Carf aplica tese do STJ sobre prescrição de matéria aduaneira não tributária

O prazo de três anos para a prescrição intercorrente previsto no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 incide sobre processos administrativos a respeito de questões aduaneiras não tributárias, conforme a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema Repetitivo 1.293.

Esse entendimento foi reafirmado pela 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) no julgamento de um recurso voluntário apresentado contra multa por interposição fraudulenta aplicada pela Fazenda Nacional contra uma importadora.

O precedente do STJ foi reconhecido pelo relator do processo, conselheiro Laércio Cruz Uliana Júnior, durante a leitura de seu voto. Apesar da norma, a prescrição não foi aplicada ao caso concreto porque o recurso foi interposto dentro do prazo previsto.

Gustavo Henrique Campos, advogado tributarista do escritório /asbz, ressalta que a manifestação do relator é importante por indicar que só atos decisórios interrompem a prescrição, indicando uma possível mudança de entendimento do Carf.

“Em outros processos que tratavam da prescrição intercorrente, o Carf havia optado por sobrestar o julgamento com base no artigo 100 do Regimento Interno, que prevê essa possibilidade quando há decisão de mérito do STF ou do STJ pendente de trânsito em julgado, o que é o caso do Tema Repetitivo 1.293”, disse o advogado.

“Devemos acompanhar, assim, se o Carf passará a aplicar imediatamente a tese firmada pelo STJ aos casos de multas aduaneiras ou se essa foi uma decisão isolada porque o prazo para prescrição intercorrente não havia fluído e o parágrafo único ao artigo 100 do Regimento Interno permite que o sobrestamento não seja aplicado quando o julgamento puder ser concluído independentemente de manifestação quanto ao tema afetado.”

Na mesma linha, o sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária Carlos Augusto Daniel Neto considerou correta a aplicação da tese do STJ. Ele prevê debates sobre o assunto no conselho.

“A discussão dos marcos interruptivos da prescrição intercorrente deverá ocorrer no âmbito do Carf, no seu contexto específico e na verificação da aplicabilidade do Tema 1.293 aos casos concretos, mas não se pode ignorar, como o relator colocou, a observância estrita do artigo 2º da Lei nº 9.873/99 e da jurisprudência judicial pacífica sobre o tema.”

Processo 10314.720151/2021-31

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Afinal, imóvel de pessoa jurídica pode ser bem de família? TST decide que sim

A 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho proferiu importante acórdão reconhecendo a impenhorabilidade de imóvel residencial de propriedade de pessoa jurídica, quando este é utilizado como moradia permanente por sócio e sua entidade familiar. Trata-se do julgamento do recurso de revista no processo TST-RR-20943-98.2021.5.04.0702, no qual o tribunal reformou acórdão do TRT da 4ª Região para afastar a penhora sobre imóveis da empresa utilizados exclusivamente como residência.

A controvérsia surgiu no âmbito de uma execução trabalhista em que foi determinada a penhora de imóveis registrados em nome da empresa executada. Os terceiros embargantes, sócios da empresa, sustentaram a impenhorabilidade dos bens com base na Lei nº 8.009/1990, sob o argumento de que residem permanentemente nos imóveis com suas famílias.

O Tribunal Regional manteve a penhora, entendendo que, por se tratarem de bens registrados em nome da pessoa jurídica, não poderiam ser considerados como “imóvel residencial próprio”, requisito expresso no artigo 1º da Lei nº 8.009/90.

Decisão do TST

O TST, no entanto, reformou esse entendimento, ao reconhecer a aplicação da proteção conferida ao bem de família mesmo quando o imóvel é de titularidade da pessoa jurídica, desde que seja utilizado efetivamente como moradia do sócio e sua família.

Segundo a relatora, ministra Maria Helena Mallmann, “a possível condição de bem de família não se extingue automaticamente pelo simples fato de os bens imóveis serem de propriedade da pessoa jurídica executada”. A decisão foi fundamentada na função social da moradia e na interpretação finalística da Lei nº 8.009/90, à luz do direito fundamental à moradia previsto no artigo 6º da Constituição.

Fundamento doutrinário e jurisprudencial

A Turma citou doutrina de Fredie Didier Jr., segundo a qual a impenhorabilidade decorre do uso residencial do imóvel, ainda que pertencente à pessoa jurídica, especialmente quando esta é de pequeno porte ou familiar. O precedente encontra amparo em julgados do Superior Tribunal de Justiça, que vêm admitindo a extensão da proteção legal em situações similares, em que o imóvel da empresa se confunde com a residência da entidade familiar.

Importância da decisão

Esse acórdão representa um avanço na interpretação da Lei nº 8.009/1990, ao privilegiar o direito fundamental à moradia e a dignidade da pessoa humana sobre formalismos registrais. A jurisprudência majoritária caminha no sentido de admitir a impenhorabilidade de imóveis de empresas familiares quando há comprovação do uso exclusivo e permanente para moradia dos sócios e seus dependentes.

A decisão também ressalta a necessidade de ponderação entre o direito do credor à satisfação do crédito e a proteção da família contra a perda de sua residência, especialmente em execuções trabalhistas, nas quais a efetividade da execução costuma ter maior ênfase.

Conclusão

O precedente do TST é relevante para o contencioso trabalhista e civil, em especial para embargos de terceiros opostos por sócios de empresas familiares. O reconhecimento da impenhorabilidade de imóvel utilizado como moradia, mesmo quando pertencente à pessoa jurídica, representa a prevalência dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à moradia sobre a literalidade do texto legal.

