TSE discute se faz sentido fraude à cota de gênero eliminar eleição de mulheres

O Tribunal Superior Eleitoral vai decidir se, em casos excepcionais, é possível manter a eleição de mulheres para cargos proporcionais mesmo quando a chapa composta por elas teve candidaturas femininas fictícias.

A proposta foi feita pelo ministro Floriano de Azevedo Marques, em voto-vista sobre um caso registrado na cidade de Granjeiro (CE). O julgamento foi interrompido por novo pedido de vista, desta vez da ministra Cármen Lúcia.

A ideia apresentada vai de encontro à jurisprudência pacífica do TSE, no sentido de que a ocorrência da fraude à cota de gênero deve levar à cassação de toda a chapa, com a anulação dos votos das legendas envolvidas e recálculo do quociente eleitoral.

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, essa orientação prevaleceu inclusive nos casos em que a cassação da chapa teve com consequência a perda de mandato de mulheres muito bem votadas.

Relator, o ministro Andre Ramos Tavares votou de acordo com a jurisprudência. O distinguishing (distinção) proposto decorre do fato de que, em Granjeiro, isso vai derrubar a única mulher eleita para a Câmara de Vereadores. E ela será substituída por um homem.

Uma eleita

Em Granjeiro, apenas dois partidos tiveram candidatos para vereador em 2020. O PSDB cumpriu a cota de gênero e destinou 30% de sua lista para mulheres, mas não elegeu nenhuma.

Já o Republicanos usou duas candidatas-laranja, que tiveram votação zerada. Por outro lado, elegeu uma mulher: a segunda mais bem votada, a única a integrar a Câmara dos Vereadores, Renagila Viana.

Sozinha, ela recebeu 400 votos, que representam 64,6% de todos os votos dados a mulheres na pequena cidade cearense em 2020. Desde então, ela vem atuando ao lado de oito outros homens eleitos.

No voto-vista, o ministro Floriano de Azevedo Marques observou que não há qualquer indício de que Renagila tenha se envolvido na fraude à cota de gênero. Para ele, não faz sentido ela perder o mandato.

Assim, cassar o registro de sua candidatura significará decidir contra o objetivo da cota de gênero instituída na lei eleitoral. “Em suma, se estará incrementando um maior desequilíbrio na representação feminina”, disse.

Modulação

A proposta do ministro Floriano é de modular os efeitos do julgamento do TSE, de modo a anular apenas parcialmente os votos da legenda.

Nesse caso, os votos destinados aos homens do Republicanos são anulados. Já os votos das mulheres seguem válidos. Isso é possível porque nenhuma das candidatas laranjas obteve sequer um voto — nem delas próprias.

Com a anulação parcial, o quociente eleitoral precisará ser recalculado, o que não será suficiente para afastar a eleição de Renaglia Viana.

Reflexão

A ministra Cármen Lúcia pediu vista, já destacando que, em outros casos, foi absolutamente contra relativizar a aplicação da lei. O ministro Alexandre de Moraes pediu a palavra para sugerir uma reflexão dos colegas.

Para ele, não há por que se falar em cota de gênero se o TSE vai permitir qualquer tipo de relativização das fraudes que acabam deturpando e prejudicando o entendimento global que existe sobre cota de gênero.

“Se nós formos permitir que os fins justifiquem os meios, vamos retornar ao que era antes, em que tínhamos 30% de mulheres, mas só 5% do fundo partidário destinado para uma única mulher, geralmente parente do dirigente, mulher do deputado, filha do senador”, disse.

“Não podemos dar o recado de que basta apostar em uma mulher: se ela for eleita, todas as outras podem nem participar da eleição”, continuou. E deu o exemplo de São Paulo, onde os partidos podem lançar até 71 candidatos para a Câmara.

Assim, para cumprir a cota, seriam preciso 22 mulheres. Se essa posição prevalecer, bastará escolher uma e despejar nela todo o dinheiro destinado às mulheres. Ela vai se eleger. As outras 21 candidaturas poderão ser fictícias, sem consequências. “Aí não precisa respeitar a cota nunca mais.”

Respe 0600003-05.2021.6.06.0062

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Proposta de reforma do Código Civil sobre valorização de cotas em partilha contraria STJ

O anteprojeto de reforma do Código Civil, formulado por uma comissão de juristas e entregue ao Senado no último mês, propõe que a valorização das cotas ou participações em sociedades empresárias, quando ocorrida durante o casamento ou a união estável, entre na partilha dos bens do casal, ainda que a aquisição das cotas seja anterior à convivência. Essa previsão, no entanto, é contrária ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

Proposta prevê inclusão de valorização das cotas na comunhão, mesmo se forem adquiridas antes do casamento  -Freepik

A partilha ocorre com o fim do vínculo entre os cônjuges. A proposta da comissão diz respeito ao regime de comunhão parcial de bens — no qual os bens adquiridos por cada um durante a convivência são considerados comuns ao casal e, em caso de separação, são divididos de forma igualitária entre os dois.

Assim, o anteprojeto contempla a situação na qual uma pessoa adquire cotas de uma empresa, mais tarde se casa pelo regime da comunhão parcial de bens e, depois disso, vê o valor das suas cotas aumentar. Pelo texto sugerido, caso haja divórcio, essa valorização entrará na partilha.

Por outro lado, na última década, o STJ já decidiu que a valorização dessas cotas não integra o patrimônio comum do casal e não deve entrar na partilha, pois é considerada fruto de um fenômeno econômico, e não de esforços do sócio.

Além disso, a proposta de reforma inclui na partilha a valorização dos lucros reinvestidos na empresa, mesmo se as cotas ou ações forem exclusivas de um dos cônjuges.

Redação

De acordo com o artigo 1.658 do atual Código Civil, no regime de comunhão parcial, comunicam-se (entram na partilha) “os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento”, exceto alguns listados em dispositivos seguintes.

Já o artigo 1.660 menciona alguns itens que entram na comunhão. A proposta da comissão de juristas é incluir incisos nesse dispositivo.

Um deles é o inciso VIII, que traz “a valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, até a data da separação de fato”.

Outra sugestão relacionada é a do inciso IX, que inclui na comunhão “a valorização das quotas sociais ou ações societárias decorrentes dos lucros reinvestidos na sociedade na vigência do casamento ou união estável do sócio, ainda que a sua constituição seja anterior à convivência do casal, até a data da separação de fato”.

Jurisprudência

O STJ considera que, no regime de comunhão parcial de bens, não entra na partilha a valorização de cotas de uma empresa adquiridas por um dos cônjuges ou companheiros antes do início do casamento ou da união estável.

No REsp 1.173.931, julgado em 2013, a corte decidiu que a valorização das cotas empresariais “é decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor”. Ou seja, não vem de um esforço comum, que é um requisito “para que um bem integre o patrimônio comum do casal”.

Três anos mais tarde, no REsp 1.595.775, o STJ estabeleceu que o valor a ser considerado para a partilha é o total do capital social integralizado (ou seja, o montante prometido na constituição da empresa, entregue de maneira formal) na data da separação.

Na ocasião, os ministros entenderam que não há acréscimo ao patrimônio do casal quando não existe redistribuição dos lucros da empresa aos sócios. Por isso, consideraram que “as quotas ou ações recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros constituem produto da sociedade empresarial” e não entram na partilha.

A advogada Fernanda Haddad, associada sênior de Gestão Patrimonial, Família e Sucessões do escritório Trench Rossi Watanabe, explica que a orientação do STJ “é no sentido de que a valorização e o aumento do capital social não constituem fruto do sócio individualmente, mas, sim, do empreendimento empresarial como um todo”.

Dessa maneira, “com base na jurisprudência atual, não haveria lastro jurídico para incluir a valorização da quota empresarial adquirida antes do período de convivência na partilha de bens do regime de comunhão parcial”. Isso porque tais valores “não se enquadram no conceito de fruto a ser partilhado”.

Problemas

Quanto à proposta do inciso VIII, Felipe Matte Russomanno, sócio da área de Família e Sucessões do escritório Cescon Barrieu, concorda com a visão do STJ de que, para um bem entrar na partilha, é necessário “o trabalho efetivo de ambos os cônjuges”.

