconselham-nos a desabituar (dishabituate). Os autores mostram como as pessoas param de perceber o que há de mais maravilhoso em suas vidas… e também param de perceber o que é terrível. As pessoas se acostumam com o ar poluído, com a mediocridade, com as ficções, com as platitudes. Isso porque habitua(ra)m-se. Esse é o busilis.

Ainda nos primeiros anos de minha atividade acadêmica, aproveitando Warat e Bourdieu, criei o conceito de habitus dogmaticus, para criticar a trivialização da atividade jurídica. Quem sabe lá atrás estava algo parecido com o que Cass Sunstein e Tali Sharot hoje tratam por “habituação” e “desabituação”?

Desvelar as obviedades do óbvio – talvez aí esteja a tese central do enfrentamento do habitus dogmaticus. E, é claro, a crítica necessária à dogmática jurídica, que, criterialisticamente, cada vez mais substitui o próprio direito. É espantoso como esse fenômeno passa despercebido à comunidade jurídica. Daí o problema: se a dogmática é um discurso que tem a função de explicitar o direito, isto é, tem a função de ser o seu medium interpretandi e, se ela mesma substitui o direito, já não temos mais sequer como identificar o direito e nem aferir o seu grau de autonomia. E isso compromete a democracia. Como já vimos comprometer.

Fazer crítica do e no direito é uma tarefa difícil (se você chegou até aqui, alvíssaras!). Cada vez mais os conceitos ficam fluidos e simplificados. Fazer crítica no direito é descascar o fenômeno. É trazer a coisa à presença retirando de seu entorno todo o entulho semântico que o habitus dogmaticus produz, pela simples repetição acrítica daquilo que foi assentado como fala autorizada (ou fala de autoridade). Como em um palimpsesto, devemos retirar as camadas poluidoras. Aproximar-se da história institucional do direito reconstruindo espaços de experiências e articulando horizontes de expectativas. Fazer o revolvimento do chão linguístico, fazendo com que o direito possa (re)aparecer.

Não sei se há algum jeito de consertar o ensino jurídico e a dogmática jurídica tomados pelo senso comum e pelo criterialismo. Mas, se algo assim houver, ele necessariamente passará por pensar os diferentes modos-de-ser com os quais nos relacionamos com o direito em seu sentido histórico determinado, o que implica, necessariamente, um movimentar-se para além do habitus dogmaticus.

2. A “imediatez” do mundo? Por uma epistemologia da falta de epistemologia

Nestes tempos de comunicação instantânea, cai o número de leitores. De textos e de livros. Cai a venda de livros. As redes sociais estão repletas de malandros vendendo facilidades, algo como “aprenda a usar o ChatGPT”…  Como se diz no imaginário social, “quem sabe, sabe; quem não sabe, ensina”. E vira influencer. Ou “professor que ensina usucapião com Harry Potter”.

O manejo dos conceitos, em tempos de simplificação da linguagem (basta ver o projeto do CNJ), torna (ou quer tornar) o mundo em uma imediatez, naquilo que Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito, criticava chamando de “certeza sensível”: uma apreciação ingênua do e sobre o mundo. Na filosofia hermenêutica isso é chamado de dimensão da curiosidade, do falatório e da queda junto ao presente, que nos faz ocuparmos daquilo que é habitual. Falta, pois, epistemologia no direito. O lidador mediano do direito possui “certezas sensíveis”.

Epistemologia: eis a palavra. Mas, antes disso, falta discutir a epistemologia da falta de epistemologia, uma vez que o próprio conceito ficou “habitualizado” (fragilizado). É um paradoxo, mas a epistemologia, que deveria significar a mudança de comportamento ou no modo de ser daquele que compreende as coisas e as interpreta, foi ela própria capturada pelo habitus.

Digo isso porque, uma vez tendo concluído o livro sobre o Ensino Jurídico e(m) Crise – Ensaio sobre a Simplificação, estou em produção de um livro sobre Valoração da Prova e Decisão Jurídica, em que o ponto central é a epistemologia.