A decisão oferece segurança jurídica a muitas famílias que residem em imóveis de empresas familiares e pode servir como importante ferramenta de defesa em execuções patrimoniais.

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A morosidade administrativa e os direitos do cidadão

A morosidade administrativa é um problema comum enfrentado por cidadãos e empresas ao lidar com processos junto ao poder público. No entanto, existem direitos e remédios que podem ser utilizados para garantir a eficiência e a razoável duração do processo.

A Constituição estabelece, no artigo 37, os princípios da eficiência, da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da probidade na administração pública. Além disso, o artigo 5º, LXXVIII, garante a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A Lei nº 9.784/99, que estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da administração pública federal, prevê princípios e prazos que visam a garantir a eficiência e a razoável duração do processo. O artigo 49 da referida lei fixa o prazo de até 30 dias para que a administração pública decida a questão posta em processo administrativo.

A Lei de Liberdade Econômica, sancionada em 2019, institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e prevê medidas para garantir o livre mercado. O artigo 3º da referida lei garante que os particulares sejam cientificados expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido e que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos.

Medidas que podem ser adotadas pelos cidadãos

Em caso de morosidade administrativa, o cidadão pode adotar várias providências, dentre elas:

  1. Solicitar à administração pública, via ouvidoria, corregedoria e superior hierárquico, a apuração do caso e a conclusão do processo;
  2. Buscar a tutela jurisdicional por meio do Mandado de Segurança, compelindo a administração a analisar o processo, sob pena de multa diária;
  3. Buscar indenização na esfera judicial em situações em que a demora injustificada cause prejuízos financeiros ou morais;
  4. Denunciar ao Ministério Público em casos mais graves, com penas de improbidade e até prisão.

Isso porque a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente com as alterações da Lei nº 13.655/18, enfatiza a importância de considerar as consequências práticas das decisões administrativas e a razoável duração do processo. O artigo 20 da Lindb exige que os órgãos julgadores considerem as consequências práticas de suas decisões.

Busca de remédios previstos na legislação

Além disso, o artigo 28 da Lindb estabelece que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. O Tribunal de Contas da União (TCU) já estabeleceu que a conduta de um responsável que foge do referencial do “administrador médio” pode ser considerada erro grosseiro, permitindo que os agentes respondam pessoalmente por seus atos.

De fato, a morosidade administrativa é um problema que pode ser enfrentado com a utilização dos direitos e remédios previstos na legislação. É fundamental que o cidadão busque a apuração e não arrefecer diante da demora excessiva em um processo administrativo. Além disso, a administração pública e os servidores devem ser responsabilizados por suas ações e garantir a eficiência e a razoável duração do processo.

Fonte: Conjur

STJ admite partilha de bem superveniente pedida após contestação na ação de divórcio

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça determinou a inclusão, em uma partilha de divórcio, do crédito oriundo de previdência pública recebido pelo ex-marido durante o casamento e até a separação de fato, relativo a documento novo juntado aos autos depois da contestação. Além disso, fixou pensão alimentícia à ex-mulher.

As partes foram casadas sob o regime de comunhão universal de bens por mais de 20 anos. O ex-marido ajuizou ação de divórcio com o pedido genérico de partilha do patrimônio. Logo depois da audiência de instrução e julgamento, a ex-mulher pediu a inclusão de valores referentes ao pagamento atrasado de aposentadoria especial, reconhecida em ação previdenciária julgada procedente durante o divórcio.

O juízo decretou o divórcio, determinando a partilha dos bens do casal e condenando o autor ao pagamento de pensão alimentícia para a ex-mulher pelo prazo de dois anos. O tribunal de segunda instância, porém, entendeu que o pedido de inclusão de valores referentes à aposentadoria especial do ex-marido na partilha não foi feito dentro do prazo, e, além disso, não viu excepcionalidade que justificasse a pensão alimentícia.

No STJ, a ex-mulher sustentou que os créditos referentes à previdência foram concedidos durante o processo de divórcio e que o pedido de partilha foi feito na primeira oportunidade que teve de se manifestar. E afirmou ainda que existiriam motivos para o recebimento da pensão.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu a possibilidade do pedido genérico de partilha, pois “é possível que as partes não tenham acesso a todas as informações e documentos relativos a todos os bens individualmente considerados quando do ajuizamento da demanda”.

Todavia, ela advertiu que o pedido genérico é admitido apenas temporariamente, devendo a quantificação dos bens ser feita em algum momento. Nesse sentido, enfatizou que o julgador deverá considerar os bens pertencentes ao patrimônio comum em todo o curso da demanda, não estando limitado aos bens listados na petição inicial.

Inclusão do crédito

A ministra observou que a legislação processual autoriza a inclusão de novos documentos, de acordo com o artigo 435 do Código de Processo Civil. No entanto, apontou que a expressão “a qualquer tempo” do dispositivo não permite a juntada indiscriminada de documentos em qualquer fase e grau de jurisdição. Segundo afirmou a relatora, isso deve ser feito na “primeira oportunidade em que se puder falar do fato novo, desde que a prova esteja disponível à parte, ou no primeiro instante em que se possa opor às alegações da parte contrária”.

Para Nancy, além de demonstrada a boa-fé da ex-mulher, não haveria razão para uma sobrepartilha, já que ainda não foi finalizado o próprio processo de divórcio.

A relatora enfatizou também que a jurisprudência do STJ considera comunicáveis os créditos oriundos de previdência pública, ainda que recebidos posteriormente ao divórcio, desde que concedidos na vigência do casamento.