Na sua visão, a valorização das cotas empresariais depende de outras questões — por exemplo, “o boom de um mercado, ramo ou setor econômico”.

Com relação à proposta do inciso IX, ele também vê o entendimento do STJ como “acertado”, pois considera que as cotas empresariais recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros “são, na verdade, um produto da sociedade em si”.

Isso porque tais cotas aumentam o capital social “com o remanejamento dos valores contábeis que já são da própria empresa”, ou seja, “não passam pela pessoa física do sócio”. Em outras palavras, os lucros são reinvestidos na sociedade empresária sem nunca passar “pela figura dos cônjuges”.

Para ele, “isso parece ser decorrente também de um fenômeno econômico, que não está relacionado ao esforço laboral do sócio”, e “muito menos” do seu cônjuge ou companheiro.

Por isso, Russomanno afirma que a inclusão de tais cotas na partilha “contrariaria a lógica do regime de bens”, pois a comunhão parcial “exige que o patrimônio partilhado seja aquele dos cônjuges, e não de uma empresa em que um deles é cotista ou acionista”.

Segundo o advogado, a proposta de atualização do Código Civil “vai contra essa ótica” e determina “a partilha indiretamente de bens que não são do casal”.

O problema do reinvestimento dos lucros, nesse caso, é que ele depende da aprovação dos sócios. Ou seja, a sociedade como um todo é que decide não distribuir os dividendos e reinvesti-los na própria empresa.

Com isso, em tese, é possível que a deliberação favoreça um sócio que esteja “em vias de se divorciar ou de dissolver uma união estável”. Se os dividendos fossem distribuídos, parte deles cairia na conta da pessoa física do sócio e seria partilhável. “Poderia haver uma burla ao regime de bens”, explica Russomanno.

Ele, no entanto, destaca que, na lógica do Direito Societário, “a empresa não se confunde com a figura dos sócios”. Então, enquanto não houver distribuição dos lucros, eles pertencem à empresa. Além disso, não se pode presumir a má-fé dos sócios.

“Determinar a partilha dos lucros que são reinvestidos e que podem levar à valorização da cota, presumindo que vai haver uma deliberação para prejudicar o cônjuge, me parece que vai contra a lógica do nosso ordenamento jurídico.”

Objetivos

Segundo Fernanda Haddad, a proposta da comissão de reforma do Código Civil, ao incluir a valorização na comunhão, “busca regularizar a questão da partilha das cotas na dissolução da sociedade conjugal”. A ideia “dissocia-se do atual entendimento jurisprudencial e protege o cônjuge que não é sócio”.

De acordo com ela, a depender do caso, a causa da valorização durante o relacionamento “pode estar em bens comunicáveis, como a incorporação de lucros ao capital social”.

Com isso, caso houvesse distribuição de lucros ao sócio durante o casamento ou a união estável, “tais montantes por ele recebidos integrariam os bens do casal”.

A advogada indica que o inciso IX proposto pela comissão “abarca justamente a hipótese na qual o lucro da sociedade passa a ser reinvestido no próprio negócio, e tal ato é o responsável por valorizar a cota social”.

Elogios

Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), acredita que a comissão de juristas acertou ao incluir a valorização das cotas na partilha.

Ela ressalta que muitas pessoas constituem empresas antes do casamento e “passam a vida inteira levando ao crescimento dessa pessoa jurídica”, muitas vezes até recebendo dividendos.

Para a advogada, não há motivo para barrar a divisão da valorização ocorrida na empresa só porque ela foi constituída antes do casamento ou da união estável. Segundo Maria Berenice, “as pessoas têm se escondido atrás das pessoas jurídicas” justamente para evitar isso.

“Tenho que a posição do STJ, além de não ter nenhum respaldo legal, é completamente injusta”, conclui a advogada.

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Cobrança de contribuição assistencial exige possibilidade de oposição

No último ano, o Supremo Tribunal Federal validou a cobrança da contribuição assistencial a sindicatos imposta por acordo ou convenção coletivos a trabalhadores não sindicalizados. Mas a decisão impôs a condição de que seja garantido aos trabalhadores o direito de oposição.

O argumento foi utilizado pela a 4ª Vara do Trabalho de Brasília para negar pedido de um sindicato pelo pagamento de contribuição assistencial de funcionários de uma escola de tênis.

Existem três contribuições trabalhistas relacionadas aos sindicatos. Uma delas é a contribuição assistencial, instituída por meio de instrumento coletivo, que busca custear as atividades assistenciais do sindicato, principalmente negociações coletivas.

O Sindicato dos Trabalhadores de Entidades Recreativas de Assistência, Lazer e Desportos do Distrito Federal pleiteava uma taxa de R$ 120 por cada trabalhador, como previsto em uma convenção coletiva de trabalho (CCT).

A entidade alegou que representava os empregados da escola esportiva. Também apontou que, de acordo com a CCT, a empresa que não recolhesse a contribuição deveria arcar com ela, sem possibilidade de descontar valores dos trabalhadores. Segundo o sindicato, nenhum funcionário se opôs, mas a ré não repassou a taxa.

Em sua defesa, a empresa disse não ter recebido a relação de empregados do sindicato, alegou que alguns empregados se opuseram e afirmou que não houve assembleia específica para a taxa.

A juíza Patrícia Birchal Becattini analisou o edital de convocação para a assembleia na qual a CCT foi aprovada e notou que o documento não falava sobre direito a oposição. A magistrada concluiu que “não houve ampla divulgação da taxa e da possibilidade de oposição”.

O edital foi publicado dois dias antes da assembleia. O estatuto previa antecedência de cinco dias. Além disso, a ata da assembleia não continha lista de presença e não informava o número de trabalhadores que compareceram.

“A par da constitucionalidade de instituição de cobrança de contribuição a toda a categoria, deve a entidade sindical observar todos os requisitos de validade do próprio instrumento coletivo, em especial quanto aos regramentos estatutários, como requisito validade da norma e da cobrança dela exarada”, diz Mauricio Corrêa da Veiga, advogado que atuou no caso e sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados.

Segundo ele, os preceitos da decisão do STF não podem “convalidar obrigações irregularmente instituídas”. Portanto, a cobrança é indevida quando “inobservado o dever de ampla divulgação da instituição de contribuição assistencial, com o fito de dificultar o legítimo direito de oposição do trabalhador não sindicalizado”.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0000029-97.2024.5.10.0004

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Notícias de uma guerra particular

Como sabido, o tema da política de drogas vem ocupando, consolidando-se como um assunto central no Brasil hoje. A guerra às drogas mobiliza sentimentos profundamente entranhados no ambiente de polarização que caracteriza o cenário político em nosso país.

Pesquisa Datafolha informa que a maioria dos brasileiros (67%) considera necessário criminalizar o porte de drogas para uso pessoal. Em 2023, na pesquisa anterior, eram 61%. Hoje, apenas 31% apoiam a descriminalização, em 2021, eram 36%. Entre os mais escolarizados, 68% discordam da descriminalização da posse de drogas para uso pessoal – eram 53% na pesquisa anterior. No segmento entre dois a cinco salários mínimos, houve um salto de 59%, na pesquisa anterior, para 71% hoje.

Quanto mais velho, mais apoio à criminalização: entre aqueles que têm 60 anos ou mais, 72% apoiam a criminalização – 55% no caso dos mais jovens (entre 16 e 24 anos). 72% dos pretos, 64% dos pardos e 68% dos brancos apoiam a criminalização. Dos apoiadores da criminalização, 76% se declaram bolsonaristas e 59% petistas. O maior apoio à criminalização está na região Centro Oeste (70%) e a menor na região Sudeste (67%) [1].

Nos Estados Unidos, onde a cannabis está disponível para fins terapêuticos desde a década de 1990, o cenário é oposto: cerca de 88% da opinião pública apoia a legalização do uso adulto da maconha [2] e tudo indica que, em breve, a erva deve ser reclassificada em âmbito federal como droga menos nociva [3].

