Negociação trabalhista deve preceder tutela estatal, diz ministro do TST

O Direito do Trabalho no Brasil deve consolidar um novo modelo que privilegie a negociação coletiva em detrimento da regulação direta do Estado. Essa negociação deve ser conduzida por entidades sindicais representativas, que operem de forma democrática e em harmonia com os interesses de seus representados.

Essa foi a visão expressada pelo ministro Douglas Alencar, do Tribunal Superior do Trabalho, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico durante o IV Congresso Nacional e II Internacional da Magistratura do Trabalho, promovido em Foz do Iguaçu (PR) no final de novembro. O Anuário da Justiça do Trabalho 2025 foi lançado no evento.

“A Constituição é muito clara no sentido de facultar, aos atores sociais, a recusa à intervenção do Estado para essa arbitragem de conflitos coletivos. Uma arbitragem pública de conflitos coletivos, que nada mais é do que o poder normativo da Justiça do Trabalho. Nós estamos aqui discutindo um novo modelo que deve ter a negociação coletiva como seu palco central, afastando o Estado da regulação”, sintetiza.

Transição de modelos

O ministro relembrou as origens do Direito do Trabalho no Brasil desde a década de 1930, que consolidou o poder dos sindicatos, até a reforma trabalhista de 2017, que flexibilizou regras e buscou a prevalência do negociado sobre o legislado.

Apesar desses avanços, Alencar avalia que o o país ainda enfrenta um quadro de relativa insegurança jurídica, pois não há uma posição clara da Justiça do Trabalho, especialmente do TST, sobre o significado da autonomia negocial coletiva prevista na reforma.

“Enfrentamos, portanto, um instante de transição em que o modelo pensado a partir da década de 1930 insiste em se manter entre nós. E o modelo que foi gestado em 2015 e 2017 ainda procura o seu espaço de afirmação nesse ambiente.”

O ministro ressaltou a importância de um julgado recente do TST. Em tese aprovada em plenário, em novembro, a corte determinou que o sindicato pode ajuizar dissídio coletivo se a organização patronal se recusar a negociar sem justificativa.

O tribunal resolveu uma controvérsia que se observava desde a discussão do Tema 841 do Supremo Tribunal Federal. O STF fixou na ocasião, em 2020, que é necessária a concordância de ambas as partes (patrão e empregado) para dar início a um dissídio, mas faltavam balizas para definir em que situações a recusa à negociação seria legítima.

“Entendeu-se que haveria a necessidade de nós examinarmos eventuais recusas de empresas ou sindicatos patronais à negociação coletiva como condição de legitimidade dessa recusa. Ou seja, só seriam admitidas recusas fundadas em boa fé”, explicou o ministro.

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

https://youtube.com/watch?v=Hnv-zbWRIdE%3Fsi%3DjIJ0fhS-yI5dMp59

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Especialistas debatem limites e possibilidades da revisão criminal

A comissão especial da Câmara dos Deputados que analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 18/25 se reúne nesta quarta-feira (10) para analisar o relatório do deputado Mendonça Filho (União-PE). A reunião está marcada para as 14 horas no plenário 8.

O relator da proposta, deputado Mendonça Filho (União-PE), apresentou seu parecer aos líderes partidários em reunião nesta terça-feira (9). A previsão é que o texto seja votado na próxima semana.

Em seu texto, o relator estabelece, entre outros pontos, a ampliação da competência da Polícia Federal, a previsão de um referendo popular sobre a redução da maioridade penal para menores envolvidos no crime organizado e crimes violentos e a autorização para medidas cautelares que busquem asfixiar empresas envolvidas com facções criminosas, como expropriação de bens de empresas.

Elaborada pelo governo federal, a PEC 18/25 reconfigura a estrutura de segurança pública no Brasil, buscando maior integração e coordenação entre os diferentes níveis federativos e órgãos de segurança.

Fonte: Câmara dos Deputados

A prova técnica como eixo do Direito do Trabalho e Previdenciário

As recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) reacenderam um debate que há anos divide especialistas: afinal, qual é o peso efetivo da prova técnica na definição de adicional de insalubridade e na cobrança de contribuições previdenciárias relacionadas aos riscos ambientais do trabalho?

O Judiciário tem sinalizado uma resposta clara. Em julgados recentes, tanto o TST quanto o TRF-4 reconheceram que a neutralização do agente nocivo por meio de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) afasta o pagamento de adicionais de insalubridade e de contribuições majoradas. O contraste, porém, surge quando observamos a postura da Receita Federal, que segue ampliando a cobrança do adicional por Riscos Ambientais do Trabalho (RAT), mesmo diante de documentação técnica comprobatória de redução de exposição.

Essa assimetria revela uma realidade desconfortável: convivem hoje no país duas lógicas distintas — uma trabalhista e outra previdenciária — que impactam diretamente a segurança jurídica das empresas.

Trabalhista x Previdenciária: a dissonância entre os sistemas

No campo trabalhista, o entendimento é objetivo: se o EPI neutraliza o risco e reduz a exposição para níveis seguros, não há adicional de insalubridade. Já na esfera previdenciária, o Supremo Tribunal Federal consolidou que a simples presença do agente nocivo pode justificar o direito à aposentadoria especial, ainda que o equipamento seja eficaz.

Isso significa que um trabalhador pode não ter direito ao adicional de insalubridade, mas ainda assim gerar contribuição majorada ao RAT. É essa incongruência que tenho chamado de “dissonância regulatória”, pois cria insegurança jurídica, onera empresas que investem corretamente em saúde e segurança e tensiona o relacionamento com a fiscalização.

Prova técnica como elemento central

O que muda, então, diante dos novos julgados? A disposição do Judiciário de valorizar não apenas a existência de EPIs, mas a gestão real de riscos, comprovada por documentação robusta e coerente. A simples entrega do equipamento não basta. O que importa é demonstrar, com consistência técnica e continuidade, que o EPI reduz efetivamente a exposição ao agente nocivo.

