Negociação trabalhista deve preceder tutela estatal, diz ministro do TST

O Direito do Trabalho no Brasil deve consolidar um novo modelo que privilegie a negociação coletiva em detrimento da regulação direta do Estado. Essa negociação deve ser conduzida por entidades sindicais representativas, que operem de forma democrática e em harmonia com os interesses de seus representados.

Essa foi a visão expressada pelo ministro Douglas Alencar, do Tribunal Superior do Trabalho, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico durante o IV Congresso Nacional e II Internacional da Magistratura do Trabalho, promovido em Foz do Iguaçu (PR) no final de novembro. O Anuário da Justiça do Trabalho 2025 foi lançado no evento.

“A Constituição é muito clara no sentido de facultar, aos atores sociais, a recusa à intervenção do Estado para essa arbitragem de conflitos coletivos. Uma arbitragem pública de conflitos coletivos, que nada mais é do que o poder normativo da Justiça do Trabalho. Nós estamos aqui discutindo um novo modelo que deve ter a negociação coletiva como seu palco central, afastando o Estado da regulação”, sintetiza.

Transição de modelos

O ministro relembrou as origens do Direito do Trabalho no Brasil desde a década de 1930, que consolidou o poder dos sindicatos, até a reforma trabalhista de 2017, que flexibilizou regras e buscou a prevalência do negociado sobre o legislado.

Apesar desses avanços, Alencar avalia que o o país ainda enfrenta um quadro de relativa insegurança jurídica, pois não há uma posição clara da Justiça do Trabalho, especialmente do TST, sobre o significado da autonomia negocial coletiva prevista na reforma.

“Enfrentamos, portanto, um instante de transição em que o modelo pensado a partir da década de 1930 insiste em se manter entre nós. E o modelo que foi gestado em 2015 e 2017 ainda procura o seu espaço de afirmação nesse ambiente.”

O ministro ressaltou a importância de um julgado recente do TST. Em tese aprovada em plenário, em novembro, a corte determinou que o sindicato pode ajuizar dissídio coletivo se a organização patronal se recusar a negociar sem justificativa.

O tribunal resolveu uma controvérsia que se observava desde a discussão do Tema 841 do Supremo Tribunal Federal. O STF fixou na ocasião, em 2020, que é necessária a concordância de ambas as partes (patrão e empregado) para dar início a um dissídio, mas faltavam balizas para definir em que situações a recusa à negociação seria legítima.

“Entendeu-se que haveria a necessidade de nós examinarmos eventuais recusas de empresas ou sindicatos patronais à negociação coletiva como condição de legitimidade dessa recusa. Ou seja, só seriam admitidas recusas fundadas em boa fé”, explicou o ministro.

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

https://youtube.com/watch?v=Hnv-zbWRIdE%3Fsi%3DjIJ0fhS-yI5dMp59

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A prova técnica como eixo do Direito do Trabalho e Previdenciário

As recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) reacenderam um debate que há anos divide especialistas: afinal, qual é o peso efetivo da prova técnica na definição de adicional de insalubridade e na cobrança de contribuições previdenciárias relacionadas aos riscos ambientais do trabalho?

O Judiciário tem sinalizado uma resposta clara. Em julgados recentes, tanto o TST quanto o TRF-4 reconheceram que a neutralização do agente nocivo por meio de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) afasta o pagamento de adicionais de insalubridade e de contribuições majoradas. O contraste, porém, surge quando observamos a postura da Receita Federal, que segue ampliando a cobrança do adicional por Riscos Ambientais do Trabalho (RAT), mesmo diante de documentação técnica comprobatória de redução de exposição.

Essa assimetria revela uma realidade desconfortável: convivem hoje no país duas lógicas distintas — uma trabalhista e outra previdenciária — que impactam diretamente a segurança jurídica das empresas.

Trabalhista x Previdenciária: a dissonância entre os sistemas

No campo trabalhista, o entendimento é objetivo: se o EPI neutraliza o risco e reduz a exposição para níveis seguros, não há adicional de insalubridade. Já na esfera previdenciária, o Supremo Tribunal Federal consolidou que a simples presença do agente nocivo pode justificar o direito à aposentadoria especial, ainda que o equipamento seja eficaz.

Isso significa que um trabalhador pode não ter direito ao adicional de insalubridade, mas ainda assim gerar contribuição majorada ao RAT. É essa incongruência que tenho chamado de “dissonância regulatória”, pois cria insegurança jurídica, onera empresas que investem corretamente em saúde e segurança e tensiona o relacionamento com a fiscalização.

Prova técnica como elemento central

O que muda, então, diante dos novos julgados? A disposição do Judiciário de valorizar não apenas a existência de EPIs, mas a gestão real de riscos, comprovada por documentação robusta e coerente. A simples entrega do equipamento não basta. O que importa é demonstrar, com consistência técnica e continuidade, que o EPI reduz efetivamente a exposição ao agente nocivo.

Na prática, empresas que mantêm programas de saúde e segurança avançados — com treinamentos periódicos, medições atualizadas, audiometrias e auditorias internas — passam a ter maior segurança jurídica tanto para afastar adicionais de insalubridade quanto para contestar cobranças previdenciárias indevidas.

O eSocial como base oficial de risco

Com o avanço das estratégias de fiscalização da Receita Federal, baseadas no cruzamento automático de dados do eSocial, a coerência documental tornou-se imprescindível. Qualquer divergência entre o que consta no sistema e o que está no PGR, no LTCAT ou nas medições ambientais cria uma presunção desfavorável e pode resultar em autuações.

Para comprovar a neutralização do agente ruído, por exemplo, é necessário compor um dossiê técnico consistente, que envolva:

  • medições ambientais conforme NHO-01;
  • LTCAT e PGR coerentes e atualizados;
  • histórico de audiometrias que evidencie ausência de perda auditiva relacionada ao trabalho;
  • entregas de EPI com CA válido e com nível de atenuação compatível com o risco;
  • treinamentos registrados e fiscalização real do uso.

Quando esses documentos dialogam entre si, a capacidade de afastar o adicional de insalubridade aumenta significativamente.

Erros recorrentes das empresas

Ainda é comum observar falhas que não decorrem da ausência de EPI, mas da incapacidade de comprovar sua gestão. Laudos que não conversam entre si, certificados de EPI vencidos, ausência de fiscalização de uso e falta de audiometrias periódicas são alguns dos problemas que fragilizam a defesa empresarial.

Sem coerência documental, o risco de autuação — trabalhista ou previdenciária — é elevado.

Como responder aos avisos de cobrança do RAT

Diante das notificações automatizadas da Receita, a orientação é adotar uma postura integrada entre setores trabalhista, fiscal e previdenciário. O primeiro passo é realizar uma auditoria ampla: PGR, LTCAT, medições ambientais, histórico de entrega e uso de EPIs, audiometrias e informações do eSocial. Havendo neutralização comprovada, monta-se um dossiê técnico consistente. Caso contrário, a autorregularização pode ser necessária para evitar multas que podem chegar a 75%.

É importante ponderar que regularizar sem questionar pode cristalizar um custo previdenciário permanente. Cada caso exige uma análise criteriosa.

O que pode mudar com o STF

Nos próximos meses, o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a ADI 7773, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que questiona a lógica atual de cobrança do RAT. O julgamento poderá redefinir a forma como a Receita Federal aplica o Tema 555 e como as empresas comprovam a neutralização dos riscos.

