Pretensão punitiva do Estado diante de suspensão e extinção do crédito tributário

O lançamento tributário é um procedimento essencial, pois formaliza a obrigação tributária, permitindo que o Estado cobre tributos de maneira legal e organizada, observando o conceito, as características e os tipos do lançamento tributário descritos na legislação vigente (artigo 142 do Código Tributário Nacional). O lançamento tributário é o ato administrativo [1] que formaliza a exigência do tributo, constituindo o crédito tributário.

O lançamento é um ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individuação e concreção da norma tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo [2], tem-se demonstrado um instituto típico do Direito Tributário, sendo que suas normas só podem ser introduzidas por lei complementar, conforme dispõe o artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal [3].

Importante ressaltar que tais normas somente podem esclarecer o que está contido na Constituição, sem inovar, apenas declarar. No âmbito do Código Tributário Nacional, concebe-se três tipos de lançamento: a) de ofício (artigo 149 – CTN) [4], b) por declaração (artigo 147 e 148 do CTN) [5], c) por homologação (150, CTN) [6].

O lançamento tributário representa a formação definitiva do crédito tributário, e uma vez constituído, existem hipóteses envolvendo representação penal para fins fiscais, em que a pretensão punitiva do Estado depende da interpretação do Fisco acerca dos fatos e da legislação referente à obrigação fiscal, iniciando, nesse caso, o procedimento a ser apurado pelos agentes de polícia e pelo Ministério Público.

Especificamente no âmbito jurídico tributário, protege-se o bem jurídico da integridade do erário, da arrecadação ou da ordem tributária, esta última entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos. No campo penal, a Lei nº 8.137/90 definiu os crimes contra a ordem tributária.

Para admitir a possível configuração de crime, a lavratura do auto de infração deve evidenciar o dolo e a fraude praticada pelo contribuinte, com a devida aplicação da multa qualificada ou agravada pelo dolo, do contrário, não sendo considerado, em “tese”, pelo agente fiscal o ilícito tributário mediante dolo ou fraude, não há qualquer parâmetro legal para embasar a representação fiscal para fins penais [7].

No entanto, a afirmação pelo fisco da existência dolo ou fraude, não é, por si só, elemento hábil a respaldar a existência de ilícito penal [8]. Explica-se: as conclusões exaradas em sede tributária pelo agente fiscal permitem delimitar aquilo que sequer é capaz de configurar um ilícito tributário, no entanto, a sua caracterização não conduz à automática existência de um ilícito penal. Daí por que, a eventual afirmação da existência de dolo ou fraude em sede administrativa não presume ou comprova ocorrência de ilícito penal fiscal [9].

Frente a esse contexto, em relação aos tipos do artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, estamos diante de um crime material, e ao levar o contribuinte a responder a um processo penal, a pretensão do Estado repousa na sua função arrecadatória, sendo que, por vezes, esse ato pode ser considerado uma forma de tirania fiscal, uma vez que o pagamento do tributo extingue o crédito tributário e, consequentemente, a pretensão punitiva do Estado, de maneira que, utilizando desses meios punitivos, o objetivo final estatal é sempre a arrecadação.

Suspensão e extinção do crédito

Fixadas essas premissas quanto às hipóteses envolvendo inquérito policial de apuração ou ações penais em andamento, passamos à análise das questões de suspensão e extinção do crédito tributário, e por consequência, ao exame da pretensão punitiva do Estado.

No âmbito administrativo, existe o PER/DCOMP – Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento ou Reembolso e Declaração de Compensação, instituído pela Instrução Normativa nº 1.717/2017 [10]. Por meio desse sistema, o contribuinte pode preencher e validar eletronicamente solicitações de restituição de tributos pagos indevidamente, em excesso, ou que foram acrescidos ao produto, para serem reembolsados pela Receita Federal do Brasil.

Ao efetuar o pedido – PER/DCOMP, o contribuinte comunica à Receita Federal a existência de crédito a ser compensado, ressarcido ou restituído, e após a análise do direito ao crédito, o Fisco efetua as providências necessárias em relação ao contribuinte.

Nesse campo, oportuno destacar que o Código Tributário Nacional autoriza, em seu artigo 170 [11], a compensação por ato praticado pela administração pública (artigo 37, CF/88), configurando uma forma de pagamento do crédito tributário.

A Lei nº 9.430/96 estabelece no artigo 74 as diretrizes para a restituição, ressarcimento ou reembolso e declaração de compensação, regulamentada pela IN/SRF nº 1.717/2017 e posteriormente pela IN/SRF nº 2.055/2021, enquanto a Lei nº 8.383/91, em seu artigo 66, autoriza a compensação em relação às contribuições previdenciárias e de terceiros.

Portanto, o PER/DCOMP constitui um processo administrativo, e sendo assim, até que seja feita a conclusão do pedido efetuado pelo contribuinte, a cobrança do crédito tributário deve ser suspensa, nos moldes do artigo 151, III [12], do Código Tributário Nacional.

Estando suspenso o crédito tributário e havendo inquérito policial ou ação penal em andamento, estes também devem ser imediatamente suspensos. Isso ocorre porque, se o Fisco concluir favoravelmente ao contribuinte e, consequentemente, extinguir a cobrança do crédito tributário por via de compensação administrativa, a pretensão punitiva do Estado também será extinta pois, de acordo com o artigo 156 do CTN [13], a compensação extingue o crédito tributário [14] e o pagamento é causa de extinção da punibilidade do crime fiscal (artigo 9º, §2º, da Lei 10.684/2003).

Também dentro da legislação, destaca-se a possibilidade de haver a suspensão da cobrança do crédito tributário, mediante a utilização de fiança bancária ou seguro garantia [15]. Nesse particular, entendemos que ocorre a suspensão da ação de cobrança do crédito tributário, porém, com o uso da fiança bancária ou seguro garantia tem-se configurada a extinção da pretensão punitiva na seara penal.

A fiança bancária ou carta de fiança, é um tipo de contrato de fiança no qual a instituição financeira, no papel de fiadora, se compromete a garantir o cumprimento do avençado entre o afiançado e seu credor [16]. O seguro garantia se trata de um instrumento financeiro pelo qual uma seguradora emite uma apólice no valor do crédito tributário, assumindo, perante a Fazenda Pública, a responsabilidade de efetuar o pagamento, caso o contribuinte não venha a fazê-lo.

Como se verifica, o valor do crédito tributário a ser pago está devidamente assegurado pela instituição seguradora ou financeira, portanto, caso o contribuinte seja vencido na demanda em questão, o crédito tributário será devidamente pago.

O ponto aqui não reside na espera pela conversão do pagamento da apólice ou da carta de fiança, mas sim quando o crédito já está garantido, resultando na extinção da pretensão punitiva do Estado no âmbito penal. Sobre o tema, Tanegerino e Olive afirmam que “a fiança bancária deveria ensejar a extinção da punibilidade em face da certeza que geraria quanto ao adimplemento da obrigação tributária, insistindo que a caução, o seguro e a penhora, por garantirem a satisfação do crédito tributário, tornando certo o pagamento futuro, deveriam implicar a extinção da punibilidade” [17].

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o RHC nº 48.687/MG, manifestou posição diversa, pronunciando que o “oferecimento de garantia em embargos à execução fiscal, ainda que potencialmente capaz de saldar, ao final daquele feito, o débito fiscal questionado, não é causa extintiva de punibilidade penal prevista como tal em nosso ordenamento, sendo descabida, por razões óbvias, sua equiparação a quitação integral do débito a que se refere o art. 9º, § 2º, da Lei nº. 10.684/2013” [18].

Na mesma toada, o depósito judicial integral garante plenamente o crédito tributário, suspendendo a cobrança fiscal [19], logo, sendo o contribuinte vencedor, levantará o valor depositado em juízo e, sendo vencido, será de responsabilidade da Fazenda Pública efetuar o levantamento do montante depositado, convertendo-o em renda. Oportuno realçar, nesse campo, que a suspensão acontecerá apenas se “ocorrer o depósito em sua totalidade e em dinheiro” [20].

Diante disso, com o depósito judicial integral do crédito tributário extingue-se a pretensão punitiva do Estado, pois a importância se destina à satisfação do resultado do processo judicial.

O Direito Penal Tributário gera intensos debates, notadamente quanto ao mau uso desse poderoso instrumento estatal para o atendimento de finalidades distintas da tutela de bens jurídicos. De todo modo, para atender a finalidade arrecadatória, o legislador brasileiro possibilita que o acusado por crime contra a ordem tributária formalize o pagamento dos valores devidos e extinga a punibilidade a qualquer tempo.

É nesse contexto que a compensação do crédito tributário, ao gerar a extinção do crédito tributário, possui relevante repercussão na seara penal, de modo que, uma vez reconhecida a compensação pelo fisco, a extinção da punibilidade estará, igualmente, caracterizada. Entre o pedido de compensação e a análise definitiva pelo fisco, mostra-se cabível a suspensão do procedimento persecutório penal, essa suspensão pode ser fundamentada no artigo 93 do Código de Processo Penal.

Finalmente, a fiança bancária, o seguro garantia e o depósito judicial integral do valor devido, por assegurarem o pagamento do tributo, devem repercutir imediatamente na esfera criminal, acarretando a extinção da punibilidade do agente.


[1] XAVIER, Alberto. Do lançamento no direito tributário brasileiro. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, p. 18-19

[2] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª. ed. Atual. Misabel Abreu Machardo Derzi. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p. 784

[3] Art. 146. Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (…) b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

[4] Realizado pela autoridade fiscal sem a participação do contribuinte, geralmente em casos de omissão, erro ou fraude por parte do sujeito passivo.

[5] O contribuinte fornece as informações necessárias à autoridade fiscal, que calcula e formaliza o crédito tributário com base nesses dados.

[6] O contribuinte apura e paga o tributo antecipadamente, e a autoridade fiscal posteriormente homologa esse pagamento. A homologação pode ser expressa ou tácita, ocorrendo esta última se não houver manifestação da autoridade dentro do prazo legal.