Na prática, empresas que mantêm programas de saúde e segurança avançados — com treinamentos periódicos, medições atualizadas, audiometrias e auditorias internas — passam a ter maior segurança jurídica tanto para afastar adicionais de insalubridade quanto para contestar cobranças previdenciárias indevidas.

O eSocial como base oficial de risco

Com o avanço das estratégias de fiscalização da Receita Federal, baseadas no cruzamento automático de dados do eSocial, a coerência documental tornou-se imprescindível. Qualquer divergência entre o que consta no sistema e o que está no PGR, no LTCAT ou nas medições ambientais cria uma presunção desfavorável e pode resultar em autuações.

Para comprovar a neutralização do agente ruído, por exemplo, é necessário compor um dossiê técnico consistente, que envolva:

  • medições ambientais conforme NHO-01;
  • LTCAT e PGR coerentes e atualizados;
  • histórico de audiometrias que evidencie ausência de perda auditiva relacionada ao trabalho;
  • entregas de EPI com CA válido e com nível de atenuação compatível com o risco;
  • treinamentos registrados e fiscalização real do uso.

Quando esses documentos dialogam entre si, a capacidade de afastar o adicional de insalubridade aumenta significativamente.

Erros recorrentes das empresas

Ainda é comum observar falhas que não decorrem da ausência de EPI, mas da incapacidade de comprovar sua gestão. Laudos que não conversam entre si, certificados de EPI vencidos, ausência de fiscalização de uso e falta de audiometrias periódicas são alguns dos problemas que fragilizam a defesa empresarial.

Sem coerência documental, o risco de autuação — trabalhista ou previdenciária — é elevado.

Como responder aos avisos de cobrança do RAT

Diante das notificações automatizadas da Receita, a orientação é adotar uma postura integrada entre setores trabalhista, fiscal e previdenciário. O primeiro passo é realizar uma auditoria ampla: PGR, LTCAT, medições ambientais, histórico de entrega e uso de EPIs, audiometrias e informações do eSocial. Havendo neutralização comprovada, monta-se um dossiê técnico consistente. Caso contrário, a autorregularização pode ser necessária para evitar multas que podem chegar a 75%.

É importante ponderar que regularizar sem questionar pode cristalizar um custo previdenciário permanente. Cada caso exige uma análise criteriosa.

O que pode mudar com o STF

Nos próximos meses, o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a ADI 7773, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que questiona a lógica atual de cobrança do RAT. O julgamento poderá redefinir a forma como a Receita Federal aplica o Tema 555 e como as empresas comprovam a neutralização dos riscos.

Seja qual for o desfecho, o fato é que a prova técnica volta ao centro do debate jurídico. E, diante da evolução dos mecanismos de fiscalização, as empresas que investirem em gestão integrada de risco, documentação coerente e atualização contínua estarão mais preparadas para enfrentar as controvérsias que se desenham no horizonte.

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STF encerra primeiro dia do julgamento do marco temporal

O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o primeiro dia das sustentações das partes envolvidas em quatro processos que tratam do marco temporal para demarcação de terras indígenas.

Dois anos após a Corte declarar o marco inconstitucional, os ministros voltaram a julgar a questão na sessão desta quarta-feira (10). Foram ouvidas as sustentações das principais entidades que fazem parte da discussão.

O julgamento vai continuar nesta quinta-feira (11), quando a Corte pretende encerrar a fase das manifestações das partes. A data da votação dos ministros será marcada posteriormente.

Em 2023, o STF considerou que o marco temporal é inconstitucional. Além disso, o marco também foi barrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vetou a Lei 14.701/2023, na qual o Congresso validou a regra. Contudo, os parlamentares derrubaram o veto de Lula.

Dessa forma, voltou a prevalecer o entendimento de que os indígenas somente têm direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial na época.

Após a votação do veto presidencial, os partidos PL, PP e Republicanos protocolaram no STF ações para manter a validade do projeto de lei que reconheceu a tese do marco temporal.

As entidades que representam os indígenas e partidos governistas também recorreram ao Supremo para contestar novamente a constitucionalidade da tese. 

Sustentações

O advogado Ricardo Terena falou pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e reafirmou que os direitos fundamentais dos indígenas são inegociáveis. Terena sustentou que a tese do marco temporal é uma afronta aos direitos indígenas e um desafio à autoridade da Constituição.

“Quando achamos que a Constituição seria plena para nós, povos indígenas, ela continuou sendo quase. Desde o protocolo das ações diretas de inconstitucionalidade, a lei não foi suspensa e sua promessa de paz social jamais se concretizou nos territórios indígenas”, disse. 

Indígena e advogado, Dinanam Tuxá se manifestou na condição de representante do PSOL. Ele fez um relato sobre sua situação pessoal e disse que sua comunidade foi removida de um território indígena, em função da construção de uma usina hidrelétrica na Bahia, e ainda não conseguiu retomar o território.

“Não aceitamos ser removidos para áreas equivalentes. Para nós, não há território substituível. Nós temos relações espirituais e ancestrais com os territórios pelos quais lutamos. Nosso território é indissociável de quem somos”, afirmou. 

O advogado Rudy Maia Ferrraz, representante do PP, defendeu a segurança jurídica para pacificar a questão das demarcações.

“Precisamos buscar a resolução de conflitos. A lei, ao estabelecer um parâmetro objetivo, que é o marco temporal, traz previsibilidade e confiabilidade aos processos de demarcação”, defendeu.

Gabrielle Tatith Pereira, advogada do Senado, defendeu a constitucionalidade da lei que validou o marco temporal. A representante do Senado disse que a Constituição garante os direitos dos povos indígenas. 

Segundo Gabrielle, também é necessário garantir que pessoas que obtiveram títulos de terras concedidos pelo Estado ao longo dos anos tenham a posse da terra reconhecida.

“É legítima a pretensão das comunidades indígenas de ver reconhecida a terra tradicionalmente ocupada. De outro lado, também é legítima a pretensão do proprietário de boa-fé, com título outorgado pelo Estado há décadas”, argumentou.  