Seja qual for o desfecho, o fato é que a prova técnica volta ao centro do debate jurídico. E, diante da evolução dos mecanismos de fiscalização, as empresas que investirem em gestão integrada de risco, documentação coerente e atualização contínua estarão mais preparadas para enfrentar as controvérsias que se desenham no horizonte.

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Direito à educação de qualidade precatorizado: lições do Fundef

Este artigo é a continuação do debate iniciado no último dia 25 de novembro aqui, quando foi explorado o regime jurídico do direito à educação de qualidade (artigo 206, VII da CF/1988) e sua evolução até o estabelecimento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

O presente estudo foi subdividido em busca da reflexão dos desafios (primeira parte já publicada) e das lições (escopo desta segunda) trazidas pela judicialização acerca do dever de complementação federal ao valor de referência por aluno que, em tese, haveria de garantir o custeio do padrão mínimo nacional de qualidade da educação pública brasileira.

Após haver sido deferido judicialmente o multibilionário pleito de ressarcimento da União a diversos entes políticos, os precatórios do Fundef estiveram sujeitos ao risco de apropriação de parcela desses recursos por grupos de interesse, sem uma necessária aderência à sua finalidade constitucional vinculativa, de manutenção e desenvolvimento da educação e valorização do magistério.

Foi o caso dos escritórios de advocacia que buscaram firmar contratos com os municípios beneficiários, sem licitação, por uma suposta inexigibilidade de licitação, para a promoção de ações autônomas de cumprimento do provimento judicial obtido pelo Ministério Público Federal, estipulando honorários contratuais de até 30% dos valores sempre expressivos dos precatórios do Fundef. Isso ocorreu, a despeito da natureza ordinária da atuação demandada desses profissionais, restrita à execução de decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública federal, para a qual inexiste risco de insolvência ou mesmo a necessidade de localizar bens passíveis de penhora. Injustificáveis, portanto, os valores cobrados e a própria contratação direta desses escritórios. [1]

Foi o caso, também, dos profissionais do magistério, que demandavam que lhes fosse direcionado 60% do valor dos precatórios, sob a forma de “bônus pecuniário” ou “abono”. Tal demanda era calcada na regra legal que prescrevia que, no mínimo, 60% dos valores do Fundef fossem destinados à remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público (artigo 7º da Lei nº 9.424/1996).

Há controvérsias, porém, sobre a real necessidade e até mesmo sobre a adequação da destinação de tais recursos a abonos remuneratórios para profissionais do magistério ativos e inativos (aposentados e pensionistas), a despeito do permissivo constitucionalizado no parágrafo único do artigo 5º da Emenda 114/2021.

Vale lembrar, por sinal, que o foco nuclear do Fundef é o educando e, conforme bem sintetiza Cristina Melo (2023, p. 41), “a maioria dos municípios acabam tendo que destinar a maior parte dos recursos do fundo educacional para pagamento da folha de salários, o que, na prática, muito mais que os 60% são revertidos para remuneração, o que impacta os recursos disponíveis para tantas outras ações necessárias para melhoria da educação, tais como construção ou reforma dos estabelecimentos escolares, aquisição de materiais e equipamentos a serem utilizados no dia a dia das escolas, entre outros. Então, não necessariamente os recursos da complementação da União que não chegaram na ponta seriam utilizados para aumentar a remuneração dos profissionais do magistério”.

Some-se a isso que, nos cinco primeiros anos dos nove em que vigeu o Fundef, a lei autorizava o uso do percentual vinculado à remuneração dos profissionais do magistério na capacitação de professores leigos, o que igualmente prejudica a certeza de que 60% dos valores que a União deixou de repassar teriam sido empregados na majoração de remunerações.

E por mais que a premissa dos professores possa ser, em alguns casos, total ou parcialmente verdadeira e que o trabalho desempenhado por esses profissionais seja indubitavelmente essencial para a concretização do direito fundamental à educação, há que se considerar que os recursos do Fundef eram constitucionalmente vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério. Tal liame inexiste no pagamento de bônus extraordinário aos professores, muitos deles já aposentados, ou aos seus pensionistas, pois não adere à remuneração da carreira docente, não a torna capaz de melhor atrair e reter profissionais qualificados, nem mesmo cria qualquer estímulo para o desempenho futuro dos profissionais da ativa.

Lições de um precedente judicial tão paradigmático

Fazemos toda essa explanação de contexto para evidenciar como a reparação judicial intempestiva do subfinanciamento da educação pode ser débil. No caso dos precatórios do Fundef, o direito à educação, que está no cerne das regras constitucionais e legais de financiamento mínimo e vinculação de recursos e da própria atuação judicial do MPF, perdeu relevância no desfecho, tendo sido obliterado e preterido diante de direitos estritamente pecuniários, não só dos municípios, mas de professores e advogados.

É claro que a resistência da União à pretensão exercida pelo MPF, inclusive por meio da interposição de diversos recursos, teve papel relevante na demora do provimento judicial e no desfecho observado. Não há dúvida, também, de que é direito das partes, mesmo das pessoas jurídicas de direito público, exercitar a sua ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes”, conforme explicita o artigo 5º, inciso LV, da Constituição. Por outro lado, o risco de sucumbência futura e os custos da protelação precisam ser considerados. Inclusive custos de movimentação da máquina judiciária federal, cujo financiamento igualmente recai sobre a União. E não apenas prejuízos estritamente econômicos, mas também para a concretização da política pública, em se tratando a parte ré de pessoa jurídica de direito público, cuja atuação, em qualquer esfera, há que se pautar primeiro pelo interesse público.

Não se pode ignorar, também, a possibilidade de a resistência da União se motivar na própria protelação do gasto, seja para cumprir determinada meta fiscal, seja para criar espaço fiscal-orçamentário no curto prazo para outra despesa politicamente preferida, mesmo antevendo o risco de, mais dia, menos dia, a despesa postergada retornar sob a forma de precatório, acrescida de expressivos juros moratórios. Isso ocorrerá, porém, muito provavelmente, não na gestão do incumbente protelador, mas de algum de seus sucessores. Não à toa vemos os precatórios federais se avolumarem em ritmo preocupante.

É desejável que o arcabouço fiscal mitigue esse tipo de incentivo perverso, inclusive como forma de preservar o espaço fiscal futuro e a sustentabilidade das contas públicas desse processo de “precatorização de direitos”, de postergação de despesas imperativas e da própria concretização de direitos nos níveis já assegurados pelo ordenamento jurídico. Talvez pela exigência de alguma espécie de provisionamento, conforme análise isenta e confiável de prognóstico judicial, e pela introdução de mecanismos legais que incentivem uma gestão mais inteligente de processos judiciais, pautada não pelo exaurimento das instâncias recursais, mas por uma adequada gestão de riscos e pela busca de soluções negociais sempre que possível. Evitar-se-ia, assim, a sobrecarga do sistema de justiça, que também absorve recursos fiscais importantes e estimular-se-ia a construção dialogada de soluções de conflito, capazes, inclusive, de melhor atender as preocupações do poder público réu.

Mas, para além disso, em causas como a do Fundef, caracterizadas por conflitos federativos relativos a transferências obrigatórias vinculadas a finalidade específica, mesmo à falta de soluções consensuais, nos parece necessário cogitar alternativas de provimento judicial que não se restrinjam a imputar a obrigação de pagar quantia ao ente devedor, mas que busquem preservar o liame entre os recursos financeiros e os fins jurídico-constitucionais a que se vinculam, sob uma perspectiva mais estrutural do conflito.

