Descompasso entre intimação presumida e prazo para sustentação oral gera nulidade

O prazo para a intimação presumida do julgamento virtual, feita pelo sistema Projudi, não pode englobar o período que o tribunal define para que o advogado faça o pedido de sustentação oral, sob pena de nulidade.

 

A conclusão é da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso em Habeas Corpus para anular um julgamento virtual do Tribunal de Justiça do Paraná.

No caso concreto, a intimação foi feita de maneira eletrônica, para avisar a data do julgamento. Quando os advogados do réu foram informados, já não havia prazo para requerer sustentação oral gravada.

Isso ocorreu por um descompasso entre o procedimento estabelecido pela Lei 11.419/2006 para as intimações feitas por meio eletrônico e o Regimento Interno do TJ-PR.

Caminhos da intimação

A lei diz que a intimação eletrônica é considerada concretizada de duas maneiras: no dia em que o intimado efetua sua consulta eletrônica (intimação real); ou dez dias após o envio eletrônico da intimação, se não houver consulta pelo intimado (intimação ficta).

No caso analisado pelo STJ, a intimação em nome dos advogados dos réus foi feita no sistema Projudi em 23 de julho de 2024, para avisar que o julgamento virtual seria iniciado seis dias depois.

Para ter direito à enviar sustentação oral gravada, o TJ-PR exige que os advogados façam a requisição com cinco dias de antecedência do julgamento. Dessa forma, a situação abriu margem para que os advogados só soubessem da intimação quando o período para envio de pedido de sustentação já estava esgotado.

Nulidade do julgamento

Esse descompasso foi reconhecido de forma unânime pela 5ª Turma do STJ, mas foi primeiro analisado no voto divergente do ministro Joel Ilan Paciornik.

Para o ministro, a violação causada pelo TJ-PR contamina todo o julgamento, configurando vício insanável que não pode ser convalidado pela ausência de requerimento específico da defesa sobre sustentação oral.

“Quando a intimação para julgamento virtual se perfaz por ficção legal (artigo 5º, parágrafo 3º, da Lei n. 11.419/2006), o prazo para sustentação oral deve ser contado a partir da data da intimação ficta, e não da expedição da intimação”, disse.

“Alternativamente, quando a intimação ficta coincidir com prazo insuficiente para sustentação oral, o julgamento deve ser automaticamente excluído da sessão virtual e remetido para julgamento presencial, sob pena de nulidade”, acrescentou.

Relator do recurso, o ministro Messod Azulay aderiu à conclusão e tornou o julgamento unânime. Os ministros Ribeiro Dantas, Reynaldo Soares da Fonseca e Maria Marluce Caldas também acompanharam a posição.

Clique aqui para ler o acórdão
RHC 210.168

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Não cabe agravamento de medida cautelar sem justificativa concreta

Não cabe agravamento de medida cautelar se não houver justificativa concreta.

Com esse entendimento, o desembargador Fausto de Sanctis, da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, concedeu Habeas Corpus e revogou o agravamento de medidas cautelares impostas contra um investigado por lavagem de dinheiro.

 

Conforme os autos, o réu cumpre diversas medidas cautelares desde 2022: ele não pode ter contato com outros investigados, está proibido de sair do Brasil e tem que comparecer bimestralmente ao juízo responsável pela investigação.

A apresentação ao juízo era feita de forma virtual, já que o réu vive em São Paulo e o processo corre na 1ª Vara Federal de Campinas (SP). Depois de três anos, o processo foi redistribuído para a 9ª Vara Federal da mesma comarca.

O novo juiz responsável, então, determinou que o comparecimento bimestral deveria ser presencial. A medida foi tomada de ofício, ou seja, sem um pedido do Ministério Público. A defesa do réu, então, impetrou o HC junto ao TRF-3.

Sem motivo

Para o desembargador, não houve justificativa alguma para tornar a medida mais rigorosa. Ele reconheceu, em sua análise, que a situação fática permaneceu inalterada, o que tornou a mudança desproporcional.

“Colhe-se ainda que o c. Superior Tribunal de Justiça, nos autos de AgRg no
recurso em Habeas Corpus 176.155, julgado em 06.02.2024, entendeu suficientes
as medidas cautelares então vigentes, negando provimento ao recurso, mas preservando
a forma como vinham sendo cumpridas, inclusive no tocante ao comparecimento em
balcão virtual”, escreveu o magistrado.

De Sanctis, dessa forma, suspendeu a obrigação de comparecimento presencial e enviou o caso ao Ministério Público Federal para manifestação posterior.

Os advogados Mauro Rosner, Ricardo Fadul das Eiras Gabriel Tagliati Foltran defenderam o réu.

Clique aqui para ler a decisãoProcesso 5027248-54.2025.4.03.0000

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A Teoria do Direito Aplicada e as interpretações borgianas

A Teoria do Direito Aplicada pode ser apresentada, de forma sintética, sob uma perspectiva borgiana. A menção a Jorge Luís Borges, nesse contexto, não constitui ornamento literário, mas sim um modo de iluminar os problemas de linguagem nos quais o direito se encontra inevitavelmente enredado. Com seus espelhos, labirintos e sua Biblioteca de Babel, Borges recordou que todo texto multiplica sentidos e que a interpretação pode tornar-se infinita. Essa imagem serve, por contraste, para indicar aquilo que o direito não pode permitir: uma proliferação ilimitada de leituras, um “Livro de Areia” em que as palavras mudam a cada vez que alguém o abre. O Direito positivo é precisamente a resposta a esse risco — ele necessita de regras claras, procedimentos legítimos e de um sistema que imponha limites à interpretação. Ao mesmo tempo, invocar Borges cumpre também uma função cultural mais ampla: construir uma ponte entre a literatura e a teoria jurídica, mostrando que o Direito não está isolado em tecnicismos, mas dialoga com as metáforas mais profundas da tradição intelectual, fortalecendo assim a defesa de um ordenamento normativo legítimo.

A Teoria do Direito Aplicada nasce, como tantas criações humanas, de uma tensão — pode-se dizer, de uma discórdia que, ao repetir-se, converte-se em destino. De um lado, está a Teoria Geral do Direito, que se compraz em abstrações universais e na construção de sistemas em que a nitidez parece definitiva, embora raramente o seja. Borges expressou isso com ironia: “Sabem que um sistema não é outra coisa senão a subordinação de todos os aspectos do universo a um só deles”. Essa frase revela a transição da pureza ilusória de um sistema único à aspereza da realidade.

De outro lado, situa-se a Teoria do Direito Aplicada, que lida com a concretude dos ordenamentos jurídicos, tal como foram concebidos. Essa realidade lembra constantemente que o direito não habita o céu das ideias, mas o solo dos tribunais.

Toda decisão judicial — e até mesmo toda opinião doutrinária — repousa sobre uma concepção teórica, ainda que essa base seja ignorada ou negada. Trata-se das “bibliotecas invisíveis” que Borges imaginou: ainda que ninguém as leia, estão ali, determinando as possibilidades do pensamento. O juiz que profere uma sentença, o advogado que redige uma petição, o legislador que elabora uma norma — todos agem sob o influxo de uma teoria, explícita ou não, coerente ou fragmentária, mas sempre presente.

Daí a necessidade de articular teoria e prática. E quanto mais complexo é o conflito, maior deve ser a solidez e a coerência da teoria que o sustenta.

A Teoria do Direito Aplicada exige, portanto, uma coerência epistemológica: compreender o que é o direito, quais normas são válidas e como justificar o conhecimento com objetividade e a aplicação com imparcialidade. Palavra difícil, “imparcialidade”. Borges escreveu que os espelhos são abomináveis porque multiplicam o número dos homens. Algo semelhante ocorre com os textos jurídicos: seu sentido pode multiplicar-se em reflexos interpretativos. Mas essa multiplicação não pode ser ilimitada. Para que uma decisão judicial seja legítima, a interpretação deve manter-se dentro dos limites traçados pelo texto e pelo sistema jurídico como um todo.