[7] De todo modo, ainda que a partir de uma visão equivocada, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que, em respeito à independência das instâncias: “as decisões civis ou administrativas, via de regra, não vinculam o exercício da jurisdição penal. Dessa forma, ainda que a Autoridade Fazendária tenha entendido pela inexistência do dolo específico de fraude ou simulação, essa decisão não impede a discussão na esfera penal sobre a existência do dolo para os fins penais.” (AgRg no REsp n. 1.368.252/RS, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 10/4/2018, Dje de 25/4/2018)

[8] Segundo a doutrina, não é raro, na prática penal, a transposição de conceitos do direito tributário, “a resultar em acusações incapazes de expressar, ainda que minimamente, uma pretensão jurídico-penal legítima.” D´AVILA, Fabio Roberto; BACH, Marion. O ilícito-típico de sonegação: incompreensões sobre o ilícito penal em âmbito tributário. In: Direito e Liberdade: estudos em homenagem ao professor Doutor Nereu José Giacomolli (e-book). São Paulo: Almedina, 2022, p. 330-331.

[9] Embora admitindo a independência entre as instâncias para justificar que as conclusões do fisco não vinculam o Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça entende que “permanece a obrigação de o juízo penal fundamentar a contento a valoração da prova, explicando o porquê de, no mesmo conjunto de provas, alcançar conclusão diversa.” (AgRg no AREsp n. 2.454.137/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 6/8/2024, DJe de 13/8/2024).

[10] Revogada pela IN/SRF nº. 2.055/2021, que passou a reger as regras do PER/DCOMP. Art. 1º Esta Instrução Normativa regulamenta a restituição, a compensação, o ressarcimento e o reembolso, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), no caso de: I – restituição e compensação de quantias recolhidas a título de tributo administrado pela RFB; II – restituição e compensação de outras receitas da União arrecadadas mediante Documento de Arrecadação de Receitas Federais (Darf) ou Guia da Previdência Social (GPS); III – ressarcimento e compensação de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras (Reintegra); e IV – reembolso de quotas de salário-família e de salário-maternidade.

[11] Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública. Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.

[12] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (…) III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

[13] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: (…) II – a compensação

[14] Lei 9.430/96, art. 74, § 2: A compensação declarada à Secretaria da Receita Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação.

[15] Lei nº. 6.830/80. Art. 9º: Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá: (…) II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;  

[16]https://www.genebraseguros.com.br/faq-items/o-que-e-carta-fianca/#:~:text=A%20carta%20de%20fian%C3%A7a%20%C3%A9,o%20afian%C3%A7ado%20e%20seu%20credor. Acesso em:10/01/2025.

[17] TANGERINO, Davi; OLIVE, Henrique. Crédito tributário e crime: efeitos penais da extinção e da suspensão da exigibilidade. São Paulo: InHouse, 2018, p. 65-66

[18] Sexta Turma, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 19/12/2014. Em sentido similar, a Corte entendeu que “a fiança bancária apenas assegura o juízo da execução para que a parte possa avançar na discussão sobre o débito fiscal exigível. Não equivale a pagamento (hipótese de extinção da obrigação tributária) e não está prevista na lei penal como causa extintiva de punibilidade da sonegação fiscal. Assim, não é obstáculo às investigações nem causa de sua suspensão” AgRg no REsp n. 1.618.392/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/5/2020, DJe de 4/6/2020.

[19] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (…)  II – o depósito do seu montante integral;

[20]  Súmula 112, STJ. Igualmente, na doutrina, afirma-se que “uma vez efetuado o depósito, sua destinação está necessariamente vinculada ao resultado do processo. Se extinto o processo sem resolução do mérito, por qualquer fundamento, o depósito há de ser levantado pelo próprio contribuinte, uma vez que a decisão judicial não provocou nenhuma modificação na relação tributária de direito material. Por outro lado, se o processo foi extinto com resolução de mérito, há duas possibilidades: julgado procedente o pedido, o contribuinte tem direito ao levantamento da quantia depositada; se ocorrer a improcedência, o depósito deverá ser convertido em renda da Fazenda Pública” cf. HELENA COSTA, Regina. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. 12 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 276-277.

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Seguros Contemporâneos – Projeções 2025

Observando com atenção, as modificações implementadas pelo primeiro diploma projetarão efeitos tanto sobre os contratos de seguros individualmente considerados em todas as suas espécies – danos, vida, responsabilidade civil etc. – e grupos – massificados e grandes riscos, quanto sobre os contratos de resseguro.

Já o segundo diploma – o projeto de lei das cooperativas e associações – aumentará substancialmente o rol de participantes do mercado segurador convencional, agregando as cooperativas em geral, além das associações de proteção patrimonial mutualista. A sanção do Projeto de Lei Complementar nº 143/2024 não deve tardar. Segundo o site do Senado, o prazo estabelecido para a Presidência da República finda em 16 de janeiro de 2025 – a ensejar mais uma lei a ser cumprida pelos participantes do mercado [1].

Conforme assinalado no plano de regulação da Superintendência de Seguros Privados (Susep) para 2025, as normas relativas à Lei nº 15.040/2024 e, ao que tudo indica, à futura lei das cooperativas e associações vêm sendo tratadas em regime de primeira prioridade, o que requer ainda mais atenção do mercado [2].

Observando os limites editoriais desta coluna, deseja-se sublinhar aspectos legais considerados chaves à análise da Susep e do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) para fins de elaboração dos atos normativos pertinentes, sempre atentando-se ao fato de que a regulação, com a imparcialidade que sempre lhe deve nortear, deverá atender aos interesses de todos os participantes do mercado de forma isenta e equilibrada.

Por fim, a projeção aponta para os precedentes qualificados em gestação no Superior Tribunal de Justiça.

Lei dos contratos de seguro

Em 9 de dezembro de 2024, o presidente da República sancionou a Lei nº 15.040/2024, publicada no dia seguinte (10) com previsão para entrar em vigor no prazo de 1 ano contado da publicação, ou seja, no dia 11 de dezembro de 2025, de acordo com a regra de transição da LC nº 95/98 (artigo 8º, § 1º).

A Lei nº 15.040/2024 encerrou um processo legislativo iniciado com o Projeto de Lei nº 3.555/2004, revogando o capítulo XV do Código Civil e dispositivos do Decreto-Lei nº 73/66, para estabelecer uma lei específica para os contratos de seguro no Brasil. Projeto extremamente polêmico, passou por várias versões até que, apoiado pelo atual governo, conseguiu finalmente a adesão formal de algumas entidades do mercado segurador, vindo a ser aprovado no Congresso Nacional.

A nova lei modifica a estrutura dos contratos de seguro e resseguro desde a fase de formação do negócio até sua execução pelos procedimentos de regulação e liquidação do sinistro. Trata de todos os agentes da relação, segurado, beneficiários, intermediários (corretores, estipulantes, representantes), seguradora, ressegurador, retrocessionário, terceiros prejudicados e reguladores de sinistro.

São vários os pontos sensíveis, dentre os quais merecem destaque as regras de formação e interpretação do contrato voltadas a tutelar o segurado, sem fazer qualquer distinção entre seguros massificados (consumo) e de grandes riscos (empresariais). É louvável o esforço no sentido de exigir mais clareza e transparência na prática contratual, mas o exagero na regra “interpretatio contra proferentem” (contra o ofertante) demandará dos tribunais e da doutrina temperos mais equilibrados em sintonia com o sistema do Código Civil e a lei de liberdade econômica.

O regime do agravamento do risco ganhou amarras mais rígidas para configurar a situação patológica que justifica a perda do direito à indenização. Nos termos da nova lei, configura agravamento o comportamento intencional do segurado que conduza ao aumento significativo e continuado da probabilidade de realização do risco descrito no questionário de avaliação ou da severidade de sua realização. O segurado deve comunicar à seguradora o fato relevante assim que tomar conhecimento dele. Se não o comunicar por dolo, perderá a garantia, sem prejuízo da dívida de prêmio e do ressarcimento da seguradora. Se não comunicar por culpa, pagará a diferença de prêmio ou perderá a garantia se esta for tecnicamente impossível ou o fato corresponder ao tipo de risco não subscrito pela seguradora.

No capítulo da regulação e liquidação do sinistro, os impactos serão enormes, a exigir mais temperamentos. O relatório de regulação e liquidação do sinistro é considerado documento comum às partes, mas isso não pode significar uma porta ampla e irrestrita para acessar assuntos confidenciais/sigilosos da companhia de seguros e seus agentes. Aqui, é curioso o dispositivo que aparenta proteger o sigilo dos documentos com a ressalva “salvo em razão de decisão judicial ou arbitral” (artigo 83, § único). O inciso X do artigo 5º da Constituição não declara que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra das pessoas, salvo em razão de decisão judicial ou arbitral.

A lei impõe prazo máximo de 30 dias para a seguradora se manifestar sobre a cobertura, sob pena de não poder mais negá-la, sujeito a duas suspensões. Em sinistros de veículos automotores e seguros com importância segurada não superior a 500 vezes o salário-mínimo vigente, admite-se apenas uma suspensão. Por outro lado, nos grandes riscos, o tema ficará a cargo da Susep, que poderá fixar prazo superior a 30 dias para seguros cuja regulação implique maior complexidade, respeitado o limite máximo de 120 dias. Reconhecida a cobertura, a seguradora terá o prazo máximo de 30 dias para pagar a indenização ou o capital segurado.

Estes e muitos outros pontos estão a desafiar o mercado de seguros e resseguro a partir de 11 de dezembro de 2025.

Lei das cooperativas e associações

Passemos aos principais contornos do Projeto de Lei Complementar nº 143/2024. Um aspecto marcante do texto submetido à sanção presidencial é sua abertura e generalidade, considerando que a especificação de obrigações relevantes ficou a cargo do órgão regulador. Confira-se o disposto nos artigos: 24-A, 88-A e 88-C em relação às cooperativas, e os artigos 88-D, 88-E, 88-F e 88-L em relação à operação de proteção patrimonial mutualista, todos a serem inseridos no Decreto-Lei nº 73/66.

Nascido como PLP nº 519/2018, o projeto passou pela Câmara dos Deputados e em regime de urgência seguiu sua tramitação no Senado como PLP nº 143/2024, onde foi aprovado em 17/12/2024 e encaminhado à sanção presidencial. Entre outros aspectos, o PL introduz no mercado de seguros privados, isto é, à fiscalização da Susep e à regulação do CNSP, as cooperativas de seguros, os grupos, associações e as administradoras de operações de proteção patrimonial mutual, além das seguradoras, resseguradoras e corretores de seguros, somando-se a alguns outros participantes.