Impõe-se reconhecer a natureza estrutural do problema, que não se restringe à sua dimensão econômica, nem aos entes federativos envolvidos. Sob a perspectiva do direito à educação — motivo, mas também objetivo mediato da pretensão pecuniária exercida em face da União —, não se pode ignorar o interesse direto da comunidade escolar, composta por pais e alunos, bem assim por professores e demais profissionais da educação.

Trata-se de aspectos que agregam complexidade à causa e impedem que se entenda reparados os bens jurídicos afetados pela mera reparação pecuniária, em face dos pagamentos feitos a menor no passado.

Nesse sentido, em casos como esse, parece não se mostrar satisfatória a resposta oferecida pelo processo tradicional, em que se busca a resolução de controvérsias “com uma única sentença sobre o mérito, capaz de resolver todo o conflito e permitir o início da fase de efetivação” (Arenhart, Sérgio Cruz. Osna, Gustavo. Jobim, Marco Félix. Curso de Processo Estrutural. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2022, p. 216)

É certo que se tem mais comumente tratado como processos estruturais causas que demandam obrigações de fazer do poder público, como a ampliação da disponibilidade de um serviço público ou a sua prestação em padrões mais adequados de qualidade e presteza. Porém, em casos como o do Fundef, em que os valores postulados não se encerram neles mesmos, mas se vinculam a determinada finalidade constitucional, à concretização incremental de um direito fundamental, tal obrigação de resultado não pode ser ignorada, bem assim a peculiaridade de ela recair não sobre o devedor, mas sobre o credor da obrigação pecuniária (responsável que é pela efetiva alocação dos recursos).

Isso justifica, a nosso ver, o questionamento à efetividade de se determinar o pagamento de valores retroativos correspondentes a muitos anos de uma única vez, sem nenhuma garantia de que eles possam beneficiar o serviço público de forma consistente e duradoura.

Sob a premissa de que incumbe ao Estado-juiz buscar a efetiva tutela de direitos, particularmente dos direitos fundamentais, Arenhart, Osna e Jobim (2022, p. 41) bem apontam a “necessidade de que se pense em ritos e em meios de atuação mais flexíveis — percebendo-se que a realidade concreta não pode ser resumida em qualquer tipo de previsão legal” — ou, acrescentamos, em categorias estritas ou estanques de provimento judicial. Nesse mesmo sentido, os autores reforçam “a importância das técnicas processuais abertas, capazes de se amoldar às exigências do caso concreto”.

No caso dos precatórios do Fundef, como em eventuais casos semelhantes, se mostraria salutar um provimento judicial que condicionasse a obrigação de pagamento da União à apresentação de um plano de aplicação vinculativo pelo ente beneficiário, com um cronograma claro e factível, que inclusive autorizasse o fracionamento do precatório, conforme a necessidade de financiamento das etapas e ações do plano, e mesmo o monitoramento da efetivação do plano, tanto pela Fazenda Pública executada quanto pelo juízo da execução, de modo que a efetivação de cada etapa do plano também pudesse condicionar a liberação dos recursos restantes.

Conforme já exposto aqui, um tal plano foi considerado indispensável pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 1.518/2018-TCU-Plenário e há esforços do MPF para exigi-lo dos municípios beneficiários dos precatórios do Fundef, mas seria mais efetivo que a própria liberação dos valores dependesse da construção e apresentação do documento. E a União, como parte executada, poderia, de forma colaborativa e no exercício de seu múnus constitucional de coordenação federativa, por intermédio do Ministério da Educação, auxiliar os municípios na elaboração desse plano e mesmo celebrar convênios com esses entes para lhes oferecer, mediante sua participação financeira, opções de qualificação dos profissionais da educação, em conformidade com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2024) e da Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica (Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016).

Não se cogita aqui de um provimento judicial condicionado a evento futuro e incerto, o que é proscrito pela regra do artigo 492, parágrafo único, do CPC, mas de provimento judicial certo, cuja plena execução dependa de providências do exequente, como comumente ocorre nos casos dependentes de liquidação. Trata-se de providências voltadas a assegurar o cumprimento do dispositivo constitucional violado (artigo 60 do ADCT em sua redação original, dada pela EC nº 14/1996), tanto quanto a reparação pecuniária exigida da União.

Ainda que uma tal nova abordagem talvez não seja mais uma opção no que tange ao grosso dos precatórios do Fundef, a discussão que aqui se propõe visa a incorporar aprendizados, sobretudo em face do atual processo de implementação do novo Fundeb, fruto da EC nº 108, de 26 de agosto de 2020, cujos novos mecanismos redistributivos de complementação federal agregam complexidade à sua operacionalização e podem ser fonte de futuras demandas judiciais.

Nesse contexto, há de haver a compreensão de que a pretensão indenizatória de municípios que se julguem prejudicados, por mais pertinente que se mostre, sozinha não garante a maximização dos resultados do fundo, podendo, ao contrário, corroer a eficiência na aplicação de recursos da educação. Recomenda-se, assim, que se cogite o tratamento de forma centralizada e estrutural de demandas judiciais coletivas ou repetitivas envolvendo os valores do novo Fundeb, de forma a se buscar soluções — idealmente autocompositivas, mas também heterocompositivas — que não se atenham a discussões estritamente pecuniárias, buscando dar efetividade, em melhor medida, ao financiamento da manutenção e desenvolvimento da educação básica, de forma imediata, e ao direito fundamental à educação, de forma mediata.

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[1] Nesse sentido manifestou-se a Controladoria-Geral da União, em nota técnica: “Não há fundamento para a contratação dos escritórios por inexigibilidade de licitação, uma vez que há possibilidade de competição e que os serviços (cumprimento de sentença) não são de natureza singular, mas rotineiros para escritórios de advocacia. Quanto aos cálculos dos valores, como ficou devidamente explicado nesta Nota Técnica, não são de alta complexidade e exigem apenas os dados disponibilizados pelo FNDE.” (grifos nossos) (MELO, Cristina Andrade. Em busca dos recursos perdidos: a saga dos precatórios do Fundef. Revista do Ministério Público de Contas do Estado do Pará. v. 1, 2023. p. 34).

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Medidas atípicas de execução independem de patrimônio do devedor

A adoção de medidas atípicas de execução, como bloqueio de cartões ou apreensão do passaporte do devedor, não pode depender de indícios de que ele tenha como saldar a sua dívida. Ainda assim, sua necessidade deve ser avaliada com parcimônia e razoabilidade.

Essa é a opinião de advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as teses vinculantes fixadas pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento recente.

Ficou decidido que a adoção dessas medidas precisa ser subsidiária, fundamentada e baseada na ponderação entre o princípio da maior efetividade da execução e o da menor onerosidade para o executado.

Com ou sem bens?

O principal acerto do colegiado, segundo os advogados, foi afastar a obrigação de demonstrar a existência de indícios de patrimônio do devedor, até por uma consequência lógica: as medidas atípicas não seriam necessárias nesse caso.

“Muitas vezes não há indícios positivos ou negativos de bens no patrimônio do devedor e, mesmo assim, a medida coercitiva pode se mostrar útil. Às vezes o devedor tem bens, mas não vive uma vida de ostentação”, pondera José Miguel Garcia Medina.

Ele destaca a necessidade de que as medidas coercitivas sejam usadas com parcimônia e talhadas para cada situação específica.