Fonte: EBC

Direito à educação de qualidade precatorizado: lições do Fundef

Este artigo é a continuação do debate iniciado no último dia 25 de novembro aqui, quando foi explorado o regime jurídico do direito à educação de qualidade (artigo 206, VII da CF/1988) e sua evolução até o estabelecimento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

O presente estudo foi subdividido em busca da reflexão dos desafios (primeira parte já publicada) e das lições (escopo desta segunda) trazidas pela judicialização acerca do dever de complementação federal ao valor de referência por aluno que, em tese, haveria de garantir o custeio do padrão mínimo nacional de qualidade da educação pública brasileira.

Após haver sido deferido judicialmente o multibilionário pleito de ressarcimento da União a diversos entes políticos, os precatórios do Fundef estiveram sujeitos ao risco de apropriação de parcela desses recursos por grupos de interesse, sem uma necessária aderência à sua finalidade constitucional vinculativa, de manutenção e desenvolvimento da educação e valorização do magistério.

Foi o caso dos escritórios de advocacia que buscaram firmar contratos com os municípios beneficiários, sem licitação, por uma suposta inexigibilidade de licitação, para a promoção de ações autônomas de cumprimento do provimento judicial obtido pelo Ministério Público Federal, estipulando honorários contratuais de até 30% dos valores sempre expressivos dos precatórios do Fundef. Isso ocorreu, a despeito da natureza ordinária da atuação demandada desses profissionais, restrita à execução de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública federal, para a qual inexiste risco de insolvência ou mesmo a necessidade de localizar bens passíveis de penhora. Injustificáveis, portanto, os valores cobrados e a própria contratação direta desses escritórios. [1]

Foi o caso, também, dos profissionais do magistério, que demandavam que lhes fosse direcionado 60% do valor dos precatórios, sob a forma de “bônus pecuniário” ou “abono”. Tal demanda era calcada na regra legal que prescrevia que, no mínimo, 60% dos valores do Fundef fossem destinados à remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público (artigo 7º da Lei nº 9.424/1996).

Há controvérsias, porém, sobre a real necessidade e até mesmo sobre a adequação da destinação de tais recursos a abonos remuneratórios para profissionais do magistério ativos e inativos (aposentados e pensionistas), a despeito do permissivo constitucionalizado no parágrafo único do artigo 5º da Emenda 114/2021.

Vale lembrar, por sinal, que o foco nuclear do Fundef é o educando e, conforme bem sintetiza Cristina Melo (2023, p. 41), “a maioria dos municípios acabam tendo que destinar a maior parte dos recursos do fundo educacional para pagamento da folha de salários, o que, na prática, muito mais que os 60% são revertidos para remuneração, o que impacta os recursos disponíveis para tantas outras ações necessárias para melhoria da educação, tais como construção ou reforma dos estabelecimentos escolares, aquisição de materiais e equipamentos a serem utilizados no dia a dia das escolas, entre outros. Então, não necessariamente os recursos da complementação da União que não chegaram na ponta seriam utilizados para aumentar a remuneração dos profissionais do magistério”.

Some-se a isso que, nos cinco primeiros anos dos nove em que vigeu o Fundef, a lei autorizava o uso do percentual vinculado à remuneração dos profissionais do magistério na capacitação de professores leigos, o que igualmente prejudica a certeza de que 60% dos valores que a União deixou de repassar teriam sido empregados na majoração de remunerações.

E por mais que a premissa dos professores possa ser, em alguns casos, total ou parcialmente verdadeira e que o trabalho desempenhado por esses profissionais seja indubitavelmente essencial para a concretização do direito fundamental à educação, há que se considerar que os recursos do Fundef eram constitucionalmente vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério. Tal liame inexiste no pagamento de bônus extraordinário aos professores, muitos deles já aposentados, ou aos seus pensionistas, pois não adere à remuneração da carreira docente, não a torna capaz de melhor atrair e reter profissionais qualificados, nem mesmo cria qualquer estímulo para o desempenho futuro dos profissionais da ativa.

Lições de um precedente judicial tão paradigmático

Fazemos toda essa explanação de contexto para evidenciar como a reparação judicial intempestiva do subfinanciamento da educação pode ser débil. No caso dos precatórios do Fundef, o direito à educação, que está no cerne das regras constitucionais e legais de financiamento mínimo e vinculação de recursos e da própria atuação judicial do MPF, perdeu relevância no desfecho, tendo sido obliterado e preterido diante de direitos estritamente pecuniários, não só dos municípios, mas de professores e advogados.

É claro que a resistência da União à pretensão exercida pelo MPF, inclusive por meio da interposição de diversos recursos, teve papel relevante na demora do provimento judicial e no desfecho observado. Não há dúvida, também, de que é direito das partes, mesmo das pessoas jurídicas de direito público, exercitar a sua ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes”, conforme explicita o artigo 5º, inciso LV, da Constituição. Por outro lado, o risco de sucumbência futura e os custos da protelação precisam ser considerados. Inclusive custos de movimentação da máquina judiciária federal, cujo financiamento igualmente recai sobre a União. E não apenas prejuízos estritamente econômicos, mas também para a concretização da política pública, em se tratando a parte ré de pessoa jurídica de direito público, cuja atuação, em qualquer esfera, há que se pautar primeiro pelo interesse público.

Não se pode ignorar, também, a possibilidade de a resistência da União se motivar na própria protelação do gasto, seja para cumprir determinada meta fiscal, seja para criar espaço fiscal-orçamentário no curto prazo para outra despesa politicamente preferida, mesmo antevendo o risco de, mais dia, menos dia, a despesa postergada retornar sob a forma de precatório, acrescida de expressivos juros moratórios. Isso ocorrerá, porém, muito provavelmente, não na gestão do incumbente protelador, mas de algum de seus sucessores. Não à toa vemos os precatórios federais se avolumarem em ritmo preocupante.