O movimento não é sem razão. O mercado de cooperativas de seguros movimentou cerca de R$ 9 bilhões no último ano sem regulamentação. Entretanto, a falta de supervisão tem permitido a atuação de intermediadores informais, o que prejudica a arrecadação de tributos e o pagamento de comissões aos corretores. Há estimativas de que estes deixaram de receber cerca de R$ 1,4 bilhão em comissões devido à ausência de regulamentação.

Ao introduzir estes personagens no sistema, o objetivo do legislador é aumentar a penetração do seguro na sociedade brasileira. Noutras palavras, onde os seguros convencionais não chegam, por questões de preço, apetite pelo risco, condições econômicas desfavoráveis etc., esse objetivo poderá ser alcançado por intermédio das cooperativas e associações com benefícios aos consumidores finais.

O cumprimento dos objetivos acima será positivo aos destinatários dos produtos oferecidos por todos os participantes do mercado, sejam os incumbentes, sejam os novos entrantes. Resta saber se haverá interesse dos novos entrantes, a partir de então, em subordinarem-se aos termos da nova legislação e toda a carga obrigacional que ela traz. A constituição de reservas técnicas e o regime de responsabilidade mais severo para seus administradores serão do interesse das cooperativas, associações e entidades de proteção patrimonial mutualista?

As cooperativas de seguros que se constituírem de acordo com a futura lei poderão operar em qualquer ramo de seguros privados, exceto (1) em operações de seguro estruturadas nos regimes financeiros de capitalização e de repartição de capitais de cobertura e (2) naqueles ramos expressamente vedados em regulação editada pelo CNSP, que deve estar alinhada ao porte, à natureza, ao perfil de risco e à relevância sistêmica das cooperativas.

Ao oferecerem seguros, as cooperativas poderão operar somente com seus associados, podendo o CNSP prever situações em que serão admitidas operações com não associados. A limitação, por certo, não parece vantajosa aos futuros cooperativados.

Em relação às operações de proteção patrimonial mutualista, o PL nº 143 se limita a indicar que o CNSP definirá os danos materiais próprios dos participantes ou de terceiros afetados pelo evento coberto que estarão compreendidos nos riscos patrimoniais passíveis de serem garantidos, além de dispor que a operação de transporte de carga nestes moldes deverá ser alvo de regulamentação específica.

Caso esta forma de atuar seja interessante, as associações que desejarem regularizar suas operações deverão, no prazo de 180 dias, contado da publicação da lei, se adaptar ao disposto no artigo 88-E, cadastrar-se perante a Susep e cessar as atividades como antes praticava.

Para além disto, ao aceitarem se submeter ao crivo da Susep, as associações de operações de proteção patrimonial mutualista e suas administradoras, bem como as cooperativas, passam a se sujeitar a um severo regime sancionador, com multas que poderão alcançar R$ 35 milhões, além de possibilitar a suspensão das atividades e a inabilitação de seus administradores por até 20 anos.

Em resumo, seja pela grande quantidade de matérias delegadas à regulação pelo CNSP, seja pela indefinição da atratividade para os novos entrantes, o PL nº 143 é mais um tema cujos impactos em 2025 deverão ser acompanhados bem de perto.

Precedentes qualificados do STJ

Por fim, as projeções para 2025 apontam para alguns julgamentos paradigmáticos em matéria securitária, ainda em fase de formação de precedentes qualificados no Superior Tribunal de Justiça.

O primeiro caso envolve o Tema 1.282, que afetou três recursos especiais ao regime dos casos repetitivos para resolver a seguinte controvérsia: “Definir se a seguradora sub-roga-se nas prerrogativas processuais inerentes aos consumidores, em especial na regra de competência prevista no art. 101, I, do CDC, em razão do pagamento de indenização ao segurado em virtude do sinistro” (REsp 2.092.308-SP, relatora ministra Fátima Nancy Andrighi).

A questão envolve um instituto fundamental da teoria geral das obrigações – a sub-rogação, pretendendo deliminar até que ponto a companhia de seguros pode substituir o segurado na relação perante o causador ou responsável pelo dano [3]. A transmissão à seguradora de direitos e pretensões do segurado alcança todas as regras processuais e materiais? A substituição se dá somente nos institutos de direito material, excluindo as regras de competência previstas para tutelar o consumidor? Qual será o reflexo desse precedente em temas adjacentes como a inversão do ônus da prova? A Corte Especial dará as respostas com impacto relevante na condução de muitos litígios espalhados pelo território nacional.

O segundo precedente em gestação está no Tema 1.039, que discute a seguinte questão: “Fixação do termo inicial da prescrição da pretensão indenizatória em face de seguradora nos contratos, ativos ou extintos, do Sistema Financeiro de Habitação” (REsp 1.799.288-PR, relatora ministra Maria Isabel Gallotti). Aqui, a discussão está em saber qual é o fato gerador que autoriza a contagem do prazo de prescrição para exercício da pretensão indenizatória por vícios no imóvel em contratos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Conta-se do encerramento do financiamento imobiliário ou esse prazo começa a correr da ciência do vício de construção surgido mesmo após a vigência do contrato e respectiva apólice? A Corte Especial do STJ dará a última palavra.

Por último, o Tema 1.263, afetado à 1ª Seção do STJ (Direito Público), está voltado a definir se a oferta de seguro garantia tem o efeito de obstar o encaminhamento do título a protesto e a inscrição do débito tributário no Cadastro Informativo de Créditos não quitados do Setor Público Federal (Cadin). A discussão envolve questões do sistema tributário e processual para entender se o seguro, atendidas as condições mínimas de idoneidade, constitui espécie de caução apta a suspender a exigibilidade do crédito tributário, especificamente o protesto da Certidão de Dívida Ativa e a inscrição no Cadin. Caso atualmente pautado para a sessão do dia 6 de fevereiro de 2025.

Esses temas estão projetados para ter definição ao longo do ano, sem prejuízo de outros que compõem a pauta da Corte Superior provindos dos demais tribunais da federação.

Conclusão

Como se viu, as cortinas do ano se fecharam com duas modificações significativas na estrutura legislativa do mercado, e com temas importantes na agenda jurisprudencial para fins de formação de precedentes. O ano de 2025 terá certamente grandes movimentos no mercado, no órgão regulador e na jurisprudência dos tribunais. Desejamos a todos uma excelente preparação para que os impactos sejam absorvidos da melhor forma, sempre com responsabilidade, transparência e equilíbrio.


[1] Conforme informações disponíveis em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/165332, visitado em 2/1/2025.

[2] O plano de regulação da SUSEP para o ano de 2025 encontra-se disponível em https://www.gov.br/susep/pt-br/documentos-e-publicacoes/normativos/plano-de-regulacao, visitado em 2/1/2025.

[3] CC, Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

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A ‘tirania silenciosa’ da IA no Direito e o neotaylorismo! Viva a Ópera!

1. A maravilha que é a ópera

Escrevo esta coluna tarde da noite, depois de assistir à ópera Aída [1] (Verdi), no Lincoln Center (NY). E daí, alguém dirá? É que a ópera é uma criação, uma obra de arte, um espetáculo. Imaginem no século 19 alguém montando essa peça. Que, re(a)presentada centenas de vezes (ou mais), ainda provoca emoções. Silêncios. Aplausos. É de arrepiar quando a princesa cativa Aída canta “minhas lágrimas são meu crime” – porque dividida entre o amor por Radamés e a fidelidade à sua terra natal, em guerra com o Egito. E o que dizer de outra ópera a que assisti, La Boheme (Puccini), quando Rodolfo pega nas mãos de Mimí e entoa a ária Che gelida manina? Puro encanto e magia.

Na contramão de AídaLa Boheme etc., avança a inteligência artificial, anticognição, antiarte, anti-humana.

Por isso resolvi escrever o texto a seguir.

2. A tirania silenciosa denunciada pelo professor francês

O professor Dominique Wolton acompanhou uma série de transformações tecnológicas e suas implicações. Em longa entrevista quando de sua visita ao Brasil para receber uma honraria, diz que vivemos uma  “tirania silenciosa” provocada pela tecnologia.

Na sequência mostrarei como isso tem a ver com o Direito.

Para ele, a evolução técnica favoreceu dois movimentos contraditórios. O primeiro é que cada um pode trabalhar sozinho, onde quiser, em qualquer lugar do mundo: é a individualização. E isso, de fato, é uma mudança extraordinária. O segundo movimento, mais discutível, é que existe uma economia de massa, onde tudo é padronizado e racionalizado. É uma padronização que empobrece. Isso também é fato.

Isso resulta em uma perda da individualização. Essa é uma mudança que as pessoas não percebem. E isso acarreta empobrecimento da iniciativa individual. Isso é verdade porque o trabalho está entrando em uma nova etapa de taylorismo.

Para o professor, nas relações entre técnica e trabalho, é a técnica que vence.

“Dizem que é maravilhoso, que é mais rápido. Sim, mas… O ser humano perdeu. Ele não está tão forte”.

Por isso, acrescenta Dominique, o homem precisa ser capaz de inventar, então, não temos necessidade disso. Existe uma perda total de autonomia:

“Porque todos estão, digamos, separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas para ele todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Como consequência, vivemos uma (nova) alienação:

“É como quando nós trabalhávamos em linhas de montagem, um século atrás, para fabricar automóveis, com Taylor e Ford. Se dizia que aquilo era formidável, porque faríamos muito mais carros do que antes, e é verdade, se fazia muito mais carros. Mas o trabalho em linha de produção, a divisão do trabalho era 10 vezes pior. Então, foram os operários que perderam, e os trabalhadores. É o mesmo desafio hoje, mesmo que as técnicas não sejam as mesmas.  Vivemos uma tirania da pseudoliberdade. Com os recursos tecnológicos, com o modo de vida, tudo caminha para a singularização e a segmentação. E todo mundo acha que isso é formidável”.

3. Por que somos reféns da perda da iniciativa no direito

Tem razão o professor francês. Trazendo a discussão para o Direito – ele faz pertinentes críticas da tecnologização no jornalismo e na educação – temos que o avanço da IA provoca um neojustaylorismo. E ficamos reféns dessa perda de iniciativa. Perda da autonomia.

Pior: cada vez lemos menos livros. As faculdades ensinam por resumos e esquemas. Crescem as mentorias.

O que estamos pesquisando no direito? Simples: novas formas de encontrar precedentes. Ou não é isso? As grandes “novidades” no direito são:

(i) ter um ChatGPT para chamar de seu (inclusive com um avatar) e que elabore petições e faça resumos de textos;

(ii) ter um robô que melhor encontre precedentes em um país sem precedentes (aqui recomendo fazer uma pausa e ler este texto: Um país sem Precedentes – é só clicar). Sim, o grande produto não é mais a doutrina, as “invenções teóricas”. O produto agora é o espiolhamento de julgados. Dia após dia aparecem novos robôs, inclusive no âmbito dos tribunais, neste caso para buscas internas.