Higienismo social e deja vu

Agora mesmo, na antevéspera das eleições municipais, há uma acerba discussão a respeito da melhor abordagem para a grave questão das pessoas que vivem em situação de rua e têm problemas relacionados ao uso de drogas. De um lado, os defensores do confinamento em instituições totais, com características asilares,  buscam desabridamente implementar um regime de higienismo social que faz lembrar a famigerada Ley de Vagos e Maleantes, que entrou em vigor na Espanha em 1933, prevendo alheamento, controle e retenção de indivíduos perigosos.

Inicialmente voltada a vagabundos, nômades e proxenetas, entre outros grupos estigmatizados, foi posteriormente modificada pela ditadura franquista para reprimir também os homossexuais. Embora não houvesse a cominação expressa de sanção, a Ley de Vagos e Maleantes proporcionou, em nome da evitação de delitos futuros e incertos, a internação de indivíduos “perigosos” em reformatórios e campos de detenção. Não são poucos os gestores de cidades brasileiras que advogam a internação forçada como solução para essa grave questão, a despeito dos obstáculos previstos na Lei Antimanicomial. Há, aqui, um amargo gosto de deja vu, a unir, nessa matéria, as piores práticas de ontem e de hoje.

Comunidades terapêuticas

Mas a notícia alvissareira é que o Conselho Nacional de Assistência Social, órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social do governo federal, publicou resolução estabelecendo que comunidades terapêuticas não cumprem os requisitos necessários para atuar no Sistema Único de Assistência Social [4]. E, por consequência, não podem receber recursos públicos, destinados a remunerar, sem licitação e sem fiscalização, o “acolhimento” de pessoas que têm problemas relacionados ao uso de drogas, inclusive adolescentes (que jamais poderiam ser submetidos a esse tipo de tratamento, por não serem capazes de expressar validamente o seu consentimento).

Não é de hoje que se discute – sem que se chegue a um consenso – qual a natureza jurídica das comunidades terapêuticas: não são instituições da área da saúde, tampouco da assistência social. Afinal, o que são as comunidades terapêuticas? Uma coisa que não se pode negar é o pragmatismo que as caracteriza: passaram a receber recursos públicos no primeiro governo Dilma; ganharam tração no governo Temer e se consolidaram no governo Bolsonaro; no terceiro governo Lula, foram agraciadas com uma secretaria especial no Ministério de Desenvolvimento Social e assento no Conad. As CTs são ecumênicas e agradam a gregos e troianos, a Deus e ao Diabo na Terra do Sol. Money talks, bullshit walks.

Cannabis medicinal

Mudando de assunto, mas ainda no mesmo tema, a semana foi marcada pela audiência pública realizada no Superior Tribunal de Justiça em que representantes de órgãos públicos, sociedade civil e entidades privadas discutiram a possibilidade de regulação da importação de sementes e plantio de cannabis para a produção de medicamentos e outros subprodutos com fins exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais [5]. Do lado do governo federal, exceto o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, todos os seus representantes se manifestaram contrariamente à ideia de regulação.

Especialistas que participaram do debate público “Cannabis e ciência: evidências sobre o uso terapêutico e seus meios de acesso” – entre os quais integrantes do Repensando a Guerra às Drogas e da Rede Reforma –, realizado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 26 de abril, afirmaram que a legalidade da produção e do uso terapêutico de cannabis já está pacificada na legislação vigente no Brasil, apesar do uso político-ideológico dessa discussão [6].

Sobre o fornecimento de remédios pelo SUS, embora seja um avanço, devemos atentar para evitar ardilosa armadilha: magistrados desprovidos de coragem ou com pendores proibicionistas (ainda que moderados) usam qualquer desculpa para negar salvo conduto para cultivo de cannabis com fins terapêuticos, a despeito de a matéria estar pacificada no âmbito da 3ª Seção do STJ, órgão judiciário responsável por uniformizar a interpretação acerca da lei federal, como é o caso da Lei de Drogas. E aqui está o busílis: proibir o autocultivo e o cultivo coletivo em associação é o sonho de consumo do Big Pharma, que sustenta uma irreal e anticientífica distinção entre CBD farmacêutico e a maconha, avaliada como droga perigosa.

A grande verdade é que se o cultivo para fins medicinais fosse regulado, a maior parte dos usuários teria acesso a um tratamento eficaz, mais completo (por envolver a terapia de lidar com a planta) e sem risco de descontinuidade por alguma dificuldade burocrática que causa a interrupção no fornecimento, algo muito comum em se tratando do SUS e de seu orçamento insuficiente. Então devemos sim aplaudir avanços como a inclusão de remédios a base de maconha no SUS, sem descurar da necessidade de coexistência de um design regulatório que permita ao paciente plantar o próprio remédio, a partir da produção a artesanal, com base na ideia de medicina dos povos tradicionais, em um modelo de farmácia viva.

Não podemos permitir que prevaleçam os interesses das grandes corporações farmacêuticas, que desejam oligopolizar o mercado e criminalizar growers e associação. Importante rememorar que quando não havia remédio farmacêutico no Brasil, nos idos de 2010, quem fornecia óleo artesanal para pacientes e seus familiares eram cultivadores que faziam uso adulto de maconha. São esses heróis que garantiram o fornecimento de remédio para pacientes correndo o risco de ir em cana, a famosa rede secreta que havia nessa época.

PEC da vingança

E temos que falar da teratológica PEC 45/23, esse monumento à mediocridade do Poder Legislativo brasileiro. A PEC da vingança. Vingança? De quê? Do exercício legítimo do controle de constitucionalidade de normas jurídicas por parte do STF? Trata-se de competência ordinária de cortes constitucionais, como ocorreu na Argentina, na Colômbia, no México e na África do Sul, países nos quais esse tema foi debatido e ao final declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que incriminavam a conduta de portar drogas para uso pessoal [7]. Esse oportunismo que se aproveita do ataque golpista e concertado à Suprema Corte brasileira, além de medíocre, é vergonhoso.

A PEC 45/23 tem por objetivo constitucionalizar a criminalização da posse de drogas para uso pessoal, inscrevendo no artigo 5º, da Constituição Federal, que prevê direitos e garantias fundamentais, o inciso LXXX:

“a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.

A PEC 45 representa um grave equívoco legislativo e político-criminal.

O voto do ministro Alexandre de Moraes no RE 635.659 reconhece que usuários de drogas negros, pobres, periféricos e com baixa instrução são enquadrados como traficantes, o que indica a necessidade de reduzir a discricionariedade policial/ministerial/judicial, por meio de critérios objetivos.

Para o Senado, criminalizar a posse de drogas para uso pessoal é apenas uma desculpa para manter tudo como está, um dolce “gattopardear”. Se a Lei de Drogas é uma usina de injustiças, “tem que manter isso aí”. Foi o que disse o Senado. Vejamos o que dirá a Câmara dos Deputados.

Cigarros eletrônicos

Mudando de assunto novamente, me deparo com mensagem a respeito da recente decisão da Anvisa que manteve a proibição de fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de cigarros eletrônicos, vapes e dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), tratada como “vitória importante para toda a comunidade médica comprometida com a saúde e prevenção de doenças tão impactadas pelo fumo”.

O mesmo texto reconhece que há quase três milhões de usuários de DEF no Brasil. Me parece não fazer sentido comemorar a proibição dos DEF, quando a realidade revela que seu uso está disseminado em todos os ambientes da vida social, colocando em risco crianças e adolescentes, que deveriam estar protegidos desse tipo de estímulo ao consumo. O Big Tobacco impulsiona jovens influencers que possuem milhões de seguidores adolescentes em mídias sociais, que fazem uso de vapes em suas publicações [8]Money talks… A guerra às drogas ensinou que melhor que proibir e reprimir é regular e controlar.

As casas de apostas e as tchutchucas do Congresso

Para finalizar, quero falar sobre o depoimento de John Textor, o dono da SAF que controla o Botafogo de Futebol e Regatas, à CPI das Apostas Esportivas, no qual o boquirroto alienígena expôs suas suspeitas de manipulação de resultados [9]. No lugar de investigar as casas de apostas esportivas, deu-se palco a um bufão que consegue ser ainda pior que a cartolagem nativa.