Em relação aos alimentos entre ex-cônjuges, a ministra apontou que devem ser fixados por tempo necessário ao reingresso no mercado de trabalho, garantindo a subsistência da parte até lá. No entanto, no caso em julgamento, ela verificou particularidades que justificam sua fixação por prazo indeterminado, pois a ex-mulher, “que abdicou de sua vida profissional para dedicar-se à vida doméstica, em benefício também do marido”, não exerce atividade remunerada há mais de 15 anos e está em tratamento de saúde. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

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Vigilância permanente é antídoto contra nova ‘lava jato’

A “lava jato” e suas vertentes deixaram de existir ao serem enquadradas como Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos). Mesmo assim, o risco de que um novo esquema volte a funcionar nos moldes da extinta força-tarefa nunca poderá ser descartado, o que impõe a necessidade de vigilância permanente por parte das autoridades, opina o ex-procurador-geral da República Augusto Aras.

Aras falou sobre o assunto em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito sobre as questões mais relevantes da atualidade. A conversa se deu durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

“O esquema ‘lava jato’, no fundo, na minha gestão, não foi destruído, como alguns gostam de dizer, mas institucionalizado. Não como esquema, mas como Gaecos federais, com a criação de 27 órgãos públicos, com procuradores, servidores, orçamento próprio e dever de prestação de contas. Cada investigação, agora, é um projeto a ser apreciado no tempo devido”, disse Aras, que comandou a Procuradoria-Geral da República entre 2019 e 2023.

Vigilância eterna

Aras entende que, ao dar o devido tratamento à força-tarefa, sua gestão na PGR desfez um esquema que deixou “R$ 400 bilhões de prejuízo” e que “provavelmente tirou do país a possibilidade de ter as grandes empreiteiras, com seu legado empresarial, prestando serviços no mundo inteiro”.

“E, com isso, deixou prejuízos a cada indivíduo, à paz de cada família, com a perda de patrimônio, a destruição moral, a perda de vidas. Quantas vidas foram ceifadas? Empresários morreram na mesa de audiência. Houve colegas no Ministério Público Federal, como subprocuradores, que foram perseguidos.”

Para Aras, ainda que o esquema e seus métodos tenham sido oficialmente desfeitos, isso não tira das autoridades a obrigação de continuar fiscalizando as instituições para impedir que tais abusos voltem a ser cometidos.

“O preço da democracia é a eterna vigilância, e essa frase foi utilizada tanto por movimentos de direita quanto de esquerda”, disse Aras. “O ser humano é o barro ainda em construção contínua e permanente. E é preciso que haja esse controle de todas as instituições entre si, para que os excessos sejam corrigidos.”

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

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O necessário combate às organizações criminosas

As organizações criminosas têm se fortalecido no Brasil ao longo dos últimos 30 anos. O PCC paulista e o Comando Vermelho no Rio de Janeiro detêm uma capacidade financeira sem precedentes na América Latina.

Estes recursos lhes permitem interferir nas eleições e financiar campanhas políticas. O PCC se especializou no roubo a bancos desde o início dos anos 1990, enquanto o Comando Vermelho atuava fortemente no tráfico de armas e entorpecentes desde os anos 1980.

A Lei de Organizações Criminosas — Lei 12.850 de 2013 — estabeleceu o conceito de organização criminosa de forma muito ampla. Essa amplitude em matéria penal levou à banalização do conceito. Basta que se reúnam mais de quatro pessoas para o cometimento de crimes graves para que sejam considerados uma organização criminosa.

E a banalização acaba por tornar ineficaz um sistema jurídico criado para tratar de um gravíssimo problema. Não é segredo que PCC e CV dominam as principais penitenciárias estaduais no Brasil. Trabalhei diretamente com processos envolvendo líderes do PCC e recebi, como juiz federal, a segurança e carro blindado solicitados junto ao TRF-4.

Eficiência

Considero que as policias estaduais não estão preparadas para investigar essas facções criminosas. Apesar das boas intenções dos estados, todos sabemos que somente uma agência federal poderia atuar, com eficiência, na investigação das duas maiores organizações criminosas do país. Tais investigações demandam um contato frequente com o Coaf, Banco Central e a Receita Federal, além de juízes e procuradores treinados para estas funções e com as garantias de segurança indispensáveis à função.

A Polícia Federal precisa receber os recursos necessários para ampliar as investigações e eficiência dos serviços de inteligência, centralizando se em Brasília, junto ao Ministério da Justiça, o combate ao PCC e ao Comando Vermelho.

Ainda que a experiência com a criação de varas federais especializadas em lavagem de dinheiro tenha se mostrado mal sucedida — especialmente em Curitiba e no Rio de Janeiro, por conta de ilegal politização dos juízes —, a ideia de uma ou mais varas federais centralizadas em Brasília seria uma alternativa importante para os casos envolvendo as investigações dessas duas grandes organizações.

Não se pode confundir, todavia, organizações criminosas com organizações terroristas. Temos, hoje, problemas de terrorismo doméstico e político que podem ser investigados e prevenidos pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

A Polícia Federal, por outro lado, atua na investigação e combate do PCC e Comando Vermelho, buscando sinergia com a administração das penitenciárias estaduais.

Somente através de um grande pacto nacional contra o crime organizado, o qual demanda cooperação entre os secretários estaduais de justiça e o Ministério da Justiça em Brasília, será possível resistir ou mesmo retardar o avanço do PCC e Comando Vermelho nas próximas eleições.