“Não faz sentido estabelecer uma medida severa como é a apreensão do passaporte em relação a alguém que não faz viagens internacionais, por exemplo. Não vai surtir resultado. É preciso usar a medida adequada para o tipo de obrigação que está em jogo.”

Rodrigo Forlani Lopes, sócio do escritório Machado Associados, entende que a ocultação de patrimônio para o deferimento de medida atípica seria um requisito inviável: se o credor tivesse prova mínima, já seria suficiente recorrer às medidas típicas como a penhora.

“As medidas atípicas existem justamente para lidar com a resistência de quem supostamente tem meios, mas impede que o patrimônio seja localizado. O critério relevante, portanto, não é a prova de riqueza, mas a necessidade concreta da medida, sua subsidiariedade e a proporcionalidade, nos termos definidos pelo STJ.”

Leitura de comportamento

O advogado acrescenta que cabe ao juiz analisar a postura do executado, como a ocorrência de comportamento que sugira tentativa de frustrar a execução. É o que vai indicar a utilidade da medida atípica em cada caso concreto.

“Por isso, a eficácia não pode ser presumida e exige fundamentação específica sobre como aquela medida pode, de fato, contribuir para o adimplemento.”

Regina Céli Martins, sócia do VBD Advogados, nota que a intenção dos ministros do STJ foi evitar que se aplicassem essas medidas contra quem se tornou juridicamente insolvente. Logo, é preciso observar casuisticamente o cabimento desses atos.

“Da forma prevista anteriormente, isto é, o credor ter o dever de demonstrar indícios da existência de bens, acabaria por tornar a tese praticamente inaplicável, pois, havendo indícios da existência de bens, o credor pediria a execução de tais bens, e não a aplicação de medidas atípicas.”

Teses fixadas

As turmas de Direito Privado do STJ têm jurisprudência pacífica quanto ao cabimento dessas medidas e já decidiram que elas devem durar o tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor.

Em julgamento de 2023, o Supremo Tribunal Federal também validou o uso de meios atípicos de execução, entendendo que eles valorizam o acesso à Justiça e aumentam a eficiência do sistema.

Leia a tese:

Nas execuções cíveis submetidas exclusivamente ao Código de Processo Civil, a adoção judicial de meios executivos atípicos é cabível, desde que, cumulativamente:

1) Sejam ponderados os princípios da efetividade e da menor onerosidade do executado;

2) Seja realizada de modo prioritariamente subsidiário;

3) A decisão contenha fundamentação adequada às especificidades do caso;

4) Sejam observados os princípios do contraditório, da proporcionalidade e da razoabilidade, inclusive quanto à sua vigência temporal.

REsp 1.955.539
REsp 1.955.574

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Prescrição intercorrente aduaneira, Tema 1.293/STJ: seu raio de alcance

A coluna Território Aduaneiro celebrou seus quatro anos de existência [1] e na quinta-feira passada (4/12), lançou o livro homônimo, já em seu terceiro volume, com os artigos publicados durante o ano de 2024 [2], obra prefaciada por Ernane Argolo Checcucci.

Nestes anos, alguns temas estiveram na ordem do dia dos tribunais administrativos e do judiciário, aguçando seu debate nesse espaço e sendo tratados por mais de um dos colunistas, quando não por todos. Essa intensa produção de conteúdo tem oferecido contribuição para o desenvolvimento e crescimento do Direito Aduaneiro em nosso país. A partir dessa constância de publicações e da efervescência dos temas, outros estudiosos também pesquisam, escrevem, publicam e isso retroalimenta esse ciclo virtuoso de debates.

No campo das decisões judiciais, nos últimos anos, podem ser lembradas algumas relevantes em matéria aduaneira que acolheram o entendimento da União em detrimento da posição defendida pelos intervenientes. Cite-se o REsp no 1.576.199/SC, rel. min. Mauro Campbell, reconhecendo a possibilidade de revisão aduaneira, independentemente do canal de parametrização.

A decisão foi muito bem recebida pela Administração Aduaneira, contrariando a posição amplamente defendida pelas empresas. Outro caso julgado pelo STJ, o REsp no 1.799.306, rel. min. Francisco Falcão, tratou da divergência em torno da inclusão da capatazia no valor aduaneiro. Também aqui a decisão final foi desfavorável aos importadores. No Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE no 1.090.591, rel. min. Marco Aurélio, culminou com a fixação do Tema 1.042 convalidando entendimento favorável às retenções de mercadorias no curso do despacho aduaneiro até que satisfeitas as exigências da fiscalização.

Mais recentemente, entretanto, a decisão final do STJ aplicando a prescrição intercorrente à matéria aduaneira, conforme fixado no Tema 1.293, não agradou à União. Não obstante, e por óbvio, não é função do judiciário agradar a qualquer das partes e sim, conforme as normas de competência aplicáveis, analisar os casos, julgando os litígios visando pacificá-los, estabilizando as relações a partir do seu pronunciamento. Igualmente, é bom que se diga, as partes atingidas podem concordar, ou não, com a decisão final, mas ambas estão a ela vinculadas, obrigadas a respeitá-la. Definir sua extensão e conteúdo, portanto, é o ponto que surge, obrigando as partes a interpretá-la corretamente. É o desafio que se tem hoje em face do trânsito em julgado do Tema 1.293/STJ.

Sobre a matéria diversos colegas já se debruçaram oferecendo valiosas contribuições. [3] Visando somar mais uma visão acerca do entendimento e o alcance da fixação jurisprudencial, propõe-se uma incursão pela teoria da norma jurídica observando lições de Paulo de Barros Carvalho [4], Sacha Calmon Navarro Coêlho [5] e Marco Aurélio Greco. [6]

Nessa incursão, recorda-se a teoria de Hans Kelsen e de Carlos Cóssio, a primeira tendo a norma sancionatória como primária e a segunda definindo a norma primária ou endonorma, onde se encontra a conduta prescrita desejada, e a norma secundária ou perinorma, onde se localiza a sanção pelo descumprimento da primária ou endonorma. Ambas, entretanto, estruturas modeladas em hipótese e consequência, em relação de causa hipotética que se concretizada no mundo fático atrai a consequência. [7]

Na norma primária tem-se um objeto, um núcleo central, que delimita a conduta prescrita e eleita pelo sistema jurídico como desejada. Para que seja cumprida independentemente da vontade do seu destinatário, o mesmo sistema fixa o comando secundário que, na mesma estrutura de hipótese/consequência, traz na sua primeira parte (hipótese) a previsão de não cumprimento da norma primária. Em sua anatomia, tanto a primária, quanto a secundária, possuem hipótese e consequência. São compreendidas através da equação: se A é, B deve ser ou  se não B deve ser C. Exemplo:

Norma primária. Hipótese: importar produto estrangeiro tendo como exportador pessoa vinculada ao importador. Consequência: informar a vinculação na declaração de importação.
Norma secundária. Hipótese: não informar a vinculação na declaração de importação. Consequência: recolher 1% de multa sobre o valor aduaneiro da operação.

Se o importador seguir a norma primária, não atrairá a sanção prevista na secundária. Se desobedece aquela, sofre a reprimenda dessa. Tal ordem de ideias auxilia na análise e delimitação das sanções aduaneiras, bem como na definição da relação jurídica aduaneira e, por conseguinte, podem colaborar no entendimento e aplicação do Tema 1.293/STJ.