Longe de mim ignorar a baixa qualidade da arbitragem brasileira, mas daí a falar em manipulação de resultados, ausente prova nesse sentido, é um exagero.

O que chama a atenção é a falta de interesse desse Congresso dominado por moralistas de ocasião, por drug warriors ciosos da defesa da família, da tradição e da propriedade, com o vício de brasileiros em apostas on line. Já há uma grande procura por tratamento em clínicas especializadas em tratar a compulsão por apostas esportivas [10], sem falar no aumento exponencial de pessoas fortemente endividadas em razão dessa prática nefasta.

Curiosamente, os moral cruzaders da Câmara dos Deputados e do Senado Federal agem como tigrões no que diz com o tratamento das drogas ilegais, mas são tchutchucas com as milionárias casas de apostas esportivas. Money…

Como diz o ditado, dinheiro compra até amor verdadeiro.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/09/datafolha-aponta-ampla-maioria-contra-uso-recreativo-de-maconha.shtml.

[2] https://www.voaportugues.com/a/trump-e-biden-s%C3%A3o-cautelosos-e-vagos-quanto-%C3%A0s-posi%C3%A7%C3%B5es-sobre-a-marijuana/7586161.html.

[3] https://apnews.com/article/marijuana-biden-dea-criminal-justice-pot-f833a8dae6ceb31a8658a5d65832a3b8.

[4] https://www.cofen.gov.br/conselho-nacional-de-assistencia-social-nega-reconhecimento-de-comunidades-terapeuticas/.

[5] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/25042024-Discussao-sobre-beneficios-da-cannabis-medicinal-e-criticas-ao-cultivo-marcam-encerramento-de-audiencia-publica-.aspx

[6] https://www.almg.gov.br/comunicacao/noticias/arquivos/Uso-terapeutico-do-canabidiol-ja-estaria-pacificado-na-legislacao-brasileira/?utm_source=WhatsApp&utm_medium=Btn-Compartilhar&utm_campaign=Compartilhar.

[7] Em meu livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade (Contracorrente, 2022), transcrevo a ementa dessas decisões, às páginas 546 e seguintes.

[8] https://g1.globo.com/google/amp/profissao-reporter/noticia/2023/12/21/a-gente-quer-fumar-mais-por-midia-mesmo-veja-como-cigarro-eletronico-faz-parte-da-rotina-de-jovens-influenciadores.ghtml

[9] https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2024/04/23/edicao-do-var-relatorios-e-nomes-o-que-textor-do-botafogo-mostrou-aos-senadores-na-cpi.ghtml.

[10] https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/vicio-em-apostas-online-dividas-depressao/.

Fonte: Conjur

Liberdade religiosa x proteção dos animais não humanos: debate na Corte Europeia de Direitos Humanos

A liberdade religiosa, como direito humano e fundamental altamente sensível e fundado na dignidade da pessoa humana, tem sido, de há muito, o centro e mesmo o pivô de importantes debates nos mais diversos foros, ocupando lugar permanente na agenda política, social, cultural, jurídica e mesmo econômica em escala global.

Dadas as constantes tensões envolvidas no embate entre culturas e diferentes práticas religiosas, mas também entre o exercício da liberdade religiosa e outros direitos humanos e fundamentais, ademais de outros bens jurídicos com estatura constitucional, como é o caso da proteção dos animais não humanos, trata-se de tema recorrentemente submetido ao crivo do Poder Judiciário, seja em nível nacional, seja no plano do direito internacional.

Como sabido, os casos que têm sido levados à apreciação pelo Poder Judiciário são da mais diversa natureza, envolvendo o uso de símbolos religiosos, discursos do ódio e os limites do proselitismo religioso, discriminação por orientação religiosa, feriados religiosos, sacrifício de animais para fins religiosos, objeção de consciência, dentre tantos outros.

Na coluna de hoje, o foco serão decisões que envolvem a discussão em torno do sacrifício de animais para fins de rituais de matriz religiosa, a começar por recente julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 13/2/2024, em ação proposta por treze cidadãos e sete organizações não-governamentais islâmicas e judaicas belgas impugnando decretos aprovados pelas regiões da Bélgica em 2017 e que proibiram o abatimento de animais para consumo da carne sem prévio atordoamento, alegando que tal medida estaria violando suas liberdades de pensamento, consciência e religião, ademais de invocarem estarem sendo injustificadamente discriminados em virtude de sua orientação religiosa.

Rituais

Apenas para recordar, no caso das religiões islâmica e judaica, o sacrifício dos animais para consumo da carne obedece determinados rituais, respectivamente conhecidos como métodos halal kosher, de acordo com os quais o abate é feito sem prévia sedação, mediante um corte no pescoço e deixando os animais sangrarem até a morte.

Para a Corte Europeia de Direitos Humanos, nesta recente decisão que parece significar clara inflexão no tratamento geral que vinha sendo dispensado ao tema, a restrição das liberdades [invocada e impugnada pelos autores da demanda] é legítima de acordo com os parâmetros da Convenção Europeia de Direitos Humanos, pelo fato de que se trata de intervenção proporcional, dado que o objetivo da medida é o de proteger os animais e assegurar o seu bem-estar, o qual, por sua vez, constitui exigência da moralidade pública e da própria dignidade humana, porquanto tais concepções têm caráter evolutivo e dizem respeito não apenas às relações interpessoais, mas também guardam ligação com o modo pelo qual os seres humanos convivem com os animais.

Corte Europeia de Direitos Humanos

Outro argumento esgrimido pela Corte, foi o de que as exigências da proporcionalidade foram observadas pelo fato de que os decretos belgas, embora tenham proibido o abate sem prévio atordoamento, deixaram em aberto alternativa viável, designadamente, ao permitirem o atordoamento reversível para o abate ritualístico, movendo-se, de tal sorte, no âmbito da margem de apreciação nacional que lhes era assegurada.

Além disso, ainda de acordo com a Corte, em que pese seja mais difícil ter acesso à carne halal ou kosher com a proibição estabelecida, não se trata de algo impossível, ainda mais que foi autorizada a importação de carne abatida de acordo com os rituais referidos de Estados ou regiões onde a prática é permitida.

Alemanha

Tal julgamento, por sua vez, destoa de decisão mais antiga e igualmente polêmica do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando este, em 15/1/2002, examinou situação envolvendo o abate de animais para consumo mediante observância de rituais religiosos.

Na hipótese, tratava-se de açougueiro turco, adepto do ramo sunita do islamismo, que teve o seu estabelecimento interditado pela autoridade administrativa por estar abatendo animais para consumo sem a prévia sedação (aturdimento), tal como exigido pela legislação de proteção da natureza.

A lei alemã exige a prévia sedação do animal, mas abre exceções, designadamente no caso de garantia da saúde pública e quando exigido por razões ligadas a rituais religiosos.

No caso concreto apreciado, em sede de relação constitucional, o açougueiro alegou, além da quebra do princípio da igualdade (já que a prática seria tolerada quando levada a efeito em estabelecimentos judaicos), a violação de sua liberdade religiosa e de sua liberdade de profissão, porquanto o abate seria exercido obedecendo estritamente ritual consagrado no âmbito do islamismo, mas também pelo fato de que a proibição do abate de acordo com tal ritual afetaria de modo desproporcional o negócio do reclamante, pois sua clientela era formada justamente por integrantes de comunidade religiosa que somente pode ingerir carne quando obtida de acordo com os ditames da religião.

O Tribunal Constitucional Federal alemão acabou reconhecendo a tese do reclamante, de modo a incluir o sacrifício dos animais na esfera da exceção prevista na legislação infraconstitucional, dando prevalência à liberdade religiosa, muito embora por ocasião da decisão (e é relevante que se o refira!) a proteção da fauna ainda não tivesse sido formalmente incorporada ao texto da Lei Fundamental alemã.

De todo modo, o Tribunal alemão não afastou a possibilidade de medidas de fiscalização do abate, da perícia na degola e mesmo da clientela, de modo a preservar ao máximo o dever de proteção dos animais.