A política partidária deve ser deixada de lado em nome de uma política mais eficiente e centralizada em Brasília.

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Redefinindo a identidade do agente de contratação e do pregoeiro na Lei 14.133

A promulgação da Lei nº 14.133/2021 representa um marco significativo no campo das contratações públicas no Brasil. Suas disposições pretendem modernizar (ainda que sem uma ruptura com o modelo anterior) o arcabouço normativo existente e também enfatizam a importância de uma estrutura organizacional robusta e de boas práticas de governança.

A legislação de licitações estabelece novos padrões para a atuação dos agentes públicos envolvidos nas atividades de licitação e contratação, demandando, assim, uma necessária profissionalização desses agentes.

Profissionais qualificados são mais aptos a selecionar fornecedores de maneira mais criteriosa, estariam mais atualizados quanto às boas práticas e os entendimentos dominantes e logo mais capazes  de identificar possíveis práticas irregulares dos licitantes e de exercer a atividade decisória com maior maturidade.

Não por outra razão a Lei nº 14.133/2021 repercute em distintos momentos a necessidade de capacitação, como nos artigos  7º, 8º e 173º.

Virada de chave

Assim, a “virada de chave” promovida pela nova legislação não deve ser vista apenas como um conjunto de novas regras, mas como um impulso cultural que valoriza o conhecimento técnico e a capacitação continuada.

Considerando esses objetivos, o legislador definiu o agente de contratação como a “pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.”

No que se refere ao pregoeiro, o artigo 8º, §5º, estabelece que “em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro.” Portanto, o agente de contratação atua em todas as outras modalidades, que não sejam pregão, e o pregoeiro tem as mesmas atribuições do agente de contratação.

Percebe-se que a lei, que se pretende nacional, prevê de forma inovadora o perfil daquele que poderá ter assento na licitação. Percebe-se a resistência à participação indiscriminada de agentes públicos, entendendo-se que apenas determinadas espécies reúnem condições para tanto.

Essa preocupação especial se relaciona à função singular que as compras públicas ocupam. Nada existe à margem da contratação. Políticas públicas delas dependem. Daí todo o esforço legislativo em reforçar as estruturas e convocar a alta administração a bem guiar os agentes e processos. E diante do caráter estratégico da contratação pública para o Estado, a aplicação uniforme da Lei de Licitações para União, estados e municípios se apresenta como um instrumento essencial para promover a eficiência, a transparência e a legalidade nos processos de compras governamentais. Isso contribui para o desenvolvimento socioeconômico do país e para a construção de uma gestão pública mais eficaz e responsável.

A definição desse perfil de agente também reflete a opção brasileira pelo modelo de Administração Pública Gerencial, no qual a preocupação é voltada para os fins a serem atingidos. Trata-se de um tipo de Administração que busca o controle de resultados dos agentes do Estado, orientando-se para os resultados pretendidos por este.

Para esse modelo, a reforma da Administração Pública deve ser executada em três dimensões: 1) dimensão institucional-legal: modificam-se leis e se criam ou se modificam instituições; 2) dimensão cultural: promove-se a mudança dos valores burocráticos para os gerenciais; 3) dimensão de gestão: colocam-se em prática as novas ideias gerenciais e são oferecidos à sociedade serviços públicos efetivamente mais baratos, mais bem controlados e de melhor qualidade.

Logo, no entender do legislador, importa assegurar que empregados públicos de quadros permanentes e servidores públicos efetivos estejam envolvidos nos processos de contratação pública. Tal medida se alia à busca de integridade e profissionalização, dado o vínculo mais íntimo e duradouro, e unida às demais exigências, pretende assegurar maior competência técnica, resultando em contratações mais qualificadas.

Assim, sem embargos das dificuldades que possam daí advir, a exigência de que o pregoeiro e o agente de contratação sejam obrigatoriamente servidores públicos/empregados dos quadros permanentes, conforme disposto no artigo 8º da Lei nº 14.133/2021, é uma exigência nacional e contribui para competência técnica, facilitando inclusive a alocação de recursos públicos para fins de capacitação. A isso se une a criação de um histórico de experiências, diante do vínculo mais estreito e duradouro, a contribuir para o cotidiano das contratações.

Por isso o artigo 7º, a Lei nº 14.133/2021 estabeleceu que os agentes públicos que trabalham com contratações públicas devem ser preferencialmente servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, observando-se que a lei não usou a expressão “servidor público”, como fez no caput do artigo 8º.

Assim, utilizando-se da interpretação sistemática, pode-se concluir que a lei determinou que, no caso específico do agente de contratação e do pregoeiro, eles devem ser servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, o que não se aplica aos outros agentes públicos que trabalham com contratações públicas

Importante salientar as disposições do artigo 176 da Lei nº 14.133/2021. Nele, a lei possibilitou que os Municípios com até 20 mil habitantes tenham o prazo de seis anos, contado da data de publicação dessa norma, para cumprimento “dos requisitos estabelecidos no artigo 7º e no caput do artigo 8º desta Lei”. Essa disposição ratifica a defesa de que a exigência alcança todas as esferas, reconhecendo-se para os municípios de menor porte prazo maior para que o agente de contratação e o pregoeiro sejam servidores efetivos.

A isso se soma o rigor do artigo 7º, esse voltado a todos que participarão de alguma das fases do metaprocesso de contratação pública, alcançando, pois, os personagens afetos ao momento da execução contratual. A exigência constante de seu inciso II simboliza o intuito do legislador de marginalizar agentes públicos inábeis a trabalhar, ao menos teoricamente, nos moldes preconizados. Como imaginar que a governança da contratação, a partir de fluxos, procedimentos, controles internos e gestão de riscos, ocorrerá sem pessoal apto a tanto?