Sanções aduaneiras

Sobre as sanções, considerando-as uma consequência de um ato ilícito, estão presentes nos diversos ramos do direito como civil, administrativo, tributário ou aduaneiro. Na sua essência e estrutura ontológica não se distinguem. Podem merecer tratamento distinto, tendo regulação diferente, ou não, sem que deixem de ser ontologicamente idênticas.

Pode-se conceituar a sanção administrativa como medida aflitiva imposta pela Administração Pública em função da prática de um comportamento ilícito. Elas podem ter natureza trabalhista, processual, administrativa, tributária, aduaneira. A definição de sua natureza está diretamente ligada às obrigações descumpridas. O que permite qualificar uma sanção como aduaneira é a natureza jurídica da infração estar diretamente vinculada a deveres afetos ao controle aduaneiro. É na norma primária, na hipótese definida pelo legislador como comportamento ou abstenção desejados, que devem se concentrar os esforços do intérprete para localizar a sanção aduaneira e, portanto, a infração de natureza aduaneira.

Paulo Coimbra para defender a autonomia das sanções tributárias face às administrativas, argumenta que as sanções da administração são amplas e crescentes, podendo incidir sobre diversos temas a partir da sua função fiscalizadora e repressiva. Defende o autor que reconhecer (sub)espécies de sanções administrativas justifica-se na medida em que haja peculiaridades relevantes ao seu estudo e compreensão, quanto a suas fontes, interpretação, imputação, procedimento sancionador e prescrição. [8] O reconhecimento das sanções aduaneiras reforça a autonomia do Direito Aduaneiro.

Com foco em outro aspecto, mas na mesma linha de reconhecimento da norma jurídica aduaneiro, com hipótese voltada a tutelar o controle aduaneiro, Solon Sehn [9] escreveu sobre a relação jurídica aduaneira, reconhecendo-a como sendo de natureza não obrigacional, conceituando-a como expressão de direitos e deveres do particular e do Estado que surgem com a transição da fronteira, que é autônoma em relação à obrigação de pagar os tributos aduaneiros ou eventuais prestações pecuniárias relativas à defesa comercial. Ao tratar da materialidade do fato jurídico aduaneiro, o autor reforça a estrutura da norma jurídica aduaneira.

Aplicação do Tema 1.293/STJ

Isso posto, recordem-se as teses firmadas no Tema 1.293/STJ [10]:

“1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.
1 A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
2 Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.”

A aplicação da prescrição intercorrente, que serve a valores essenciais e caros ao ordenamento jurídico, como a segurança jurídica e a previsibilidade, decidida em última instância pelas turmas que compõem a 1ª Seção do STJ, com efeitos vinculantes para o judiciário e para o Carf, imprescinde da definição do que sejam as infrações aduaneiras de natureza não tributária para sua correta aplicação. Para tanto, desde logo, utilizando a norma jurídica primária aduaneira, tem-se que devem ser consideradas infrações aduaneiras todas aquelas descrições postas nas normas secundárias que tenham, em sua hipótese, o descumprimento de obrigações de natureza aduaneira que visem primordialmente tutelar o controle aduaneiro.

Para delimitar a norma de conduta aduaneira cuja inobservância configura uma infração aduaneira, o STJ estabeleceu que a norma primária deve conter uma obrigação cujo objetivo vise primordialmente (portanto não única e exclusivamente, e sim precipuamente, principalmente) o controle do trânsito internacional de mercadorias (assim entendida a entrada e saída de mercadoria do território aduaneiro) ou a regularidade do serviço aduaneiro (observância das normas aduaneiras, respeito ao controle aduaneiro). Outrossim, fez um reforço de demarcação no item 3 do Tema 1.293/STJ, ao excluir da aplicação da prescrição intercorrente aquelas infrações que, inobstante inseridas em ambiente aduaneiro, fossem destinadas direta e imediatamente à arrecadação de tributos.

As bordas fixadas pelo STJ dirigem o intérprete para que aprofunde sua análise na norma jurídica primária e secundária, que verifique portanto o teor da hipótese e da consequência de cada uma delas, extremando-as de tal modo que sua natureza se aflore e possam ser designadas ao grupo que pertencem. Nesse ponto, ainda que tenham natureza aduaneira tributária, ou tributária aduaneira, a questão a ser respondida é se primordialmente destinam-se a tutelar o controle aduaneiro, ou se visam direta e imediatamente promover a arrecadação de tributos.

Com a devida vênia, ainda que estejam em área de interseção do direito aduaneiro e tributário e se entendam que elas são relevantes e compõe o controle aduaneiro, para efeito de aplicação do Tema 1.293/STJ, é preciso excluir da aplicação da prescrição intercorrente apenas as que visam direta e imediatamente a arrecadação tributária. As que primordialmente visam o controle aduaneiro, ainda que indiretamente, auxiliem na arrecadação dos tributos, devem ser abrangidas pela prescrição intercorrente, conforme decidiu o STJ.

A regra de exclusão fixada pelo STJ permite entrever que direta e imediatamente destinadas à arrecadação de tributos devem ser entendidas as sanções previstas pelo não recolhimento do tributo devido. É dizer, a norma primária, em sua hipótese prevê: importar produtos estrangeiros; a consequência da ocorrência da norma primária será recolher imposto de importação. A norma secundária, em sua hipótese, contém a previsão do descumprimento da norma primária, ou seja, o não recolhimento do imposto devido e, como consequência, prevê a cobrança de  multa de ofício de 75% sobre o valor do imposto não recolhido. Indiscutivelmente, ainda que inserida em ambiente aduaneiro, a infração e a multa visam direta e imediatamente a arrecadação de tributos.

Outrossim, a multa de 100% aplicada em casos de subfaturamento por falsidade ideológica não se afigura como uma obrigação e infração que direta e imediatamente vise a arrecadação. Visa primordialmente a regularidade do serviço aduaneiro e assegurar o controle aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. Dois aspectos reforçam esse entendimento: (i) há multa específica prevista para punir o recolhimento a menor dos tributos devidos, essa sim não sujeita à prescrição intercorrente porque direta e imediatamente destinada à arrecadação; (ii) até pouco tempo, a penalidade aplicada nesses casos era pena de perdimento das mercadorias, que não visava direta e imediatamente a arrecadação de tributos senão punir o infrator por ofender gravemente a o controle aduaneiro.

Outros exemplos podem auxiliar na compreensão dos contornos das teses fixadas pelo STJ. Vejamos: a multa de 1% prevista no artigo 711, I, do RA/09. Sua hipótese: classificar incorretamente a mercadoria na NCM. Essa hipótese visa primordialmente assegurar a conformidade da operação, assegurando o tratamento aduaneiro e administrativo previstos nas normas. A sanção em tela não visa direta e imediatamente a arrecadação de tributos, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação. A infração, in casu, pode se consumar mesmo quando não há tributo a ser recolhido.

Alguns trechos dos acórdãos do STJ que lastreiam a formação das teses do Tema 1.293 auxiliam bastante na sua compreensão, como esse do voto do min. relator Paulo Sérgio Domingues, no REsp n 2.147.578/SP: “No leading case mencionado, consignou a eminente Relatora que o impasse resolve-se a partir do exame da finalidade precípua da obrigação em xeque, de modo que ‘somente se empresta cariz tributário às obrigações cujo escopo repercuta, de maneira direta, na fiscalização e na arrecadação das exigências fiscais, não bastando, portanto, mero efeito indireto de imposições cominadas com finalidades diversas’”.