Aqui se revela um dos grandes desafios: a indeterminação. O Direito, que pretende ser um sistema harmônico e fechado, é, no entanto, tecido de lacunas, contradições e zonas de penumbra. Cabe ao juiz atravessá-las. E nesse percurso, nem a linguística nem a lógica são suficientes. O linguístico multiplica os sentidos; a lógica, embora necessária, apenas organiza o já dito — articula premissas, ordena hierarquias, expõe contradições e deduz consequências. Sua tarefa é dar coerência interna ao sistema, não inventar novas soluções. Mas a decisão exige direção.

O juiz assemelha-se, então, a um navegador em um mar de ilhas dispersas. O mapa — a linguística — e a bússola — a lógica — são indispensáveis, mas insuficientes. O que legitima sua travessia não é escolher qualquer caminho possível, mas aquele juridicamente admissível: o que respeita o texto, harmoniza-se com o sistema e apoia-se na autoridade democrática que o fundamenta. Assim, a sentença, nascida da indeterminação, transforma-se em autoridade, porque fixa uma solução obrigatória e projeta-se como referência para o futuro.

O Direito não existe para abolir a incerteza, mas para domesticá-la e convertê-la em ordem — uma ordem frágil, humana, porém legítima, porque enraizada na vontade cidadã e na autoridade institucional que lhe dá forma. Não se trata de perder-se em um labirinto de espelhos infinitos, mas de encontrar o único caminho que não desminta o sistema: o caminho do Direito positivo, que é a forma pela qual a comunidade se protege dos abismos da arbitrariedade.

A primeira questão, como em todo jogo de espelhos, consiste em identificar o que se chama “Direito”. O positivista dirá: é válido aquilo que emana da autoridade conforme os seus rituais. O não positivista responderá: o verdadeiro direito é aquele que se ajusta a valores supremos. Ambas as vozes se entrelaçam como numa discussão infinita. Mas a prática — esse tribunal em que as evasivas não valem — exige identificar com clareza o que é Direito vigente e aplicá-lo com coerência.

Nesse tabuleiro, a Constituição é a peça central. Não contém todo o Direito, mas o estrutura: ordena o jogo e fixa suas regras. Não é um catálogo de intenções — ainda que às vezes seja lida assim — nem um oráculo infalível. É um texto aberto, que pede compatibilidade, não equivalência literal. Todo texto, como a Bíblia ou o Dom Quixote, multiplica-se em interpretações, e a Constituição não escapa a essa lei universal da hermenêutica. Mas múltiplos sentidos não significam ausência de limites. A Constituição não é um livro de areia cujas páginas se alteram a cada leitura. Suas disposições, embora abertas, impõem limites claros: a interpretação deve ser coerente com o texto e compatível com o sistema jurídico em seu conjunto.

Sob esse ângulo, a Teoria do Direito Aplicada é uma filosofia da ciência em ação. Não se perde nas brumas do moralismo ou da política, mas busca conceitos úteis, manejáveis como ferramentas. Borges escreveu que “a metafísica é um ramo da literatura fantástica”. Talvez o mesmo se possa dizer de certa filosofia jurídica que, em busca de pureza, dissolve-se em quimeras. A Teoria do Direito Aplicada, ao contrário, é menos fantástica e mais terrena: mede-se na arena dos conflitos.

Os filósofos da ciência, em geral, ocuparam-se de questões técnicas — lógica das teorias, modelos formais, taxonomias conceituais —, iluminando aspectos parciais, mas negligenciando os grandes problemas humanos. Bertrand Russell, em Os princípios da filosofia, aproxima-se mais da epistemologia e da filosofia da ciência do que da filosofia em sentido amplo. Ortega y Gasset, em O Que é Filosofia?, por sua vez, trata de questões existenciais tão vastas que dificilmente podem converter-se em critérios de ação.

Labirinto sem fim

Um velho chiste ilustra o que a solenidade muitas vezes oculta: o filósofo trabalha com lápis, papel e uma cadeira confortável; o cientista experimental precisa do mesmo, mas acrescenta uma lixeira. O pesquisador que atua no laboratório é treinado para desconfiar de suas ideias enquanto não forem validadas pelos fatos — e por isso descarta sem pudor o que não resiste à prova empírica.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com a Teoria do Direito Aplicada: não basta formular conceitos no papel; é preciso também uma lixeira. As hipóteses que não são compatíveis com o Direito positivo, com a Constituição ou com o sistema normativo vigente devem ser descartadas sem nostalgia. Essa é, talvez, a diferença essencial entre uma Filosofia do Direito ampla — que mistura Direito, moral e política — e uma teoria do direito aplicada, que se mede no terreno concreto dos conflitos jurídicos.

Essa comparação define melhor o campo da Teoria do Direito Aplicada. Ela não busca refletir sobre a alma ou o sentido último da existência — temas próprios da metafísica ou da poesia —, mas operar com conceitos integráveis ao Direito positivo e transformáveis em critérios de decisão. Enquanto a Filosofia Geral do Direito dissolve-se em abstrações, a teoria aplicada ganha relevância justamente por se confrontar com a concretude dos conflitos normativos.

Há, contudo, uma tentação persistente: reconduzir todos os conflitos às “alturas” da Constituição. Essa ascensão parece nobre, mas frequentemente repousa em preceitos demasiado gerais e abstratos. Mandatos programáticos e abertos, na prática, revelam-se insuficientes para adjudicar direitos. Em vez de derivar regras a partir desses mandatos, essa postura termina por derrotar normas claras e legítimas, inclusive as emanadas do Legislativo, deslocando tudo para o terreno dos princípios. Mas os princípios, sozinhos, não decidem: apenas justificam decisões já tomadas.

O resultado é inquietante. Favorece-se a arbitrariedade e abre-se o risco de converter o Direito em uma batalha moral, em que o ritual final consiste em escolher entre o bem e o mal. Essa simplificação, tão atraente quanto perigosa, transforma o Direito em uma religião secular e seus intérpretes em sacerdotes. O desfecho seria um “Direito iluminado”… ou, ironicamente, um Direito de iluminados — mais do que um direito iluminador.

Reduzido a convicções morais ou preferências políticas, o Direito perderia consistência. A Teoria do Direito Aplicada ficaria mutilada. Em vez de juízes e advogados, restariam sacerdotes da luz, guiados por princípios tão elevados que já não reconhecem o chão da realidade.

Mas essa não é a tarefa do Direito. Sua verdadeira missão é aplicar com rigor o que foi criado conforme procedimentos legítimos, de modo que cada decisão mantenha coerência com o sistema jurídico. Um sistema que não é perfeito nem absoluto — nenhum labirinto o é —, mas que ao menos assegura um chão comum sobre o qual se possa discordar.

Borges imaginou bibliotecas infinitas, livros de areia que enlouquecem o leitor, espelhos que multiplicam os homens. Essas imagens servem de advertência: um Direito sem limites interpretativos seria um labirinto interminável. Diante dessa ameaça, a voz de Bobbio reconduz ao essencial: o problema do nosso tempo não é justificar repetidamente os direitos, mas garanti-los e assegurá-los na prática. Assim, entre Borges e Bobbio, desenha-se um mesmo mandato: domesticar a infinitude da linguagem e traduzi-la em certezas jurídicas que efetivamente protejam as pessoas.

Por fim, se se pensasse que teoria e prática podem coexistir em mundos separados, cometer-se-ia um erro epistemológico — confundir-se-ia o próprio modo de construção do conhecimento. No direito, como em toda ciência aplicada, teoria e prática não se justapõem: sustentam-se mutuamente. A Teoria do Direito Aplicada nasce para evitar esse desencontro. Não cria um terceiro domínio, mas ergue uma ponte entre a teoria que define o que é o Direito — como o positivismo — e as decisões concretas que os tribunais devem tomar. Sem essa ponte, a teoria ficaria confinada no céu das abstrações e a prática se perderia no labirinto da arbitrariedade. Uma boa teoria aplicada assegura a coerência: que a definição de Direito não se desvirtue na aplicação e que a aplicação não desminta a teoria. Nessa concordância — frágil, mas necessária — reside a legitimidade do Direito positivo.