O legislador quer mesmo que as contratações recebam a atenção dos gestores, impondo-lhes focar na formação de um corpo profissional que possa tocar no processo, em especial na fase externa. A lei revoluciona, neste aspecto, ao forçar um olhar distinto a um aspecto usualmente não merecedor de atenção. Isso se alia à preocupação com governança e planejamento, gestão de riscos, controles internos, tudo a demandar da alta administração a atenção desejada. Não sem razão o farol do parágrafo único do artigo 12. [1]

Importante mencionar que a  Lei nº 14.133/2021 não conferiu ao agente de contratação atribuições de efetivo estabelecimento de diretrizes, planejamento de ações com um amplo espectro de discricionariedade e tomada de decisões políticas. As atividades atribuídas ao agente de contratação são técnicas, operacionais ou burocráticas, o que leva a crer que a norma está em consonância com o que foi decidido pelo STF no Tema 1.010, que veda a criação de cargos em comissão para o desempenho desse tipo de função.

Reconhecemos, todavia, ainda presente a controvérsia acerca da necessidade de observância desse atributo por todos os outros entes federativos, a merecer outros apontamentos.

No contexto brasileiro, o surgimento do federalismo ocorreu inicialmente de forma centrífuga, ou seja, de “dentro para fora”, isso quer dizer que a Federação se originou de um Estado Unitário que se fragmentou. No entanto, não é demais afirmar que o Estado brasileiro constitui uma Federação com tendências marcadamente centrípetas, ou seja, “de fora para dentro”, uma vez que a distribuição de poder ocorre dessa forma, com uma tendência ao fortalecimento do poder central da União. [2]

À União o artigo 22, XXVII da Constituição da atribui a competência privativa . Este tipo de competência geralmente não permite a legislação concorrente, a qual só é permitida mediante a edição de Lei Complementar. Como exceção a essa regra, os Estados podem legislar de forma concorrente, em questões específicas, conforme autorizado pelo parágrafo único do mesmo dispositivo, possibilitando a atuação de diversos entes federativos (União, estados e DF), mas, só quando a Lei Complementar permitir.

Por outro lado, existe também a competência legislativa suplementar dos estados prevista no artigo 24, § 2º [3], da Constituição, a qual é utilizada para preencher lacunas na legislação. Conforme estabelecido no texto constitucional, essa disposição afirma que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos estados.

Dessa maneira, é possível afirmar que, por exemplo, o município (artigo 30, inciso II da CF [4]) pode estabelecer uma determinada modalidade de licitação como obrigatória, considerando que faz sentido aplicá-la em seu contexto local exercendo a competência suplementar autorizada pela Constituição. No entanto, o município não tem autoridade para proibir o uso de modalidade expressamente prevista na Lei Geral de Licitações e Contratos. Além disso, não pode criar situações de dispensa ou inexigibilidade, pois esses assuntos estão dentro da competência exclusiva da União para editar normas gerais de licitação e contratos

Com base no princípio de que as normas se presumem legítimas e devem ser aplicadas até que sejam declaradas inconstitucionais, caso o estado-membro ou município discorde de disposição geral de norma emitida pela União no uso de sua competência privativa, cabe a ele recorrer à instância apropriada, que para nosso Estado é o Supremo Tribunal Federal, e questionar essa norma.

Não se reconhece ao estado-membro ou o município decidir o que é norma geral ou não sem que exista decisão por parte da Corte Constitucional correspondente. Portanto, até que esse questionamento seja feito e a norma eventualmente seja declarada inconstitucional, entendemos que o estado-membro ou o município deve cumprir a obrigação normativa geral. Isso se deve à busca pela segurança jurídica, valor fundamental em nosso sistema legal.

Ao adotar uma legislação de licitações e contratos comum a todos os entes federativos, opção realizada quando da promulgação do texto constitucional, cria-se uma uniformidade e ambiente de maior segurança jurídica e previsibilidade para os agentes econômicos que desejam contratar com o setor público.

Atento a isso, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, ao final do processo das jornadas de Licitação e Contratos, emitiu o Enunciado nº 121, dispondo que: “a exigência de que o agente de contratação e o pregoeiro tenham vínculo permanente com a Administração Pública licitante é norma geral, aplicável a todos os entes da federação”.

___________________________________

[1] Aqui

[2] Aqui

[3] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente. Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. (1995). Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 90, p. 245-251. Disponível aqui.

[4] Art. 30 da CF: Compete aos Municípios: II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

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IA explica o que o juridiquês esconde, diz cofundador do Jusbrasil

A inteligência artificial confere precisão aos resultados das buscas nas bases de dados processuais e profundidade às discussões sobre o Direito. Mas o grande serviço prestado pela ferramenta é permitir que a sociedade compreenda a linguagem jurídica de forma rápida, diz o cofundador da plataforma JusbrasilLuiz Paulo Pinho.

Especialista em administração e gestão de empresas, ele falou sobre o uso da IA feito pelo site no campo da pesquisa jurídica em entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos nomes mais importantes do Direito, da política e do empresariado sobre as questões mais relevantes da atualidade.