O debate do tema em tela é sobremaneira relevante na medida em que, além de definir um critério que terá efeitos práticos sobre casos concretos que estão paralisados por anos a fio, o que não é favorável a ninguém, diz também com o reconhecimento da relação jurídica, do fato jurídico e das sanções aduaneiras, por fim e ao cabo, com sua própria autonomia, tão clara e insofismável para todos que já a reconhecem e defendem, mas ainda jovem e ameaçada por ainda não estar plenamente consolidada.

__________________________________________

[1] Disponível em: O Direito Aduaneiro e a ‘cereja do bolo’: bodas do DL 37/1966 .

[2] Editora Amanuense: aqui

[3] Artigo dos colegas de coluna Rosaldo Trevisan e Liziane Meira, e do autor convidado Arnaldo Dornelles. Disponível em: As multas aduaneiras e o raio simplificador. Alguns artigos publicados sobre o tema: de autoria de Rosaldo Trevisan e Maurício Timm, disponível em:  Tema STJ 1.293 — bom para quem?, , de Carlos Daniel Neto, disponível em: Tema Repetitivo 1.293: a pedra filosofal do Carf?, e de Fernando Pieri e Pedro Mineiro, disponível em: Prescrição intercorrente e infrações aduaneiras: o tempo é o senhor da razão.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed.

[5] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e Prática das Multas Tributárias. Infrações tributárias e sanções tributárias. Rio de Janeiro: Forense, 2ª ed, 1992, p. 15.

[6] GRECO, Marco Aurélio. Norma jurídica tributária, São Paulo: EDUC, Saraiva, 1974.

[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Max Limonad, 2002, 4ª ed., p. 39-49.

[8] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 106-107.

[9] SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 9-12 e 686-693.

[10] REsp 2.147.578/SP e 2.147.583/SP

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Nova Lei de Seguros é o tema de seminário promovido pela FGV Justiça

A FGV Justiça promoverá no próximo dia 12 o seminário “A vigência da nova Lei de Seguros: desafios e perspectivas”, primeiro grande evento promovido pela instituição dedicado à análise aprofundada da nova legislação que reformula o regime jurídico dos contratos de seguro no Brasil.

O encontro ocorrerá na sede da Fundação Getulio Vargas, na Praia de Botafogo (Rio de Janeiro), e reunirá ministros das cortes superiores, desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, acadêmicos e especialistas do mercado segurador. O evento é gratuito, com vagas limitadas.

Sancionada em 2024 e em vigor desde 2025, a nova Lei de Seguros representa uma atualização estrutural do marco legal brasileiro do setor, modernizando dispositivos antes dispersos no Código Civil e em normas infralegais.

Entre os principais avanços da nova lei estão maior transparência e clareza na redação dos contratos, a exigência de que as exclusões de cobertura sejam expressas e inequívocas e a determinação de que, em caso de dúvida, a interpretação deve favorecer o segurado.

A programação terá duas mesas de debate que discutirão temas como “O novo marco legal dos seguros” e “O novo marco legal dos seguros e impactos econômicos” (confira abaixo a programação completa).

A mesa de abertura, às 9h30, reunirá o ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça e coordenador da FGV Justiça; Paulo Sérgio Domingues, ministro do STJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça; e Humberto Dalla, desembargador do TJ-RJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

Entre os confirmados estão gestores públicos e privados, autoridades governamentais, especialistas e pesquisadores, como Antonio Rezende, vice-presidente da Prudential Brasil; Paula Saldanha, superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); Dyogo Oliveira, presidente da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg); Glauce Carvalhal, diretora jurídica da (CNseg); e Antônio Saldanha Palheiro, ministro do STJ e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

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Serviço

Evento: Seminário “A vigência da nova Lei de seguros: desafios e perspectivas”
Data e horário: 12/10, das 9h às 13h.
Local: Praia de Botafogo, 190 – Auditório 12° andar (Rio de Janeiro)

Programação (sujeita a alterações)

9h: Credenciamento
9h30 — 10h30: Mesa de Abertura
— Luis Felipe Salomão, coordenador da FGV Justiça;
— Paulo Sérgio Domingues, ministro do Superior Tribunal de Justiça e coordenador acadêmico da FGV Justiça;
— Humberto Dalla Bernardina de Pinho, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e coordenador acadêmico da FGV Justiça.

10h30 — 11h15: Painel 1: O Novo Marco Legal dos Seguros
— Dyogo Oliveira, presidente da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg);
— Angélica Carlini, professora e Acadêmica da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP);
— Alessandro Serafin, superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep);
— Moderador: Ricardo Couto, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

11h15 — 12h: Painel 2: O Novo Marco Legal dos Seguros e Impactos Econômicos
— Ricardo Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça;
— Antonio Rezende, vice-presidente da Prudential Brasil;
— Paula Saldanha, superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES);
— Moderadora: Glauce Carvalhal, diretora jurídica da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg).

12h — 12h30: Encerramento
— Antônio Saldanha Palheiro, ministro do Superior Tribunal de Justiça e coordenador acadêmico da FGV Justiça;
— Marco Aurélio Bezerra de Mello, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro;
— Cláudio Dell’Orto, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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Valor de multa por descumprimento de ordem judicial não pode ser revisado

O problema causado pelo acúmulo do valor decorrente da multa diária pelo descumprimento de uma ordem judicial deve ser combatido preventivamente, não sendo lícita a redução da multa que já venceu.

Com essa conclusão, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que um banco e sua empresa de financiamento de créditos terão de pagar R$ 264,4 mil pela demora para excluir o nome de uma cliente do cadastro de negativados.

A negativação se deu por uma dívida de R$ 40 mil que nunca existiu. Liminarmente, a Justiça do Sergipe mandou a instituição excluir o nome da autora da ação dos cadastros restritivos no prazo de cinco dias, sob pena de multa diária de R$ 500 por descumprimento.

A sentença, então, condenou o banco a declarar a inexistência da dívida, a pagar R$ 5 mil por danos morais e aumentou a multa por descumprimento da ordem judicial para R$ 1 mil por dia.

Ainda assim, o banco levou um ano, dois meses e 25 dias para cumprir a obrigação. Desde então, ele só se movimentou no processo para debater a redução do valor acumulado, de mais de cinco vezes o montante da obrigação principal.

Vencida ou por vencer

O tema da redução do valor acumulado em multa por descumprimento de ordem judicial vem sendo reiteradamente decidido pelo STJ. O caso da 3ª Turma mostra que ele continua sem a devida pacificação.

Relator do recurso, o ministro Humberto Martins votou por reduzir a multa acumulada para R$ 45 mil, quantia que, em sua opinião, sanciona adequadamente o descumprimento da ordem, mas não causa enriquecimento desproporcional da autora da ação.

Ele se baseou na ideia de que o artigo 537, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, que autoriza a revisão da multa, não deve se restringir aos valores que ainda vão vencer. E citou precedente da própria 3ª Turma nesse sentido, de abril deste ano.

“Não se pode desconsiderar que poderiam ter sido tomadas outras medidas judiciais para a retirada do nome da autora dos órgãos de proteção ao crédito, mediante ordem exarada ao próprio órgão negativador ou por meio de sistemas disponibilizados ao Poder Judiciário”, acrescentou. Ele ficou vencido.