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O controle judicial do desvio de finalidade legislativo

Após a última participação sobre o controle judicial da técnica legislativa – em que foram apontadas as condições e os limites para o seu exercício, notadamente a necessidade de que o vício de técnica legislativa resulte em uma afronta direta à Constituição, e não apenas na inobservância de normas infraconstitucionais, tendo-se explicado que nem todos os defeitos técnicos das leis são suscetíveis de controle judicial –, leitores desta Fábrica de Leis pediram um texto explicativo sobre um outro tipo de controle judicial reivindicado por parte da literatura: o controle judicial sobre o desvio de finalidade legislativo. O tema de fato é importante e atual e merece a coluna de hoje.

A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular, em seu artigo 2º, parágrafo único, alínea e, estabelece que o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Também conhecido como desvio de poder, essa forma de nulidade tradicionalmente empregada para atos administrativos implica, não uma apreciação objetiva da conformidade ou não-conformidade de um ato com uma regra de direito, mas sim o que José Cretella Júnior denomina dupla investigação de intenções subjetivas“(…) é necessário indagar se os móveis que inspiraram o autor do ato administrativo são aqueles que, segundo a intenção do legislador, deveriam realmente inspirá-lo” [1].

Então, aplicado ao processo legislativo, essa forma de nulidade pressuporia cotejar se os objetivos da lei aprovada são compatíveis com os previstos na Constituição, que conferiu competência ao legislador para dispor sobre as matérias via legislação. O controle do desvio de finalidade legislativo assumiria a forma de um controle teleológico, em que a fiscalização constitucional passaria a se debruçar sobre supostos vícios baseados em elementos subjetivos, para verificar se as finalidades da Constituição eventualmente foram menosprezadas ou substituídas por determinantes alheios, incongruentes ou não pertinentes com os fins constitucionais. Por exemplo, se a legislação foi aprovada em razão de motivos partidários, para atender interesses familiares de membros do governo, por pressão internacional, etc.

A literatura é controvertida a respeito da possibilidade do controle judicial sobre o desvio de finalidade legislativo. Carmen Chinchilla Marín, por exemplo, nega que o desvio de poder possa ser aplicado ao exercício de poderes legislativos: “primeiro, porque o desvio de poder é uma técnica de controle da discricionariedade e o legislador não tem discricionariedade, mas liberdade de configuração política; e segundo, porque o desvio de poder é um vício que consiste em se afastar do objetivo estabelecido pelo ordenamento jurídico, e a lei não tem objetivos impostos pela Constituição, mas limites que a própria Constituição estabelece ao seu conteúdo” [2].

Entretanto, parecem ser em maior número os que defendem a possibilidade desse controle. No Brasil, um dos textos clássicos sobre o assunto é o de Caio Tácito, para quem “O abuso do poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso lícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legítima destinação” [3].

Como se vê, a pretensão de um controle judicial do desvio de finalidade legislativo está intimamente relacionado a outro tipo de controle já criticado nesse espaço, qual seja, o controle judicial da motivação da legislação, já que ambos implicam, em maior ou menor medida, escrutinar as razões ou os motivos dos legisladores e, se for o caso, em se tratando do controle do desvio, demonstrar que os objetivos reais (nem sempre suficientemente conhecidos) divergem dos que foram estabelecidos para o exercício da competência legislativa.

Algumas críticas e dificuldades podem ser lançadas a essa empreitada, tanto em termos conceituais, quanto à operacionalidade no que diz respeito à matéria fática.

Em primeiro lugar, deve-se apontar que o controle de constitucionalidade das leis incide sobre a forma ou sobre o conteúdo dos dispositivos legais, não sobre a justificação da legislação. Ou seja, não se declaram inconstitucionais os motivos das leis.

Nesse ponto, apontam-se ao menos três argumentos contrários ao controle judicial da motivação legislativa, apontados pelo Chief Justice Warren no caso United States v. O’Brien (391 U.S. 367 (1968)), e esquematizados por John Hart Ely [4]: 1) a dificuldade de averiguar qual foi a verdadeira motivação dos legisladores, já que os propósitos podem ser contraditórios, e não há como saber qual foi a intenção dominante; 2) a inutilidade (futility) desse controle da motivação, pois os legisladores sempre poderão simplesmente reeditar o ato com a justificação correta; e 3) seu caráter contraproducente: invalidar uma legislação constitucional apenas por causa da sua motivação é desaconselhável, pois é possível que uma boa lei seja expressão de um mau motivo. Só isso já deveria bastar para negar a possibilidade desse tipo de controle.

Objetivo ilícito

Não se desconhece a farta literatura reivindicando o controle judicial quando a motivação legislativa é considerada suspeita, para usar a expressão empregada por Paul Brest. Uma motivação deve ser considerada suspeita quando uma norma, aparentemente inocente, é adotada com o objetivo de causar um resultado que, se fosse explicitado, seria considerado inconstitucional. Ou seja, infere-se a motivação legislativa a partir dos efeitos previsíveis de uma lei.

O autor considera que os governos são constitucionalmente proibidos de perseguir certos objetivos, que são proscritos porquanto prejudiciais à sociedade em geral ou injustos, por exemplo: desfavorecer um grupo racial, suprimir uma religião ou impedir a migração interestadual [5]. Embora não listada pelo autor, a tentativa de prejudicar um grupo político ou uma minoria, por analogia, também desencadearia tal revisão judicial.

Naturalmente, essas finalidades não serão verbalizadas na justificação para a aprovação da lei, mas aparecerão como resultado das escolhas legislativas. Na construção de Paul Brest, na medida em que o processo de tomada de decisão consiste em ponderar as consequências previsíveis e desejáveis da medida legislativa, o tomador de decisão (no caso, o legislador) que se orienta por motivações ilícitas tende a considerar como desejáveis consequências que, sob a perspectiva de um agente guiado por motivações legítimas, seriam indiferentes ou até mesmo indesejáveis [6]. Assim, existindo algum objetivo ilícito, a legislação deve ser considerada inconstitucional.

É de se observar que nessa modalidade, o controle da motivação legislativa fica restrito a situações específicas, sendo necessário que o objetivo ou interesse perseguido com a legislação seja proibido pelo ordenamento jurídico. Diferentemente, no controle do desvio de finalidade legislativo basta que a finalidade perseguida, lícita ou ilícita, seja diferente daquela assinalada na Constituição. Ou seja, o controle do desvio de finalidade pretende ser ainda mais amplo, embora não menos problemático.

Ainda que se admitisse tal controle judicial sobre a motivação legislativa, persistiriam dificuldades em determinar qual foi o motivo único ou dominante. Para resolver esse problema, Paul Brest propõe uma inversão no ônus da prova (burden shifting), de modo a que se presuma que a motivação ilícita foi determinante para o resultado da decisão, salvo prova em contrário. Assim, somente se for apresentada uma justificativa extraordinária por um interesse estatal convincente (compelling state interest) – ou, pelo menos, se a escolha foi justificada em termos legítimos, na linha de John Hart Ely –, a lei será considerada constitucional.

A despeito do entusiasmo da literatura, o fato é que até a Suprema Corte dos Estados Unidos apresenta relutância em declarar leis inconstitucionais tão somente com base em objetivos suspeitos, potencialmente inconstitucionais. Mesmo a partir de Ely e Brest, o papel da motivação inconstitucional como desencadeadora do escrutínio judicial é extremamente limitado: a motivação somente é considerada relevante nas situações em que uma escolha deveria ser aleatória (mas não o foi em concreto), em que o objetivo perseguido é amorfo (por exemplo, a promoção do bem-estar geral) ou quando existe uma obrigação de neutralidade do Estado (no sentido de abstenção de adoção de critérios com base em raça, religião ou crença política).

Em segundo lugar, voltando às objeções ao controle do desvio de finalidade legislativo, tem-se que a norma constitucional que fundamenta o poder de legislar nem sempre contém uma finalidade específica para a aprovação de leis, com o que se confere ampla margem de conformação material. Observe-se, por exemplo, o artigo 48 da Constituição, que se limita a prever: “Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União”. Por seu turno, a leitura do artigo 22, que traz o rol das matérias de competência legislativa privativa da União, tampouco indica quaisquer fins. Ou seja, de modo geral, a Constituição conferiu ao legislador um grande espaço de liberdade para as escolhas legislativas, prestigiando o princípio democrático.