Falar sobre prova é falar sobre a questão da verdade. Discuto precedentes judiciais. Isso também significa, em certo sentido, fazer ontologia e epistemologia: quais são os fatos do caso? Como conhecemos esses fatos quando estamos falando de um caso jurídico? Podemos cindir fato e direito?  Fundamentalmente, o que é um precedente e como podemos conhecer os fundamentos da decisão que é um precedente? O que é isto — o precedente judicial? E o que não é um precedente? E por que isso importa?

3. O manejo (in)adequado do conceito de epistemologia

Quando iniciei as pesquisas para o novo livro, chamou-me a atenção o uso por vezes descriterioso do conceito de epistemologia. Constatei que o próprio conceito de epistemologia fora vítima de obstáculos epistemológicos, denunciados há décadas por Gaston Bachelard [1]. Outro tema absolutamente poluído, obstaculizado epistemologicamente, é o conceito de “precedente”. Chegaram a criar, criterialisticamente, a dicotomia “precedente qualificado-persuasivo”.

A falta de epistemologia causa incompreensão do fenômeno. De qualquer fenômeno. “Epistemologia” pode ser traduzida como o estudo dos requisitos e condições necessários à produção do conhecimento. O fundamento do fundamento, como falei no Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. A epistemologia busca compreender a natureza e os fundamentos do conhecimento, oferecendo uma base teórica para a análise crítica das nossas crenças e da validade do conhecimento que possuímos. Trata-se da teoria filosófica do conhecimento. Por ela, examinamos as condições de possibilidade pelas quais algo que é dito sobre determinado fenômeno é ou não é. Mais simplesmente, pode-se dizer que é a filosofia da ciência. É o conhecimento pelo qual se pode dizer que aquilo que é apontado como ciência está adequado ou não.

Isso quer dizer que não é qualquer análise sobre um determinado objeto que se qualifica como “fazer epistemologia”. O olhar epistemológico consiste em examinar se aquilo que foi analisado possui amparo ou fundamento científico ou não. Se um lidador do direito faz uma análise de um dispositivo legal, não está fazendo, stricto sensu, epistemologia. Porém, o exame acerca do que ele examinou (e dos procedimentos que adotou para tanto) é que constituirá efetivamente uma análise epistemológica (se feita de forma adequada, é claro). Também não é qualquer meta-análise que será “epistemologia”.

Epistemologia, assim, é a disciplina à qual compete articular o que distingue investigação genuína da pseudoinvestigação, o que torna a pesquisa mais ou menos bem conduzida, a evidência mais forte ou mais fraca etc. Por exemplo, quando alguém sustenta o conceito de verdade real, com certeza longe está de qualquer epistemologia. Isso porque é impossível demonstrar a plausibilidade jus filosófica do conceito de verdade real.

A epistemologia é inimiga do viés de confirmação e de raciocínios teleológicos. Só nisso já teremos um rombo no campo da dogmática jurídica. Como sustentar, epistemologicamente, conceitos como “não há nulidade sem prejuízo”? Susan Haack lembra que “um investigador sério procurará toda evidência que puder, e fará seu melhor para avaliar se ela garante esta conclusão ou aquela, ou se ela é insuficiente para garantir qualquer conclusão que seja” [2].

Se epistemologia é condição de possibilidade, parece evidente que, em direito, um juiz já estará equivocado na partida, ao dizer que primeiro decide e depois fundamenta. Falar em livre convencimento, então, carece de mais epistemologia ainda.

4. A confusão entre os dois níveis de discurso

A dogmática jurídica sofre de um déficit epistemológico, mormente porque nela se confundem os dois níveis de discurso. Pensa-se que o primeiro nível, a análise de um fenômeno, já é “fazer epistemologia” (esse é o erro mais comum da dogmática jurídica brasileira ao falar em epistemologia já nesse primeiro nível). Na verdade, um discurso epistemológico examinará se essa análise reúne condições científicas. Dir-se-á, então “condições epistêmicas”.