Tese recorrente

Abriu a divergência vencedora o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que citou jurisprudência da Corte Especial firmada com votos vencedores de sua autoria.

Em 2024, o colegiado decidiu que a multa por descumprimento pode ser alterada ou até excluída pelo juiz a qualquer momento, mas, uma vez feita a alteração, não serão lícitas novas e sucessivas revisões.

Depois, já em 2025, decidiu que, ao analisar alegações de que a multa alcançou montantes exorbitantes, o juiz só deve alterar o valor do que ainda vai incidir, preservando o que já incidiu por causa da recalcitrância do réu.

Isso se dá exatamente porque o artigo 537, parágrafo 1º, do CPC usa o termo “multa vincenda” ao tratar da possibilidade de revisão pelo juiz.

“A pendência de discussão sobre a multa cominatória não guarda relação com o seu vencimento, o qual ocorre de pleno direito quando o prazo fixado na decisão judicial é alcançado sem que a obrigação seja cumprida”, disse Cueva.

Prevenção de danos

Para ele, o problema deve ser combatido de forma preventiva. Uma delas é o juiz converter, de ofício, a obrigação de fazer em perdas e danos, quando ficar claro que a ordem judicial é impossível de ser cumprida.

Outra forma é nos casos em que o credor da obrigação fica inerte justamente para ver crescer o valor da multa, deixando de solicitar a conversão em perdas e danos como autorizado pelo artigo 499 do CPC.

O artigo 536 do código ainda autoriza que o juiz substitua a multa periódica por outras medidas coercitivas para obtenção do resultado prático que se busca. Ele pode, por exemplo, oficiar diretamente ao cadastro de negativados para excluir o nome da autora.

“De qualquer forma, não adotadas essas providências e não convertida a obrigação de fazer (ou de não fazer ou de entregar) em perdas e danos, não é lícita a redução da multa vencida”, concluiu Cueva.

Votaram com ele os ministros Moura Ribeiro e Daniela Teixeira. Esteve impedida a ministra Nancy Andrighi.

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REsp 2.013.922

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Não cabe responsabilização de cônjuge de sócio em execução trabalhista, diz TST

A 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho negou o pedido de um ajudante geral para que fosse feita uma pesquisa em registro civil sobre eventual casamento ou união estável de um empreiteiro de Cotia (SP) que não pagou uma dívida trabalhista. O colegiado entendeu que a controvérsia diz respeito a disposições do Código de Processo Civil e do Código Civil, que vedam a responsabilização de cônjuge pelas dívidas do companheiro.

Conforme o processo, o ajudante foi contratado pelo empreiteiro para trabalhar na obra de um bufê local e obteve, na Justiça do Trabalho, o reconhecimento de vínculo de emprego e o pagamento das parcelas decorrentes.

Como as várias tentativas de receber os valores foram frustradas, ele pediu ao juízo de origem autorização para emissão um ofício à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen-SP) para verificar se o empregador era casado e, com isso, avaliar a inclusão do cônjuge na execução.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo e litoral paulista), porém, indeferiu o pedido, por entender que a responsabilidade do cônjuge é restrita a dívidas assumidas em benefício da família e, portanto, não se aplica às obrigações trabalhistas do devedor. No caso, não houve prova de que a prestação de serviços tenha beneficiado o casal. O ajudante, então, tentou levar a discussão para o TST.

Questão infraconstitucional

O relator, ministro Alberto Balazeiro, destacou que, na fase de execução, o recurso de revista só é cabível quando há contrariedade direta à Constituição Federal. Contudo, a discussão se baseia em normas infraconstitucionais: o Código de Processo Civil e o Código Civil.

Segundo os dois diplomas legais, cônjuges de sócios não estão entre as pessoas que podem ser incluídas na execução. Isso só é cabível quando as obrigações contraídas pelo marido ou pela mulher visem atender “aos encargos da família, às despesas de administração e às decorrentes de imposição legal”. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TST. 

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Processo 1000426-13.2016.5.02.0241

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Ministro autoriza incorporadora a reter 50% de valor pago por comprador desistente

Em imóveis submetidos ao regime de afetação — separação entre o patrimônio da construtora e o do próprio empreendimento —, a Lei do Distrato (Lei 13.786/2018) permite que a incorporadora retenha até 50% dos valores pagos pelo comprador que desiste do negócio.

Com esse entendimento, o ministro Marco Buzzi, do Superior Tribunal de Justiça, validou uma cláusula contratual que autorizou a retenção de 50% dos valores pagos pelo comprador desistente de um imóvel em Caldas Novas (GO), que foi vendido sob o modelo de multipropriedade — em que vários proprietários dividem a posse do bem entre si, em períodos diferentes.

O contrato de compra e venda previa expressamente a retenção de metade do valor pago em caso de desistência do adquirente, em consonância com o parágrafo 5º do artigo 67-A da Lei do Distrato. Em segundo grau, porém, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal havia reduzido este percentual para 25%, com o argumento de que a retenção de 50% penalizava excessivamente o consumidor e acarretava enriquecimento sem causa da incorporadora.

Ao analisar o recurso especial da empresa, o ministro avaliou que o TJ-DF não detalhou em que consistiria o abuso nem demonstrou a falta de razoabilidade da cláusula contratual.

“Ora, se o percentual de retenção fixado no contrato encontra-se dentro do limite estabelecido pela lei, não há que se falar em sua ilegalidade, notadamente quando o Tribunal de origem não traz qualquer fundamento apto a afastar a cláusula contratual, cingindo-se a afirmar genericamente que a multa seria abusiva pois onera em demasia os adquirentes,” afirmou o ministro.

Os advogados Pedro Henrique Schmeisser de Oliveira, Mariana MussiLuciano Pereira de Freitas Gomes e Mathews Cunha Borges, do escritório STG Advogados, atuaram em defesa da incorporadora.

Clique aqui para ler a decisão
REsp 2.903.050

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O ‘Dies irae’ de quem traiu a Constituição e conspurcou a República

Há, na História política das nações, um traço inconfundível que singulariza a figura do tirano: a sua essencial mediocridade moral.

Os grandes demagogos — ainda que travestidos de falso heroísmo — revelam, cedo ou tarde, a pequenez de seu espírito, a incapacidade de compreender o valor da ordem constitucional e democrática e a renúncia deliberada à ética republicana.

O tirano, diferentemente do estadista, não edifica; corrompe. Não*serve à pátria; *serve-se dela. Não respeita a Constituição; profana-a, seja por atos diretos, seja por palavras que insuflam o desrespeito à legalidade democrática.

É nesse cenário que se torna impossível não recordar comportamentos indignos que o Brasil testemunhou em anos recentes: ofensas inaceitáveis, em tom sedicioso e em caráter recorrente, ao Supremo Tribunal Federal e a seus Juízes, com particular destaque aos injustos agravos perpetrados contra o eminente Ministro Alexandre de Moraes, ataques reiterados às instituições republicanas, agressões à imprensa, incitações criminosas contra o próprio processo eleitoral — pilar do constitucionalismo moderno — e a tentativa de solapar a confiança pública no sistema que legitima o poder político.

Tais atitudes não traduzem grandeza; revelam, ao contrário, a pequenez do espírito autoritário, que teme a liberdade e que despreza a democracia , porque não é capaz de compreender nenhuma das duas.

O grande historiador Plutarco, em sua obra “Vidas Paralelas” — particularmente sobre as vidas de “Dion” e de “Timoleonte” — ensinava que os tiranos “vivem cercados de temor, porque precisam destruí-lo nos outros para sobreviver”.