Por mais que o artigo 1º da Constituição defina os fundamentos da República (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político) e o artigo 3º estabeleça os objetivos fundamentais (construir sociedade livre, justa e solidária; garantir desenvolvimento nacional; erradicar pobreza; reduzir desigualdades; promover o bem de todos), isso não significa que as leis estejam proibidas de promover fins diversos. As leis não podem é contrariar os fins constitucionais, mas nada impede que o estabelecimento de outros fins, naturalmente, desde que compatíveis com a Constituição.

Essas características (abertura constitucional e pluralidade de fins) trazem dificuldades para o controle judicial do desvio de finalidade legislativo. Nas palavras de Manoel Adam Lacayo Valente: “(…) quanto maior for a margem de discricionariedade menor será a possibilidade de aplicação da teoria do desvio de poder, em função da dificuldade de ser cotejada, com precisão, a finalidade estipulada pela lei com a regra de competência constitucional que concedeu poder ao legislador ordinário para dispor sobre a matéria” [7]. Com isso, é limitado o espaço desse tipo de controle.

Em terceiro lugar, outra dificuldade não desprezível diz respeito à comprovação da suposta motivação inconstitucional dos legisladores. Para exercer esse controle, os tribunais precisariam examinar a intenção por trás da promulgação de leis para determinar sua constitucionalidade, recorrendo a inferências (como já indicado, a partir dos efeitos previsíveis), cujo suporte tende a ser frágil.

Seria possível continuar a lista de objeções e problemas do controle do desvio de finalidade legislativo, mas o espaço da coluna de hoje já acabou e a combinação do que já foi indicado até aqui é suficiente para embasar a conclusão que o exercício desse controle tende a ser altamente disfuncional. Em todo caso, sendo necessário acioná-lo, convém limitar o seu resultado: o controle do desvio de finalidade legislativo serve preponderantemente para desencadear um ônus de justificação – ou seja, para pedir que os legisladores deem razões –, não devendo servir para a invalidação de leis que possam ser justificadas por motivos racionais e inofensivos [8].


[1] CRETELLA JÚNIOR, José. Anulação do ato administrativo por desvio de poder. Forense: Rio de Janeiro, 1978, p. 5.

[2] No original: “(…) primero, porque la desviación de poder es una técnica de control de la discrecionalidad y el legislador no tiene discrecionalidad, sino libertad de configuración política, y segundo, porque la desviación de poder es un vicio que consiste en apartarse del fin establecido por el ordenamiento jurídico y la ley no tiene fines impuestos por la Constitución, sino límites que la misma establece a su contenido” (CHINCHILLA MARÍN, Carmen. La desviación de poder. Madrid: Civitas, 1999, p. 77).

[3] TÁCITO, Caio. O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo, v. 242, 63-74, 2005, p. 69.

[4] ELY, John Hart. Legislative and Administrative Motivation in Constitutional Law. The Yale Law Journal, v. 79, n. 7, p. 1205-1341, 1970, p. 1212-1222.

[5] No original: “Governments are constitutionally prohibited from pursuing certain objectives – for example, the disadvantaging of a racial group, the suppression of a religion, or the deterring of interstate migration” (BREST, Paul. Palmer v. Thompson: An Approach to the Problem of Unconstitutional Legislative Motive. The Supreme Court Review, v. 1971, p. 95-146, p. 116).

[6] No original: “The fact that a decisionmaker gives weight to an illicit objective may determine the outcome of the decision. The decisionmaking process consists of weighing the foreseeable and desirable consequences of the proposed decision against its foreseeable costs. Considerations of distributive fairness play an important role. To the extent that the decisionmaker is illicitly motivated, he treats as a desirable consequence one to which the lawfully motivated decisionmaker would be indifferent or which he would view as undesirable” (BREST, Paul. Palmer v. Thompson: An Approach to the Problem of Unconstitutional Legislative Motive. The Supreme Court Review, v. 1971, p. 95-146, p. 116).

[7] VALENTE, Manoel Adam Lacayo. Aplicabilidade da teoria do desvio de poder no controle da constitucionalidade de atos legislativos. Revista de Informação Legislativa, a. 46, n. 182, p. 177-210, 2009, p. 188.

[8] ELY, John Hart. Legislative and Administrative Motivation in Constitutional Law. The Yale Law Journal, v. 79, n. 7, p. 1205-1341, 1970, p. 1280.

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O impacto da reforma tributária no futebol

Por décadas, a grande maioria dos clubes operou sob o modelo associativo sem fins lucrativos, caracterizado por gestão sem profissionalização e especialização, falta de transparência e recorrentes crises financeiras.

Pois, em 2021, por meio da Lei n° 14.193, foram criadas as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), como um mecanismo para alinhar interesses econômicos e mitigar esses problemas, introduzindo princípios de governança corporativa inspirados nas melhores práticas de mercado.

Sob esse novo modelo, os clubes passam a ter estrutura de administração semelhante à de empresas de capital aberto (que necessariamente são sociedades anônimas), exigindo, portanto, uma gestão mais transparente, relatórios financeiros auditados (ou auditáveis) e a adoção de órgãos de governança, como conselho de administração e fiscal.

Por ter uma configuração mais atrativa para os investidores, as SAFs passaram a ter maior capacidade de captar recursos junto a investidores, via instrumentos de dívida ou de capital. No entanto, a profissionalização e a maior transparência não vieram sem desafios. Um dos principais efeitos colaterais da transição para SAFs foi a mudança no tratamento tributário.

Tributação das SAFs

Enquanto os clubes associativos gozam de isenção tributária em relação a determinados impostos, as SAFs, ao serem constituídas como sociedades anônimas, passaram a ser submetidas ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF). Atualmente é previsto no artigo 31 da Lei das SAF o recolhimento mensal e unificado dos seguintes tributos: IRPJ, PIS, CSLL, Cofins e contribuições sociais previstas no artigo 22 da Lei nº 8.212/1991.

O TEF não exclui a incidência de outros tributos federais, como o IOF ou o IRPJ sobre rendimentos ou ganhos líquidos auferidos em aplicações de renda fixa ou variável ou sobre ganho de capital. Hoje, esses tributos são cobrados de forma apartada, assim como o ISS e o ICMS quando devidos.

Além disso, o artigo 32 da Lei das SAF estabelece, nos primeiros 5 anos da constituição da SAF, uma alíquota de 5% sobre as receitas mensais obtidas, excluindo-se da base de cálculo receitas relativas à cessão de direitos desportivos de atletas. A partir do sexto ano-calendário, a alíquota é reduzida para 4% das receitas mensais, mas valores obtidos com a cessão de direitos desportivos de atletas passam a integrar a base de cálculo do TEF.

Apesar dessa nova realidade fiscal, o TEF representa uma simplificação aos clubes organizados sobre a natureza jurídica de SAF, unificando o pagamento e estabelecendo uma alíquota predeterminada, o que facilita e incentiva a conformidade tributária dos clubes de futebol.

Não é à toa que esse modelo de negócio escalou proporções cada vez maiores no futebol nacional, chegando a representar cerca 40% dos clubes da Série A em 2024 (um deles, inclusive, sagrou-se campeão da Séria A e da Copa Libertadores em 2024).

Contudo, não obstante o crescimento exponencial desse novo modelo de negócio, a promulgação da Lei Complementar nº 214/2025, que regulamentou a reforma tributária, não apenas redesenhou o mapa fiscal do Brasil, mas também estabeleceu um divisor de águas para a indústria do futebol.

Equilíbrio entre SAF e modelo de associação sem fins lucrativos

A escolha entre a estrutura empresarial da SAF e a manutenção do tradicional modelo de associação civil sem fins lucrativos tornou-se um complexo cálculo de trade-offs entre simplicidade, custo tributário, possibilidade de creditamento, risco jurídico e incentivos a investimento.

No entanto, o cenário legislativo permaneceu dinâmico. Enquanto a LC 214/2025 estabeleceu as bases gerais, foi durante a tramitação de um segundo projeto de regulamentação, o PLP 108/2024, que o debate sobre a tributação do futebol atingiu seu clímax. A intensa mobilização do setor resultou em uma mudança crucial no texto aprovado pelo Senado (ainda pendente de aprovação pela Câmara), alterando drasticamente o equilíbrio de forças entre os dois modelos.