Portanto, a epistemologia jurídica não se resume a teorias da prova e tampouco falar da valoração da prova – para ficar nesses tópicos da moda. Epistemologia existirá se discutirmos as condições filosóficas que sustentam o que foi dito sobre valoração. A teoria é viável? O conceito de verdade utilizado não é contraditório? Por exemplo, quando se discute “prova”, é epistemologicamente inconsistente afirmar que o pesquisador acredita no livre convencimento e, ao mesmo tempo, assume o conceito de verdade como correspondência. Mas, por que os pesquisadores do direito não enfrentam isso? Há paradigmas filosóficos que só uma análise epistêmica poderá detectar. Eis aí a diferença entre fazer um discurso de primeiro nível e um de segundo nível.

Portanto, é preciso ter presente que qualquer tipo de epistemologia que se faça sobre o direito se assenta em uma determinada ontologia pressuposta que pode ser articulada de forma acrítica na superfície do discurso, ou pode ser enfrentada de forma consciente dentro do processo de formação do sentido do direito. Assim, fazer filosofia no direito significa operar a partir de standards de racionalidade [3].

No fundo, a epistemologia funciona como uma desleitura do discurso de primeiro nível ou até mesmo de segundo nível. Haack assinala que precisamos considerar as fontes da nossa evidência e a possibilidade de que ela tenha sido empobrecida ou distorcida ao ser transmitida, distinguindo bem o que seria investigação malconduzida — e realizando esforços de boa-fé para descobrir a verdade. Os conceitos podem estar poluídos.

Discursos eficientistas, discursos que dizem que a lei é o que os juízes dizem que ela é, que os juízes devem decidir conforme a sua consciência, ou que princípios são valores, estão defasados epistemologicamente. Algo como o geocentrismo está para a ciência.

5. A epistemologia e os neologismos: é possível falar em epistemicídio e injustiça epistêmica?

Além de tantos problemas, é necessário falar dos neologismos incorporados ao estudo da epistemologia. Por exemplo, entre eles está o termo “epistemicídio”, cunhado por Boaventura de Souza Santos. Há sérias dúvidas sobre o acerto e a possibilidade de se construir um conceito regional de epistemologia. Há, sim, uma grande utilidade retórica no seu uso. O problema reside no fato de que se mostra inadequado utilizar o termo epistemologia como se fosse sinônimo de “local de fala”, “direito de fala”, “diversidade cultural” ou “modo de ser/viver”. Veja-se que a inadequação dos conceitos pode nos levar a usos progressivamente mais excêntricos e aleatórios.

Outro conceito que gera controvérsia é o de “injustiça epistêmica”, utilizado no direito principalmente no campo probatório. Esse talvez seja o conceito mais conhecido e que mais sucesso faz. O problema é que falar em injustiça epistêmica acarreta uma confusão entre epistemologia e direito probatório — e entre epistemologia e dogmática jurídica. Não se discute, por óbvio, que a epistemologia jurídica possui implicações para a valoração das provas no contexto processual. Mas, falar sobre valoração não é fazer epistemologia. Essa ocorre ao se discutir as condições de possibilidade pelas quais se disse algo sobre a valoração da prova. Isto é: o que importa, aqui, é que a epistemologia do direito (ao trabalhar no plano teórico com as possibilidades, condições e limites do conhecimento jurídico) vai muito além do mero direito probatório [4].

Para que se possa falar em “injustiça”, em um sentido estrito, precisamos estar diante de um problema moral – na medida em que é a filosofia moral (que sofrerá um exame epistemológico em segundo momento) que trabalha com a chave justo/injusto. O problema moral do justo ou injusto é um discurso de primeiro nível acerca de um determinado fenômeno. Se tais conceitos são bem utilizados ou não em um caso específico – aí, sim, estaremos diante da tarefa da epistemologia.