E, por quê? Porque fomos “singularizados” pelo “sistema de justiça”, como denuncia o professor francês.  Fomos segmentados. E, como diz o professor, “todo mundo acha que isso é formidável”. Porque sequer pensamos que isso possa não ser a coisa certa; não pensamos em uma alternativa.

4. E caímos em uma armadilha…

Isto é, caímos em uma armadilha. Assim como as crianças foram arrastadas para esse mundo da tecnologização. Veja-se que no mundo todo estão proibindo telas em salas de aula. Estão proibindo, acertadamente, o uso de celulares nas escolas. Logo proibirão o uso de telas e smartphones nas faculdades.

Interessante é que no Judiciário e nas práticas jurídicas, ocorre o inverso: incentiva-se a “terceirização” (a palavra é por minha conta) da escrita e das decisões. E, fundamentalmente, das pesquisas.

Não é por acaso que o avanço da IA no Direito está relacionada diretamente à busca insana pela simplificação da linguagem [2]. Cada advogado ou professor acha que tem o domínio do mundo. Por meio da técnica. Como um operário que fabricava automóveis dez horas por dia. Quem perdeu? O operário. E agora temos esse neotaylorismo. A diferença é que produzimos via tok toc e insta em “linha de produção”. Importa é quem descobre melhor o último precedente, esquecendo que nosso sistema é civil law. Esquecendo que o que deve vincular é a lei do qual se extrai o precedente e não o precedente que substitui a lei. Estamos sendo ludibriados.

O modo como estamos “fazendo direito” é uma armadilha. Caímos na contradição secundária. Os “CEOs” da dogmática jurídica dita(ra)m a linha de produção. Fizeram uma espécie de “manual de instruções” acerca do que deve e pode ser produzido. Afinal, o sentido do produto é o que o establishment diz que é. E na pseudoliberdade que leva à tirania é que está a ilusão da liberdade, em que a linha de produção do direito esqueceu a doutrina. Pior: o que parte da doutrina está fazendo apenas retroalimenta a era da técnica. Buscam novas formas de atalhar. A grande invenção neotaylorista: robôs que elaboram petições, relatórios, sentenças e acórdãos. E examinam recursos. E que atuam como exterminadores de recursos. Como snipers anti epistêmicos, que atiram no padre e acertam sempre na igreja. Por isso o percentual de recursos admitidos é tão pífio.

5. O que restará para o estudo do direito? Metaforicamente: ainda haverá espaço para a ópera?

O que faz a linha de produção? Busca encontrar melhores meios de auxiliar essa técnica. Quem consegue mais rápido encontrar o precedente? Esse é o novo mundo, disse um professor dia desses, entusiasmado. Pode ser. Mas o que restará para o estudo do direito? Será apenas um jogo de estrategistas? Quem descobre primeiro o melhor precedente? Mas, o que faz esse robô face ao robô do próprio tribunal? Será uma briga de algoritmos?

Mas, antes disso: o que é isto – o precedente? Tudo isso leva a um paradoxo: se der certo, dará errado. Sim, porque se a técnica funcionar, já não precisaremos sequer dos estagiários e advogados que procuram os “melhores precedentes”. Como no comércio, os funcionários são substituídos por totens. Os robôs encontram a solução para os advogados nesse jogo que é o direito. E quem aplicará será outro robô – o do tribunal.

No meio disso ficará a terra arrasada: os escombros da doutrina e do que um dia foi o sistema de direito da civil law. E a teoria do direito? Desnecessária. Tudo agora é tecnologização. É a era do dispositivo – Ge-stell. É o botão que se aperta.

Assim como cada cidadão se transformou em jornalista, comentarista, cientista político, médico, influencer, coach etc. manuseando as redes sociais apenas com uma telinha na mão, no direito cada “operador” (mais qualificado ou não) se transformou em um teórico e especialista, com “plena liberdade de escolhas profissionais”, como ironiza o professor francês.

Isso, todavia, empobrece(u)-o individualmente. “Dispensado” de leitura, recebe, por meio da (era da) técnica, um discurso prêt-à-porter, prêt-à-parler e prêt-à-penser (como no sarcasmo de Warat). Repetindo o dizer do professor francês,

“todos estão separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Só que a inovação está amarrada aos limites impostos de antemão pela linha de produção. O ditame condutor é:

(i) o direito é indeterminado;

(ii) quem faz a determinação dessa indeterminação são os tribunais;

(iii) portanto, o seu trabalho, caro operador, é encontrar um modo de melhor aplicar esse produto prê-à-porter: a tese, o precedente (sem que se saiba, afinal, a diferença entre um e outro).

(iv) mas tem um plus: mesmo que o operador encontre o precedente, caberá ao órgão de cúpula (pensem no controle de qualidade na fábrica) dizer se o precedente ou a tese é persuasiva ou qualificada.

(v) afinal, os produtos que não se encaixam são descartados na linha de produção.

Claro, nisso tudo deve ser juntado uma dose considerável de análise econômica e consequencialismo, o que retirará o que resta de juridicidade da discussão. Claro, é fundamental essa estratégia para o triunfo dessa era dos algoritmos. Se o direito serve (deveria servir) para impedir que a política, a economia e a moral o corrijam, é fundamental, para o triunfo da era da técnica, que o próprio direito seja fagocitado, anulado. Portanto, já não será direito. Será apenas uma estratégia de poder.

Parece que o causídico e o professor de direito acreditaram na tese da professora Lee Epstein, da consagrada Universidade de Harvard, em palestra na USP: não é necessário estudar teoria do direito – melhor é entender as regras do baseball, disse ela. Pronto: uma simples técnica.

Bom, Machado de Assis já sabia disso no século 19. Para ele, nas palavras de um personagem, melhor que escrever um tratado sobre carneiros é comprar um, assar e convidar os amigos.

Os gênios da revolução da IA arriscam muito. No mundo todo. Sabem tudo de algoritmos, dados, padrões, mas podem esquecer que alguém deve fazer as perguntas. E programar o robô. Sabem tudo, mas, pergunta-se: não deveriam ler Searle, Gadamer, Wittgenstein, por exemplo? Ou os cientistas que criticam o “produto IA”? Como Chomsky, por exemplo. A propósito, há países como a França, por exemplo, preocupados com o avanço do uso da IA no âmbito das práticas judiciárias. Ao contrário do Brasil, em que parece não haver limites. A ver, pois.

Talvez devessem ler os poetas que criticam a IA. Como Jorge Gomes Miranda, autor português muito premiado, que escreve:

Um algoritmo olha/para o abismo/e o nada que vê/não permite compreender/a natureza humana”.

Numa palavra: paradoxalmente, a revolução da IA no direito é anti-intelectual. A um, porque rejeita a possibilidade de uma objetividade possível no pensamento jurídico. A dois, porque é cega à filosofia. No fundo, é como o triunfo do Know Nothing, o partido do Saber Nenhum, na distopia de MacIntyre dos anos 80. Na distopia, quando alguns corajosos (stoic mujic…) resolvem resistir, só encontram fragmentos. Daí meu aviso. Quando, como na distopia de MacIntyre, buscarmos recuperar os livros, as obras completas, os fatos jurídicos algoritmizados, poderá acontecer de só nos restar fragmentos. ChatGPTizados. Frutos da árvore envenenada pela Meta-IA (aliás, o psicólogo Álvaro Machado Dias, em curso que ministra na Folha de S.Paulo, fala em Metamodernidade, além da “psicologia das máquinas”).

Talvez estejamos meta ferrados. Nada artificialmente.

E, de novo, não venham com schumpeterismo, falando em “destruição criativa”. Para Schumpeter, a destruição criativa é o processo de criação de algo novo, que implica a destruição do que já existia. OK. Mas, se é isso, então o novo é a robotização e o velho é a teoria e o estudo do Direito? Isso deve ser destruído?

Numa palavra, ainda há espaço para reflexões? Para óperas?


[1] Por várias vezes o computador alterou Aída para Ainda. Sintoma…!

[2] Aliás, minha coluna intitulada  “Com ‘linguagem simples’, mundo jurídico se apequena e vira um brechó” sofreu fortíssimos ataques, mormente decorrentes do analfabetismo funcional, pelo qual quem acessa consegue ler (se chegar ao fim do texto), mas não consegue interpretar; o simbólico disso foi um causídico (sic) que, pelo fato de eu ter utilizado uma anedota sobre Einstein e a simplificação da teoria da relatividade, acusou-me de “comparar” física e direito – o que mostra o tamanho do buraco em que nos metemosOutros “interpretaram” o texto como uma ode à elitização; um professor (sic) criticou-me por incentivar essa elitização, enquanto ele, na sala de aula, “se esforça para simplificar…”.  Pior: muitas críticas vindas de bacharéis que separam sujeito e verbo. E ainda querem simplificar…

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O federalismo e o mito do barco de Teseu após da reforma tributária

Um dos temas mais candentes acerca da Reforma Tributária do Consumo aprovada pela Emenda Constitucional 132/23 diz respeito ao federalismo.

A autonomia federativa no âmbito arrecadatório foi modificada, pois o que cada ente federado tinha competência para cobrar isoladamente, passou a ser compartilhado federativamente, isto é, antes, nos termos de leis complementares, cada estado poderia cobrar o ICMS, e cada município cobrar o ISS. Após a EC 132/23, foi estabelecido que tais entes federados arrecadarão de forma compartilhada o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por meio do Comitê Gestor, cuja lei complementar está em trâmite no Congresso.

Há quem entenda que tal procedimento fere a cláusula pétrea do federalismo (artigo 60, §4º, I, CF), sendo inconstitucional; outros discordam, entendendo que a modificação não foi tão relevante assim; e há quem louve tal alteração, afirmando que essa nova dinâmica melhorará a federação.

Dentre os que louvam está Tercio Sampaio Ferraz Jr, emérito professor de filosofia do direito da USP, que afirmou em texto veiculado no jornal Valor Econômico intitulado Reforma tributária: reinvenção do Brasil:

“ao exigir-se deliberação conjunta no Comitê Gestor, mantêm-se o princípio da diferença e o dever de unidade que informa a federação solidária. Não se trata de decisão unitária e superior, apenas de deliberação conjunta. O que, afinal, sustenta a autonomia dos entes estaduais e municipais em face da União. Ao invés de um princípio geral (organizacional) que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal com a predominância de interesses (geral, regional e local), caminha-se para a realocação de competências tributárias em sede de uma lei complementar uniforme para os entes federados, enquanto partes cooperativas”.

Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, diriam os antigos

A alteração efetuada não tem o condão de violar a clausula pétrea federativa, conforme já firmei, embasado no fato de que o federalismo não diz respeito apenas à arrecadação, mas também à dívida e ao gasto. O federalismo brasileiro foi fortemente abalado, mas não extinto. Todavia, entendo não haver motivo para louvação, pois não me parece ter havido o surgimento de “partes cooperativas” com a modificação realizada pela EC 132. O que vejo ter ocorrido foi uma forte redução da autonomia dos entes federados, que antes tinham limites em sua autonomia na forma de leis complementares, e agora perderam completamente a autonomia arrecadatória sobre a maior fonte tributária que dispunham. Estados e municípios foram garroteados, e a federação se tornou ainda mais centralizada.

Esse debate lembra um antigo mito grego sobre o barco de Teseu, relatado por Plutarco. Em tempos históricos, cerca de 1.200 a.C., Atenas estava subjugada a Creta, e era obrigada a enviar parte de suas riquezas e de seus jovens ao dominador, visando manter a relação de subordinação. Depois de algum tempo nessa situação, o ateniense Teseu foi a Creta, matou o lendário Minotauro, destruiu a máquina de dominação e libertou seu povo daquele jugo. Em júbilo, a população preservou o barco de Teseu como um símbolo daquele feito heroico. Ao longo dos séculos partes do barco se deterioraram e ele foi sendo restaurado. As madeiras que haviam sido substituídas eram despejadas em um armazém.

Certo dia, um forasteiro, entusiasmado com a história de Teseu, pediu para ver seu barco e os atenienses lhe mostraram o restaurado, o que o decepcionou. Pediu então para ver o original, tendo-lhe sido apresentado os destroços acumulados no armazém. Partiu decepcionado, pois o original era apenas um amontoado de tábuas velhas, e o que então se apresentava não era aquele do herói ateniense, mas uma réplica.

Muitos filósofos discutem esse mito, que se tornou conhecido como o paradoxo do barco de Teseu ou o paradoxo da substituição, o que aponta para a complexidade do assunto, que pode ser assim descrito: até que ponto a substituição de partes de um todo, mantém o todo original?

Parece-me que o federalismo brasileiro é como o barco de Teseu. Modificam-se as partes, sob a mesma denominação, até um ponto que não se sabe qual formato corresponde mais de perto ao original – sabe-se que representam um barco, embora não seja exatamente o de Teseu.

Após o advento a EC 132/23, e a instituição das receitas compartilhadas entre estados e municípios por meio do IBS, não se sabe ao certo se o federalismo brasileiro atual corresponde ao original, tantas foram as peças modificadas. Todavia, afirmar que a réplica, mesmo que parcial, é melhor que o original, é um passo que não ouso dar.

Respeito as posições contrárias, mas vejo ter havido uma “reinvenção do Brasil”, não no sentido positivo, como afirmado, e não creio que haverá efetiva cooperação daí decorrente. Do agrilhoamento não surge cooperação, mas redução de autonomia. Essa solução pretende que haja maior segurança jurídica, pois reduziu os polos de produção normativa autônoma, mas não estou seguro de que venha a haver maior justiça fiscal a partir dela. Trata-se do velho embate entre a segurança e a justiça.

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Cláusula arbitral é inaplicável em contrato de DIP financing, decide STJ

Em contratos entre empresas que dependem de autorização do juízo de recuperação judicial para serem firmados, as cláusulas arbitrais são inaplicáveis.

Esse foi o entendimento do ministro Raul Araújo, do Superior Tribunal de Justiça, para declarar a competência da 1ª Vara Cível de Carpina (PE) e confirmar decisão que anulou contrato de DIP financing — modalidade de crédito direcionada às empresas em processo de recuperação judicial para que possam obter novos recursos.

Raul Araújo entendeu que se o contrato precisa ser autorizado pelo juízo da recuperação judicial é dele a competência para mediar conflitos

A decisão foi provocada por ação de conflito de competência ajuizada pela Ramax Pará que pedia o reconhecimento de duas cláusulas de contrato estabelecido com o Frigorifico Tavares da Silva (FTS) que apontavam a Câmara de Arbitragem de São Paulo como instância competente para julgar conflitos entre as duas empresas. 

A FTS passa por recuperação judicial, de modo que o Juízo da 1ª Vara Cível de Carpina declarou nulas as cláusulas contratuais e determinou a rescisão do contrato por ele ser prejudicial à empresa. 

A 2ª Vara Empresarial e dos Conflitos de Arbitragem de São Paulo, por sua vez, proferiu decisão em que declarou ser absolutamente competente para julgar qualquer questão relativa ao contrato. 

Cláusula inválida

Ao analisar o caso, o ministro apontou que o artigo 69-A da Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, determina que o juiz poderá, depois de ouvido o comitê de credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento. E isso foi exatamente o que a 1ª Vara Cível de Carpina fez. 

“Desse modo, se a própria contratação do DIP finance dependeu da autorização do juízo recuperacional, insere-se na sua competência resolver o contrato firmado pelo devedor, regulando, ademais, as providências cabíveis decorrentes diretamente dessa decisão”, registrou. 

O advogado Gabriel de Britto Silva, árbitro e participante da comissão de arbitragem da OAB-RJ, acredita que a decisão do STJ abre um precedente perigoso.

“A existência ou não de culpa por uma das partes, a configuração ou não do inadimplemento e a ocorrência de lesão ou não a qualquer dos contratantes é matéria a ser dirimida pelo árbitro ou pelo tribunal arbitral. O STJ mostra-se um defensor e guardião do instituto da arbitragem, de modo que essa decisão monocrática mostra-se isolada. Espera-se que seja reformada em caso de recurso à turma”.

Clique aqui para ler a decisão
CC 203.888

Fonte: Conjur

Trabalho e dignidade humana na lei brasileira

Iniciando minhas reflexões neste ano de 2025, expresso esperanças de melhores condições de trabalho para todos que colocam sua força de trabalho em benefício de outrem e do país, prosperando o respeito à dignidade humana no mundo do trabalho, que, pelos avanços das novas tecnologias, da internet e da inteligência artificial, cada vez mais se torna um grande desafio para a humanidade.

A palavra “trabalho”, etimologicamente, tem origem nos termos latinos tripaliare e tripalium, instrumento com três estacas utilizado para martirizar e torturar pessoas. Ou seja, o trabalho era considerado, nos tempos primitivos, como castigo.

Com o passar dos tempos, o trabalho ganhou o significado de algo dignificante para o homem, para que ele possa viver do ganho com a venda da sua força a um empregador ou tomador de serviços. O trabalho é, nos dias atuais, um meio de vida, para que honestamente se ganhe dinheiro para uma vida digna e também como satisfação do homem para ser útil numa sociedade organizada.

É como consta nas leis da maioria dos países do mundo civilizado. É como consta na lei brasileira, especialmente na Constituição Federal de 1988, que no artigo 1° estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. O artigo 170 dessa mesma norma constitucional, que trata da ordem econômica capitalista, diz que esta está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da defesa do meio ambiente e da busca do pleno emprego, o que é complementado pelo artigo 196, que assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Fundamento

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana está na satisfação do bem-estar físico, intelectual, moral e psicológico do trabalhador, assegurando-se a quem vende a sua força de trabalho para outrem ambientes laborais saudáveis, para que o trabalhador possa cumprir suas obrigações contratuais e, consequentemente, obter recursos financeiros para satisfazer suas necessidades básicas, com a finalidade de melhor qualidade de vida.

A dignidade humana, pois, é o maior fundamento para a proteção contra o trabalho em condições inadequadas e inseguras.

No aspecto específico do trabalho, o artigo 7° e inciso XXII da Constituição Federal asseguram como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

O termo saúde utilizado na lei é genérico e quer dizer corpo, alma e mente, pois o objetivo maior é revelar que seu âmbito de aplicação e proteção atinge não somente a higidez física, mas também pode alcançar a capacidade intelectual e psíquica da pessoa humana, o que pode variar de pessoa para pessoa.

Quer dizer, o trabalho não é e não pode ser considerado no nosso sistema jurídico como um castigo, nem como uma forma de desgastar e danificar o ser humano trabalhador, mas como meio digno de vida.

Como assevera Christiani Marques (A Proteção ao Trabalho Penoso, p. 21. São Paulo: LTr, 2007), “É inquestionável, portanto, que o trabalho é elemento essencial à vida. Logo, se a vida é o bem jurídico mais importante do ser humano e o trabalho é vital à pessoa humana, deve-se respeitar a integridade do trabalhador em seu cotidiano, pois atos adversos vão, por consequência, atingir a dignidade da pessoa humana”.

Ao tomador de serviços cabe, ao contratar um trabalhador, seja como empregado ou autônomo, assegurar-lhe trabalho em condições dignas, em que a sua saúde e integridade física e psicológica sejam preservadas. Assim, cabe àquele adotar todas as medidas coletivas e individuais possíveis para evitar danos e desgastes ao trabalhador, pois o tratamento desumano e degradante é proibido pela Constituição do Brasil (artigo 5º, inciso III: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante).

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Combate à litigância abusiva interessa especialmente à advocacia

Até há pouco, o tema que propomos debater era adjetivado quase que exclusivamente como “predatório”. Nomeava-se o fenômeno da perspectiva do agressor, daquele que, através de expedientes antiéticos, se propunha a predar recursos do Judiciário ou da parte contrária.

Atribuímos durante muito tempo à litigância predatória uma posição ativa, de quem tem aptidão para colocar em xeque o equilíbrio do sistema processual.

O movimento semântico proposto pela Recomendação nº 159/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), portanto, é o ponto de partida deste artigo. Nela, fala-se não em “predatória”, mas em litigância “abusiva” — e, nesse processo de revisão, retira do fenômeno sua dimensão ativa, atribuindo-lhe o status passivo de quem caminha na contramão do ordenamento.

Parece pouco, mas não nos parece que seja — sobretudo se levarmos em consideração que as disputas começam sempre no campo da narrativa.