Tribunal da UE

Por outro lado, no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia, decisões relativamente recentes, levando em conta a discriminação (ao menos indireta) que acaba afetando negativamente as minorias religiosas referidas, indicavam aos Estados a necessidade de admitir a exceção do abate religiosamente motivado e parecem acenar para uma diretriz de acomodação mais razoável, como explica o eminente catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada e catedrático Jean Monnet de Direito Constitucional Europeu José María Porras Ramírez:

“Así, en relación al sacrificio de animales realizado por algunas comunidades religiosas, conforme a prácticas rituales establecidas, el Derecho de la Unión, en su Reglamento 1099/2009, que trata de garantizar, con carácter general, que la muerte de los animales se produzca sin dolor, sufrimiento o angustia, contempla una excepción a la obligación impuesta de aturdimiento previo a la muerte del animal, basada en motivos religiosos, si bien exigiendo que el sacrificio se realice, cuando menos, en un matadero autorizado” (STJUE de 6 de julio de 2018, C-426/16, Asunto Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW y otros contra Vlaamst Gewest).
Posteriormente, el TJUE ha insistido en que los Estados no pueden rechazar la excepción contenida en el Reglamento, que permite el sacrificio ritual sin aturdimiento previo, pues ello supondría actuar en contra del Derecho de la Unión, sensible, en este caso, con los derechos de las minorias (STJUE de 17 de diciembre de 2020, C-336/19, Asunto Central Israëlitisch Consistorie van België y otros). No obstante, también se determinó, polémicamente, que la carne procedente de animales que hayan sido objeto de un sacrificio ritual, realizado sin aturdimiento previo, tal y como exige, con carácter general, la legislación de la Unión, no podrá llevar la etiqueta ecológica, a pesar de ser aquélla una práctica excepcionalmente permitida al amparo de la libertad religiosa (STJUE de 26 de febrero de 2019, C-497/17, Asunto OABA v. Ministerio de Agricultura y Alimentación de Francia)” [1]

CEDH acabou, sem contudo mencionar diretamente, reconhecendo aquilo que se tem designado como uma dimensão ecológica da dignidade humana, tal como, aliás, já foi objeto de referência em decisões do STJ e do STF brasileiros.

STF

E por falar em STF, não é demais lembrar a decisão paradigmática no que tange ao sacrifício ritual de animais tomada em 2019, oportunidade em que a Corte Suprema, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 494.601/RS (28/3/2019), nos termos do voto do ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme. Na ocasião, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o ministro Marco Aurélio, que assentava a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.

Sendo certo que há regra constitucional explícita que proíbe a crueldade (e tipificada a conduta de maus-tratos no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, inclusive atualizado pela Lei nº 14.064/2020), de fato a vedação não deixa de ser redundante — é dizer, para ficar muito claro, o sacrifício ritual assegurado não pode configurar maus-tratos/crueldade contra os animais; ainda, a destinação em si da carne obtida é fato posterior que depende de outras variáveis (até mesmo qual o animal sacrificado, que eventualmente poderia não ser próprio para consumo, sendo evidente, também, que há uma reserva implícita de que não poderia recair sobre espécie em risco de extinção, como parece comezinho que eventuais considerações sanitárias quanto aos despojos podem ser legítimas) e não faz parte essencial da liberdade de culto que prevaleceu.

O desafio, que permanece — até recrudesce em nível europeu, como visto —, é harmonizar a dimensão ecológica da dignidade humana, numa perspectiva intercultural inclusiva e progressiva, com a promoção da liberdade religiosa e o combate à intolerância (como orienta, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, Resolução CNJ Nº 440, de 7/1/2022), um cenário no qual a tutela das minorias sempre é uma questão frontal e um campo no qual os fundamentalismos estão sempre à espreita.

________________________

[1] – PORRAS RAMÍREZ, José María. Las minorías en la Unión Europea: la tensión entre la demanda de reconocimiento y la preservación de la identidad nacional. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC Vol. 24, n. 1 (jan./jun. 2024), pp. 1-27. São Paulo: ESDC, 2024. ISSN: 1983-2303 (eletrônica). Disponível em: http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/357.

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Uma súmula do TST pode valer mais do que um dispositivo do CPC?

1. O relato de um caso de desvio hermenêutico de sentidos

O advogado José Ramiro Pimentel Cordeiro de Almeida escreveu interessante artigo aqui na ConJur (ver aqui). Mostrou um interessante caso de desvio hermenêutico de sentidos. O caso demonstra o modo como, no estado atual do relativismo interpretativo em que nos encontramos, até os casos fáceis (easy cases), em que qualquer olhar textual resolveria, transforma-se, por meio de voluntarismos hermenêuticos, em tragic cases.

O caso: oriundo da Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (ROT – 298-02.2018.5.05.0000), tratou-se de acórdão proferido em recurso ordinário contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região que acolheu a decadência e extinguiu uma ação rescisória.

Para o TRT-5, era um easy caseo termo inicial do prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória conta-se da data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O TRT-5 tão-somente leu corretamente o que diz o CPC (artigo 975). Para explicar: segundo o TRT-5, o prazo decadencial começou exatamente no dia do trânsito e não no dia seguinte. A parte perdeu porque ingressou com a rescisória contando o prazo a partir do dia seguinte do trânsito. Essa questão de “um dia” fez toda a diferença. E, por isso, foi ao TST.

2. Onde está escrito x, leu-se y: o entendimento da SDI-II do TST

O que aconteceu? Ao julgar o recurso ordinário do autor, a Subseção II Especializada em Dissídio Individuais do TST entendeu que o prazo decadencial para a propositura da ação desconstitutiva iniciou-se no dia seguinte ao trânsito em julgado. Por isso, não estaria configurada a decadência. Isto é, haveria um dia a mais. E, assim, a rescisória estaria no prazo.

O TST citou a seu favor precedente do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgRg na AR 3.792/PR, 1ª Seção, de 2014, relator o ministro Mauro Campbell Marques, assim como a Súmula 100, I, do próprio Tribunal, de edição anterior ao CPC-2015. Além do julgado do ministro Campbell ser anterior ao CPC, tratou de caso distinto, falando da contagem do prazo apenas em obiter dictum porque a questão central a ser decidida era a aplicabilidade do prazo em dobro para procuradores diversos que haviam sido constituídos no transcurso do processo.

No caso do precedente citado, a decisão que se postulava rescindir foi publicada no Diário de Justiça da União em 23 de maio de 2005, transitando em julgado na data de 7 de junho de 2005, após escoar-se o prazo para interposição de recurso extraordinário, e a ação rescisória somente foi protocolada em 22 de junho de 2007. Portanto, neste caso já havia passado o prazo da rescisória; de qualquer sorte, só seria cabível em caso de prazo dobrado em razão dos procuradores diversos.

Aqui surge um problema: quando se dá efetivamente o trânsito em julgado. A decisão do STJ referida é de 2014 e o acórdão que transitou em julgado é 2005. Portanto, é anterior a Lei n° 11.419/06, que regulamentou o processo eletrônico, a qual é expressamente referida no caso julgado pelo TST. No caso do STJ os autos eram físicos, no caso do TST os autos são digitais.

Como o trânsito em julgado nos autos digitais se dá no dia subsequente ao fim do prazo de interposição de recurso, o TST aplicou a Súmula 100 do tribunal, que diz em seu inciso ‘I’: “O prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do dia imediatamente subsequente ao trânsito em julgado da última decisão proferida na causa, seja de mérito ou não”.

Quanto à Súmula 100, o TST já se manifestou por diversas vezes referindo que esta permanece hígida e que não há antinomia entre a súmula e a nova redação do código de processo civil (A compatibilidade entre as novas diretrizes do CPC e a Súmula nº 100 já foi tema enfrentado por esta SBDI-II, que concluiu inexistir antinomia jurídica alguma entre eles. [Ação Rescisória nº 1000481-86.2021.5.00.0000, rel. min. Amaury Rodrigues Pinto Junior, julgada em 14/09/2021]).