Utilizada no Brasil, a ideia de “injustiça epistêmica” foi estabelecida por Miranda Fricker em sua obra Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing, lançada em 2007 e com recente edição nacional. Penso que seria muito oportuno que os juristas e aplicadores do direito no Brasil procedessem com uma leitura minuciosa dessa “obra-fonte” antes de absorver os conceitos ali expostos — até para evitar uma “importação” inadequada de ideias. Isso porque, em sua obra, Fricker demonstra uma pretensão (para fins de trabalhar com epistemologia enquanto campo da filosofia) bem mais modesta do que se poderia imaginar apenas pela leitura do título do livro. O objetivo dela é promover uma aproximação da ética com a epistemologia — ou seja, trata-se, segundo ela, de um argumento de ética, ainda que com pretensão de implicações epistemológicas. Ela mesma diz que o livro não é nem diretamente uma obra de ética nem diretamente uma obra de epistemologia: em vez disso, redefine um trecho da fronteira entre ambas as regiões da filosofia“.

Epistemologia é sempre um discurso sobre o discurso, que não se confunde com o próprio discurso. Desta forma, ética e epistemologia não estão no mesmo nível discursivo – a metaética, sim. Qualquer aproximação entre ética e epistemologia que se pretenda filosoficamente bem fundamentada não deve ignorar este ponto.

Epistemológica será a análise sobre o as condições do que foi dito sobre acerca do direito.

Quanto a Fricker, embora defina o seu argumento como uma construção situada nas “fronteiras” entre a ética e a epistemologia, observo que as ideias que ela desenvolve se assemelham mais a uma análise ético-sociológica, na medida em que as observações de natureza sociológica se mostram muito mais proeminentes, em seu argumento, do que construções epistemológicas propriamente ditas. Difícil entender de forma diversa, na medida em que a própria Fricker destaca que devemos adotar “como ponto de partida a concepção socialmente situada”. O primeiro capítulo da obra é especialmente dedicado ao desenvolvimento do conceito de poder social.

6. O problema da proliferação de conceitos e a “adjetivação” da epistemologia

Por óbvio, existem injustiças de todos os tipos no mundo prático dos fatos sociais: injustiça testemunhal, injustiça na apreciação de fato, injustiças que decorrem de juízos de valor sobre determinadas alegações etc. Todavia: epistemologia implica proceder com uma análise acerca das condições por meio das quais os discursos que falam sobre injustiça estão ou não adequados a determinados postulados prévios da teoria do conhecimento – e se eles são coerentes dentro de tal sistemática. Daí a crítica à inadequação da terminologia “injustiça epistêmica” enquanto conceito filosófico propriamente dito, que seja realmente dotado de substância (sem prejuízo do fato de que a expressão possa ter valor argumentativo na forma de mera figura de linguagem). A rigor, isso vale, da mesma forma, para qualquer tentativa de “adjetivação” da epistemologia – que é substantiva.

Outra questão problemática que se identifica na obra de Fricker, para fins de epistemologia jurídica, reside na grande quantidade de novos conceitos que ela introduz em sua obra, que surgem ao longo do texto desacompanhados de um desenvolvimento mais substancial. Veja-se que a autora fala não somente no neologismo da “injustiça epistêmica”, mas também em “interações epistêmicas”, “prática epistêmica”, “relações epistêmicas”, “confiança epistêmica”, “desvantagem epistêmica injusta”, “injustiça hermenêutica”, “recursos hermenêuticos coletivos”, “economia da credibilidade”, “epistemologia das virtudes” etc., a ponto de banalizar aquilo que se entende, na filosofia, por epistemologia. À toda evidência, a quantidade de conceitos inovatórios apresentados ao longo do livro demandaria algo como um “Dicionário de Injustiça Epistêmica” à parte.

De novo: não há problema no uso eventual de expressões desse tipo, na forma de figuras de linguagem, para fins persuasivos de retórica (por exemplo, para defender um determinado argumento de ética ou moralidade, ou em prol de melhores políticas públicas ou de mudanças na prestação jurisdicional). O problema é adotar tais neologismos como conceitos filosóficos estabelecidos, de forma irrefletida ou automatizada, e achar que isso seria “epistemologia jurídica”.