É desejável que o arcabouço fiscal mitigue esse tipo de incentivo perverso, inclusive como forma de preservar o espaço fiscal futuro e a sustentabilidade das contas públicas desse processo de “precatorização de direitos”, de postergação de despesas imperativas e da própria concretização de direitos nos níveis já assegurados pelo ordenamento jurídico. Talvez pela exigência de alguma espécie de provisionamento, conforme análise isenta e confiável de prognóstico judicial, e pela introdução de mecanismos legais que incentivem uma gestão mais inteligente de processos judiciais, pautada não pelo exaurimento das instâncias recursais, mas por uma adequada gestão de riscos e pela busca de soluções negociais sempre que possível. Evitar-se-ia, assim, a sobrecarga do sistema de justiça, que também absorve recursos fiscais importantes e estimular-se-ia a construção dialogada de soluções de conflito, capazes, inclusive, de melhor atender as preocupações do poder público réu.

Mas, para além disso, em causas como a do Fundef, caracterizadas por conflitos federativos relativos a transferências obrigatórias vinculadas a finalidade específica, mesmo à falta de soluções consensuais, nos parece necessário cogitar alternativas de provimento judicial que não se restrinjam a imputar a obrigação de pagar quantia ao ente devedor, mas que busquem preservar o liame entre os recursos financeiros e os fins jurídico-constitucionais a que se vinculam, sob uma perspectiva mais estrutural do conflito.

Impõe-se reconhecer a natureza estrutural do problema, que não se restringe à sua dimensão econômica, nem aos entes federativos envolvidos. Sob a perspectiva do direito à educação — motivo, mas também objetivo mediato da pretensão pecuniária exercida em face da União —, não se pode ignorar o interesse direto da comunidade escolar, composta por pais e alunos, bem assim por professores e demais profissionais da educação.

Trata-se de aspectos que agregam complexidade à causa e impedem que se entenda reparados os bens jurídicos afetados pela mera reparação pecuniária, em face dos pagamentos feitos a menor no passado.

Nesse sentido, em casos como esse, parece não se mostrar satisfatória a resposta oferecida pelo processo tradicional, em que se busca a resolução de controvérsias “com uma única sentença sobre o mérito, capaz de resolver todo o conflito e permitir o início da fase de efetivação” (Arenhart, Sérgio Cruz. Osna, Gustavo. Jobim, Marco Félix. Curso de Processo Estrutural. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2022, p. 216)

É certo que se tem mais comumente tratado como processos estruturais causas que demandam obrigações de fazer do poder público, como a ampliação da disponibilidade de um serviço público ou a sua prestação em padrões mais adequados de qualidade e presteza. Porém, em casos como o do Fundef, em que os valores postulados não se encerram neles mesmos, mas se vinculam a determinada finalidade constitucional, à concretização incremental de um direito fundamental, tal obrigação de resultado não pode ser ignorada, bem assim a peculiaridade de ela recair não sobre o devedor, mas sobre o credor da obrigação pecuniária (responsável que é pela efetiva alocação dos recursos).

Isso justifica, a nosso ver, o questionamento à efetividade de se determinar o pagamento de valores retroativos correspondentes a muitos anos de uma única vez, sem nenhuma garantia de que eles possam beneficiar o serviço público de forma consistente e duradoura.

Sob a premissa de que incumbe ao Estado-juiz buscar a efetiva tutela de direitos, particularmente dos direitos fundamentais, Arenhart, Osna e Jobim (2022, p. 41) bem apontam a “necessidade de que se pense em ritos e em meios de atuação mais flexíveis — percebendo-se que a realidade concreta não pode ser resumida em qualquer tipo de previsão legal” — ou, acrescentamos, em categorias estritas ou estanques de provimento judicial. Nesse mesmo sentido, os autores reforçam “a importância das técnicas processuais abertas, capazes de se amoldar às exigências do caso concreto”.

No caso dos precatórios do Fundef, como em eventuais casos semelhantes, se mostraria salutar um provimento judicial que condicionasse a obrigação de pagamento da União à apresentação de um plano de aplicação vinculativo pelo ente beneficiário, com um cronograma claro e factível, que inclusive autorizasse o fracionamento do precatório, conforme a necessidade de financiamento das etapas e ações do plano, e mesmo o monitoramento da efetivação do plano, tanto pela Fazenda Pública executada quanto pelo juízo da execução, de modo que a efetivação de cada etapa do plano também pudesse condicionar a liberação dos recursos restantes.

Conforme já exposto aqui, um tal plano foi considerado indispensável pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 1.518/2018-TCU-Plenário e há esforços do MPF para exigi-lo dos municípios beneficiários dos precatórios do Fundef, mas seria mais efetivo que a própria liberação dos valores dependesse da construção e apresentação do documento. E a União, como parte executada, poderia, de forma colaborativa e no exercício de seu múnus constitucional de coordenação federativa, por intermédio do Ministério da Educação, auxiliar os municípios na elaboração desse plano e mesmo celebrar convênios com esses entes para lhes oferecer, mediante sua participação financeira, opções de qualificação dos profissionais da educação, em conformidade com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2024) e da Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica (Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016).

Não se cogita aqui de um provimento judicial condicionado a evento futuro e incerto, o que é proscrito pela regra do artigo 492, parágrafo único, do CPC, mas de provimento judicial certo, cuja plena execução dependa de providências do exequente, como comumente ocorre nos casos dependentes de liquidação. Trata-se de providências voltadas a assegurar o cumprimento do dispositivo constitucional violado (artigo 60 do ADCT em sua redação original, dada pela EC nº 14/1996), tanto quanto a reparação pecuniária exigida da União.

Ainda que uma tal nova abordagem talvez não seja mais uma opção no que tange ao grosso dos precatórios do Fundef, a discussão que aqui se propõe visa a incorporar aprendizados, sobretudo em face do atual processo de implementação do novo Fundeb, fruto da EC nº 108, de 26 de agosto de 2020, cujos novos mecanismos redistributivos de complementação federal agregam complexidade à sua operacionalização e podem ser fonte de futuras demandas judiciais.