Modelo SAF

Para as entidades constituídas como SAF, a LC nº 214/2025 instituiu um novo TEF, detalhado em seus artigos 292 a 296. Este sistema foi desenhado com o objetivo de simplificar a arrecadação, mas suas características majoraram o custo fiscal e alteraram alguns detalhes importantes.

Em que pese as manifestações contrárias do setor durante a tramitação do projeto de lei, a LC nº 214/2025 estabeleceu uma alíquota efetiva total de 8,5%, representando um aumento de aproximadamente 70% em relação à alíquota anterior, que era de 5% do total da receita bruta mensal (sem contar as vendas) nos primeiros 5 anos e de 4% para os anos subsequentes.

O TEF, que já consistia em um recolhimento mensal unificado, nos termos da LC 214/25, passaria a ser composto da seguinte forma: 4,0% para tributos federais (IRPJ, CSLL e Contribuições Previdenciárias Patronais); 1,5% para a CBS; 3,0% para o IBS.

No entanto, em uma mudança crucial de rumo durante a tramitação legislativa, o Senado Federal aprovou, em 30 de setembro de 2025, no âmbito do PLP 108/2024, uma emenda que altera substancialmente o regime, tornando-o muito mais vantajoso. A proposta, que agora retorna para análise da Câmara dos Deputados, reduz a alíquota efetiva total de 8,5% para 5% e reintroduz um benefício fundamental.

Se confirmada, a nova composição do TEF será a seguinte: 3,0% para tributos federais (IRPJ, CSLL e Contribuições Previdenciárias Patronais); 1,0% para a CBS; 1,0% para o IBS.

A nova tributação das SAFs entrará em vigor somente em 1º de janeiro de 2027, com um período de transição até o final 2032, com aumento gradativo das alíquotas de CBS e IBS.

Enquanto a LC 214/25 previa a incidência da alíquota de 8,5% sobre a totalidade das receitas auferidas em regime de caixa (o que representava uma mudança mais impactante e financeiramente gravosa em relação à lei original e vigente da SAF), tributando, portanto, uma das fontes de receita mais importantes e voláteis do futebol brasileiro — venda de jogadores, a Emenda n° 525, do PLP 108/25, reduziu a alíquota para 5% e reintroduziu a exclusão, da base de cálculo do TEF, das receitas decorrentes da cessão de direitos desportivos de atletas nos primeiros 5 anos da constituição da SAF.

Essa alteração, se mantida pela Câmara, representa uma vitória expressiva para esse modelo, alinhando o novo regime a um dos pilares da lei original da SAF e mitigando o impacto financeiro sobre uma das fontes de receita mais importantes do futebol brasileiro.

Sobre a redução da base de cálculo do TEF, vale esclarecer que o benefício de cinco anos está atrelado à data de constituição de cada SAF. Trata-se de uma janela de incentivo inicial. Portanto, uma SAF que, em 2027, já opere há mais de cinco anos, não terá direito a um “novo” período de benefício e passará a ter a receita de transferências incluída na base de cálculo.

Apesar dessa melhora, o princípio da não cumulatividade permanece aplicado de forma extremamente restritiva. As SAFs continuam vedadas de apropriar créditos de IBS e CBS sobre a aquisição de quase todos os bens e serviços. A única exceção permitida é a apropriação de créditos na aquisição de direitos desportivos de outros atletas.

As consequências dessa limitação, embora atenuadas pelo PLP 108/25, persistem. Investimentos vultosos em infraestrutura, como a construção de um centro de treinamento ou a modernização de um estádio, não devem gerar qualquer crédito. O IBS/CBS embutido no preço dos materiais e serviços torna-se um custo irrecuperável, assim como as despesas operacionais com marketing, consultoria e tecnologia.

Clubes-associação

Para os clubes que optarem por permanecer como associações civis sem fins lucrativos, o cenário fiscal é um mosaico de regras antigas e novas, oferecendo um potencial de economia tributária que vem acompanhado de uma gestão de alta complexidade.

Os clubes-associações estão sujeitos ao PIS incidente sobre a folha de pagamentos (1%) — que será extinta em 2027 —, bem como a contribuição patronal de 20% sobre a remuneração de contribuintes individuais (autônomos), como agentes e outros prestadores de serviço sem vínculo empregatício (o que, ao que tudo indica, também deve permanecer para o modelo SAF, tendo em vista a omissão da lei em relação a este ponto).

Os clubes-associações também estão, atualmente, sujeitos à contribuição previdenciária patronal de 5%, incidente sobre a receita bruta decorrente de espetáculos desportivos, nos termos do § 6º do artigo 22 da Lei n.º 8.212/1991. A base de cálculo sobre a qual incide essa exação é composta pelas receitas de ingressos, patrocínios, licenciamento de marcas e outras receitas vinculadas diretamente ao espetáculo desportivo, mas não atinge os ingressos decorrentes da cessão ou transferência de atletas. É crucial esclarecer que, embora a reforma tributária extinga a contribuição para o PIS sobre a folha de pagamento a partir de 2027, essa contribuição patronal de 5% permanece.

Por outro lado, estão isentos da Cofins relativamente às receitas próprias e não se sujeitam ao IRPJ e à CSLL, desde que atendidos os requisitos fixados pela Lei nº 9.532/97.

A principal vantagem deste novo modelo estabelecido pela reforma é a manutenção da imunidade de IRPJ e CSLL sobre as receitas decorrentes de suas atividades essenciais, desde que cumpridos os requisitos legais (não distribuir lucros, aplicar os recursos no país etc.). Argumenta-se que, nesse escopo, incluem-se as receitas de bilheteria, mensalidades de sócios e, notavelmente, as transferências de atletas, se caracterizadas como parte da missão de formação desportiva da entidade.

As receitas consideradas de natureza econômica e concorrencial (como patrocínios e direitos de transmissão) passam a ser tributadas pelo IBS e pela CBS. No entanto, o legislador concedeu a estas entidades um regime favorecido: uma redução de 60% sobre a alíquota padrão do novo IVA (artigo 141, inciso II, da LC 214/25). Considerando uma alíquota de referência de 27% (estimativa é que a alíquota padrão do IVA se situe entre 26,5% e 28,5%), a carga efetiva para as associações sobre suas receitas tributáveis será de 10,8%.

A alíquota efetiva, todavia, dependerá do grau de aproveitamento de créditos admitidos conforme previsão contida na Seção XII da LC nº 214/2025. Diferentemente das SAFs, as associações podem se valer das regras gerais de creditamento do IVA. Isso significa que elas podem apropriar créditos de IBS/CBS sobre insumos (bens e serviços) ligados às suas atividades tributadas, o que pode reduzir o valor líquido do imposto a pagar.

Contudo, um custo adicional específico deste modelo é a manutenção de um regime previdenciário próprio e a complexidade de gestão que ele acarreta. Diferentemente da SAF, onde todas as contribuições estão unificadas na alíquota do TEF, a associação precisa administrar as obrigações previdenciárias permanecidas de forma separada, em paralelo à apuração do IBS/CBS sobre suas receitas comerciais, acarretando um custo de conformidade (compliance) e um risco jurídico significativamente maiores em comparação com a simplicidade do recolhimento único da SAF.

Análise Comparativa

Primeiramente, vale esclarecer que as análises abaixo consideram clubes que comecem a operar como SAF a partir de 2027.

Vale esclarecer também que a alíquota final da SAF atingiria o seu total apenas em 2033, tendo em vista o aumento gradativo das alíquotas de IBS e CBS durante os anos. Com a nova redução de alíquota proposta no PLP 108/25, será necessário aguardar o texto final da lei para verificar como será a graduação dessas alíquotas no tempo.

Veja abaixo tabela que reflete as mudanças que a Reforma Tributária trará na aplicação das alíquotas para cada modelo adotado:

Por fim, veja abaixo uma simulação baseada na estrutura de receitas de um clube típico da Série A do Campeonato Brasileiro, com um faturamento anual hipotético de R$ 700 milhões:

Cumpre ressaltar que se trata de uma comparação superficial, uma vez que as alíquotas nominais — 5% para SAFs versus 10,8% para associações — são perigosamente enganosa. A verdadeira carga tributária depende da interação entre alíquota, base de cálculo e regras de creditamento. Ou seja, a carga tributária final de cada entidade dependerá drasticamente de seu modelo operacional e de sua estrutura de receitas.