Portanto, de um lado existe o TST invocando uma antiga súmula; de outro, o STJ (e o CPC). Quando do julgamento do Tema 552 (19/11/2014), rel. min. Laurita Vaz, estabeleceu-se que: “O termo “a quo” para o ajuizamento da ação rescisória coincide com a data do trânsito em julgado da decisão rescindenda. O trânsito em julgado, por sua vez, se dá no dia imediatamente subsequente ao último dia do prazo para o recurso em tese cabível”. Portanto, para o STJ o prazo começa a fluir do dia efetivo do trânsito em julgado, com o efetivo computo do dia; enquanto o TST entende que o prazo passa fluir a partir do dia seguinte.

De todo modo, mesmo em tempos de crescente jurisprudencialização do direito legislado, (o direito que vale é o que os tribunais decidem), vale ler o artigo 975 do CPC: “O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo”.

A literalidade também faz parte do direito. Não é proibido fazer coincidir texto e sentido do texto, mormente quando se trata de datas e aferição de prazos. Por exemplo, se o prazo é de 15 dias, não pode ser 16. Há casos claros no direito.  E não há proibição de sinonímias. No caso em discussão, contar do trânsito em julgado não admite dizer “no dia seguinte à data do trânsito em julgado”. Há, ademais, vários julgados do STJ nesse sentido [1].

Em suma: para além dos casos concretos, parece claro que o que deve valer é a dicção do artigo 974 do CPC.

3. O problema dos limites textuais

Afinal, o que é interpretar? É dar sentido. Mas não qualquer sentido. Deixemos sempre que o texto nos diga algo, antes de qualquer outra coisa.

Aqui não se pode nem dizer que haja divergência de opiniões entre o TST e o STJ, uma vez que o TST está utilizando uma sumula que contraria previsão expressa do CPC. E isso é inadequado em termos hermenêuticos. Divergência existe quando é possível que qualquer das duas teses tenha plausibilidade. No caso, é impossível dizer que a Sumula 100, I, valha mais do que o artigo 975 do CPC. Mesmo que a súmula estivesse “correta”, ainda assim não se pode deixar de dar validade à lei. O sistema jurídico ainda é civil law. Não existe antinomia entre o CPC e uma súmula do TST.

Ou isso ou perderemos a dignidade epistemológica da legislação. E então deveremos assumir que o sentido do direito é o que o Tribunal diz, mesmo que esse sentido contrarie a lei.

Estas reflexões pretendem contribuir para o debate. Um debate sobre o valor da lei e da dignidade da legislação. E questionar a crescente jurisprudencialização do direito. O objetivo central é esse.

Precisamos falar sobre esse assunto. E tantos outros. Os advogados que o digam.

Por isso, o processo em pauta, trazido pelo causídico José Ramiro, pode ser um importante marco na discussão dos limites hermenêuticos.


[1] AR 5.931/SP, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Ratificação de voto; 2ª Seção, DJe 21/06/2018), na Ação Rescisória Nº 7667 – SE (2024/0038681-8), relator ministro Herman Benjamin (DJ 27/02/2024) e Agravo em Recurso Especial nº 2.473.909 – PR (2023/0317312-1), relator ministro Herman Benjamin (DJ 11/3/2024).

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Lista de bens sem direito a crédito dá segurança à reforma tributária, dizem tributaristas

projeto de regulamentação da reforma tributária, apresentado pelo governo federal ao Congresso no último dia 25, prevê uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais, e que, por isso, não darão direito a créditos dos impostos a serem implementados — Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Em projeto de regulamentação da reforma, governo propôs listar bens e serviços de uso e consumo pessoal – Freepik
 

 

 

Para a maioria dos tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o assunto, a opção de propor tal lista é positiva, pois garante segurança jurídica e previsibilidade quanto às hipóteses nas quais não haverá crédito — ao contrário do que ocorre hoje e do que havia sido previsto na emenda constitucional anterior à regulamentação da reforma.

No sistema tributário atual, chegam ao Judiciário muitas discussões sobre o direito a créditos em diversas situações, já que os critérios variam conforme os diferentes impostos e suas previsões legais abrem margem para diversas interpretações.

O que diz a proposta

A primeira — e, até o momento, única — versão do Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024 proíbe a “apropriação de créditos do IBS e da CBS sobre a aquisição” de uma lista de bens e serviços considerados de uso e consumo pessoais.

São eles: joias, pedras e metais preciosos; obras de arte e antiguidades “de valor histórico ou arqueológico”; bebidas alcoólicas; derivados do tabaco; armas e munições; e “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”.

O artigo 29 prevê de forma expressa uma exceção à regra proposta: haverá direito a crédito quando os bens e serviços citados “forem necessários à realização de operações pelo contribuinte”.

O dispositivo também explica que os bens da lista são considerados necessários para as operações do contribuinte “quando forem comercializados ou utilizados para a fabricação de bens comercializados”.

As armas e munições precisam ser utilizadas por empresas de segurança para dar direito a crédito. Já os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos” entram na exceção quando “forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

Problema da emenda

A primeira etapa da reforma tributária, incluída na Constituição, previu a possibilidade de não haver direito a crédito para bens de uso ou consumo, mas não definiu esse conceito. Em vez disso, delegou essa tarefa a uma futura lei complementar regulamentadora.

Isso foi visto como um problema. A advogada Ana Cláudia Utumi explica que a preocupação é “a amplitude que pode ter essa definição”. Tal amplitude dá à fiscalização a possibilidade de identificar e questionar o que seriam uso e consumo pessoais.

“O conceito de excluir o creditamento dos bens de uso e consumo pessoais é uma medida ruim”, pontua ela. De qualquer forma, isso já passou pelo Congresso no fim do último ano e está previsto na Emenda Constitucional 132/2023.

Maurício Barros, sócio do escritório Cescon Barrieu, sinaliza que a falta de definição do conceito de bens de uso e consumo na EC 132/2023 abriu brecha para que muitas polêmicas sobre o tema fossem levadas ao Judiciário.

Muitos casos tributários que hoje chegam ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça discutem, por exemplo, se determinado bem é considerado essencial ou relevante para a atividade da empresa. Ou seja, a definição sobre o direito ou não ao crédito muitas vezes só é feita no Judiciário.

Isso ocorre porque, na legislação, existem critérios diferentes sobre esse direito para cada tributo não cumulativo (PIS, Cofins, ICMS e IPI).

“No sistema atual, a restrição ao direito de crédito é objeto de enorme contencioso, dado que sempre se optou por utilizar expressões genéricas para definir o que daria, ou não, direito a crédito”, aponta Luiz Gustavo Bichara.

Com isso, surgiram “discussões enormes sobre o conceito de insumos, o que seria essencial para uma indústria ou um prestador de serviços, ou o que se incorpora ao produto final”. Para Bichara, esses debates são muito subjetivos e trazem insegurança.

O intuito da reforma tributária é simplificar o sistema atual e corrigir seus erros e brechas. Mas, segundo Barros, a emenda constitucional reproduziu um “vício” do sistema atual ao não definir o conceito de bens de uso e consumo.

A chance de consertar

Por isso, a criação de uma lista para definir os bens de uso e consumo pessoais é vista como uma forma de contornar a brecha aberta pela EC 132/2023. Isso porque a proposta gera, segundo Barros, “precisão sobre o que não vai dar direito a crédito”.

De acordo com o advogado, “trazer uma lista fechada daquilo que não dá direito ao crédito é bom, porque objetiva” as situações — algo diferente do que ocorre no sistema atual.

Assim, sair do cenário atual para um sistema com uma lista é, para ele, “um avanço enorme”. Barros considera que a lista é, “no geral, uma boa opção legislativa”.

Bichara também acredita que a opção é positiva: “A lista restritiva é mais clara e confere certeza”.

Ana Cláudia tem a mesma opinião. Ela entende que a listagem das situações é boa, “na medida em que não deixa espaço para a interpretação caso a caso pela fiscalização”.

Para Fábio Pallaretti Calcini, professor da FGV Direito SP, a lista é um “direcionamento bem-vindo”, que “daria uma ótima previsibilidade e segurança jurídica neste início de caminhada”.