Em outras palavras: já não haverá uma “injustiça epistêmica” na hipótese de alguém ser condenado com base na livre apreciação da prova? Isso não é anterior aos próprios mecanismos ou métodos utilizados pelo juiz? Não estará, ali, um problema epistemológico primordial? De que servirá a discussão acerca da valoração da prova se é feita a partir do livre convencimento ou livre apreciação? De outra banda, se o tribunal diz que o direito é o que o Judiciário diz que é (realismo), a “injustiça epistêmica” não estará exatamente no uso de uma tese ceticista – que é o realismo? E que esse é o ponto fulcral das injustiças jurídicas cometidas cotidianamente?

E quando o tribunal deixa de aplicar um precedente, sob o pretexto de que se trata de um precedente “meramente” persuasivo”, não estará aí um déficit epistemológico de dimensão maior que o discurso de primeiro nível que denuncia eventual defeito no modo de valoração da prova?

Na mesma linha, em um sentido amplo, podemos rotular como “injusta” uma ação/decisão que viola uma norma jurídica – e que seria mais precisamente definida como antijurídica (ou, eventualmente, ilegal), sendo apenas secundariamente “injusta” (a ação/decisão é dita injusta porque atropela o direito, que aqui se presume justo – sem ignorarmos, é claro, as bem conhecidas tensões entre direito e justiça).

Com efeito, uma valoração inadequada de um elemento de prova, no contexto processual, pode constituir uma injustiça – seja porque passa por cima de alguma expectativa moral razoável, seja porque não observa critérios estabelecidos pela lei, pela melhor doutrina ou pela tradição construída pela historicidade. Mas uma valoração inadequada da prova, caso injusta, será injusta precisamente porque colide com um elemento moral ou jurídico – e jamais por violar algum pressuposto epistêmico. Também será por violar a análise epistemológica, como, no caso, o uso inadequado do conceito de “valores” (que têm um conceito específico, confundido cotidianamente com qualquer juízo moral – nesse sentido, remeto ao verbete Valores, no Dicionário de Hermenêutica). É por isto que é uma impropriedade falar em “injustiça epistêmica”: porque a justiça não é uma categoria da filosofia do conhecimento, e sim da filosofia moral. Seria como se alguém cometesse um erro de cálculo numa equação e o equívoco fosse denunciado como sendo uma “injustiça matemática”!

Na verdade, criticar eventuais desacertos, incompreensões ou equívocos de natureza epistemológica valendo-se de termos como “justo” ou “injusto” implica fazer julgamentos morais disfarçados de epistemologia jurídica. Por melhores que sejam as intenções subjetivas por trás das críticas, parece evidente que esse tipo de postura banaliza e fragiliza a epistemologia do Direito, na medida em que o termo passa a ser usado como mera “palavra de impacto”, esvaziada de toda a sua autêntica substância filosófica.

Numa palavra final, urge que façamos um aprofundamento conceitual no debate jurídico nacional sobre o uso do conceito de epistemologia jurídica. Corre-se o risco de, em breve, depararmo-nos com cursos de “epistemologia jurídica” sem tratar de epistemologia. E com usos da expressão sem relação com o conceito.

Também parece razoável prever que a recente tradução da obra de Miranda Fricker em solo nacional irá fomentar, entre ativistas dos mais variados tipos, uma apropriação entusiástica de muitas terminologias introduzidas por ela no livro. Talvez nem a própria autora tenha pensado nos múltiplos usos possíveis de suas teses.

Numa palavra final, eis alguns acepipes sobre o tema. Mais aprofundadamente o faço nos livros acima mencionados. Em breve nas melhores casas do ramo.

Nestes tempos de instantaneidades, cumprimentos a quem chegou até o final destas reflexões.


[1] Agradeço a interlocução com Willis Santiago Guerra Filho, que me remeteu interessante estudo de sala de aula sobre epistemologia e, em especial, sobre Bachelard. Também Ricardo Gloeckner e Salah Khaled Jr.. E ao Grupo Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

[2] HAACK, Susan. Evidence Matters: Science, Proof, and Truth in the Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 334.

[3] STEIN, Ernildo. Exercícios de Fenomenologia: os limites de um paradigma. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 156.

[4]  Ver nesse sentido ABEL, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 17.

Fonte: Conjur

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