“A principal contribuição (da plataforma) é tirar uma discussão que está somente na comunidade jurídica e trazer essa conversa para toda a sociedade. Nós pegamos essa informação jurídica e a tornamos tangível e útil para todo mundo, agora por meio da inteligência artificial, que consegue explicar para as pessoas aquilo que o juridiquês esconde”, disse Pinho em conversa durante o XIII Fórum de Lisboa, promovido em julho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

Pinho observa que as buscas processuais feitas com auxílio de IA tornam o conhecimento jurídico mais acessível não só para o público leigo, mas também para profissionais do Direito que buscam informações sobre temas que estão fora de suas áreas de especialidade.

“Hoje, quando fazemos uma pergunta a um buscador que trabalhe de forma semântica com inteligência artificial sobre qualquer tema, já é possível obter a posição dos tribunais brasileiros com relação à pauta pesquisada. Isso faz com que a compreensão jurídica se eleve e as discussões se aprofundem”, disse ele.

Lançado em 2008, o Jusbrasil disponibiliza documentos como autos processuais e precedentes judiciais e administrativos. Mensalmente, a plataforma recebe em torno de 30 milhões de visitantes. Além disso, conta com 80% dos advogados do Brasil cadastrados em seu sistema, que é mantido por meio da venda de assinaturas.

Resposta para quase tudo

Pinho afirma que a ferramenta é capaz de identificar quase todo tipo de padrão e extrair dados muito específicos dos sistemas processuais. Por ora, contudo, essas aplicações estão no campo das possibilidades, já que os custos agregados à inteligência artificial ainda são altos, o que dificulta certas buscas.

“Mas eu diria que poucas perguntas não podem ser respondidas, desde que a IA tenha acesso a uma base processual completa.”

Recentemente, prossegue Pinho, o Jusbrasil obteve dados sobre a prática de injúria racial nas redes, em pesquisa feita a pedido de uma faculdade de Direito, cujo resultado foi apresentado no Ministério da Igualdade Racial.

Outros exemplos de dados específicos foram os levantados pelos projetos JusAmazônia e JusAmbiente, que analisaram a judicialização do desmatamento na Amazônia e no estado de São Paulo, respectivamente.

“A maior dificuldade talvez seja o acesso às bases de dados, que nem sempre são tão palpáveis, inclusive para engenhos como esse, o que exige um trabalho gigantesco. Hoje monitoramos 94 tribunais e um número maior do que esse de sistemas funcionando nesses tribunais. E também as agências reguladoras, Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e todos os órgãos. Então, se eu quero entender a visão de qualquer um deles, eu tenho que olhar para esses sistemas e puxar as decisões, inclusive as administrativas. E isso dá um trabalho danado, mas aos poucos vamos expandido a base dos dados”, disse Pinho.

Clique aqui para ver a entrevista ou assista abaixo:

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Juiz constata fraude e revoga liminar contra órgão de proteção de crédito

O juiz Antônio José dos Santos, da Vara Única de São Geraldo do Araguaia (PA), constatou indícios de fraude em uma ação proposta por uma associação que prometia limpar o nome de consumidores. Por causa disso, ele revogou uma liminar que favorecia a entidade e extinguiu o processo sem resolução do mérito.

Juiz argumentou que associação cometeu fraude e revogou liminar contra órgão de proteção de crédito

Segundo os autos, a associação pró-consumidor ajuizou a ação em nome de vários devedores, pedindo uma liminar para retirar os nomes dessas pessoas de um órgão de proteção ao crédito. A entidade alegou que essas pessoas foram cadastradas sem qualquer aviso.

Em um primeiro momento, o juízo concedeu liminar para que a instituição de proteção retirasse os nomes dos consumidores da lista de negativados.

O órgão, então, contestou a decisão, anexando aos autos diversas reportagens que indicavam fraudes praticadas pela entidade e por outras semelhantes.

A instituição de proteção ao crédito afirmou que havia uma “indústria limpa nome” na cidade, pois as entidades procuravam pessoas endividadas e ofereciam serviços para retirar seus nomes da lista de negativados em até 20 dias. Em contrapartida, os consumidores tinham de se associar e pagar mensalidades.

Para o juiz, a despeito de a instituição ter a prerrogativa de ajuizar a ação, a intenção do processo não foi proteger os direitos dos consumidores, mas angariar pessoas para se filiar à associação.

“Assim, verificado que os fundamentos da presente ação não se enquadram no resguardo dos direitos dos consumidores, pois busca fim simulado ou fraudulento, o processo coletivo perdeu a sua validade, devendo ser extinto sem análise do mérito”, escreveu o julgador.

A advogada Kelly Pinheiro, sócia-diretora da banca Eckermann & Santos Sociedade de Advogados, defendeu o órgão de proteção ao crédito.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0800341-68.2025.8.14.0125

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Jurisprudência define limites e garantias na atividade dos cartórios extrajudiciais

Nas últimas décadas, o modelo de fiscalização sobre as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs) estruturou-se com base em uma dualidade funcional: a supervisão técnica direta, realizada pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), conhecida como controle de primeira ordem, e o controle externo, exercido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as entidades no âmbito federal. Este último, voltado à verificação da legalidade, legitimidade e economicidade da aplicação de recursos públicos, conhecido como controle de segunda ordem.

Contudo, a despeito de ser pactuada assim, logo nos primeiros anos, a fronteira entre primeira e segunda ordem de controle foi borrada e essa interpretação foi sendo progressivamente revista no âmbito do próprio Tribunal de Contas. A Corte passou a afastar a ideia de precedência funcional entre os órgãos, afirmando que não existe uma relação de subordinação entre as atuações da Previc e do TCU. Assim, ambas as instituições podem exercer seus controles de forma autônoma e simultânea, dentro de suas competências constitucionais e legais.