Substituir o predador pelo abusador é um ponto de inflexão relevante em um processo gradual e orgânico; e que, nos últimos meses, voltou a receber atenção da comunidade jurídica.

É daqui que seguimos.

Transformando a cultura da litigância

A eficiência do sistema judiciário brasileiro tem sido objeto de intensos debates, especialmente em razão do crescente número de processos judiciais, que sobrecarregam os tribunais e tornam a resolução dos litígios mais lenta e onerosa.

Na sessão plenária de 22 de outubro de 2024, o CNJ deu uma contribuição decisiva para racionalizar o acesso à Justiça e evitar a sobrecarga do Judiciário com processos que poderiam ser resolvidos fora das cortes, naquela que possivelmente já nasceu como a normativa mais minuciosa a se debruçar sobre o tema.

A Recomendação nº 159 do CNJ consolida entendimentos e ações que têm sido adotadas por tribunais de todo o país no tratamento da litigância abusiva, além de adicionar novas formas de identificar, diligenciar e tratar situações que envolvam esse tema.

Nessa normativa, o CNJ convoca os órgãos julgadores a adotar “medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva”, conceituando-a como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça” (artigo 1º da Recomendação).

Avocando para si a tarefa de criar um protocolo nacional para tratamento do tema, o CNJ elenca exemplificativamente medidas potencialmente abusivas (Anexo A), como, por exemplo, desistência de ações após o indeferimento de liminares, ou submissão de documentos com dados incompletos, ilegíveis ou desatualizados.

Em seguida, lista no Anexo B uma série de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva, entre eles: notificação para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação; e apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

As medidas têm o potencial de transformar a cultura da litigância no Brasil, incentivando uma visão em que o processo judicial passa a ser visto como última alternativa, e não a primeira delas.

Se bem pensadas as coisas, a recomendação de alguma maneira passa a capitanear um movimento orgânico que tem ganhado força no Judiciário — e do qual o Tema/STJ 1.198 e o Tema/TJ-MG 91 constituem claras expressões.

O primeiro deles, a essa altura, já não é nenhuma novidade: discute-se na Corte Especial do STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.

Ainda em julgamento, esse tema visa a coibir a litigância abusiva, permitindo que o juiz, ao perceber que uma ação está sendo proposta de forma irregular ou sem fundamento, exija que a parte autora apresente provas mínimas para embasar suas alegações, como contratos ou outros documentos pertinentes. Caso essa exigência não seja cumprida, a ação pode ser extinta sem julgamento de mérito.

A se confirmar a possibilidade posta em julgamento, confere-se o Judiciário instrumentos para evitar sua utilização como instrumento de pressão em litígios infundados, muitas vezes propostos com o único intuito de obter acordos forçados, sem que haja uma base fática ou jurídica sólida para a demanda.

A discussão pendente de julgamento, como o leitor já deve ter observado, teve seu ineditismo esvaziado pela recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação da parte para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação, sempre que houver dúvida fundada sobre a autenticidade, validade ou contemporaneidade daqueles apresentados no processo.

No caso do Tema/TJ-MG 91, cujos reflexos imediatos estão circunscritos aos limites estaduais da competência do tribunal, há um inequívoco avanço no esforço de racionalização no acesso à justiça, ao estabelecer que, em ações consumeristas, o interesse de agir do consumidor somente será reconhecido se for comprovado que houve uma tentativa de resolução extrajudicial do conflito — seja por meio do Procon, do Consumidor.gov.br ou outros canais administrativos.

Ao criar essa condicionante, o TJ-MG dá um passo adiante: não se trata mais de incentivar a utilização de canais alternativos de solução de conflitos, e sim de condicionar o acesso ao Judiciário à tentativa de resolução prévia e administrativa dos conflitos. A diferença é enorme.

Promovendo uma releitura do artigo 17 do CPC a partir da realidade de um Judiciário cada vez mais inchado de demandas, a decisão, ao tempo em que desestimula o ajuizamento acrítico de ações, contribui para o desafogamento do tribunal — o que, em última hipótese, tende a representar uma melhor gestão do tempo gasto na solução dos processos.

Restrição à inafastabilidade da jurisdição

Uma das questões mais prementes suscitadas por essa medida é se ela poderia representar uma restrição indevida à inafastabilidade da jurisdição, raciocínio que não resiste a um exame mais cuidadoso do tema.

Primeiro porque condicionar está ligado, antes, ao estabelecimento de circunstâncias visando à gestão adequada dos recursos (humano e estrutural) inerentes ao exercício da atividade jurisdicional.

Segundo porque a postura é adequada e necessária à finalidade a que se destina, sem descuidar das situações de urgência que, justificadamente, autorizem que se prescinda desse procedimento administrativo padrão.

Terceiro porque, como todo e qualquer princípio, o da inafastabilidade da jurisdição não é absoluto e tolera condicionamentos. Basta que se recorde, aqui, o posicionamento firmado pelo STF no Tema 350, de acordo com o qual é indispensável o prévio requerimento administrativo de benefício previdenciário como pressuposto para que se possa acionar legitimamente o Poder Judiciário.

De mais a mais, vale aqui argumento no sentido de que o recurso ao Judiciário continua disponível, apenas pressupondo a constatação de que as vias administrativas não foram eficazes.

É certo que, ao exigirem a tentativa de solução extrajudicial e coibirem a litigância abusiva, essas decisões contribuem para reduzir o número de ações desnecessárias no Judiciário, melhorando o acesso à Justiça para aqueles que realmente necessitam de uma intervenção judicial e promovendo uma maior confiança da população nos meios alternativos de resolução de conflitos.

Esse também foi o entendimento alcançado pela Recomendação do CNJ, cujo Anexo B sugere, entre outras medidas, a notificação para apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida.

Apesar dos desafios, a adoção dessas medidas representa um avanço significativo na busca por um Judiciário mais eficiente e menos sobrecarregado. Ao fixar balizamentos claros para o tratamento da litigância abusiva, nos termos da normatização do CNJ; ao condicionar o acesso à Justiça à tentativa prévia de resolução extrajudicial, conforme o Tema/TJ-MG 91; e ao exigir provas mínimas em ações com indícios de abuso, conforme o Tema/STJ 1.198, o sistema judicial brasileiro se aproxima de um modelo mais equilibrado e justo, que privilegia o uso responsável dos recursos judiciais e incentiva a resolução pacífica e eficiente dos conflitos. Essas mudanças, a médio/longo prazo, fortalecem o Judiciário e trazem benefícios diretos para todos os cidadãos, que podem contar com uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz.

Em outras palavras, se conduzido de maneira cooperativa e responsável, o movimento orgânico encabeçado pelo Judiciário tem o condão de fortalecer o sistema jurisdicional como um todo e, por consequência, robustecer as garantias de acesso à justiça e ampla defesa.

O problema, como costuma acontecer, está nos excessos. E é a partir daqui que caminhamos para o desfecho deste artigo.

O papel da advocacia neste novo cenário

No Anexo C da Recomendação nº 159, em que é apresentada uma lista de medidas recomendadas aos tribunais, encontra-se a seguinte: “adoção de práticas de cooperação entre tribunais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria Pública e instituições afins, para compartilhamento de informações e estabelecimento de estratégias conjuntas de tratamento da litigiosidade abusiva e de seus efeitos deletérios sobre o sistema de Justiça e a sociedade”.

A premissa é perfeita: o tratamento de problemas complexos demanda ações inovadoras e permanente diálogo entre todos os atores que participam da construção do sistema jurídico nacional.

Nesse sentido, não deixa de ser motivo de preocupação o fato de que a recomendação, em teoria tão plural e cooperativa, tenha sido aprovada sem a participação da advocacia – o que motivou, no dia imediatamente seguinte à aprovação, um pedido de suspensão e de reconsideração subscrito pelo Conselho Federal da OAB nos autos do Ato Normativo 0006309-27.2024.2.00.0000.

Reconhecer os avanços e saudar o caráter propositivo da postura adotada pelo CNJ não nos impede de endossar a crítica do Conselho Federal no sentido de que a ausência de representantes da OAB na sessão plenária — na medida em que os dois representantes da classe ainda aguardam sabatina do Senado Federal – não se coaduna com a postura dialógica que deve informar o tratamento da questão.

Mesmo porque, em última análise, combater a litigância abusiva, inclusive com a adoção de novos recursos e de uma postura mais proposicional dos órgãos julgadores, interessa a todos — especialmente à própria advocacia. Isso porque, antes de representar uma afronta às garantias da classe, a adoção de medidas de controle da atuação de maus profissionais termina por privilegiar aqueles que trabalham de maneira ética e responsável.

Isso não significa, contudo, que os profissionais não tenham de ressignificar as suas atuações a fim de adequá-las à nova realidade.

Assessorar um consumidor a perseguir a solução da controvérsia que lhe aflige em âmbitos decisórios extrajudiciais, fomentar a atuação preventiva de órgãos de controle como agências reguladoras e, em última hipótese, exercer um juízo de valor crítico acerca dos contornos que uma pretensão venha a ser judicializado — recusando dilações probatórias infundadas, ou indenizações por danos morais inconsequentes, por exemplo — já deveriam ter sido assimiladas pela advocacia (cf. artigo 2º, VI, VII; artigo 8º, ambos do Código de Ética da OAB).  Com a mudança desse paradigma jurisdicional se tornam ainda mais prementes.

O processo de ressignificação da atuação do Judiciário, que tem sido fomentado pela atuação orgânica de seus órgãos (Conselhos, Tribunais Superiores, Escolas de Magistratura etc.) não pode prescindir da participação ativa da advocacia; e essa, por seu turno, não pode fechar os olhos para esse movimento de mudança que tem se consolidado.