Um clube-associação com maior volume de transferências de atletas (receita imune), menores custos com autônomos e uma gestão fiscal altamente eficiente, capaz de maximizar o aproveitamento de créditos de IBS/CBS sobre seus insumos operacionais (marketing, custos de produção etc.), poderia reduzir sua alíquota efetiva e apresentar um resultado mais vantajoso. O cenário pode mudar, por exemplo, se o clube investir fortemente em infraestrutura, como um novo centro de treinamento, pois no modelo associativo, parte do IBS/CBS embutido nesses custos poderia ser recuperado como crédito, algo vedado à SAF.

Conclusão

A reforma tributária não aponta um caminho único para os clubes de futebol, mas sim uma bifurcação estratégica com profundas implicações.

O modelo SAF, com as alterações propostas pelo Senado, emerge como uma opção extremamente atrativa. A combinação de uma alíquota reduzida para 5% e a manutenção da isenção sobre a venda de atletas por cinco anos oferece previsibilidade, segurança jurídica e uma carga tributária significativamente menor na maioria dos cenários. Sua estrutura tributária simples e transparente é altamente atrativa para investidores institucionais e fundos de private equity, que valorizam a clareza no cálculo de retornos e a minimização do risco de litígios fiscais. O preço dessa certeza é um desincentivo fiscal a investimentos em ativos imobilizados, como estádios e centros de treinamento, devido à ausência de créditos de IBS/CBS.

O modelo associação oferece uma rota da eficiência fiscal potencial, especialmente pela imunidade sobre a venda de atletas. O custo, no entanto, é uma imensa complexidade de gestão e um risco jurídico permanente, atrelado à interpretação do Fisco sobre o alcance de sua imunidade e à correta apuração de múltiplas obrigações previdenciárias. Este modelo exige uma governança sofisticada e uma assessoria jurídico-contábil de alto nível para ser plenamente otimizado, capaz de segregar receitas e apurar créditos de forma efetiva.

A escolha entre os modelos, portanto, transcende a simples comparação de alíquotas e dependerá do perfil de cada clube: sua estrutura de receitas, seus planos de investimento, sua capacidade administrativa e, acima de tudo, seu apetite ao risco.

Contudo, se o texto final da regulamentação confirmar os benefícios aprovados pelo Senado para as SAFs, a tendência de migração para o modelo empresarial deve se acelerar drasticamente, redefinindo não apenas o futuro financeiro de cada instituição, mas a própria paisagem competitiva do esporte mais popular do país.

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Colisão de MD5 e SHA‑1 em vestígios digitais: risco real para integridade da prova

Imagine que dois arquivos digitais diferentes possam ter exatamente o mesmo “código de verificação” (hash) — e que, por causa disso, alguém consiga trocar um arquivo por outro sem que você ou a perícia perceba. Em princípio, pode parece improvável, mas é exatamente o que pode acontecer quando se usa algoritmos antigos e obsoletos como MD5 ou SHA‑1 para garantir a integridade de vestígios digitais.

No dia a dia do profissional do direito (delegado, membro do Ministério Público, defensor, advogado, magistrado e perito), a consequência de algoritmos defasados é a de uma prova digital pode ser contestada se o cálculo de integridade for realizado por algoritmos fracos e não por algoritmos fortes. A seguir apresentamos a questão de modo prático, com o mínimo de tecnicismo.

O que são colisões de hash e por que importam

O hash é um código único que identifica um arquivo, como se fosse uma “impressão digital”. Quando dois arquivos diferentes geram o mesmo hash, ocorre a denominada colisão de hash. Em síntese: tendo o mesmo código hash, ainda que com distintos conteúdos, para o sistema, parecem idênticos.

Nos casos criminais, pode gerar questionamento da integridade da prova. Se a perícia calcular o hash de um arquivo usando MD5 ou SHA‑1, há o risco de outra pessoa produzir um arquivo diferente com o mesmo código. O efeito é grave, porque o hash é o que garante que o arquivo não foi alterado.

O que dizem os padrões técnicos (RFC 6151 e RFC 6194)

Os documentos da Internet Engineering Task Force (IETF), que definem padrões de segurança, foram claros:

RFC 6151 alerta que o MD5 não é mais seguro para verificar integridade. Já existem métodos práticos para gerar colisões. O uso de MD5 deve ser evitado em qualquer aplicação que envolva segurança, assinatura digital ou verificação de provas.
RFC 6194 faz o mesmo alerta sobre o SHA‑1. Embora o SHA‑1 tenha sido considerado mais seguro que o MD5, também foi comprovado que é vulnerável a colisões. O documento recomenda a migração imediata para algoritmos mais fortes, como SHA‑256 ou SHA‑3.

Os relatórios são base técnica para qualquer perito digital — e devem ser citados sempre que a acusação ou defesa discutir a confiabilidade de um vestígio digital, permitindo a instauração do contraditório digital efetivo sobre os dados brutos.

Por que isso afeta diretamente a cadeia de custódia

Em perícia digital, o hash é calculado antes de qualquer análise, servindo para comprovar que a cópia forense é idêntica ao original. Se o algoritmo escolhido for fraco, a comprovação perde força técnica e jurídica.

Na prática:

O perito deve calcular o hash logo ao coletar o vestígio (antes de qualquer análise).
Deve usar algoritmos modernos (atualmente SHA‑256, SHA‑512 e etc).
O procedimento deve ser documentado em laudo ou parecer técnico e acompanhado de logs e da integralidade dos dados.

Sem isso, tanto a acusação quanto a defesa podem alegar que a integridade não foi comprovada com segurança, o que abre espaço para questionar a validade da prova.

Colisões intencionais: risco concreto

Hoje, qualquer pessoa com conhecimentos medianos e ferramentas disponíveis na internet pode criar colisões em MD5 ou SHA‑1 (aqui). Significa que alguém mal‑intencionado poderia preparar um arquivo que, embora pareça autêntico, compartilha o mesmo hash de outro documento.

As colisões intencionais foram demonstradas publicamente em experimentos como o projeto SHAttered, mostrando que o problema não é teórico — é real e reproduzível, ainda que possam, em princípio, detectar a colisão (aqui). Por isso, usar MD5 ou SHA‑1 em cadeia de custódia é um erro técnico e jurídico.

Confira o arquivos de exemplo aqui

Lista de algoritmos confiáveis e nãocConfiáveis em 2025

As tabelas indicam algoritmos de hash confiáveis e não confiáveis, com base em ataques conhecidos e recomendações de especialistas como o NIST (National Institute of Standards and Technology).

Algoritmos de hash confiáveis (para a maioria dos casos)

Os algoritmos são considerados criptograficamente seguros para uso geral, como verificações de integridade e assinaturas digitais.

AlgoritmoNível de segurançaObservações
SHA-2 (ex: SHA-256, SHA-512)✅ Muito forteA família SHA-2 é o padrão da indústria e é recomendada para a maioria das aplicações criptográficas, incluindo assinaturas digitais, integridade de dados e SSL/TLS.
SHA-3 (Keccak)✅ Muito forteDesenvolvido como sucessor do SHA-2, o SHA-3 usa uma estrutura diferente (esponja) para garantir a segurança, mas não é necessariamente mais seguro que o SHA-2.
BLAKE2 / BLAKE3✅ Muito forte e rápidoMais rápidos que a família SHA-2 e SHA-3, mas com segurança criptográfica comparável. Estão sendo cada vez mais adotados em novos sistemas, em que a velocidade é prioridade.
Argon2✅ Muito forte (senhas)Especificamente projetado para o armazenamento seguro de senhas, pois é resistente a ataques de força bruta, exigindo mais tempo e memória para ser computado.
bcrypt✅ Forte (senhas)Embora mais antigo, é um algoritmo sólido para o armazenamento de senhas devido à sua lentidão proposital, que o torna caro para ataques de força bruta.

Algoritmos de hash não confiáveis (não recomendado)

Os algoritmos a seguir foram comprovadamente quebrados ou apresentam fraquezas graves que os tornam inseguros para a maioria das aplicações de segurança, a partir dos relatórios do NIST.