Ele também destaca a boa opção do governo em não sugerir uma “vedação absoluta” — já que há a exceção para bens e serviços necessários às operações do contribuinte. “Negar crédito de antemão, na minha visão, seria inconstitucional.”

Calcini, porém, faz uma crítica à proposta. Na sua interpretação, a lista é exemplificativa. E o tributarista considera que “deveria ser um rol taxativo” — ou seja, com a regra limitada aos itens listados.

Itens podem ser debatidos

De acordo com Ana Cláudia, “a lista contida no artigo 29 do PLP é bastante razoável”. Ela não vê itens que deveriam ser retirados.

“Ainda que possa haver alguma divergência quanto a um ou outro item, pelo menos temos uma definição clara do que não dará direito a crédito”, afirma Bichara.

Já Calcini ressalta que, caso haja questionamentos, a lista ainda pode ser alterada durante a tramitação no Congresso.

Barros, por sua vez, preocupa-se apenas com o “subjetivismo” da regra sugerida para os “bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos”, já que há a exceção “quando forem utilizados, preponderantemente, pelos adquirentes dos seus bens e serviços em estabelecimento físico”.

O problema, para ele, é saber o que seria “preponderantemente” e quem precisaria provar isso — se o próprio contribuinte ou o fiscal. Na visão dele, isso pode gerar alguma confusão.

Discordâncias

Apesar dos fartos elogios, há quem não concorde com a criação de uma lista para o tema. É o caso do advogado Fabio Florentino, sócio do Demarest. “A escolha adotada pelo governo federal para o PLP não me parece ser a mais adequada.”

Embora ele veja sentido em “restringir o aproveitamento de créditos às atividades do contribuinte” e excluir “os gastos não relacionados com o negócio da empresa”, Florentino diz que a ideia de criar uma lista de bens “não soa salutar”.

Isso porque um mesmo bem “pode ser de uso pessoal para o contribuinte de um determinado setor da economia”, mas ao mesmo tempo “pode ser ligado à operação de outro”.

Como exemplo, ele cita as pedras preciosas. Elas podem ser usadas “como joias para ornamento das pessoas físicas”, mas diamantes também podem ser utilizados “em equipamento de cortes no processo industrial da indústria de vidros”.

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Para especialistas, decisão do STF garante controle externo de investigação do MP

O estabelecimento de prazos para investigações de natureza penal e a obrigação de informar à Justiça sobre novas apurações garantem maior controle externo sobre o Ministério Público, conforme afirmaram os especialistas no tema consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Na última quinta-feira (25/4), o Supremo Tribunal Federal formou maioria no sentido de que o MP tem competência para promover investigações de natureza penal, mas as apurações pressupõem a comunicação ao juiz competente e a observância dos mesmos prazos previstos para a conclusão de inquéritos policiais.

A Justiça deverá ser informada sobre a abertura de novas investigações e sobre seu encerramento. O inquérito policial tem prazo de dez dias em caso de indiciado preso e de 30 dias quando o investigado estiver em liberdade.

Além do prazo e da necessidade de comunicação ao Judiciário, o Supremo discute se o Ministério Público deverá obrigatoriamente abrir procedimento investigatório sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infrações penais ou sempre que mortes, ferimentos graves ou “outras consequências sérias ocorrerem em virtude da utilização de armas de fogo por esses mesmos agentes”.

Mais controle externo

Para Rafael Paiva, advogado criminalista e professor de Direito Penal, Processo Penal e Lei Maria da Penha, a obrigação de respeitar prazos e informar sobre novas investigações garante maior controle externo sobre as apurações do Ministério Público.

“Já é pacífico que o MP pode fazer investigação de natureza penal. Porém, não há controle externo, diferentemente do inquérito policial exercido pela polícia judiciária, em que o MP faz o controle externo”, explica o especialista.

Segundo ele, é importante em especial a necessidade de pedido de prorrogação de prazo, para evitar que continuem existindo investigações por período indeterminado.

“O MP hoje exerce esse poder de investigação, mas não há fiscalização e controle externo de prazo. O controle é feito internamente, pelo próprio MP, o que é prejudicial e não traz a transparência necessária para esse tipo de investigação.”

No entendimento do delegado da Polícia Civil André Santos Pereira, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, a fixação de prazos homenageia o sistema de pesos e contrapesos e a separação de poderes, além de preservar princípios institucionais no âmbito da investigação criminal.

“A decisão que está sendo insculpida impõe limites ao Ministério Público e vem ao encontro da lógica do Estado democrático de Direito, no sentido de que as instituições públicas e os poderes podem muito, mas não podem tudo.”

“Temos atualmente o MP realizando investigações criminais que duram meses ou anos, sem qualquer controle ou supervisão externa. Tendo esse ponto de partida dos prazos estabelecidos pelos inquéritos policiais, será possível esse controle, com base em um critério muito consolidado, que é o dos inquéritos policiais”, conclui Pereira.

Mais celeridade

Rubens Beçak, professor da graduação e da pós-graduação da Universidade de São Paulo, afirma que existe atualmente um descompasso entre os prazos estabelecidos para as investigações do MP e as das polícias, o que deve ser solucionado com a decisão do Supremo.

“Essa tendência do STF de equiparar os prazos é no sentido de realmente dar uma celeridade maior a esse tipo de investigação. A corte está procurando ordenar a situação toda e equiparando as investigações do MP com aquele inquérito que é o mais tradicional, que é o feito pela polícia.”

Ainda segundo ele, a decisão pode ser vista como uma tentativa do STF de efetivar a implementação do juiz das garantias, responsável por exercer o controle externo na fase de investigação.

Já Thiago Turbay, criminalista e sócio do escritório Boaventura Turbay Advogados, criticou a necessidade de o MP informar sobre os passos da investigação. Para ele, “tal modelo não parece compatível com um sistema de Justiça Criminal interessado em dificultar a ocorrência de abusos e arbitrariedades, ampliando as garantias e liberdades individuais”.

“O Ministério Público atua como órgão de controle da atividade policial, o que demandaria um padrão de fiscalização daquilo que é produzido pela polícia e seus métodos. Sendo ator cooperativo do procedimento policial, o controle fica dificultado em razão das conveniências de se somar ao invés de impor limites.”

Crimes de agentes públicos

Alguns dos especialistas ouvidos pela ConJur afirmaram que a obrigatoriedade de o MP investigar crimes cometidos por agentes de segurança pública fere a autonomia do órgão — esse tema, no entanto, ainda não foi decidido totalmente pelo Supremo, já que a definição deve ocorrer nesta quinta-feira (2/5), quando a corte fixará a tese.

“No que tange às investigações envolvendo agentes de segurança pública, a obrigatoriedade é equivocada. Entendo que o MP deve ter autonomia para investigar eventos dessa natureza. E, nessa perspectiva, temos a possibilidade de não existir duplicidade de investigações”, disse o delegado André Pereira.

Rafael Paiva também afirmou que a investigação não deve ser obrigatória porque a imposição é exagerada e porque o Ministério Público não teria condições estruturais para atender a esse tipo de ocorrência.

“Parece-me estranho cada vez mais tirar poder das policiais judiciárias e passar pro MP e pra Polícia Militar. Precisamos, na verdade, dotar as polícias com equipamentos, estrutura e condições técnicas de realizar investigações.”

Rafael Valentini, criminalista e sócio do FVF advogados, discorda dos colegas. Para ele, o MP deve ser, acima de tudo, fiscal da lei.

“Portanto, qualquer ilícito ou irregularidade que venha a ser de seu conhecimento não pode ser relegada, especialmente quando cometida por agentes públicos. Além disso, essa conclusão visa a evitar a condescendência com casos de abuso de autoridade e uso desproporcional da repressão.”

A análise do STF

O julgamento do STF envolve três ações diretas de inconstitucionalidade. Na primeira (ADI 2.943), o Partido Liberal (PL) questionou dispositivos de leis que regem os MPs estaduais e o Ministério Público da União. A legenda afirmou que o artigo 25 da Lei Orgânica do MP é inconstitucional por permitir inquéritos civis e procedimentos administrativos.