Nesse contexto, há de haver a compreensão de que a pretensão indenizatória de municípios que se julguem prejudicados, por mais pertinente que se mostre, sozinha não garante a maximização dos resultados do fundo, podendo, ao contrário, corroer a eficiência na aplicação de recursos da educação. Recomenda-se, assim, que se cogite o tratamento de forma centralizada e estrutural de demandas judiciais coletivas ou repetitivas envolvendo os valores do novo Fundeb, de forma a se buscar soluções — idealmente autocompositivas, mas também heterocompositivas — que não se atenham a discussões estritamente pecuniárias, buscando dar efetividade, em melhor medida, ao financiamento da manutenção e desenvolvimento da educação básica, de forma imediata, e ao direito fundamental à educação, de forma mediata.

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[1] Nesse sentido manifestou-se a Controladoria-Geral da União, em nota técnica: “Não há fundamento para a contratação dos escritórios por inexigibilidade de licitação, uma vez que há possibilidade de competição e que os serviços (cumprimento de sentença) não são de natureza singular, mas rotineiros para escritórios de advocacia. Quanto aos cálculos dos valores, como ficou devidamente explicado nesta Nota Técnica, não são de alta complexidade e exigem apenas os dados disponibilizados pelo FNDE.” (grifos nossos) (MELO, Cristina Andrade. Em busca dos recursos perdidos: a saga dos precatórios do Fundef. Revista do Ministério Público de Contas do Estado do Pará. v. 1, 2023. p. 34).

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Medidas atípicas de execução independem de patrimônio do devedor

A adoção de medidas atípicas de execução, como bloqueio de cartões ou apreensão do passaporte do devedor, não pode depender de indícios de que ele tenha como saldar a sua dívida. Ainda assim, sua necessidade deve ser avaliada com parcimônia e razoabilidade.

Essa é a opinião de advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as teses vinculantes fixadas pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento recente.

Ficou decidido que a adoção dessas medidas precisa ser subsidiária, fundamentada e baseada na ponderação entre o princípio da maior efetividade da execução e o da menor onerosidade para o executado.

Com ou sem bens?

O principal acerto do colegiado, segundo os advogados, foi afastar a obrigação de demonstrar a existência de indícios de patrimônio do devedor, até por uma consequência lógica: as medidas atípicas não seriam necessárias nesse caso.

“Muitas vezes não há indícios positivos ou negativos de bens no patrimônio do devedor e, mesmo assim, a medida coercitiva pode se mostrar útil. Às vezes o devedor tem bens, mas não vive uma vida de ostentação”, pondera José Miguel Garcia Medina.

Ele destaca a necessidade de que as medidas coercitivas sejam usadas com parcimônia e talhadas para cada situação específica.

“Não faz sentido estabelecer uma medida severa como é a apreensão do passaporte em relação a alguém que não faz viagens internacionais, por exemplo. Não vai surtir resultado. É preciso usar a medida adequada para o tipo de obrigação que está em jogo.”

Rodrigo Forlani Lopes, sócio do escritório Machado Associados, entende que a ocultação de patrimônio para o deferimento de medida atípica seria um requisito inviável: se o credor tivesse prova mínima, já seria suficiente recorrer às medidas típicas como a penhora.

“As medidas atípicas existem justamente para lidar com a resistência de quem supostamente tem meios, mas impede que o patrimônio seja localizado. O critério relevante, portanto, não é a prova de riqueza, mas a necessidade concreta da medida, sua subsidiariedade e a proporcionalidade, nos termos definidos pelo STJ.”

Leitura de comportamento

O advogado acrescenta que cabe ao juiz analisar a postura do executado, como a ocorrência de comportamento que sugira tentativa de frustrar a execução. É o que vai indicar a utilidade da medida atípica em cada caso concreto.

“Por isso, a eficácia não pode ser presumida e exige fundamentação específica sobre como aquela medida pode, de fato, contribuir para o adimplemento.”

Regina Céli Martins, sócia do VBD Advogados, nota que a intenção dos ministros do STJ foi evitar que se aplicassem essas medidas contra quem se tornou juridicamente insolvente. Logo, é preciso observar casuisticamente o cabimento desses atos.

“Da forma prevista anteriormente, isto é, o credor ter o dever de demonstrar indícios da existência de bens, acabaria por tornar a tese praticamente inaplicável, pois, havendo indícios da existência de bens, o credor pediria a execução de tais bens, e não a aplicação de medidas atípicas.”

Teses fixadas

As turmas de Direito Privado do STJ têm jurisprudência pacífica quanto ao cabimento dessas medidas e já decidiram que elas devem durar o tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor.

Em julgamento de 2023, o Supremo Tribunal Federal também validou o uso de meios atípicos de execução, entendendo que eles valorizam o acesso à Justiça e aumentam a eficiência do sistema.

Leia a tese:

Nas execuções cíveis submetidas exclusivamente ao Código de Processo Civil, a adoção judicial de meios executivos atípicos é cabível, desde que, cumulativamente:

1) Sejam ponderados os princípios da efetividade e da menor onerosidade do executado;

2) Seja realizada de modo prioritariamente subsidiário;

3) A decisão contenha fundamentação adequada às especificidades do caso;

4) Sejam observados os princípios do contraditório, da proporcionalidade e da razoabilidade, inclusive quanto à sua vigência temporal.

REsp 1.955.539
REsp 1.955.574

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Arrendatário sem perfil de homem do campo não tem direito de preferência sobre imóvel

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que não há direito de preferência para a aquisição de imóvel rural por parte dos arrendatários quando eles não atendem aos requisitos do Estatuto da Terra, que exige a exploração direta e familiar da atividade agrícola.

Na origem, uma empresa em recuperação judicial solicitou autorização para vender uma fazenda, com o objetivo de pagar os credores. O juízo autorizou a venda, mas, durante o procedimento, três membros de uma família alegaram que ocupam o imóvel por meio de contrato de arrendamento rural e, por isso, teriam direito de preferência na compra, conforme previsto no artigo 92, parágrafos 3º e 4º, do Estatuto da Terra.