Platão, em sua reflexão sobre a degenerescência da alma tirânica, advertia, na “República”, que o tirano nasce da corrupção interior e se sustenta pela mentira e pela violência; Aristóteles, na “Política”, revelou que o poder tirânico se exerce sempre contra o bem comum, regido pelo medo e pelo capricho; Cícero, em “De Re Publica” e “De Legibus”, denunciou a tirania como o mais vil atentado contra a “res publica”, afirmando que nenhum poder é legítimo se dissociado das leis e da moralidade; e Tito Lívio, por sua vez, em sua monumental obra “Ab Urbe Condita” (cuja parte relativa a esse período conhecemos pelas “Periochae”), ao narrar uma das crises da República Romana , registrou — ainda que de modo preservado apenas em resumo — a violência, as proscrições e a ambição devastadora de figuras que submeteram Roma, como Lúcio Cornélio Sula, a um dos capítulos mais sombrios de sua história.

Todos esses autores, de tempos e tradições diversas, convergem na mesma lição perene: a tirania é a ruína moral do governante e a degradação política da comunidade que ele pretende dominar.

E foi assim, sob o signo dessa mediocridade clássica, que certas práticas políticas recentes em nosso País se afastaram da nobreza da vida republicana, expondo ao mundo um dirigente político, como Bolsonaro, que fez da retórica do ódio, da intolerância , da mentira e da desinformação um método de governo e um instrumento de poder.

A tradição da Humanidade — dos gregos e romanos a nossos dias — jamais se curvou diante dessas figuras sombrias. Não é por acaso que, ao longo dos séculos, o brado “Sic semper tyrannis” ecoou como grave advertência política e moral: assim sejam rejeitados pela consciência histórica os tiranos, assim se repudiem suas pretensões de subjugar povos livres e de violentar suas Constituições democráticas.

A sentença

Essa sentença, longe de significar vingança, traduz um imperativo ético: o tirano — por sua própria conduta — termina vencido pela força histórica da liberdade, pela resistência das instituições e pela consciência moral do povo. Nenhum autocrata sobrevive quando tenta aprisionar a nação no estreito círculo de sua vaidade e de sua desmedida ambição pelo poder.

Também no Brasil, a República demonstrou — e continuará a demonstrar — que a Constituição de 1988 não se dobra às tentações e aos delírios autoritários. A democracia brasileira sofreu ataques, sim; mas resistiu, porque não há mediocridade tirânica capaz de suplantar a grandeza de um povo que defende o Estado Democrático de Direito.

O que se viu recentemente, portanto, não foi a ascensão de um grande líder, mas a tentativa falha de um político medíocre e menor que, ao desprezar em seu projeto autoritário de poder a ordem constitucional e democrática, revelou sua verdadeira dimensão: a baixeza política, a insuficiência moral e a incapacidade de compreender que, sem respeito incondicional à Constituição, à República e à Democracia, nenhum governo é legítimo.

A História registrará, com lúcida severidade, que aqueles que intentam degradar a República terminam por degradar apenas a si mesmos. E a Nação aprenderá , mais uma vez, que a democracia vive da palavra, mas pode morrer pela palavra irresponsável e criminosa — , razão pela qual devemos reafirmá-la , diariamente, com coragem, com firmeza e com a serenidade que distingue as grandes nações.

A condenação criminal imposta a Jair Bolsonato pelo Supremo Tribunal Federal — 27 anos e 3 meses de reclusão em regime fechado — não constitui apenas um legítimo pronunciamento jurisdicional, mas uma proclamação moral da República, a afirmar, com voz firme e inquebrantável, que a democracia não tolera a profanação de seus princípios nem a afronta ao veredicto soberano das urnas.

Ao reconhecer que Jair Bolsonaro atentou contra a ordem democrática, intentou usurpar o poder e buscou submeter a Nação ao arbítrio de sua vontade pessoal, a 1ª Turma do STF reafirmou o postulado que sustenta as grandes democracias: ninguém está acima da autoridade da Constituição e das leis da República!

Tal condenação, alcançada por expressiva maioria, em julgamento que garantiu a Bolsonaro o amplo exercício das prerrogativas inerentes ao “devido processo legal”, não traduz vindita, mas a reafirmação da majestade da Justiça, que se ergue serena, imparcial e altiva para proteger o Estado Democrático de Direito contra seus adversários mais internos e mais perigosos.

A iminente execução da pena — expressão necessária da autoridade do Direito — não humilha o condenado; humilha, sim, o abuso que ele praticou, o desprezo que demonstrou pela legalidade republicana, a deslealdade com que feriu o voto popular. Pois é próprio das democracias maduras reafirmar, nos momentos mais críticos, que a liberdade só subsiste quando a responsabilidade prevalece, e que o poder, quando transfigurado em despotismo, reclama, com urgência, a reação inflexível das instituições.

É sob essa luz que resplende , com força simbólica incomparável, a antiga expressão “Dies irae”. A tradição moral da Humanidade jamais a invocou como o dia da cólera, mas como o dia do juízo, o instante decisivo em que a verdade histórica se impõe e em que nenhuma evasiva subsiste.

Para aquele que violou a Constituição , o Dies irae não é o nome de uma ameaça: é o nome da verdade, o momento em que a República exige contas, em que as máscaras caem, em que a justiça — imparcial, serena, majestosa — recolhe o tributo que lhe é devido.

Para Bolsonaro, o Dies irae assinala a hora em que o Estado democrático de Direito revela a definitiva falência moral do projeto golpista e consagra a supremacia da Constituição sobre a tirania. É o dia em que a democracia, com grandeza e dignidade, pronuncia a palavra que libertará o país da sombra que o ameaçou.

E é precisamente diante dessas lições da História, do Direito e da razão republicana que se impõe recordar, como advertência perene aos que pretendem subjugar a Nação pela força ou pelo engano, a sentença imortal de Cícero, formulada em sua obra mais nobre sobre a ética pública: “Cedant arma togae.” — “Cedam e submetam-se as armas à toga.” (“De Officiis”, I, 77).

Essa expressão, que atravessou pouco mais de vinte séculos, não é apenas um enunciado literário: é a própria essência do governo civil, o axioma que consagra a primazia da lei sobre a violência, do poder civil sobre o poder militar , da República sobre o caudilhismo, da Constituição sobre qualquer projeto pessoal de poder.

Com ela, o grande Advogado, tribuno e pensador romano ensinou que a força do Estado não reside nas armas, mas no Direito; que a verdadeira autoridade não se impõe pelo medo, mas pela legitimidade; que nenhuma nação é digna de si mesma enquanto admitir que a espada se sobreponha à Justiça.

Ao invocar , neste grave momento histórico , o antigo preceito de Cícero , reafirmo a convicção mais profunda do constitucionalismo democrático: a toga — símbolo da razão, da juridicidade , da legitimidade constitucional e da liberdade — deve sempre prevalecer sobre as armas, sobre a turbulência e sobre a tirania.

Assim se conclui, com a solenidade que a República exige, a lição final deste grave capítulo histórico de nosso País, protagonizado, entre outros, por Jair Bolsonaro: a Constituição triunfa, a Justiça permanece, e a tirania — qualquer tirania — se dissolve diante da força moral da lei!

O post O <i>‘Dies irae’</i> de quem traiu a Constituição e conspurcou a República apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

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