Essa mudança de entendimento abriu caminho para uma ampliação da atuação direta do TCU sobre as EFPCs, sobretudo nos casos em que haja aporte de recursos públicos ou interesse relevante da União na governança dessas entidades, o que ocorre nos fundos patrocinados por estatais.

Regulamentação dos procedimentos do TCU

A consolidação dessa nova postura institucional se deu com a edição da Instrução Normativa nº 99 de 2025 (IN), que passou a regulamentar os procedimentos de fiscalização do TCU sobre os fundos de pensão. A minuta inicial da IN foi objeto de intenso debate no setor, pois estabelecia regras bastante rígidas e centralizadoras, com exigências de reporte, prazos curtos e uma estrutura que, na prática, poderia suprimir a autonomia técnico-gestora das entidades.

Após o amadurecimento das discussões internas no Tribunal, inclusive com as contribuições da Previc, a versão final publicada do normativo refletiu uma postura mais equilibrada para o controle. O texto preservou o espaço de atuação fiscalizatória do TCU, mas também reconheceu a especificidade e complexidade do regime de previdência complementar fechada.

Ato de regular de gestão

Uma das inovações mais relevantes dessa versão final foi exatamente a inclusão expressa do conceito de “ato regular de gestão” como critério de avaliação da conduta dos administradores e conselheiros das EFPCs (artigo 4º [1]). Trata-se de um marco importante, pois alinha o entendimento do TCU com a Resolução Previc nº 23, de 2023, especialmente o disposto em seu artigo 230 [2], que define o que se entende por ato regular de gestão no âmbito da supervisão da previdência complementar.

Ambos tratam do ato regular de gestão como aquele que demonstra a presença de boa-fé na administração dos recursos da entidade. Essa conduta se caracteriza quando o gestor atua com capacidade técnica e de forma diligente, cumprindo os deveres fiduciários que lhe são atribuídos, sendo essencial que ocorra dentro dos limites de suas competências legais e regulamentares, sem infringir a legislação aplicável, o estatuto da entidade ou seus regulamentos internos.

Exige-se, para a configuração do ato como regular, que a decisão tenha sido tomada com base em critérios técnicos adequados, de forma informada, refletida e desprovida de interesses pessoais. Trata-se de norma que reconhece a complexidade inerente à gestão de ativos, à alocação de recursos e à administração de riscos em fundos de pensão.

Para avaliar se determinado ato se enquadra nessa definição, deve-se levar em conta o conjunto de informações e documentos disponíveis no momento em que a decisão foi tomada, ou a ação executada, respeitando o contexto e os registros existentes à época. E, por isso, de forma expressa, a Resolução Previc determina que os fundos de pensão conservem os registros e documentos que embasaram cada decisão ou ato praticado.

Por outro lado, não será considerado ato regular de gestão quando, em qualquer momento, ficar comprovada a ocorrência de ilegalidade ou simulação que comprometa qualquer dos elementos exigidos para a sua caracterização, nos termos do § 3º do artigo 230 da Resolução Previc.

Erro de gestão, má-fé e resultado negativo de irregularidade

Ao mencionar esse mesmo conceito em sua Instrução Normativa, o TCU reconhece a importância de diferenciar erro de gestão de má-fé e resultado negativo de irregularidade, institucionalizando um normativo técnico, que explicita a sensibilidade institucional do Tribunal na busca por harmonização normativa entre órgãos de controle, algo fundamental para a segurança jurídica das EFPCs e para a estabilidade da governança do sistema.

Entretanto, a lógica que sustenta esse conceito já encontrava respaldo, ainda que de forma implícita, na aplicação, pelo TCU, da regra da Business Judgment Rule [3], doutrina oriunda do direito societário norte-americano, mas há muito reconhecida e recepcionada pelo Tribunal em diversos julgados.

Essa construção jurisprudencial teve um marco importante no Acórdão nº 2824/2015 — Plenário, de relatoria do ministro José Múcio Monteiro [4], proferido no âmbito de uma auditoria. O Tribunal reconheceu que, embora o gestor público deva responder por seus atos, não se pode imputar-lhe responsabilidade automática pelos eventuais prejuízos decorrentes de suas decisões, desde que essas tenham sido tomadas com observância dos deveres de diligência e lealdade.

O acórdão incorporou expressamente os fundamentos da Business Judgment Rule, afirmando que o papel do controle externo não é o de reavaliar o mérito das escolhas administrativas, mas sim de verificar se o processo decisório seguiu padrões mínimos de racionalidade, legalidade, técnica e boa-fé. Estabeleceu-se, ali, um padrão de atuação para o gestor público que, uma vez observado, confere um escudo protetivo contra a responsabilização pessoal, ainda que o resultado da decisão não tenha sido o esperado.

Conduta dos gestores das EFPCs

É justamente essa lógica que a IN nº 99 do TCU consolida ao adotar como parâmetro de aferição de conduta dos gestores das EFPCs o conceito de ato regular de gestão: a atuação fundamentada, diligente, tecnicamente embasada e alinhada com os deveres fiduciários. Explicita em termos normativos aquilo que já vinha sendo afirmado em sua jurisprudência, sem acrescentar nenhum outro requisito para a configuração do ato regular de gestão.

Mais do que uma simples transposição conceitual, a valorização do ato regular de gestão expressa no normativo sinaliza um avanço na forma como o TCU compreende sua própria atuação fiscalizatória: agora, com um olhar contextualizado, proporcional e mais compatível com a lógica de um regime de previdência complementar, que lida com riscos e incertezas estruturais e exige, portanto, margem técnica para decisões fundamentadas, ainda que sujeitas a revisões futuras.