AlgoritmoNível de segurançaMotivo da não confiabilidade
SHA-1❌ InseguroApós o ataque SHAttered em 2017, colisões de hash foram demonstradas na prática, tornando-o vulnerável a falsificações de assinaturas digitais e outros ataques. O NIST recomenda a sua descontinuação total.
MD5❌ InseguroFraquezas foram descobertas em 2004 e colisões podem ser geradas em segundos com hardware comum, tornando-o inadequado para propósitos criptográficos (assinaturas ou integridade de arquivos).
MD4❌ InseguroPredecessor do MD5, ainda mais fraco e obsoleto.
MD2❌ InseguroObsoleto e com falhas de segurança significativas.
HAVAL-128❌ InseguroVulnerabilidades e colisões foram encontradas. De segurança questionável.

Conclusão

Em vez de confiar em algoritmos ultrapassados, os profissionais do direito devem exigir laudos que sigam metodologia validada, com hash forte e registro do momento exato em que a integridade foi calculada. A simples verificação pode ser decisiva para evitar nulidades e preservar a validade da prova digital.

A perícia digital confiável começa pela integridade, verificável por meio da utilização de métodos, ferramentas, algoritmos fortes e registro transparente (documentação) de todo o ciclo da prova. Do contrário, o risco de se perder a eficácia probatória é grande, em geral, irreversível.

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TJ-MG lança novo formato de Enciclopédia de Precedentes

Tribunal de Justiça de Minas Gerais lançou, nesta semana, a Enciclopédia de Precedentes em formato PDF. O documento já está disponível para consulta e download no portal do tribunal.

Desenvolvida pela 1ª vice-presidência, por meio do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e Ações Coletivas (Nugepnac), a publicação reúne precedentes qualificados, formados ou em formação, do Judiciário mineiro e dos tribunais superiores.

Atualizada semanalmente, a Enciclopédia contempla Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), Incidentes de Assunção de Competência (IAC), grupos de representativos, recursos especiais repetitivos, recursos extraordinários com repercussão geral, além de enunciados da Súmula da Jurisprudência Dominante do TJ-MG, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, além de Súmulas Vinculantes do STF.

O sumário apresenta a relação dos temas por ramo do Direito, organizados conforme a hierarquia dos tribunais.

A obra conta ainda com links externos que permitem a consulta direta aos sites de origem dos precedentes, proporcionando acesso prático aos acórdãos de admissão e de mérito. Dessa forma, o usuário pode examinar não apenas a tese firmada, mas também a ratio decidendi, o que assegura a correta aplicação do precedente ao caso concreto.

O 1º vice-presidente do TJ-MG, desembargador Marcos Lincoln dos Santos, ressaltou a importância do instrumento para a consolidação da cultura dos precedentes no âmbito do tribunal.

“A Enciclopédia de Precedentes é uma ferramenta valiosa para magistrados, servidores, advogados e estudiosos do Direito. Ao reunir e sistematizar, em um único documento, os precedentes qualificados do TJ-MG e dos Tribunais Superiores, promovemos o acesso facilitado à informação e contribuímos para a uniformização da jurisprudência, a segurança jurídica e a eficiência na prestação jurisdicional”, disse.

O gestor do Nugepnac, desembargador Habib Felippe Jabour, enfatiza que “o uso adequado dos precedentes qualificados tem se provado instrumento útil para pacificação de conflitos repetitivos, os quais ao serem tratados de forma individual, retardam bastante a prestação da jurisdição, e frustra a expectativa de duração razoável do processo”.

Enciclopédia potencializada

O juiz Rodrigo Martins de Faria, especialista em Inovação e Tecnologia, destacou a organização do material e explicou como ele pode ser potencializado quando associado ao uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA).

“A Enciclopédia de Precedentes, criada pelo Nugepnac, permite o acesso aos dados de forma estruturada. Sem esse recurso, a pesquisa de precedentes espalhados entre os diversos tribunais seria muito mais trabalhosa. Ao compilar essas informações em um único documento, torna-se possível carregar a enciclopédia como anexo em ferramentas de inteligência artificial generativa, como Gemini ou Notebook LM, e a partir daí pesquisar, de forma rápida, qualquer tema relacionado aos precedentes qualificados.”

Para o juiz Thiago Campos, a Enciclopédia de Precedentes facilita significativamente a busca por precedentes qualificados e a aplicação coerente do Direito.

“Conseguimos identificar rapidamente os precedentes relevantes e aplicá-los com segurança, garantindo decisões mais consistentes e alinhadas à jurisprudência consolidada. No fim, o grande ganho é duplo: de um lado, mais eficiência na elaboração das decisões; de outro, maior uniformidade e previsibilidade na prestação jurisdicional.” Com informações da assessoria de imprensa do TJ-MG.

Clique aqui para acessar a Enciclopédia de Precedentes

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STJ decide revisar teses sobre juros de empréstimos compulsórios da Eletrobras

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu revisar as teses que afastaram a prescrição dos juros remuneratórios devidos sobre os valores dos empréstimos compulsórios da Eletrobras.

O colegiado acolheu, por maioria de votos, a proposta do relator, ministro Teodoro Silva Santos, por sugestão da própria empresa.

Trata-se de uma tentativa de anular parte da derrota sofrida pela Eletrobras nas teses dos Temas 65, 66 e 67 dos recursos repetitivos, julgados em 2009. A revisão pode resultar na alteração desses entendimentos.

Caso da Eletrobras

O caso trata dos empréstimos compulsórios instituídos em favor da então estatal e pagos por grandes consumidores industriais para financiar a expansão do setor elétrico brasileiro, conforme a Lei 4.156/1962.

O valor pago por cada consumidor gerou crédito em seu favor no dia 1º de janeiro do ano seguinte, com remuneração de 6% ao ano, além de correção monetária. O empréstimo durou até 1993.

Com autorização de lei, a Eletrobras fez o pagamento desses empréstimos por meio da conversão dos valores em ações da companhia. Os critérios de cálculo, no entanto, não levaram em consideração a desvalorização da moeda brasileira no período, marcado por seguidas crises econômicas.

Em 2009, o STJ concluiu que os contribuintes têm direito à correção monetária plena dos valores, com a inclusão dos expurgos inflacionários na conta e a incidência de juros remuneratórios.

Prazo prescricional e juros

Ficou decidido também que os contribuintes teriam prazo de cinco anos para fazer essa cobrança judicialmente, contado a partir da data da efetiva lesão.

Segundo a corrente vencedora no STJ em 2009, no caso da correção monetária sobre os juros remuneratórios anuais de 6% que já foram pagos, a prescrição se inicia em julho de cada ano, quando houve o pagamento.

Já no caso da correção monetária incidente sobre o montante principal e os juros remuneratórios reflexos, a lesão só ocorreu no momento em que o valor foi erroneamente restituído. Foram consideradas as datas das assembleias da Eletrobras que homologaram a conversão da dívida em ações (20/4/1988, 26/4/1990 e 30/6/2005).

Segundo a Eletrobras, o STJ cometeu um erro material ao definir o termo inicial da prescrição dos juros reflexos. A empresa alega que, nos embargos de declaração, alguns ministros mudaram de posição, o que levou à formação de maioria para fixar a prescrição a partir de julho de cada ano em que houve o pagamento.

Alto custo à Eletrobras

Ao STJ, a companhia alegou que esse erro criou um cenário que permite a cobrança de juros remuneratórios reflexos referentes a períodos anteriores aos cinco anos que precederam o ajuizamento das ações.

Nesses casos, segundo a Eletrobras, a prescrição tem sido afastada pelas diversas instâncias do Judiciário por força da aplicação do termo inicial equivocado.

Ou seja, ações ajuizadas até 2010 demandam pagamento de diferenças não apenas dos cinco anos anteriores, mas retroativamente desde 1987, o que significa 23 anos de juros.

A Eletrobras alegou que, desde 2018, pagou cerca de R$ 690 milhões em juros reflexos discutidos em 730 ações, e que tem provisionados mais R$ 4,8 bilhões para os mesmos fins, referentes a outros 2,7 mil processos.