Eles apresentaram proposta equivalente à da compradora e afirmaram que não foram notificados sobre a alienação.

Por sua vez, a empresa em recuperação alegou que o único contrato de arrendamento do imóvel já havia se encerrado meses antes da alienação, o que afastaria qualquer direito de preferência. Diante de decisão contrária a seus interesses em primeira e segunda instâncias, os supostos arrendatários recorreram ao STJ.

Exploração da propriedade rural deve ser direta e familiar

O relator na Terceira Turma, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou que o STJ já decidiu no sentido de que a existência de arrendamento rural não implica necessariamente o reconhecimento do direito de preferência para o arrendatário. Conforme salientou, o Estatuto da Terra restringe esse direito ao chamado homem do campo, ou seja, àquele que cultiva a terra, fazendo cumprir a sua função social.

Esse entendimento tem por base o artigo 38 do Decreto 59.566/1966, que regulamentou o Estatuto da Terra e estabeleceu que seus benefícios devem ser destinados apenas aos que exploram a atividade rural de forma pessoal e direta, usando a terra de maneira eficiente e correta.

De acordo com o relator, o Estatuto da Terra tem como finalidade proteger o trabalhador que exerce a atividade rural de forma direta e familiar, sendo necessário verificar, portanto, se o arrendatário atende a esses requisitos para que possa exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel.

No caso em análise – apontou o ministro –, os autos demonstraram que os recorrentes não residem no imóvel e que um deles possui outros imóveis, sendo considerados empresários do ramo agrícola, o que descaracteriza o perfil típico de homem do campo e afasta o direito de preferência.

“Inexistindo o direito de preferência, fica estabelecida a concorrência entre os proponentes, de modo que aquele que oferecer o maior preço em benefício da recuperação judicial deverá ficar com o imóvel”, concluiu o relator.

Leia o acórdão no REsp 2.140.209.

Fonte: STJ

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Prescrição intercorrente aduaneira, Tema 1.293/STJ: seu raio de alcance

A coluna Território Aduaneiro celebrou seus quatro anos de existência [1] e na quinta-feira passada (4/12), lançou o livro homônimo, já em seu terceiro volume, com os artigos publicados durante o ano de 2024 [2], obra prefaciada por Ernane Argolo Checcucci.

Nestes anos, alguns temas estiveram na ordem do dia dos tribunais administrativos e do judiciário, aguçando seu debate nesse espaço e sendo tratados por mais de um dos colunistas, quando não por todos. Essa intensa produção de conteúdo tem oferecido contribuição para o desenvolvimento e crescimento do Direito Aduaneiro em nosso país. A partir dessa constância de publicações e da efervescência dos temas, outros estudiosos também pesquisam, escrevem, publicam e isso retroalimenta esse ciclo virtuoso de debates.

No campo das decisões judiciais, nos últimos anos, podem ser lembradas algumas relevantes em matéria aduaneira que acolheram o entendimento da União em detrimento da posição defendida pelos intervenientes. Cite-se o REsp no 1.576.199/SC, rel. min. Mauro Campbell, reconhecendo a possibilidade de revisão aduaneira, independentemente do canal de parametrização.

A decisão foi muito bem recebida pela Administração Aduaneira, contrariando a posição amplamente defendida pelas empresas. Outro caso julgado pelo STJ, o REsp no 1.799.306, rel. min. Francisco Falcão, tratou da divergência em torno da inclusão da capatazia no valor aduaneiro. Também aqui a decisão final foi desfavorável aos importadores. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE no 1.090.591, rel. min. Marco Aurélio, culminou com a fixação do Tema 1.042 convalidando entendimento favorável às retenções de mercadorias no curso do despacho aduaneiro até que satisfeitas as exigências da fiscalização.

Mais recentemente, entretanto, a decisão final do STJ aplicando a prescrição intercorrente à matéria aduaneira, conforme fixado no Tema 1.293, não agradou à União. Não obstante, e por óbvio, não é função do judiciário agradar a qualquer das partes e sim, conforme as normas de competência aplicáveis, analisar os casos, julgando os litígios visando pacificá-los, estabilizando as relações a partir do seu pronunciamento. Igualmente, é bom que se diga, as partes atingidas podem concordar, ou não, com a decisão final, mas ambas estão a ela vinculadas, obrigadas a respeitá-la. Definir sua extensão e conteúdo, portanto, é o ponto que surge, obrigando as partes a interpretá-la corretamente. É o desafio que se tem hoje em face do trânsito em julgado do Tema 1.293/STJ.

Sobre a matéria diversos colegas já se debruçaram oferecendo valiosas contribuições. [3] Visando somar mais uma visão acerca do entendimento e o alcance da fixação jurisprudencial, propõe-se uma incursão pela teoria da norma jurídica observando lições de Paulo de Barros Carvalho [4], Sacha Calmon Navarro Coêlho [5] e Marco Aurélio Greco. [6]

Nessa incursão, recorda-se a teoria de Hans Kelsen e de Carlos Cóssio, a primeira tendo a norma sancionatória como primária e a segunda definindo a norma primária ou endonorma, onde se encontra a conduta prescrita desejada, e a norma secundária ou perinorma, onde se localiza a sanção pelo descumprimento da primária ou endonorma. Ambas, entretanto, estruturas modeladas em hipótese e consequência, em relação de causa hipotética que se concretizada no mundo fático atrai a consequência. [7]

Na norma primária tem-se um objeto, um núcleo central, que delimita a conduta prescrita e eleita pelo sistema jurídico como desejada. Para que seja cumprida independentemente da vontade do seu destinatário, o mesmo sistema fixa o comando secundário que, na mesma estrutura de hipótese/consequência, traz na sua primeira parte (hipótese) a previsão de não cumprimento da norma primária. Em sua anatomia, tanto a primária, quanto a secundária, possuem hipótese e consequência. São compreendidas através da equação: se A é, B deve ser ou  se não B deve ser C. Exemplo:

Norma primária. Hipótese: importar produto estrangeiro tendo como exportador pessoa vinculada ao importador. Consequência: informar a vinculação na declaração de importação.
Norma secundária. Hipótese: não informar a vinculação na declaração de importação. Consequência: recolher 1% de multa sobre o valor aduaneiro da operação.

Se o importador seguir a norma primária, não atrairá a sanção prevista na secundária. Se desobedece aquela, sofre a reprimenda dessa. Tal ordem de ideias auxilia na análise e delimitação das sanções aduaneiras, bem como na definição da relação jurídica aduaneira e, por conseguinte, podem colaborar no entendimento e aplicação do Tema 1.293/STJ.

Sanções aduaneiras

Sobre as sanções, considerando-as uma consequência de um ato ilícito, estão presentes nos diversos ramos do direito como civil, administrativo, tributário ou aduaneiro. Na sua essência e estrutura ontológica não se distinguem. Podem merecer tratamento distinto, tendo regulação diferente, ou não, sem que deixem de ser ontologicamente idênticas.

Pode-se conceituar a sanção administrativa como medida aflitiva imposta pela Administração Pública em função da prática de um comportamento ilícito. Elas podem ter natureza trabalhista, processual, administrativa, tributária, aduaneira. A definição de sua natureza está diretamente ligada às obrigações descumpridas. O que permite qualificar uma sanção como aduaneira é a natureza jurídica da infração estar diretamente vinculada a deveres afetos ao controle aduaneiro. É na norma primária, na hipótese definida pelo legislador como comportamento ou abstenção desejados, que devem se concentrar os esforços do intérprete para localizar a sanção aduaneira e, portanto, a infração de natureza aduaneira.

Paulo Coimbra para defender a autonomia das sanções tributárias face às administrativas, argumenta que as sanções da administração são amplas e crescentes, podendo incidir sobre diversos temas a partir da sua função fiscalizadora e repressiva. Defende o autor que reconhecer (sub)espécies de sanções administrativas justifica-se na medida em que haja peculiaridades relevantes ao seu estudo e compreensão, quanto a suas fontes, interpretação, imputação, procedimento sancionador e prescrição. [8] O reconhecimento das sanções aduaneiras reforça a autonomia do Direito Aduaneiro.

Com foco em outro aspecto, mas na mesma linha de reconhecimento da norma jurídica aduaneiro, com hipótese voltada a tutelar o controle aduaneiro, Solon Sehn [9] escreveu sobre a relação jurídica aduaneira, reconhecendo-a como sendo de natureza não obrigacional, conceituando-a como expressão de direitos e deveres do particular e do Estado que surgem com a transição da fronteira, que é autônoma em relação à obrigação de pagar os tributos aduaneiros ou eventuais prestações pecuniárias relativas à defesa comercial. Ao tratar da materialidade do fato jurídico aduaneiro, o autor reforça a estrutura da norma jurídica aduaneira.

Aplicação do Tema 1.293/STJ

Isso posto, recordem-se as teses firmadas no Tema 1.293/STJ [10]:

“1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.
1 A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
2 Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.”

A aplicação da prescrição intercorrente, que serve a valores essenciais e caros ao ordenamento jurídico, como a segurança jurídica e a previsibilidade, decidida em última instância pelas turmas que compõem a 1ª Seção do STJ, com efeitos vinculantes para o judiciário e para o Carf, imprescinde da definição do que sejam as infrações aduaneiras de natureza não tributária para sua correta aplicação. Para tanto, desde logo, utilizando a norma jurídica primária aduaneira, tem-se que devem ser consideradas infrações aduaneiras todas aquelas descrições postas nas normas secundárias que tenham, em sua hipótese, o descumprimento de obrigações de natureza aduaneira que visem primordialmente tutelar o controle aduaneiro.

Para delimitar a norma de conduta aduaneira cuja inobservância configura uma infração aduaneira, o STJ estabeleceu que a norma primária deve conter uma obrigação cujo objetivo vise primordialmente (portanto não única e exclusivamente, e sim precipuamente, principalmente) o controle do trânsito internacional de mercadorias (assim entendida a entrada e saída de mercadoria do território aduaneiro) ou a regularidade do serviço aduaneiro (observância das normas aduaneiras, respeito ao controle aduaneiro). Outrossim, fez um reforço de demarcação no item 3 do Tema 1.293/STJ, ao excluir da aplicação da prescrição intercorrente aquelas infrações que, inobstante inseridas em ambiente aduaneiro, fossem destinadas direta e imediatamente à arrecadação de tributos.

As bordas fixadas pelo STJ dirigem o intérprete para que aprofunde sua análise na norma jurídica primária e secundária, que verifique portanto o teor da hipótese e da consequência de cada uma delas, extremando-as de tal modo que sua natureza se aflore e possam ser designadas ao grupo que pertencem. Nesse ponto, ainda que tenham natureza aduaneira tributária, ou tributária aduaneira, a questão a ser respondida é se primordialmente destinam-se a tutelar o controle aduaneiro, ou se visam direta e imediatamente promover a arrecadação de tributos.

Com a devida vênia, ainda que estejam em área de interseção do direito aduaneiro e tributário e se entendam que elas são relevantes e compõe o controle aduaneiro, para efeito de aplicação do Tema 1.293/STJ, é preciso excluir da aplicação da prescrição intercorrente apenas as que visam direta e imediatamente a arrecadação tributária. As que primordialmente visam o controle aduaneiro, ainda que indiretamente, auxiliem na arrecadação dos tributos, devem ser abrangidas pela prescrição intercorrente, conforme decidiu o STJ.

A regra de exclusão fixada pelo STJ permite entrever que direta e imediatamente destinadas à arrecadação de tributos devem ser entendidas as sanções previstas pelo não recolhimento do tributo devido. É dizer, a norma primária, em sua hipótese prevê: importar produtos estrangeiros; a consequência da ocorrência da norma primária será recolher imposto de importação. A norma secundária, em sua hipótese, contém a previsão do descumprimento da norma primária, ou seja, o não recolhimento do imposto devido e, como consequência, prevê a cobrança de  multa de ofício de 75% sobre o valor do imposto não recolhido. Indiscutivelmente, ainda que inserida em ambiente aduaneiro, a infração e a multa visam direta e imediatamente a arrecadação de tributos.

Outrossim, a multa de 100% aplicada em casos de subfaturamento por falsidade ideológica não se afigura como uma obrigação e infração que direta e imediatamente vise a arrecadação. Visa primordialmente a regularidade do serviço aduaneiro e assegurar o controle aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. Dois aspectos reforçam esse entendimento: (i) há multa específica prevista para punir o recolhimento a menor dos tributos devidos, essa sim não sujeita à prescrição intercorrente porque direta e imediatamente destinada à arrecadação; (ii) até pouco tempo, a penalidade aplicada nesses casos era pena de perdimento das mercadorias, que não visava direta e imediatamente a arrecadação de tributos senão punir o infrator por ofender gravemente a o controle aduaneiro.

Outros exemplos podem auxiliar na compreensão dos contornos das teses fixadas pelo STJ. Vejamos: a multa de 1% prevista no artigo 711, I, do RA/09. Sua hipótese: classificar incorretamente a mercadoria na NCM. Essa hipótese visa primordialmente assegurar a conformidade da operação, assegurando o tratamento aduaneiro e administrativo previstos nas normas. A sanção em tela não visa direta e imediatamente a arrecadação de tributos, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. A infração, in casu, pode se consumar mesmo quando não há tributo a ser recolhido.

Alguns trechos dos acórdãos do STJ que lastreiam a formação das teses do Tema 1.293 auxiliam bastante na sua compreensão, como esse do voto do min. relator Paulo Sérgio Domingues, no REsp n 2.147.578/SP: “No leading case mencionado, consignou a eminente Relatora que o impasse resolve-se a partir do exame da finalidade precípua da obrigação em xeque, de modo que ‘somente se empresta cariz tributário às obrigações cujo escopo repercuta, de maneira direta, na fiscalização e na arrecadação das exigências fiscais, não bastando, portanto, mero efeito indireto de imposições cominadas com finalidades diversas’”.

O debate do tema em tela é sobremaneira relevante na medida em que, além de definir um critério que terá efeitos práticos sobre casos concretos que estão paralisados por anos a fio, o que não é favorável a ninguém, diz também com o reconhecimento da relação jurídica, do fato jurídico e das sanções aduaneiras, por fim e ao cabo, com sua própria autonomia, tão clara e insofismável para todos que já a reconhecem e defendem, mas ainda jovem e ameaçada por ainda não estar plenamente consolidada.

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[1] Disponível em: O Direito Aduaneiro e a ‘cereja do bolo’: bodas do DL 37/1966 .

[2] Editora Amanuense: aqui

[3] Artigo dos colegas de coluna Rosaldo Trevisan e Liziane Meira, e do autor convidado Arnaldo Dornelles. Disponível em: As multas aduaneiras e o raio simplificador. Alguns artigos publicados sobre o tema: de autoria de Rosaldo Trevisan e Maurício Timm, disponível em:  Tema STJ 1.293 — bom para quem?, , de Carlos Daniel Neto, disponível em: Tema Repetitivo 1.293: a pedra filosofal do Carf?, e de Fernando Pieri e Pedro Mineiro, disponível em: Prescrição intercorrente e infrações aduaneiras: o tempo é o senhor da razão.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed.

[5] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e Prática das Multas Tributárias. Infrações tributárias e sanções tributárias. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed, 1992, p. 15.

[6] GRECO, Marco Aurélio. Norma jurídica tributária, São Paulo: EDUC, Saraiva, 1974.

[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed., p. 39-49.

[8] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 106-107.

[9] SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 9-12 e 686-693.

[10] REsp 2.147.578/SP e 2.147.583/SP

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TSE encerra teste público de segurança das urnas eletrônicas

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encerrou nesta sexta-feira (5) o teste público de segurança das urnas eletrônicas que serão usadas nas eleições presidenciais de 2026. O procedimento, realizado desde 2009, tem o objetivo de dar transparência ao processo eleitoral.

Os testes começaram na última segunda-feira (1°) e foram realizados por especialistas em tecnologia da informação que se inscreveram para participar do evento.

Os participantes realizaram testes de segurança nos equipamentos da urna eletrônica, incluindo os componentes que fazem o registro do voto do eleitor, a transmissão dos votos e o código-fonte do sistema. 

De acordo com o TSE, os especialistas não encontraram inconsistências relevantes e garantiram que a segurança do sistema de votação continua íntegra.

O primeiro turno das eleições de 2026 será realizado no dia 4 de outubro. O segundo turno está previsto para 25 de outubro. 

Fonte: EBC

Centro de Estudos Judiciários recebe menção honrosa concedida pela Rede de Acessibilidade da Justiça

Reconhecimento destaca entrega de material e certificado em braile a palestrante paralímpico

O Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF) recebeu, em 2 de outubro, menção honrosa da Rede de Acessibilidade da Justiça, que reconheceu as ações inclusivas promovidas durante a I Jornada de Direito Desportivo, realizada nos dias 4 e 5 de junho no CJF. A homenagem foi anunciada na 6ª reunião da Comissão de Acessibilidade e Inclusão do CJF, na sala de reuniões da Diretoria Executiva de Administração e de Gestão de Pessoas (DA).

O reconhecimento destacou a entrega de material e certificado em braile ao palestrante Mizael Conrado, medalhista paralímpico, secretário-geral do Comitê Paralímpico Brasileiro e conselheiro seccional da OAB-SP. A iniciativa reafirma o compromisso do CEJ com práticas que garantem o acesso de todas as pessoas às atividades institucionais e fortalecem a promoção da inclusão no âmbito da Justiça Federal.

Fonte: CJF

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Nota de alerta
Prevenção contra fraudes com o nome do escritório Aragão & Tomaz Advogados Associados