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Vida reduzida a pó: a desordem do Tema nº 1.234 do STF

A primeira coisa que impressiona aquele que se apresenta a uma sala em que se debate o direito à saúde é que certos homens e mulheres, que ali atuam, vestem um uniforme, uma “divisa”. Esta tem sido a primeira impressão da Justiça. Todavia, lembro-me quando criança no escritório de Affonso Pernet, com toga, em sua sala ampla e iluminada por inúmeras candeias nas prateleiras, e fiquei de boca aberta, pois correlacionam em minha mente infantil a visão de uma armadura. Perguntei para minha mãe, então datilógrafa: mãe, por que se usa toga? Não me parece uma veste de trabalho, como é para os médicos o avental branco. Faz quase 38 anos essa pergunta.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Lembro como hoje a resposta de Affonso Pernet à pergunta infantil: a toga induz ao recato. Infelizmente, nos dias de hoje e cada vez mais, por debaixo deste aspecto que me foi respondido, a função judicial se encontra ameaçada pelos perigos da indiferença ou do orçamento. O recente julgamento do Tema nº 1.234 pelo Supremo Tribunal Federal transformou a minha visão infantil de armadura inútil, sob a pretensão de se equilibrar os gastos públicos e organizar demandas judiciais, degenerou-se todo o acabou-se constitucional e jurisprudencial desgraçadamente numa situação de desordem de quem busca garantir o direito fundamental à saúde e à vida. São cada vez mais raros os magistrados que têm severidade suficiente para reprimir a desordem, o retrocesso, dando a cada um o que lhe é seu por direito.

O Tema nº 1.234 estabeleceu e aprovou um acordo entre União, estados, Distrito Federal e municípios, estabelecendo regras para as ações judiciais em que se pede a entrega de medicamentos pelo SUS. Com isso, pretendeu-se tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde. O STF aprovou um acordo entre União, estados, Distrito Federal e municípios, estabelecendo regras para as ações judiciais em que se pede a entrega de medicamentos pelo SUS. Com isso, pretende-se tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde.

O acordo diz que as ações judiciais em que se pede medicamento que não está na lista do SUS, mas tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), serão propostas na Justiça Federal, se o valor anual do medicamento for igual ou maior a 210 salários mínimos. Nesse caso, a União pagará o custo total do medicamento. Se o valor for entre 7 e 210 salários mínimos, a ação será julgada na Justiça Estadual, e a União reembolsará 65% das despesas dos estados e municípios, ou, 80% para medicamentos oncológicos.

Essa regra só vale para ações iniciadas após a publicação da decisão. Dentre outros, o acordo também prevê a criação de uma plataforma nacional por meio da qual todos os pedidos de medicamento devem ser feitos. Os dados serão compartilhados com o Poder Judiciário, o que permitirá definir as responsabilidades de União, estados e municípios. Até que a plataforma esteja disponível, o juiz deverá pedir ao poder público que explique por que o medicamento não foi fornecido. Quando o juiz determinar a entrega de um remédio, deve garantir que ele seja comprado pelo menor preço possível, com base no valor proposto no processo de inclusão na lista do SUS ou no preço pago em compras públicas.

Verdadeiro espetáculo incivil

Eis aqui um STF o qual compreenderá o valor que tem o direito à saúde para o povo. O argumento da Corte Constitucional de tornar o julgamento dessas ações mais eficiente e melhorar o uso do dinheiro público em saúde contrapõem-se a tudo que se escreveu e se lecionou sobre dignidade da pessoa humana, nos mostrando que cada um de nós tem suas preferências, inclusive em matéria de humanidade.

Mais precisamente, nos demonstraram os ilustres homens e mulheres que compõem o colegiado do STF que, por unanimidade, validaram um acordo construído no âmbito da comissão formada por representantes da União, dos estados e dos municípios para facilitar a gestão e o acompanhamento dos pedidos de fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas sem olhar para a cruz que fica no alto da cabeça da presidência e sem meditar o bastante os discursos de Jesus, prejudicando pessoas que sofrem de doenças raras ou não contempladas nas políticas públicas de saúde.

Não é raro escutarmos que milhares de peregrinos em todo o Brasil estão à beira da morte devido a uma avalanche de entraves burocráticos processuais e extraprocessuais impostos, dentre outros, a prova diabólica por parte dos humildes. O que deveria ser um simples processo de acesso à saúde tornou-se um calvário como o experimentado por Cristo Jesus, tanto para os humilhados, como para os que os consolam.

Nós, operadores do direito, sentimos aversão pelo desprezo pela vida humana, renegadas a segundo plano por questões burocráticas e financeiras do Estado. Não é raro decisões jurídicas que desprezam opiniões médicas de quem consola o humilhado. Não é raro decisões jurídicas que desprezam os laudos que conhecem profundamente os afligidos. Não é raro decisões jurídicas que com frequência se baseiam em pareceres desguarnecidos de humanidade. Um total desprezo pela vida humana por parte daqueles que deveriam velar.

Verdadeiro retrocesso constitucional

Digamos com claridade: a gestão de recursos públicos é um desafio, mas esse argumento não pode ser utilizado como escudo para violar direitos essenciais quando temos uma máquina judicial que consome R$ 132,8 bilhões de reais. Em 2025, o Judiciário terá um espaço extra de R$ 3,84 bilhões para gastos, de acordo com o novo arcabouço fiscal proposto pelo ministro Fernando Haddad.

Ressalta-se que cada juiz e desembargador custa aos tribunais R$ 69,8 mil por mês. Assim, a saúde do povo não pode ser tratada como privilégio ou favorecimento em situações exclusivas. Por trás das decisões judiciais, há rostos, histórias e famílias inteiras impactadas. São crianças, idosos e pessoas em situações de vulnerabilidade extrema que veem suas vidas submetidas ao risco de morte. Contudo, esse cuidado excessivo com a gestão dos recursos públicos tem levado ao extremo oposto: a negligência da saúde pública.

Salvo outro juízo, o STF, ao julgar o Tema nº 1.234, deveria ter se colocado no mesmo plano daquele a quem prometeu servir como guardião incansável e ferozmente. O que está em jogo não é apenas a interpretação fria da lei, mas o efeito real e devastador que tal julgamento terá sobre a população. O Brasil não pode sobrepor questão orçamentária às vidas humanas.

Se o Brasil deseja se colocar como um Estado que respeita e promove os direitos humanos, é imperativo que suas instituições coloquem a dignidade da pessoa humana no centro das decisões. O Tema nº 1.234, da forma como está, é um exemplo de como o Judiciário pode se distanciar das reais necessidades do povo. É urgente que as imposições inconstitucionais sejam revistas e anuladas, que os pareceres médicos sejam valorizados e que os entraves processuais e extraprocessuais sejam reduzidos para permitir o acesso pleno à saúde. Qualquer caminho diferente é um atentado à vida humana e um desrespeito à Constituição.

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As redes sociais e o condor

O uso da internet e a propagação das redes sociais favoreceram a politização dos fatos. A facilidade em apresentar fatos e a sua instantânea divulgação para milhares de pessoas conferiu grande poder de influência aos fatos gerais, transformando-os em inconscientes elementos aglutinadores das pessoas em grupos.

Cada vez mais os usuários têm postado afirmações em que acreditam, mas que, inconscientemente, são determinadas pela sua cultura e valores. Aqueles que se identificam com certos valores e, consequentemente, com grupos, tendem a recepcionar os fatos de modo particular, colorindo a realidade com as suas próprias tintas.

As pessoas se organizam em grupos para, inconscientemente, adquirirem sensação de pertencimento e, desse modo, assumirem visibilidade e dignidade numa sociedade que, cada vez mais, tende a engolir a individualidade. Isso certamente já era assim antes da era digital e sempre se manifestou de modo claro, por exemplo, nas torcidas dos times de futebol.

O mesmo ocorre diante das ideologias, partidos políticos e candidaturas a cargos públicos de maior expressão. Ter um time de futebol, uma ideologia ou um partido é algo que, para muitos, traz um sentimento de enobrecimento e acolhimento, fazendo-os compartilhar não só de rituais comuns, mas também de responsabilidades imaginárias. Na verdade, pertencer e compartilhar são pontos de uma única lógica, pois se sentir responsável por uma mesma causa, ainda que inconscientemente, é “fazer parte”, tornando a pessoa mais suscetível a assumir compromissos (nem sempre racionais) em proveito e para o bem do grupo.

É por meio do desenrolar dessa linha que se torna compreensível o motivo pelo qual as pessoas possuem prazer em compartilhar mensagens que endossam posições que resguardam e fortalecem a sua relação com os membros do seu grupo. As discussões nas redes se fundam nas mesmas fantasias e incompreensões que sempre estiveram à base dos conflitos sociais, desde muito.

Ao se sentirem pertencentes e compromissados, os usuários tendem a compartilhar alegações factuais que reforçam a sua ligação com determinados valores ou ideias, não importando a sua correspondência com a realidade. Do mesmo modo que o torcedor do time de futebol cujo jogador caiu na área do adversário sempre reclama pênalti, os usuários das redes sociais fazem alegações impelidos por uma sensação de pertencimento.

Allison Larsen, no artigo intitulado “Constitutional Law in an Age of Alternative Facts”, fala em “my team-your team facts” para designar os fatos que, diante das distorções geradas pela internet, assumem versões antagônicas sobre temas que envolvem ideologia ou posições partidárias, como, por exemplo, mudança climática e eleições.

Os “my team-your team facts” correspondem a um confronto surgido a partir de sentimentos que não se preocupam com a realidade. As pessoas afirmam os fatos ou aceitam as alegações factuais por conta da inconsciente influência que os seus valores ou cultura exercem sobre elas. Os usuários são levados a alegar ou a respostar mensagens para manterem suas relações com os membros do grupo ou para se sentirem a ele pertencentes.

A verdade

Nas redes sociais a verdade não é negada. Ela apenas possui uma importância secundária. Tome-se como exemplo o caso das leis estadunidenses que, nas últimas décadas, exigiram carteira de identidade de eleitor. As leis se basearam no fato de que a carteira de eleitor evitaria fraudes eleitorais. Muitas dessas leis foram impugnadas sob o fundamento de que violariam o direito fundamental ao voto.

A discussão polarizou-se entre republicanos e democratas. Enquanto os primeiros disseram que a carteira seria importante para evitar fraudes, os democratas afirmaram que a sua exigência suprimiria direitos das minorias, pois essas teriam maior dificuldade em ter carteira com foto. Nos parlamentos, verificou-se que, enquanto 95% dos representantes republicanos votaram a favor da carteira de eleitor, apenas 2% dos democratas restaram convencidos da sua importância. Nas Cortes, os juízes se dividiram quase tão radicalmente.

É possível acreditar que os Juízes se basearam, com sinceridade, em seus entendimentos sobre o direito, mas de uma maneira que refletiu influências subconscientes e extralegais em suas percepções sobre a legalidade. Assim, os juízes republicanos, espectadores da Fox News, “honestamente acreditaram” que a fraude eleitoral é crescente e deve ser tratada mediante legislação corretiva, enquanto os juízes democratas, que assistem à MSNBC, “acreditaram com honestidade” que a fraude eleitoral é um mito criado pelos republicanos para excluir jovens, pobres e grupos minoritários da participação nas eleições [1].