Já as ADIs 3.309 e 3.318 foram ajuizadas pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil contra incisos do artigo 8 da Resolução 77/04. O diploma dispõe sobre organização, atribuições e estatuto do MP. E também permite a instauração e tramitação de procedimento investigatório criminal.

O julgamento foi retomado na quarta-feira passada (24/4) com um voto conjunto formulado pelos ministros Edson Fachin, relator das ações, e Gilmar Mendes. Segundo o posicionamento, apesar da competência do MP para promover investigações de natureza penal, o juiz competente deve ser informado sobre a instauração e o encerramento dos procedimentos investigatórios.

Fonte: Conjur

O inadimplemento obrigacional e o patrimônio mínimo rural

O Senado recebeu oficialmente no dia 17 de abril de 2024 o anteprojeto do Código Civil elaborado por uma laboriosa e compromissada comissão de juristas. As sugestões de mudanças e atualizações que irão impactar a vida do cidadão têm efeitos desde antes do nascimento até depois da morte do indivíduo, passando pelo casamento, regulação de empresas, direito digital e contratos, além de regras de sucessão e herança.

Melanie Lemahieu

Para os operadores do direito que acompanham seriamente a matéria civil, diga-se, jurisprudencial e doutrinária, especialmente no que cerne a realidade interpretativa normativa espelhada pelo STF e pelo STJ, perceberão que a revisão apresentada acompanha os entendimentos majoritários dos tribunais de superposição e a doutrina contemporânea em diversos temas. Qualquer crítica infundada e compartilhada por propagadores de notícias falsas em determinados meios, nada é mais que uma “bomba ideológica, fazendo crer que a reforma abrangeria temas como a legalização do aborto, possibilidade de uniões poligâmicas e dentre outros.

Mauricio Bunazar, em seu canal do Instagram, recomendou para os propagadores de fake news: “Antes de criticar, leia o anteprojeto e apresente críticas construtivas”. Na mesma linha de coerência ressaltou o professor Flávio Tartuce em sua manifestação no Senado: “Longe de ser perfeito o anteprojeto é necessário a profusão de debates e ajustes pelo Congresso Nacional”.

Como entusiasta do anteprojeto, ocupo deste simples artigo para pontuar sobre um ajuste redacional contido na parte especial, Livro I, Título IV, relacionado ao instituto do inadimplemento das obrigações, cujo apontamento tem como escopo precípuo fazer cumprir os ideais acadêmicos do direito civil constitucional.  

Foi acrescido no anteprojeto o artigo 391-A — a teoria do patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar, a qual é amparada pela perspectiva da dignidade da pessoa humana, sendo que as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio.

Sob esse enfoque, restou expresso ser intangível por ato de excussão pelo credor as seguintes hipóteses:

§1º Além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis:

I – a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio;

II – o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família;

III – a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família;

§ 2º Considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade.

3º A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família.

O ponto específico do ajuste redacional recai no §1, inciso II, atinente à medida adotada pela comissão de juristas, uma vez que o módulo rural descrito na redação não foi a medida escolhida pelo Tema 961 do STF, em que analisou a garantia de impenhorabilidade da pequena propriedade rural familiar, protegida nos termos do inciso XXVI do artigo 5º da Constituição.

Estatuto da Terra

O relator Edson Fachin analisou de forma percuciente, tanto a Lei do Estatuto da Terra, que menciona o modulo rural como medida (artigo 4, III da Lei 4.505/1964), quanto a Lei da Reforma Agrária Lei nº 8.629/1993 (artigo 4, II, a), que define a pequena propriedade com área rural até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento.

Nesse sentido, entendeu-se que o conceito do artigo 4, II, ‘a’, da Lei nº 8.629/1993, seria a medida em que delimita a pequena propriedade rural como sendo a mais adequada, pois, outras leis vêm empregando o conceito de modulo fiscal enquanto parâmetro para definir a pequena propriedade rural ou familiar.

São exemplos a Lei 11.326/2006, que fixa quatro módulos fiscais como limite para considerar agricultor familiar e empreendedor familiar rural para fins de formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, nos termos do artigo 3o, I.

No mesmo sentido o Decreto 9.064/2017, no artigo 3o, I, que dispõe sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária, ao instituir o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar, prescreve que a Unidade Familiar de Proteção Agraria e o empreendimento familiar rural deverão atender determinados requisitos, e o primeiro deles é “possuir, a qualquer título, área de até quatro módulos fiscais”.

Ainda podemos citar o Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012), que também utiliza os parâmetros da Lei da Reforma Agrária, definindo, no artigo 3o, V, a pequena propriedade ou posse rural familiar como “aquela explorada mediante o trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no artigo 3º da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006“.

Ou seja, fazendo remissão ao mesmo limite de quatro módulos fiscais. Na seara previdenciária, o de extensão e empregado, nos termos do artigo 11, VII, ‘a’, para caracterização do segurado especial, ou seja, pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros explora atividade agropecuária em área de até quatro módulos fiscais.

Feito essas considerações, sugestionamos que o Senado, quando da apreciação do Anteprojeto, tenha a acuidade de verificar pontos como o proposto, objetivando dar maior segurança jurídica nessa inter-relação do direito civil, direito agrário e constitucional.

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STJ unifica tese que afasta nulidade de multas do Ibama por restrição à defesa

A anulação da multa aplicada pelo Ibama pelo fato de o infrator ter sido intimado por edital para apresentar alegações finais no processo administrativo depende da demonstração de que houve prejuízo à defesa.

Multa foi aplicada após processo em que o infrator foi notificado por edital – Freepik

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial do Ibama para validar a multa de R$ 40 mil aplicada a uma empresa que descumpriu normas administrativas ambientais.

O resultado unifica a posição do STJ sobre o tema da intimação do infrator por edital para apresentação de alegações finais no processo administrativo. A 2ª Turma tem precedente que classifica o procedimento como válido e sem prejuízo à defesa.

Essa posição é importante para o Ibama porque o procedimento de notificação por edital foi adotado em 183 mil processos administrativos, que correspondem a 84% das autuações por infrações ao meio ambiente. Isso representa R$ 29 bilhões em multas que poderiam ser afetados.

No caso concreto julgado pela 1ª Turma, a infração que levou à aplicação da multa foi o desligamento proposital do rastreador por satélite de uma embarcação pertencente à empresa.

O Ibama sabia o endereço do infrator, mas preferiu fazer a intimação para apresentação de alegações finais no processo administrativo por edital. O resultado foi a condenação ao pagamento da multa sem a devida defesa, de acordo com o réu.

Voto do ministro Paulo Sérgio Domingues levou a mudança de posição do colegiado – Lucas Pricken/STJ

 

Mudança de posição

O resultado na 1ª Turma foi unânime, conforme a posição do relator, ministro Paulo Sérgio Domingues. O julgamento foi encerrado no último dia 16, após voto-vista do ministro Gurgel de Faria.

Isso representa uma mudança de jurisprudência. O colegiado tem dois precedentes anteriores em que reconheceu a nulidade pela não intimação pessoal do infrator ambiental.

Para o relator, uma nova reflexão é necessária porque o tema é regulado pela Lei 9.605/1998, que no artigo 70, parágrafo 4º, estabelece um processo administrativo próprio para os casos de atividades lesivas ao meio ambiente.

Esse processo próprio é determinado pelo Decreto 6.514/2008, cuja redação, que vigeu até 2019, fixava que a intimação por edital só poderia ocorrer quando a autoridade julgadora não agravasse a penalidade ao interessado. Esse era o texto original do artigo 122.

Se houvesse a possibilidade de agravamento da penalidade, o artigo 123, parágrafo único, obrigava a intimação pessoal. Foi nesse contexto que as 183 mil multas foram aplicadas pelo Ibama.

Já no processo administrativo geral, regido pela Lei 9.784/1999, a intimação realmente deve ser feita por meio que assegure certeza da ciência do interessado. O artigo 26, parágrafo 3º, cita ciência no processo por via postal com aviso de recebimento ou por telegrama.

Para o ministro Paulo Sérgio Domingues, esse cenário impede que todas essas multas sejam anuladas com base na defesa em abstrato do devido processo legal e da ampla defesa.

REsp 1.933.440

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Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados