O grande litigante da Justiça brasileira

Com quase 4,5 milhões de processos em tramitação, o Instituto Nacional do Seguro Social, o mal-amado INSS, é o maior litigante da Justiça brasileira. Melhor dizendo, é o ente mais demandado na Justiça brasileira, já que em 99% das causas em que está envolvido aparece no polo passivo. Se o INSS joga na defesa perante os tribunais, quem joga no ataque é o Fisco, o maior litigante no polo ativo, com cerca de 2,3 milhões de ações propostas em 2024.

Em 86% dos casos envolvendo a Previdência, os processos correm na Justiça Federal. A 1ª Região, que atende a estados do Centro-Oeste, Norte, e Nordeste mais o Distrito Federal, respondeu por 39% da demanda, seguida pela 5ª Região, que também atende a estados do Nordeste (19%). As demandas à Justiça questionam decisões do INSS sobre aposentadorias (30% dos casos), auxílio por incapacidade laboral (25%), benefícios assistenciais (15%), salário-maternidade (10%) e pensão por morte (5%). Outros 16% dos processos tratam de questões administrativas relacionadas à prestação destes benefícios.

A escalada de novas ações na Justiça foi progressiva. Em 2020, chegaram 1,8 milhão de demandas contra o INSS. Esse número já ultrapassava a casa dos 3,4 milhões em 2024 – aumento de 88,3% em quatro anos, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça.

Por sua função social e o seu tamanho, faz sentido que a autarquia responda a uma montanha de processos: são mais de 40 milhões de beneficiários ativos que receberam R$ 877 bilhões em 2024, entre benefícios previdenciários (aqueles pagos aos segurados que contribuíram para fazer jus ao benefício) e benefícios assistenciais (concedidos àqueles em situação de vulnerabilidade social que não contribuíram com o INSS). E mais cerca de 60 milhões de contribuintes da Previdência Social, que aportaram em contribuições mais de R$ 670 bilhões em 2024.

Um bom motivo para tanta litigância está na legislação, em constante processo de mutação, quase sempre para complicar. Desde 1998, já ocorreram três reformas da previdência – uma no governo Fernando Henrique Cardoso, outra no Lula-1 e a terceira com Bolsonaro. E mais duas minirreformas, com Dilma e Temer. A primeira delas rende processos na Justiça até hoje, com a chamada revisão da vida toda.

E tem outras complicações. Uma poderia ser mal resumida numa palavra: perícia. Os milhões de pedidos de auxílio, como auxílio-doença ou auxílio-acidente, dependem de provas e de comprovação pericial. E o setor de perícias do INSS, além de ser responsável pelas imensas filas de atendimento, também produz controvérsias e contestações que, em boa parte, vão parar na Justiça.

Outra complicação é a corrupção. Com imensa ramificação, tanto de atividades como de agentes e clientes, a Previdência está longe de ter um controle qualificado sobre suas contas e os benefícios que distribui. Os escândalos e os golpes contra o instituto ou contra os segurados são recorrentes.

O último deles foi o de associações de aposentados fantasmas que cobravam contribuição de segurados sem autorização. O montante capturado a conta-gotas das aposentadorias e pensões de milhões de beneficiários passou dos R$ 6 bilhões. Para evitar que mais de nove milhões de ações sobrecarregassem ainda mais o Judiciário, um acordo interinstitucional foi homologado em julho de 2025 pelo Supremo Tribunal Federal para viabilizar, de forma extrajudicial, o ressarcimento dos aposentados e pensionistas afetados. A medida foi articulada por AGU, INSS, DPU, MPF e OAB e previu devolução integral dos valores, com atualização monetária. O cronograma de pagamento foi operacionalizado fora do processo judicial, com adesão voluntária dos beneficiários.

Em 2024, o INSS recebeu mais de 15 milhões de pedidos de benefícios, entre previdenciários e assistenciais. Desse total, o instituto concedeu sete milhões e indeferiu oito milhões. O beneficiário que teve o pedido recusado pode recorrer administrativamente para que o INSS reveja a decisão. Mas, se não tiver o pedido atendido, pode ir buscar seu direito na Justiça. Em 2024, cerca de quatro milhões das concessões de benefícios ocorreram por decisão administrativa do INSS e um milhão por decisão judicial.

Anuário da Justiça ouviu os atores envolvidos nesse sistema para entender as razões da litigiosidade. Dadas as circunstâncias, o presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, não chega a se surpreender com a elevada judicialização. E diz que o instituto está tomando providências para enfrentar o desafio.

Segundo ele, o INSS tem dialogado com as instituições do sistema de Justiça com vistas a resolver parte dos litígios de forma administrativa. “Se uma tese já se pacificou, estamos verificando o que podemos fazer internamente para absorvê-la e evitar novas demandas judiciais”, afirmou.

A dificuldade de internalizar precedentes qualificados é apontada como um entrave. Segundo a juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Lívia Peres, esse é um ponto sensível: “Nem sempre há a incorporação das teses na via administrativa”, pontuou. Ela diz que, desde 2018, o CNJ vem desenvolvendo projetos para melhor gerenciar os processos do INSS. Entre as iniciativas desenvolvidas está o PrevJud.

O sistema permite o envio automatizado de ordens judiciais ao INSS e a devolução estruturada de informações da autarquia. Com a automação, a expectativa é que o prazo de cumprimento das decisões seja reduzido de 20 dias para apenas uma hora.

Outra frente é a padronização dos critérios técnicos para a concessão de benefícios assistenciais a pessoas com deficiência. A proposta de criação de um instrumento único de avaliação biopsicossocial foi elaborada por um grupo de trabalho e aguarda deliberação final pelo colegiado do CNJ.

A natureza alimentar dos benefícios e o perfil vulnerável do público atendido justificam a atenção do CNJ ao tema. “Cada processo tem uma pessoa atrás de um benefício. Por isso, temos que ter cautela, porque uma negativa pode prejudicar a subsistência dela”, destacou Lívia Peres.

O CNJ também aposta na tecnologia para dar conta da demanda judicial por benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade. Nesse sentido, a Resolução 595/2024 tornou obrigatório o uso do Sistema de Perícias Judiciais (Sisperjud) pelos tribunais. Destinado a peritos médicos judiciais, padroniza o formato das perícias.

A Advocacia-Geral da União também está na área. Diretora da Procuradoria Seccional Federal de Contencioso Previdenciário, Kedma Iara Ferreira explica que mais de 80% das ações judiciais acompanhadas pela AGU envolvem o INSS. A procuradora relata o caso do programa Pró-estratégia, que permitiu à AGU analisar, entre 2023 e 2025, cerca de 32 mil processos no Superior Tribunal de Justiça. Com isso, desistiu de recorrer em 12 mil casos, que tinham jurisprudência pacificada. Outra iniciativa, o Desjudicializa Prev, criado em parceria com o CNJ, faz a seleção de temas previdenciários com jurisprudência consolidada para subsidiar a celebração de acordos, abstenções ou mesmo desistências recursais. Até maio de 2025, mais de dez mil processos haviam sido encerrados com base nesse modelo.

Mais recentemente, a AGU lançou a plataforma Pacifica, voltada à autocomposição extrajudicial de litígios a partir do cruzamento de dados e normativos internos, evitando que o segurado acione a Justiça. Segundo informações do Painel INSS, do CNJ, um quarto dos processos envolvendo o INSS foi solucionado por meio da conciliação em 2024.

A AGU anunciou a criação da Coordenação de Prevenção de Litígios (CPL), com a missão de alinhar as práticas administrativas da autarquia com a atuação judicial da Procuradoria-Geral Federal. A coordenação vai atuar em três eixos: tratamento de focos de judicialização; aprimoramento da comunicação interinstitucional com INSS, PGF e Judiciário; e qualificação do processo administrativo com integração à defesa judicial. “A ideia é que as pessoas não precisem ir ao Judiciário porque demos uma resposta ágil para a demanda”, resume Kedma Iara Ferreira.

Na Defensoria Pública da União, o foco também está nas soluções extrajudiciais. A alta procura pelos serviços da instituição explica essa opção. De 2018 a 2025, o órgão fez quase quatro milhões de atendimentos na área previdenciária. Desse total, cerca de 245 mil viraram ações judiciais. “Benefícios de Prestação Continuada, os BPCs, são os principais atendimentos da DPU”, contou a defensora pública Patrícia Bettin Chaves, coordenadora da Câmara Previdenciária.

A DPU também tem buscado solucionar problemas estruturais a partir do diálogo. Um exemplo é o grupo interinstitucional integrado por Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União, INSS e AGU, que se reúne a cada dois meses para debater o atendimento à população na área previdenciária e assistencial.

A iniciativa tem permitido soluções sem judicializar, como o acordo que permitiu o uso de registro nacional migratório por estrangeiros como alternativa à biometria obrigatória e a gratuidade nas ligações feitas para o número 135. Outro avanço foi o acordo de cooperação assinado com o INSS que permite à DPU requerer benefícios para seus assistidos diretamente nos sistemas administrativos da autarquia.

O presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, reconhece que a digitalização ampla não resolveu os problemas de acesso à autarquia. “O INSS foi muito para o digital, mas isso não facilitou o atendimento ao nosso segurado, que tem um perfil diferente, que precisa de contato presencial”, disse. E prometeu investimentos para a reabertura de agências.

Fonte: Conjur

Em caso de erro na execução, agente responde como se tivesse atingido a pessoa visada

Nos casos de erro na execução (aberratio ictus) com unidade simples, o agente responde pelo crime contra aqueles que efetivamente pretendia atingir, não incidindo nessa hipótese a regra do concurso formal, prevista no artigo 70 do Código Penal.

Com esse entendimento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em caso no qual um grupo atirou contra policiais e acabou atingindo uma outra pessoa. Os membros do grupo foram denunciados pela tentativa de homicídio contra os três policiais que eram os alvos dos disparos.

No recurso ao STJ, o MPRS pediu a pronúncia por uma quarta tentativa de homicídio. Para o órgão, os acusados agiram com dolo eventual, pois assumiram o risco de atingir qualquer pessoa presente no local dos fatos, razão pela qual também deveriam responder pela quarta tentativa de homicídio. 

Ordenamento jurídico adota a teoria da equivalência nos casos de erro na execução

O relator, desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, explicou que o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria da equivalência na hipótese de erro na execução. Determina-se, assim, que o agente responda como se tivesse atingido a pessoa originalmente visada, segundo o artigo 73 do Código Penal.

O relator explicou que essa ficção jurídica busca equiparar, para fins penais, o resultado produzido àquele inicialmente pretendido, preservando a tipificação do delito conforme a intenção do autor da ação. Contudo, o desembargador ressaltou que, nos casos em que esse erro também resulte na ofensa simultânea tanto à vítima pretendida quanto a terceiro, aplica-se a regra do artigo 70 do Código Penal, que prevê o concurso formal de crimes, impondo a responsabilização por cada um dos eventos lesivos produzidos.

“O dispositivo, portanto, opera como um critério de imputação penal, assegurando que a configuração típica da conduta não seja alterada pelo erro na execução, salvo nas hipóteses em que se verifique o concurso efetivo de crimes”, afirmou.

Tipificação deve considerar o número de vítimas visadas, não o resultado concreto

No caso em julgamento, o relator verificou que a quarta vítima foi atingida por erro na execução, enquanto os três policiais civis visados não foram atingidos. A tipificação do delito, destacou, deve considerar o número de vítimas visadas, e não o resultado concreto, razão pela qual a denúncia imputou aos acusados a prática de três tentativas de homicídio qualificado contra os policiais.

Na sua avaliação, não havendo duplo resultado, não é possível imputar uma quarta tentativa de homicídio por dolo eventual, sob pena de bis in idem, uma vez que, pelo mesmo contexto fático, o grupo já responde por três homicídios tentados contra as vítimas efetivamente visadas.

“O atingimento da vítima decorreu de erro na execução, hipótese em que a norma penal estabelece que o agente deve responder como se tivesse atingido aqueles que pretendia ofender, não se configurando crime autônomo em relação ao terceiro atingido”, concluiu.

Leia o acórdão no REsp 2.167.600.

Fonte: STJ

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Tese do STF sobre prisão de condenados no Júri deixa rastro de confusão nos tribunais

Já se passou um ano desde que o Supremo Tribunal Federal determinou que condenados no Tribunal do Júri devem ser presos imediatamente após o julgamento. Segundo a tese da corte, fixada no Tema 1.068, a execução da pena só pode ser adiada caso haja indícios de nulidade no processo ou de condenação “manifestamente contrária à prova dos autos”.

A decisão foi aprovada sob várias divergências entre os ministros e é amplamente criticada por advogados, mas foi confirmada recentemente pelo Supremo em embargos de declaração ajuizados por defensorias públicas. A aplicação da norma, porém, tem se dado de maneira desuniforme nos tribunais estaduais.

A falta de critérios foi detectada em um levantamento da revista eletrônica Consultor Jurídico sobre acórdãos criminais deste ano, especialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A análise mostra que os magistrados têm determinado a execução imediata da pena mesmo em processos com indícios de nulidade, o que contraria a exceção prevista pelo STF. Por outro lado, decisões que autorizam os réus a recorrerem em liberdade são tomadas sob critérios divergentes e, em alguns casos, com justificativas que já foram rechaçadas pelo Supremo.

Falta de padrões

Em geral, as decisões que mantêm os condenados soltos sustentam que a medida do Supremo não pode retroagir para prejudicar o réu, conforme previsto no artigo 5º da Constituição. Os magistrados avaliaram, nestas ações, que pessoas julgadas antes da fixação da tese não podem ser atingidas pela nova diretriz da corte.

O STF, contudo, já reiterou que a irretroatividade da lei penal não se aplica a estes casos. Em pelo menos três julgados, publicados em fevereiromarço e abril deste ano, os ministros afirmaram que não se trata de retroação de lei penal porque o Supremo deu apenas uma nova interpretação a uma legislação já existente: o “pacote anticrime”, que entrou em vigor em janeiro de 2020.

A lei “anticrime” alterou o artigo 492 do Código de Processo Penal para determinar que condenados pelo Júri devem ser presos automaticamente se a pena for igual ou superior a 15 anos — o que é comum nestes casos, já que o Júri se dedica a crimes dolosos contra a vida. A nova posição do Supremo derrubou este piso de 15 anos e ordenou a execução imediata para qualquer pena, mas não alterou o texto do CPP.

O novo arranjo tem gerado um rastro de confusão. O princípio da irretroatividade, além de ser usado contra a orientação do STF, ainda tem sido aplicado com diferentes marcos temporais, como ilustra o quadro abaixo:

Processo 2027309-88.2025.8.26.0000 — (10/02/2025) — Decisão de primeira instância, em fevereiro de 2025, determinou a prisão de dois homens que tinham sido condenados no Júri por tentativa de homicídio. Em segundo grau, porém, um desembargador reviu a medida e mandou soltar os réus porque eles foram julgados em março de 2024, antes da fixação da nova tese pelo STF, em setembro (clique aqui para ler).

Processo 2133280-62.2025.8.26.0000 — TJ-SP (17/07/2025) — Com base na irretroatividade, o acórdão afastou a prisão de um condenado por homicídio apesar de ele só ter sido sentenciado em abril de 2025, depois da decisão do STF. Isso porque o acórdão não se fundamentou na data da condenação, e sim na da pronúncia — decisão que leva o réu ao Tribunal do Júri. Ele foi pronunciado em agosto de 2024, antes da medida do Supremo (clique aqui para ler).

Processo 1.0000.24.518035-1/001 — TJ-MG (10/07/2025) — Neste caso, o acórdão não tomou como base a data da condenação nem a da pronúncia, e sim a data do fato criminoso, um homicídio cometido em 2016. Além disso, a baliza para a retroatividade não foi o estabelecimento da tese pelo STF, e sim a data da vigência do pacote “anticrime”, em janeiro de 2020 (clique aqui para ler). Um acórdão do mesmo tribunal, em maio, havia adotado como marcos temporais a data da sentença no Júri e a nova posição do STF (clique aqui para ler).

Para a criminalista Isabella Piovesan Ramos, do escritório Machado de Almeida Castro Advogados, o STF colocou um ponto final na questão ao julgar embargos de declaração no final de agosto, que questionavam se a nova regra poderia retroagir ou não.

“Eu discordo da posição do STF, mas ela foi bem clara ao afirmar que a prisão imediata também vale para casos anteriores. Pode ser que algum juiz mais garantista continue decidindo em sentido contrário, mas eu entendo que o Supremo acabou com qualquer margem para discussão sobre isso”, avalia.

Autoriza ou obriga?

Outra confusão frequente nos tribunais é baseada no texto literal da tese do Supremo: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. Para alguns julgadores, o uso do termo “autoriza” dá a opção de aplicar ou não o novo entendimento.

Um acórdão recente do TJ-SP, o mesmo que usou o princípio da irretroatividade com base na data da pronúncia, entendeu que a medida do STF “autoriza, mas não impõe o imediato início da execução da pena, sendo necessária a análise do caso concreto”.

Essa também foi a conclusão de um juiz do Tribunal de Justiça do Maranhão ao lavrar uma sentença, do final de agosto, que condenou dois homens por homicídio qualificado. Ao permitir que eles recorressem em liberdade, o magistrado afirmou que a tese do Supremo “estabelece uma possibilidade, não uma obrigatoriedade, cabendo ao juiz presidente a análise das circunstâncias do caso concreto (clique aqui para ler)“.

“Realmente, o uso desse termo ‘autoriza’ está causando algum ruído, porque dá a entender que a norma não tem um caráter obrigatório. Isso provoca uma discussão nos tribunais sobre a força que essa determinação tem”, opina o criminalista Fabrício Dreyer Pozzebon, doutor em Direito pela PUC-RS.

Vaivém de jurisprudência

O julgamento em que o STF fixou a nova tese passou longe da unanimidade. O voto vencedor, do relator Luís Roberto Barroso, foi acompanhado por cinco ministros, enquanto outros cinco expuseram divergências totais ou parciais.

Entre os discordantes, o principal argumento foi o de que a execução imediata da pena fere a presunção de inocência, prevista no artigo 5º da Constituição. Esses ministros apontaram que o próprio Supremo já havia vetado a prisão antes do trânsito em julgado em novembro de 2019, no julgamento das ADCs 43, 44 e 54.

O panorama começou a mudar em janeiro de 2020, com a entrada em vigor do pacote “anticrime”, e foi endurecido com a posição do Supremo em setembro de 2024. Segundo o voto vencedor de Barroso, o princípio da presunção de inocência deve ser sopesado com outras garantias constitucionais, como a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e o direito fundamental à vida, que estaria ameaçado sob as normas antigas.

A advogada Marcella Mascarenhas Nardelli, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), vê incoerência na posição do STF que flexibiliza a presunção da inocência em nome da soberania dos veredictos do Júri. Em exposição no 31º Seminário Internacional de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), no final de agosto, ela lembrou que essa mesma soberania dos veredictos é relativizada quando o réu é absolvido.

“A força da soberania dos veredictos é reduzida a partir da consideração de que a absolvição pelo quesito genérico, ainda que fruto de clemência, pode ser submetida ao crivo do Tribunal de Apelação”, avaliou.

Suposta proteção à vida

O acórdão do STF que permitiu a prisão antecipada citou que menos de 2% das sentenças do Júri no TJ-SP, no período entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, foram anuladas posteriormente. Para Barroso, o percentual “inexpressivo” de condenações revertidas justifica o cumprimento antecipado da pena, já que as decisões do Júri costumam ser mantidas.

O criminalista Rodrigo Faucz, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que esse argumento não se sustenta. “Esse percentual, mesmo que pequeno, é uma prova de que erros podem acontecer. Isso que eles chamam de números inexpressivos eu chamo de pessoas. São vidas que eventualmente são perdidas por causa disso”, critica.

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O que faz uma boa cláusula de renegociação?

Como escrever uma cláusula de renegociação adequada em contratos empresariais? Em texto anterior nesta coluna (aqui), vimos que cláusulas vagas ou abertas podem ser estratégicas: elas facilitam que os contratantes aloquem riscos desconhecidos entre si. No texto de hoje, dividido em duas partes, daremos alguns passos atrás.

Na prática negocial, é comum observar dois arquétipos de cláusulas de renegociação: alguns contratos usam termos vagos para definir os pressupostos revisionais; outros apostam em textos fechados, delimitando os riscos que a cláusula abrange ou excluindo tantos outros.

Esse jogo entre linguagem precisa e vaga não é fortuito: ele espelha uma lógica na redação de contratos duradouros. Vamos entender as vantagens e as desvantagens comparativas desses estilos, segundo dois enfoques.

Primeiro enfoque: equilibrar certeza e flexibilidade nos contratos

Quando surgiram nos anos 1970, cláusulas de renegociação eram bem simples. No comércio internacional, isso se traduzia nas fórmulas abertas que as cláusulas de hardship empregavam para descrever seus riscos, e que persistem até hoje: as partes se obrigam a renegociar diante de “variações muito importantes na conjuntura econômica”; “circunstâncias fora das previsões normais das partes”; “um evento econômico ou financeiro grave”. Alguns contratos são mais vagos ainda: tratam de “eventos imprevisíveis”, “fatos imprevistos” ou “causas fora do controle das partes” [1].

Com o tempo, certas cláusulas passaram a usar linguagem mais precisa, fixando desde logo no instrumento os riscos que autorizam renegociações. Exemplos: “se a produção de aço proveniente de fontes de hematita atingir 20% da produção total da siderúrgica”, “no caso da aplicação de novos direitos de importação ou exportação”, ou se surgir “uma nova fonte economicamente disponível de produtos.” [2]

Cláusulas específicas servem para dar certeza às relações negociais. Ao definir seu suporte fático de maneira precisa, elas têm a vantagem de serem mais claras. As partes acreditam que, na média, um julgador hipotético irá aplicar o texto do contrato tal como ele está escrito. Essa clareza estabiliza as expectativas dos contratantes: eles conseguem se planejar e adequar seu comportamento ao que o negócio estipula. Se um risco se materializa, a margem para dúvidas interpretativas é menor – reforçando a confiança de que o que está escrito, vale. No exemplo anterior da siderúrgica, ela sabe que a renegociação só é contratualmente exigível se a produção da fonte de hematita chegar a 20% de entrega total (não 19%, nem 21%), o que é guia mais certo para organizar o empreendimento do que discutir se a produção se tornou “muito onerosa” ou “economicamente inviável”.

O problema está nas situações limítrofes. Haverá cenários em que o objetivo subjacente à cláusula faz sentido, mas ela não incide — ao menos não textualmente. Ou, do contrário, casos em que a cláusula deve ser aplicada porque seu suporte fático se verifica, por mais que o resultado dessa aplicação divirja da justificativa por trás dela. Na teoria do Direito isso se chama de superinclusão e subinclusão das regras jurídicas [3]. Uma cláusula de hardship específica — às vezes muito específica — dirá mais e dirá menos do que as partes gostariam se tivessem antevisto algum cenário diferente.

Imagine uma cláusula definindo que o contrato de fornecimento será renegociado se, por força de qualquer causa imprevisível, os custos anuais para produzir o bem excederem em 50% a receita anual com a venda. E se custo e receita ficarem iguais? E se excederem em 45%? O prejudicado argumentaria que esse cenário não é “comercialmente razoável” — afinal, a empresa por definição visa ao lucro. Se a cláusula fosse vaga, a chance de a tese vingar seria melhor. Não é o que decorre da cláusula cujo suporte fático é uma porcentagem objetiva, ao menos não sem boa dose de esforço interpretativo para modular seu texto claro. Ela é subinclusiva nesse exemplo. É o risco que os contratantes assumem nesse tipo de suporte fático: eles se vinculam a renegociar só em hipóteses muito delimitadas — que podem nem sempre ser as melhores —, presumindo-se que para todas as outras vale a intangibilidade do contrato. A certeza do contrato vem ao preço de maior rigidez.

É aí que entram em cena os termos abertos: “desequilíbrio grave”; “razoabilidade comercial” e similares. Por um lado, essas diretrizes são pouco claras ex ante, pois em tese admitem várias leituras plausíveis — o que as torna menos úteis para orientar o comportamento das partes prospectivamente. Sua contraface positiva é que permanecem flexíveis ao longo do tempo: o instrumento será interpretado e reinterpretado para se amoldar às novas circunstâncias, muitas delas imprevisíveis no momento da assinatura.

Cláusulas vagas convidam as partes e o julgador a esse tipo de raciocínio casuístico, em que diferentes fatores devem ser sopesados para decidir cada caso concreto. Mas claro: se as partes desejam se socorrer de um intérprete neutro caso a renegociação direta fracasse — juiz, árbitro, mediador —, é necessário fixar um conteúdo mínimo para a revisão. Do contrário, corre-se o risco de a cláusula, de tão vaga, ser considerada inexequível numa disputa jurídica, como já concluiu o Tribunal de Justiça de São Paulo [4].

Segundo enfoque: alocar poder decisório sobre o conteúdo da cláusula

Avancemos ao segundo enfoque. Optar entre linguagem precisa e vaga serve também para alocar poder decisório sobre o conteúdo contratual. Vista sob esse ângulo, a questão é quem dá conteúdo concreto à cláusula de renegociação e quando essa decisão é tomada. Cláusulas precisas traduzem o esforço das partes em fixar, elas próprias, o conteúdo de suas obrigações no presente, isto é, ao celebrarem o acordo (ex ante).

Termos abertos relegam parcela menor ou maior dessa escolha ao futuro, confiando na discricionariedade do intérprete — que a exercerá só se e quando o risco se materializar. O texto da cláusula amplia ou restringe essa liberdade interpretativa dependendo daquilo que ele fixa no presente e daquilo que deixa vago para ser complementado depois.

A chance de uma decisão contrária ao que as partes gostariam existe, mas a técnica é útil quando é impossível traçar solução exata para vários estados de mundo com chances desconhecidas de ocorrer. Ao invés de antecipar e decidir um sem-número de estados de coisas futuros, pode fazer mais sentido deixar o contrato vago ou lacunoso para debater só sobre os riscos que de fato se concretizem.

A vantagem aí é que a incerteza se dissipou: as partes então se concentram em solucionar o problema com o benefício da visão retrospectiva (ex post). Por outro lado, a confiança exigida nesse contexto é alta. Uma coisa é traçar soluções para o desequilíbrio eventual no momento da assinatura, quando as partes acreditam na parceria que virá. Outra, mais difícil, é debater termos vagos depois que o conflito se instalou e os interesses de cada um são opostos. Cada parte defenderá que a interpretação que a beneficia no caso concreto é “a melhor”, “a correta” — sem que o contrato ampare explicitamente nenhuma. No limite, o julgador será provocado para solucionar impasses.

Um julgado do TJ-SP ilustra como isso funciona [5]. As partes discutiam o índice inflacionário para corrigir o valor das parcelas do preço em contrato de promessa de compra e venda de imóvel. A regra do contrato era o reajuste anual pelo IGP-M. O instrumento ressalvava que “atos governamentais”, “mudanças de padrão monetário”, “extinção ou congelamento de índice de correção monetária” ou “outro artifício não condizente com a real inflação” poderiam descolar o índice da inflação real em certo período. Nessas situações, a mesma cláusula estipulava — de modo abrangente — que “o saldo devedor do preço deste negócio jurídico será revisto de forma que se restabeleça o […] equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.

Com a pandemia em 2020, o IGP-M aumentou mais do que a inflação real no Brasil medida por outros índices setoriais, em boa parte porque ele considera oscilações do dólar. Em princípio, o contrato não previu essa situação — ao menos não de maneira expressa. O TJ-SP, porém, se valeu do texto aberto do final da cláusula — “restabelecer o equilíbrio” — e entendeu ser “razoável, […] que se aplique também a cláusula para fins da situação inversa, qual seja, a de o indexador eleito pelas partes superar em muito a inflação do período […]”. O tribunal substituiu o IGP-M pelo INPC.

Esse caso ilustra o uso do contrato para que o julgador crie soluções que as partes não previram ao assiná-lo. O contraponto é que, no geral, sempre haverá mais de uma resposta correta dentro da moldura da cláusula. Veja-se: alguém poderia questionar por que o Tribunal aplicou o INPC em vez do IPCA ou de outra fórmula qualquer. Contratantes que optam por termos vagos devem estar cientes de que algum grau de subjetividade decisória é inafastável. Mas devem também confiar nela: frente a imprevistos, é melhor ter alguma resposta do que ficar sem nenhuma.

Conclusão

Neste breve texto, vimos que o primeiro caminho para construir uma boa cláusula de renegociação é entender a dinâmica entre usar linguagem precisa e termos vagos no instrumento. Além de ajudar redatores de contratos empresariais, o ponto tem relevância hermenêutica: em sentido amplo, essas estratégias formam o que se pode chamar de “racionalidade econômica” de contratantes empresários (artigo 113, §1º, V, Código Civil).

Na próxima etapa dessa análise, discutiremos como uma cláusula de renegociação mais sofisticada pode mesclar criativamente linguagem específica e aberta em um só texto — usando como base da reflexão duas cláusulas-modelo da Câmara de Comércio Internacional (CCI).

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[1] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting International Contracts: An Analysis of Contract Clauses. Nova Iorque: Transnational Publishers, 2006. p. 463

[2] FONTAINE, Marcel; DE LY, Filip. Drafting… cit., p. 466-467.

[3] SCHAUER, Frederick F. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2009. p. 188-202.

[4] “Se a ideia era erigir algo semelhante a uma cláusula de hardship, que estabelecesse valores menores de multa, ou mesmo sua inexigibilidade, na hipótese de queda de arrecadação, era fundamental que as partes tivessem fixado parâmetros objetivos no próprio acordo para que isso pudesse ser efetivado. Todavia, na forma como foi redigida a cláusula, em termos absolutamente genéricos, sem a fixação de qualquer critério objetivo para a redução da multa, inviável extrair qualquer consequência jurídica de seu conteúdo, a não ser a necessidade de as partes entabularem novas negociações, o que foi cumprido” (TJ-SP, Agravo Regimental Cível n.º 2010463-11.2016.8.26.0000/50001, Órgão Especial, Rel. Des. Pereira Calças, j. 27.02.2019).

[5] TJ-SP, Agravo de Instrumento n.º 2175864-86.2021.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 30.08.2021, DJe 09.09.2021.

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Comissão aprova projeto que cria o “Pix Pensão” para facilitar pagamento de pensão alimentícia

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou proposta que institui a transferência automática de pensão alimentícia, chamada de “Pix Pensão”. A medida permite que o beneficiário opte pela transferência automática em qualquer momento do cumprimento da sentença.

Caberá ao juiz determinar o débito direto da conta do pagador para a conta do alimentando ou de seu responsável.

Hoje, a pensão pode ser debitada automaticamente do salário do devedor. Mas se ele não tiver vínculo formal, o beneficiário precisa acionar a Justiça a cada atraso.

A comissão aprovou a versão elaborada pela relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), para o PL 4978/23, da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) e outros parlamentares. A proposta segue agora para análise dos senadores, a menos que haja pedido para que seja analisada também pelo Plenário da Câmara.

“Embora o ordenamento jurídico seja dotado de mecanismos eficientes de coerção para o pagamento, o maior compromisso do legislador é com o efetivo cumprimento da obrigação alimentar”, afirmou Laura Carneiro. “A proposição promove celeridade e efetividade, fechando portas para manobras de devedores irresponsáveis.”

O texto altera o Código de Processo Civil.

Penhora
O projeto permite a penhora de valores depositados em conta de empresário individual. Ela deverá se limitar ao valor das prestações alimentícias em atraso.

“Caso persista infrutífera a execução por transferência direta, deve ser possível prosseguir, seja pelo rito da execução por quantia certa (com a penhora de outros bens, como automóveis, imóveis etc.), seja pelo rito da prisão”, esclareceu Laura Carneiro.

Outro ponto do projeto prevê a divulgação de estatísticas sobre o andamento das ações de alimentos no país.

Outros projetos rejeitados
Na mesma votação que aprovou o projeto de Tabata Amaral, foram rejeitados os PLs 3837/19, 185/22, 5067/23 e 404/24, que tramitam em conjunto e tratam de assunto semelhante.

Fonte: Câmara dos Deputados

Comissão aprova projeto que aumenta pena para estelionato praticado com “golpe do amor”

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que aumenta a pena do crime de estelionato quando o autor se vale de relação afetiva ou de íntima confiança com a vítima. A medida busca coibir casos de “golpe do amor”.

Nesses casos, a pena será de reclusão de três a nove anos, além de multa.

O Código Penal hoje define que o estelionato ocorre quando o agente utiliza de artimanha para enganar alguém, induzindo-o a erro a fim de obter vantagem.

O texto aprovado é o substitutivo do relator, deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), para o Projeto de Lei 5197/23, do deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO).

“Julgo mais cabível a inclusão de qualificadora do crime de estelionato, definindo novos limites de aplicação da pena-base, sugerindo mínimos que vinculem essa sanção ao regime semiaberto”, destacou Delegado Paulo Bilynskyj no parecer.

Fonte: Câmara dos Deputados

Por que a autocontenção no caso dos atos antidemocráticos é um erro

O julgamento do processo dos atos antidemocráticos levanta uma série de questões jurídicas, políticas e morais. Deve o Supremo Tribunal Federal julgar casos que envolvem ofensas a seus ministros? Parece que a resposta é afirmativa nesse caso em função de que os ataques são à instituição do STF, e não às pessoas dos ministros.

Pedir que um dos juízes visados por esses ataques se declare parcial ou suspeito ignora essa distinção, e tornaria todos os 11 ministros incapazes de julgar. Também é verdadeira a conclusão de que o STF existe em grande medida para limitar e punir ações concretas e planos de derrubada da democracia. Ele é, afinal, o “guardião da Constituição”, e a divisão atual do trabalho do Judiciário lhe confere competência jurídica — pois há suspeitos de envolvimento nos atos julgados que possuem prerrogativa de foro.

O que ainda é muito questionado é se o STF deve se autoconter em seu julgamento, com vistas à sua autopreservação institucional, dada a carga política em torno do julgamento. Acredito que a resposta a essa pergunta é negativa em certos termos, que se relacionam com a busca da melhor definição do ideal de moralidade política do “Estado Democrático de Direito.”

Para muitos, essa parece ser uma questão de realpolitik: as cortes constitucionais em geral “não tem a espada nem o tesouro”, como diziam os Artigos Federalistas. Os ministros devem se perguntar se há boas chances de que represálias se imponham a eles e à corte caso decidam como creem ser justificado; suas decisões se resumiriam a questões de fato e de “razão prudencial.” O raciocínio visa à autopreservação: se o STF sofrer represálias — como a limitação dos seus poderes pelo Congresso, o efeito “backlash” —, cada ministro individualmente perderá poderes. Por isso, para a conservação da instituição no médio e longo prazo, algumas decisões teriam de ser minimalistas para evitar atritos políticos.

Por ser a “instituição menos perigosa” (ou mais frágil), no dizer do jurista estadunidense Alexander Bickel, uma corte como o STF deveria estar muito atenta aos efeitos de suas decisões sobre os atores políticos mais relevantes. Poderia se dizer, então que o STF deveria buscar resolver o processo dos atos antidemocráticos em audiências de conciliação – públicas ou privadas; ou estender a sua duração para evitar julgar o caso; ou, ainda, aplicar a estrangeira “doutrina da questão política”, terceirizando a resolução do conflito a outro Poder da República, por conta do peso político do conflito.

Caio Cardoso Tolentino (mestre e doutorando em Direito pela USP) me lembrou, nesse sentido, que há precedentes no Brasil para quem apoia esse último argumento: em 1892, o STF foi instado por Rui Barbosa a julgar a validade de prisões políticos em torno da decretação de estado de sítio por decreto. O Habeas Corpus nº 300 foi rejeitado, entre outras razões, por não ser considerado “da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo” [1]. A decisão veio depois de o marechal Floriano Peixoto afirmar “se os juízes do Tribunal concederem o Habeas Corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão” [2].

No nosso caso, esse argumento ressurge de novas maneiras: pela defesa da votação do projeto de lei de anistia no Congresso; pela postergação da decisão ao/à próximo/a presidente da República (há pré-candidatos fazendo essa promessa caso eleitos); ou pior, pela submissão da decisão a Donald Trump, que chantageia o Brasil a conceder a anistia.

O professor Marcus André Melo levanta uma questão importante do ponto de vista mais descritivo da ciência política em texto recente na Folha de S.Paulo sobre o tema. Ele cita “The politics of the rule of law[3] (“A política do estado de direito”) de Joseph Raz (1939-2022), grande teórico do Direito dos séculos 20 e 21, como base teórica de seu artigo “Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF”, de 24/8/2025 [4].

Nele, afirma que “há clamor por autocontenção, mas a estrutura de incentivos é o que importa”. Após defender brevemente que juízes devem evitar “grande sofisticação filosófica” ao cumprir seu dever de justificação pública de decisões, o professor Melo logo remete a outros dois artigos seus [5] sobre o tema, onde afirma que “o saldo líquido para a corte [no caso dos atos antidemocráticos] seria negativo em qualquer cenário”“O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado — seu custo proibitivo — em um momento crítico para a democracia brasileira.”

O professor Melo tem razão quanto ao seguinte: juízes constitucionais não devem “jogar para a torcida” com suas decisões. Sua legitimidade é corroída quanto mais se “pessoaliza” a atuação da corte em nome de politicagem ou avanço de projetos pessoais. Por isso, correto o argumento de que o STF deve se pautar por razões jurídicas no julgamento que se avizinha. Isso não significa, contudo, que não haja uma carga moral relevante para fundamentar essa postura judicial. Em outras palavras, não há um dever moral de autocontenção judicial, mas de aplicação do direito e de razões jurídicas por parte dos juízes, o que, se reconhece, inclui respeito à Constituição e a seus princípios e normas fundamentais.

Joseph Raz era antes do que analista ou cientista político um grande filósofo moral e político que acreditava que certos deveres morais são reais e objetivos, e por isso não podem ser ignorados. Alguns deles constituem a própria atividade institucional. Um dever moral que todo juiz deve seguir — embora nem sempre consiga fazê-lo, por erro, fraqueza de vontade ou dificuldade de saber o que é certo em casos difíceis — é buscar realizar o ideal político do Estado Democrático de Direito, conforme seu texto clássico “The rule of law and its virtue” (“O estado de direito e sua virtude”), de 1977 [6].

Esse ideal pode ser realizado em graus, e é composto de vários elementos que devem concorrer para o sucesso desse objetivo. Os juízes fazem parte de sua realização ao respeitar princípios de justiça natural — respeitar o devido processo, o contraditório, não ter viés —, usar seus poderes de revisão de ações dos outros Poderes para garantir a conformidade ao direito — o que demanda imparcialidade e independência frente a pressões externas, além de respeito à lei e à divisão dos papeis das instituições – e serem acessíveis – decidindo em prazos razoáveis e com baixo custo.

O Judiciário brasileiro está longe de “bater essas metas.” Mas o fato não invalida seus deveres, que são morais e não postos pela lei. Antes, derivam de do valor moral das cortes em garantir por certos procedimentos a liberdade e a dignidade de todas as pessoas em certo Estado. Mas qual liberdade se busca garantir? Afinal, os réus do processo do golpe clamam por liberdade.

Por vezes surgem nesse debate ecos do sentido hobbesiano de liberdade – entendida como ausência de interferência física para a realização do que se deseja; a liberdade civil surge do desejo mútuo das pessoas de viverem em paz social sob a vigilância de um soberano absoluto. Demandas por anistia em nome da “pacificação” são uma resposta “civil” nesses termos ao desejo de liberdade natural absoluta dos golpistas.

Para Locke, embora coubesse ao soberano garantir a paz no Estado civil pelos meios cabíveis, haveria certos direitos inalienáveis da pessoa humana. Mas eles se resumiam basicamente à propriedade provinda do trabalho e/ou da especulação financeira. Ao governo caberia ser imparcial, estável e previsível na resolução dos conflitos entre os privados.

Por isso, Friedrich Hayek retoma no século 20 a ideia de o Estado de Direito ser uma virtude política, desde que atrelada à liberdade econômica. Os clamores por segurança jurídica então dispararam. Isso não impediu que ditaduras militares do Cone Sul garantissem a estabilidade econômica subtraindo da população a democracia. Não é à toa que Hayek aprovou as medidas do ditador Pinochet no Chile – em 1981, ele afirmou ser “melhor uma ditadura liberal do que um governo democrático sem liberalismo” para justificar o assassinato do presidente eleito Salvador Allende.

Joseph Raz não compactuou com a posição de Hayek; criticou-a por reduzir a liberdade política à liberdade econômica. Os governos podem e devem punir atos que subvertem o governo do direito e a garantia da democracia e dos direitos humanos. Isso implica em se legislar crimes que protejam esses bens, em garantir limites ao poder e, no caso dos juízes, em se garantir a aplicação dessas normas. A realização desses deveres pelos agentes institucionais é essencial para que se respeite a dignidade e a liberdade de todos. Nada disso pode ser superado por ganhos econômicos.

Com isso, Raz ecoa a tradição republicana de Montesquieu e Rousseau, para quem o interesse privado não pode corroer o interesse comum de todos na garantia de um ambiente justo. Sem a proteção do Estado Democrático de Direito – autogoverno fazendo parte de tal ideal –, ninguém poderá ser realmente livre. Sendo tal valor um ideal político, cabe ao Judiciário fazer a sua parte incutindo a incorporação dessa virtude à vida cívica do país pelos procedimentos que lhe cabem.

Grave equívoco

Quem agora defende autocontenção do STF pode compartilhar de uma pauta com os acadêmicos que defendem o julgamento conforme a Lei dos Crimes Contra o Estado democrático de Direito, sem anistia: a crítica a inconsistências e falhas da corte em realizar em maior grau as demandas do ideal político-moral do Estado Democrático de Direito. Afinal, trata-se de um ideal em constante realização, com avanços e retrocessos.

O grave equívoco dos que “clamam” por autocontenção — seja com apelo a fatos, estruturas institucionais ou defesa de certos valores — está em validar a liberdade irrestrita dos golpistas, de um lado, ou a submissão da liberdade política a chantagens — interna e externa, de bolsonaristas e trumpistas — em nome da liberdade econômica, de outro. A liberdade política e civil genuína demanda cooperação constante em prol da proteção da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito em nome do sentimento de que todos são livres e realmente respeitados pelos três poderes do Estado. Isso demanda que o Judiciário realize sua parte na construção desse ideal moral-político.


[1] Disponível aqui.

[2] COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 30.

[3] RAZ, Joseph. The politics of the rule of law. In: RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. Revised edition. Oxford: Clarendon Press, 1995.

[4] MELO, Marcus André. Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.

[5] MELO, Marcus André. O STF e o foro. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui. MELO, Marcus André. O STF e a conspiração: por que o saldo líquido do julgamento para a corte será negativo em qualquer cenário? Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.

[6] RAZ, Joseph. The rule of law and its virtue. In: RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979.

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Terceira Turma não vê abuso em artigo científico que reproduziu acusação criminal não comprovada

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a reprodução, em artigos científicos, de acusação criminal feita por terceiro em rede social, ainda que não comprovada posteriormente, não configura abuso de direito nem gera direito a indenização, desde que configuradas a boa-fé e a finalidade acadêmica.

O caso analisado teve início quando um professor universitário ingressou com ação judicial contra duas pesquisadoras acadêmicas. Além de indenização, ele requereu que fosse excluída, de dois artigos de autoria da dupla, qualquer referência direta ou indireta ao episódio em que uma ex-aluna e estagiária sua cometeu suicídio após acusá-lo de violência de gênero em rede social. O professor alegou que as acusações não foram comprovadas e que a reprodução do conteúdo configuraria abuso de direito e teria causado danos à sua honra.

A Terceira Turma considerou proporcional a medida adotada pelo tribunal de segunda instância, que apenas determinou a supressão do nome do professor do trecho que reproduzia literalmente a postagem original.

Liberdade de informação encontra limites nos direitos de personalidade

A relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi, observou que a jurisprudência do STJ considera que a liberdade de informação, de expressão e de imprensa, embora seja uma garantia essencial ao regime democrático, não autoriza o abuso.

“A proteção ao direito de informação não é absoluta, pois encontra limites no ordenamento civil, especialmente quando seu exercício ultrapassa a função social que lhe é inerente e resulta em violação aos direitos da personalidade de terceiro”, afirmou. No entanto, ela entendeu que, nos artigos científicos em questão, não houve qualquer tipo de externalização de ideias, opiniões, juízos de valor, comentários ou acusações a respeito da conduta ou da pessoa do recorrente.

Interesse público se intensifica quando a divulgação tem fins educativos

Outra questão abordada pela ministra foi a distinção entre atividade jornalística e produção científica. Segundo ela, enquanto a imprensa está submetida a dinâmicas comerciais e equipes profissionais, a produção acadêmica é voltada ao desenvolvimento intelectual e à livre circulação de ideias.

“Nesse sentido, a liberdade acadêmica protege não apenas a livre manifestação de pensamento, mas também o exercício do direito à informação, da crítica teórica e da investigação científica, mesmo quando isso implique questionamentos a instituições, doutrinas ou pessoas”, ponderou a relatora. Ela ressaltou que o interesse público é ainda mais presente quando a divulgação ocorre com fins intelectuais, didáticos e não lucrativos.

Além disso, Nancy Andrighi afirmou que os artigos publicados se limitaram a divulgar um acontecimento real e tiveram o intuito acadêmico de discorrer sobre a violência de gênero. “Mais que presumido, o interesse público é manifesto, porquanto a menção ao suicídio da estudante é realizada em um contexto de obra científica que visa a debater as mais diversas formas de violência contra a mulher”, finalizou.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

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Comissão aprova projeto que torna crime o assédio a adolescentes

 

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que torna crime aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, crianças ou adolescentes para a prática de ato sexual. O texto deverá seguir agora para análise no Plenário.

Hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) classifica essa conduta como crime apenas se a vítima for criança – ou seja, se tiver até 12 anos incompletos. A proposta altera o ECA.

O projeto também aumenta o tempo de prisão: de 1 a 3 anos para 2 a 4 anos, além de multa.

Mudanças no original
O texto aprovado é o substitutivo da relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), para o Projeto de Lei 4723/23, da deputada Delegada Ione (Avante-MG). A relatora manteve o aumento da pena previsto no projeto original, mas decidiu incorporar sugestões do Projeto de Lei 2857/19, recentemente aprovado pela CCJ.

Assim, nos casos de assédio contra criança ou adolescente cometidos por meio de mídias sociais ou pela internet, a pena de prisão aumentará em 1/3, passando então de 2 a 4 anos para 2 anos e sete meses a 5 anos e três meses, além de multa.

Proteção ampliada
Segundo Laura Carneiro, a Constituição já determina que “lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual de criança e adolescente”, sem fazer distinção de idade. “Todas as vítimas menores de 18 anos devem ser protegidas, tendo em vista a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento”, disse ela.

Autora da proposta original, a deputada Delegada Ione avalia que o ECA precisa ser atualizado. “Esse trecho merece crítica, pois o pedófilo só será punido por assédio contra crianças, e contra adolescentes não haverá punição”, comentou.

Fonte: Câmara dos Deputados

Decisão de pronúncia não pode se basear apenas em testemunhos indiretos de policiais

Para a Quinta Turma, os relatos de policiais que apenas reproduzem informações ouvidas de terceiros durante o inquérito não são suficientes para submeter o réu ao julgamento pelo tribunal do júri.

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que os testemunhos judiciais de policiais, quando veiculam relatos de terceiros obtidos durante o inquérito, não são suficientes para comprovar os indícios de autoria exigidos para a pronúncia do réu. Em tal situação, o colegiado entendeu não ser cabível a invocação do princípio segundo o qual, havendo dúvidas no momento da pronúncia, deve prevalecer o interesse da sociedade na apuração do crime (in dubio pro societate).  

No caso analisado, o réu foi acusado de matar uma mulher que ele supostamente vinha ameaçando. A motivação seria o fato de ela ter prestado depoimento contra ele como testemunha ocular de outro homicídio. No momento do crime, a vítima estava acompanhada do marido, que sobreviveu.

O suspeito foi pronunciado pelo juízo de primeiro grau exclusivamente com base nos depoimentos do delegado que presidiu o inquérito e dos policiais que atenderam a ocorrência e investigaram o caso. A vítima sobrevivente não foi capaz de identificar o autor do crime. Ouvidos como testemunhas durante a instrução probatória, os agentes relataram o que ouviram de outras pessoas na fase do inquérito.

Testemunho indireto só serve para indicar fonte original da informação

Inicialmente, em decisão monocrática, a ministra Daniela Teixeira, relatora, concedeu habeas corpus para anular a pronúncia.

Ao analisar o recurso apresentado à Quinta Turma pelo Ministério Público Federal, a ministra destacou que o testemunho de um policial ou de qualquer outra pessoa que apenas relata, mesmo em juízo, aquilo que ouviu de outra pessoa é um testemunho indireto e, portanto, não serve para fundamentar a pronúncia ou a condenação. A única finalidade desse tipo de testemunho – continuou – “é indicar a fonte original da informação para que ela seja ouvida em juízo, segundo o artigo 209, parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal (CPP)“.

De acordo com Daniela Teixeira, o entendimento do STJ evoluiu nos últimos anos e passou a considerar que a exigência probatória mínima para a pronúncia deve ser superior à do recebimento da denúncia, e que não devem ser aceitos testemunhos indiretos, ou “de ouvir dizer”. Assim – esclareceu a relatora –, sem indícios robustos de autoria, a pronúncia não pode ser justificada com o argumento de que a sociedade tem o direito de decidir sobre a culpa ou a inocência do réu.

Pronúncia exige um suporte probatório mínimo

“O princípio in dubio pro societate não pode ser utilizado para suprir a insuficiência probatória, sendo imprescindível a preponderância de provas que indiquem autoria ou participação do acusado. A pronúncia, enquanto decisão intermediária, não pode prescindir de um suporte probatório mínimo, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência”, declarou.

Ao rejeitar o recurso do Ministério Público, Daniela Teixeira enfatizou que “o STJ não aceita a utilização do princípio in dubio pro societate e, em consonância com a doutrina, reafirma a necessidade de uma preponderância de provas acerca dos indícios de autoria delitiva exigidos para encaminhar os acusados para julgamento perante os jurados e de acordo com o artigo 155 do CPP“.

Fonte: STJ

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