Esse passivo se tornou uma barreira para o crescimento da empresa, gerando impactos significativos no fluxo de caixa, no valor das ações e na distribuição de dividendos — privatizada em 2022, ela é 46,6% da União.

Melhor rever

Para a maioria formada na 1ª Seção do STJ, as alegações da Eletrobras são suficientemente plausíveis para permitir a revisão das teses vinculantes.

Votaram com o relator os ministros Afrânio Vilela, Francisco Falcão, Benedito Gonçalves, Marco Aurélio Bellizze e Paulo Sérgio Domingues.

Abriu a divergência em voto-vista o ministro Gurgel de Faria, que ficou vencido junto com os ministros Maria Thereza de Assis Moura e Sérgio Kukina.

Para ele, não há motivos novos para permitir a revisão, sendo que o suposto erro na contagem de votos é vício ínsito ao julgamento e deveria ter sido impugnado há quase 15 anos pela Eletrobras.

O ministro Gurgel criticou a estratégia da empresa e disse que ela abre a hipótese de “caos jurídico”.

“Permitir a revisão das teses com base em alegações extemporâneas e interesses econômicos particulares significaria abalar a confiança no sistema de precedentes, reabrir indefinidamente discussões pacificadas, privilegiar quem tem recursos para questionar indefinidamente decisões desfavoráveis e penalizar quem confiou na estabilidade da tese e pautou suas condutas por ela.”

Quando revisar

O voto de Gurgel de Faria ainda fez um aprofundado estudo para estabelecer em quais situações o STJ deve admitir a revisão das teses vinculantes que fixa.

Ele citou doutrina de Daniel Mitidiero para concluir que o equívoco e o desgaste da tese vinculante devem ser flagrantes, sendo que a revisão cabe ao órgão que a fixou, por meio do efetivo contraditório.

O ministro também citou Teresa Arruda Alvim no sentido de que argumentos consequencialistas, como os abarcados pela maioria, podem ser usados, mas não devem ser centrais para levar à conclusão de que se deve revisar a tese.

Assim, cabe ao STJ questionar se a medida terá o condão de ferir a igualdade já estabelecida com a pacificação jurisprudencial levada a cabo. Somente se o resultado da questão for negativo é que será cabível a proposta de alteração.

“A alteração de precedentes vinculantes é excepcional e deve atender a casos de manifesto equívoco, desgaste na congruência social ou incoerência normativa, com adoção de fundamentação qualificada amparada essencialmente em argumentação jurídica, além de garantir a observância da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”

Pet 17.904

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Controvérsia dos RIFs do Coaf no STF deixa juízes sem saber a quem obedecer

Duas notícias saíram no mesmo dia, 25 de agosto. Primeiro, a revista eletrônica Consultor Jurídico publicou que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, validou uma decisão que anulou o uso de relatórios de inteligência financeira (RIFs) produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) a pedido dos órgãos de investigação e sem prévia autorização judicial.

Depois, a ConJur noticiou que o ministro Alexandre de Moraes, relator do recurso em que o STF vai analisar a constitucionalidade dos RIFs por encomenda, suspendeu todas as decisões que consideraram esse uso indevido e ilegal — ele não vê qualquer problema na prática e tem derrubado decisões do Superior Tribunal de Justiça em sentido oposto.

No gabinete do ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, a assessoria responsável por minutar os votos questionou a quem obedecer. “Não sei, porque nesse sistema realmente não sabemos a quem devemos obediência, não”, respondeu o magistrado.

O episódio, relatado durante a sessão da 5ª Turma do STJ da terça-feira (7/10), demonstra como a controvérsia sobre o uso de RIFs do Coaf vem gerando insegurança jurídica.

RIFs do Coaf em pauta

Paciornik falou sobre o tema durante o julgamento em que o colegiado obedeceu a uma decisão da 1ª Turma do Supremo (Rcl 70.191), sob relatoria de Alexandre de Moraes, anulando um acórdão da 5ª Turma do STJ de junho de 2024.

Na ocasião, foi decidido que não é legítimo o compartilhamento do RIF pelo Coaf, a pedido da autoridade policial ou do Ministério Público, antes da efetiva instauração do inquérito — no caso concreto, o procedimento era de verificação preliminar de informações (VPI).

O problema é que, ao validar o uso do RIF do Coaf por ordem da 1ª Turma do Supremo, a 5ª Turma do STJ ofendeu a jurisprudência da 2ª Turma do STF e também da 3ª Seção do STJ, que reúne os membros de ambos os colegiados criminais da casa.

Relator do caso julgado na 5ª Turma, o ministro Ribeiro Dantas pediu para oficiar o presidente da 3ª Seção, ministro Antonio Saldanha Palheiro, para informar que o descumprimento decorreu da necessária observância da decisão da 1ª Turma do STF.

“Nós aqui no Superior Tribunal de Justiça nos encontramos em uma situação muito, muito difícil. Tem uma turma do Supremo pensando uma coisa e a outra pensando outra. Quando a gente decide de um jeito, vem decisão de uma delas em reclamação. E quando decide de outro, vem decisão da outra turma”, lamentou Ribeiro Dantas.

Até que o STF finalmente resolva o problema, o STJ continuará obedecendo às decisões em reclamação, avisou o magistrado. “Além de disciplinados em relação aos precedentes internos, nós temos de ser obedientes à instância maior.”

Controvérsia ampla

A amplitude dessa cisão jurisprudencial foi exatamente o que levou a Procuradoria-Geral da República a pedir a Alexandre de Moraes a suspensão de todas as decisões que discutem o acesso de órgãos de investigação a relatórios de inteligência financeira.

Isso apesar de os precedentes do STJ não terem proibido, nem dificultado, o uso dessas informações nas investigações. Em vez disso, apenas estabeleceram um controle judicial prévio e mínimo, como mostrou a ConJur, que também já mostrou que, em dez anos, o número de RIFs por encomenda aumentou 1.300%. No ano passado, o Coaf entregou uma média de 51 relatórios por dia aos órgãos habilitados.

Já a Folha de S. Paulo informou que, em 2024, foram registrados 13.667 pedidos de RIFs ao Coaf pelas Polícias Civis, número 114% maior do que os 6.375 de 2021.

O risco, segundo os especialistas, é transformar o imenso banco de dados do Coaf em um repositório de dados à disposição dos investigadores, com informações que, inclusive, não representam prova, mas apenas indicam onde obtê-las — são como “mapas de calor”.

RHC 187.335

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Operadora não pode cancelar unilateralmente plano de paciente com câncer

A 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve uma decisão da 5ª Vara Cível do Foro Regional de Santo Amaro, na capital paulista, que determinou que uma operadora mantenha ativo o plano de saúde de um paciente em tratamento de câncer, nos termos da sentença proferida pelo juiz Eurico Leonel Peixoto Filho.

A empresa deve seguir as condições contratadas até a alta médica, data em que o autor deverá ser cientificado para o exercício do direito de requerer a portabilidade de carência. Além disso, a requerida deverá disponibilizar plano de mesma cobertura e valor, sem cumprimento de nova carência.

Segundo os autos, o autor foi diagnosticado com leucemia e fazia acompanhamento quando o plano cancelou unilateralmente o contrato.

O relator do recurso, juiz substituto em segundo grau Vitor Frederico Kümpel, destacou que a rescisão somente poderia ocorrer em caso de inadimplência superior a 60 dias, com prévia comunicação, o que não ocorreu no caso em análise.

O magistrado ainda afirmou que o cancelamento “não pode resultar na interrupção de cuidados imprescindíveis para a sobrevivência e incolumidade física do beneficiário” e ressaltou que não haverá prejuízos à operadora de saúde, uma vez que o autor continuará pagando as mensalidades.

“Diante dessas considerações, deve mesmo ser mantido o contrato até efetiva alta, sobretudo quando o bem protegido nesse caso é a saúde e a vida do beneficiário, que obrigatoriamente se sobrepõe a qualquer outro interesse de natureza contratual ou negocial”, escreveu.

Os desembargadores Enio Zuliani e Alcides Leopoldo completaram a turma de julgamento. A votação foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SP.

Clique aqui para ler o acórdão
Processo 1043775-08.2024.8.26.0002

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Nota de alerta
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