Tem-se aí dois fatos que se tornaram verossímeis pela intensa participação dos simpatizantes aos partidos nas redes sociais. Esses fatos não são falsos. A carteira de eleitor constitui instrumento que pode evitar a fraude eleitoral, assim como a sua exigência também pode, ainda que minimamente, tornar-se responsável pela não participação nas eleições.

Diante disso, como é óbvionão se pode atribuir qualquer responsabilidade aos usuários da internet. Há de se perceber que a manifestação pública, em qualquer lugar, revela integração e comprometimento, de modo que as verdadeiras razões da participação, na praça e na internet, são secundárias.

Não se quer dizer, com isso, que a proliferação de inverdades não é um problema. O que se está a dizer é que os fatos, diante das discussões sensíveis ao pluralismo democrático e à diversidade dos grupos, não podem ser submetidos às metodologias das ciências que se servem das pesquisas experimentais e, particularmente, que a censura não pode ser vista como uma forma adequada para privilegiar a verdade dos fatos no Estado democrático de Direito.

Proibir as pessoas de falar nas redes sociais, especialmente diante de fatos discutidos a partir do sentimento de pertencimento a partidos, grupos e ideologias, não apenas nada tem a ver com a busca da verdade, mas a espanta, impedindo que se possa chegar a uma solução compatível com a democratização do debate e com os direitos de liberdade de expressão e manifestação. Tiranizar a participação nas redes sociais é tão antidemocrático quanto proibir o exercício do direito de manifestação em praças públicas.

Caso a liberdade para a alegação desses fatos pudesse ser arrancada das pessoas, a autoridade estaria em condições de escolher o fato amoldado às suas preferências pessoais, como aconteceu no caso das carteiras eleitorais — em que os juízes estadunidenses votaram de acordo com os partidos responsáveis pelas suas investiduras.

Admitir a censura diante dos fatos que podem ser legitimamente vistos de forma diferente pelas pessoas é gravíssimo. Censurar aquele que tem uma visão moral acerca de um fato é negar o pluralismo democrático, permitindo-se que as autoridades, segundo as suas convicções pessoais, estabeleçam o valor que deve imperar na sociedade. Além do mais, os fatos discutidos entre os simpatizantes de grupos, partidos ou ideologias não têm qualquer razão para serem escondidos, pois devem contar com o direito de liberdade de expressão para que possam ser esclarecidos.

Os juízes, quando diante dos fatos que importam para a solução de um simples conflito entre João e José, não precisam se preocupar com a verdade dos fatos que dizem respeito ao mundo ou à vida das pessoas. Esses fatos, no entanto, assumem grande importância quando o Judiciário realiza o controle de constitucionalidade das leis, ou seja, o controle que exige uma interpretação que não pode deixar de considerar os mesmos fatos que importam ao Legislador.

A alegação de que as eleições foram fraudadas por falta de carteira de identidade, caso pudesse ser censurada pelos administradores de redes sociais, teria impedido a ampla deliberação popular, legislativa e judicial sobre o tema nos Estados Unidos. Teria obstado a discussão de um tema importante para a democracia, inibido o direito de as pessoas falarem e impedido os bons juízes de demonstrarem que o Judiciário pode legitimamente cumprir o seu papel perante a sociedade.

Embora um Juiz possa ser simpático a um partido ou ideologia, ele obviamente não ocupa o lugar de um dos membros de uma rede social ou de um grupo que empunha bandeiras em praça pública. Ele tem uma especial responsabilidade, que deriva do locus de poder que ocupa e das consequências dos seus pronunciamentos sobre a vida das pessoas e do país.

Deixá-lo decidir como um torcedor de futebol apenas porque não está em condições psicológicas para enxergar a realidade é obviamente isentá-lo da responsabilidade que condiciona a legitimidade do exercício da sua função. Assim, admitir o que se poderia ver como algo meramente curioso na história da jurisprudência dos Estados Unidos constitui uma infantilização dos Juízes e uma imperdoável falta de respeito ao Direito e à população.

Se a carteira de identidade não poderia alterar o resultado das eleições, isso obviamente não quer dizer que o Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade da lei que a exigiu. O fim da lei era claramente adequado e a medida legislativa nada tinha de excessivo e obviamente não era desproporcional diante do direito ao voto. Isso era o que bastava para o Judiciário não interferir sobre a decisão legislativa.

Tudo isso significa que, a despeito de os fatos serem contados a partir das visões pessoais dos usuários das redes sociais, os juízes não apenas sempre têm condições e responsabilidade de bem decidir, como não podem esquecer que a praça pública existe para conter a autoridade e favorecer a democracia. Afinal, as redes sociais são do povo, assim como o céu é do condor!

*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] Allison Orr Larsen, Constitutional Law in an Age of Alternative Facts, New York University Law Review, v. 93, 2018, p. 210-211.

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Pode o juiz conceder tutela de urgência ex officio

A tutela de urgência ex officio ainda é dissenso na doutrina, diante dos limites da atuação judicial em um sistema predominantemente adversarial que busca preservar a imparcialidade do juiz, consagrado no princípio dispositivo ou da inércia, e em função da necessidade de se garantir a utilidade da prestação jurisdicional, prevista no princípio da efetividade do processo.

Embora o artigo 273, caput, fosse expresso ao determinar que a tutela seria concedida após pedido da parte, no Código de Processo Civil de 1973, o artigo 797 previa a possibilidade de concessão de medida cautelar de ofício em casos excepcionais. [1] Já no Código de Processo Civil de 2015, o legislador optou por não trazer a condição de requerimento do interessado de forma expressa no texto da lei, como também nada disse a respeito da possibilidade de o juiz conceder a medida ex officio. Vale mencionar, contudo, que, no projeto “versão Senado” do CPC de 2015, o artigo 277 previa a concessão de tutelas de urgência independentemente de pedido, mas o referido dispositivo legal foi suprimido no projeto “versão Câmara”. [2]

Para Gajardoni [3], a concessão de tutela de urgência de ofício mostra-se razoável a fim de permitir o asseguramento, pelo Estado-Juiz, do resultado útil do processo. Para tanto, considera ser necessário ao deferimento de ofício a presença das seguintes condições: apenas situação de risco extremo ou quando há previsão expressa da lei que permita a concessão ex officio da medida; e existência de ação proposta (seja principal ou cautelar antecedente), pois é proibido ao juiz iniciar oficiosamente um processo. Também é favorável a concessão da tutela de urgência ex officio, em caráter excepcional, Assumpção Neves. [4]

Já para Didier Jr, Braga e Oliveira [5], a concessão de tutela ex officio é algo proibido, com exceção dos casos previstos em lei (vislumbramos, por exemplo, a Lei nº 10.259/2001, que institui os Juizados Especiais Federais e trouxe em seu artigo 4º a previsão de que o juiz poderá conceder, de ofício, medidas cautelares no curso do processo para impedir dano de difícil reparação), diante de uma interpretação sistemática da legislação processual, fundada na regra da congruência.

STJ possibilita medidas cautelares de ofício

O problema da tutela concedida de ofício, do seu ponto de vista, é a responsabilidade pelos prejuízos causados pela medida na hipótese de a decisão ser revista ou revogada (execução injusta da tutela de urgência). Por conta disso, é imperioso que a parte postulante, sob os riscos da lei (artigo 302, CPC), requeira expressamente a sua concessão, assumindo, assim, o risco de ter que arcar com os danos causados ao adversário na fruição da tutela. Filiam-se a esse entendimento Marinoni, Arenhart e Mitidiero [6].

No que diz respeito à jurisprudência, com base no poder geral de cautela do juiz (artigo 297 do CPC), o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes entendendo pela possibilidade de o juiz conceder medida cautelares de ofício, a fim de preservar a utilidade do provimento jurisdicional futuro [7]. Nenhum desses julgados, no entanto, enfrentou a questão controvertida suscitada pela doutrina a respeito da responsabilidade pelos prejuízos na hipótese de revisão ou revogação da tutela de urgência.

E, de fato, não nos parece razoável responsabilizar a parte por danos causados por tutela que não pleiteou, e, muito menos, transferir à parte adversa os prejuízos da tutela concedida ex officio. Neste caso (reversão da tutela de urgência de ofício), a responsabilidade civil pelos prejuízos poderia ser atribuída ao Estado, que, com base no artigo 37, § 6º da Constituição, responde pelos danos que seus agentes tenham causado por força da prestação da função pública jurisdicional; neste caso, independentemente da prova do dolo ou culpa do juiz, já que a responsabilidade pela execução injusta (isto é, execução provisória da medida de urgência) é objetiva.

Como visto, o tema ainda é cercado de discussões sobre os seus efeitos práticos às partes envolvidas e ao próprio juiz que concede a tutela ex officio, máxime diante das suas consequências (em caso de revogação da medida). Daí por que, em atendimento ao princípio da efetividade do processo, nas hipóteses em que, ausente pedido de tutela na demanda, o juiz verifique a existência dos requisitos para sua concessão e sua extrema necessidade (v.g., evidentíssimo o risco extremo de perecimento do direito), é aconselhável realizar a intimação da parte (beneficiada com a medida) sobre seu interesse na obtenção da medida, garantindo-se, assim, sua submissão aos riscos do artigo 302 do CPC, e, depois, o princípio da inércia jurisdicional.

Em outras palavras, toda a vez que o juiz, de ofício, vislumbrar necessidade extrema de concessão de uma tutela de urgência, deve, se possível, ouvir previamente as partes, em prazo exíguo, com o fim de garantir o devido processo legal e, notadamente, disciplinar a responsabilização pelos efeitos da eventual reversão da tutela.


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 509.

[2] LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e a tutela antecipada. In: BUENO, Cassio Scarpinella. Tutela provisória no CPC: dos 20 anos de vigência do art. 273 do CPC/1973 ao CPC/2015. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2018. E-book. p. 244.

[3] GAJARDONI, Fernando da Fonseca, et al. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 439/440.

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, op. cit.

[5] DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 606/607.

[6] Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 407.

[7] AgInt no AREsp n. 2.244.318/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, j. em 8/5/2023; AgInt no AREsp n. 1.915.609/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Raul Araújo, j. em 14/3/2022; AgInt no AREsp n. 975.206/BA, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, j. em 27/4/2017; REsp 507.167/SC, 2ª Turma, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, j. em 8/11/2005.

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