Inclusive, o ministro Benjamin Zymler, que veio a ser o relator da IN nº 99/2025, ao examinar o conceito de ato regular de gestão tal como editado pela Previc no bojo de uma Representação no âmbito do Tribunal — em momento anterior à edição do normativo pela Corte de Contas — contribuiu para a sua interpretação e balizamento. Ao traçar um paralelo com a avaliação de responsabilidade de administradores de estatais, ressaltou que “a régua para avaliação do erro grosseiro a que se refere o art. 58 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) seria a configuração de um “ato regular de gestão” pelos administradores, em cumprimento dos seus deveres fiduciários, demonstrando que decidiram de forma leal, refletida e desinteressada” [5].

Deixou claro que, para afastar eventual configuração da prática de erro grosseiro e consequentemente obter o reconhecimento do ato praticado como regular de gestão, hipótese em que as decisões dos administradores dos fundos de pensão não seriam apenáveis, dever restar evidenciado no processo:

  1. a respectiva capacidade técnica (refutando eventual configuração de imperícia);
  2. a diligência em solicitar informações para decisão (de modo a não caracterizar uma negligência);
  3. a reflexão e análise de riscos ao decidir (afastando a imprudência);
  4. atos em conformidade com os poderes e atribuições de cada responsável (relacionado a potencial desvio/abuso de poder); e
  5. a não existência de ato ilícito ou simulação (com materialização de dolo).

Em suma, adotando-se uma postura contextualista, evitando-se os excessos de um controle pautado num viés retrospectivo, penalizando gestores a partir de elementos que sequer existiam à época da prática do ato. Citando, mais uma vez, o ministro Zymler:

A doutrina converge muitíssimo, de forma pragmática e menos subjetiva, ao que historicamente esta Corte considera como excludente de culpa, em termos de boa-fé objetiva; e mais recentemente a Lindb reconhece como erro grosseiro (…)
(…) os administradores dessas entidades atuam de forma muitíssimo semelhante aos dirigentes das empresas de capital aberto: administram recursos de terceiros, com deveres fiduciários e investir as disponibilidades para garantia do equilíbrio atuarial dos segurados. Tendo em vista terem que atuar no mercado, com natural exposição a riscos, não têm o dever absoluto de “ganhar dinheiro”, mas de demonstrar a atuação leal, refletida e desinteressada (…). [6]

Como aplicar análise do ato regular de gestão

Dessa maneira, a real preocupação que emerge nesse contexto, e que merece acompanhamento detido, não é mais conceitual, mas prática e metodológica: como o TCU aplicará, de fato, a análise do ato regular de gestão nas suas futuras fiscalizações envolvendo EFPCs? A eficácia dessa inovação normativa dependerá, sobretudo, da coerência entre o discurso normativo e a prática de julgamento. Há uma tensão entre a promessa de uma avaliação técnica e contextualizada e a persistência de julgamentos baseados em uma leitura retrospectiva, que, olhando o resultado de hoje, cobra do gestor um grau de precisão que não era exigível no momento da decisão.

Esse ponto foi, inclusive, corretamente alertado pelo próprio ministro Benjamin Zymler, quando relatou a IN nº 99/2025, ao destacar que a análise do ato de gestão deve considerar as informações e os dados disponíveis à época em que a decisão foi tomada.

Portanto, entendemos fundamental consignar que de nada adianta reconhecer formalmente a lógica da Business Judgment Rule e encampar o conceito de ato regular de gestão já praticado pela Previc e, na prática, aplicar punição a dirigentes por decisões tomadas com base em informações válidas, técnicas e diligentes à época, apenas porque os desdobramentos posteriores não foram os desejados.

Feito esse esforço de aproximações e distinções entre a Business Judgment Rule e o ato regular de gestão, a expectativa dos stakeholders de previdência complementar é que a positivação dos conceitos tenha efeitos práticos reais, evitando punições por decisões tomadas com base em informações válidas, técnicas e diligentes, à luz do que se sabia à época.


[1] Art. 4º A responsabilização por irregularidades nas negociações com valores mobiliários pelo Tribunal de Contas da União deverá, no que couber, observar, além das normas de direito público, os parâmetros estabelecidos nos arts. 153 a 156 e 158 da Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

§ 1º A conduta configurada como “ato regular de gestão” caracteriza a boa-fé objetiva na gestão dos recursos e será identificada quando presentes os seguintes elementos: I – capacidade técnica e diligência, em cumprimento aos deveres fiduciários em relação à entidade; II – dentro de suas atribuições e poderes, sem violação da legislação, do estatuto e dos respectivos regulamentos; e

III – fundado na técnica aplicável, mediante decisão negocial informada, refletida e desinteressada. § 2º Para avaliação do ato regular de gestão, devem ser consideradas as informações e dados disponíveis à época em que a decisão foi tomada ou o ato praticado, de acordo com registro dos documentos que fundamentaram a decisão ou ato.

[2] Art. 230. A conduta caracterizada como ato regular de gestão não configura infração à legislação no âmbito do regime de previdência complementar, operado pelas entidades fechadas de previdência complementar.

§ 1º Considera-se ato regular de gestão, nos termos do parágrafo único do art. 22 da Resolução CGPC nº 13, de 2004, aquele praticado por pessoa física: I – de boa-fé, com capacidade técnica e diligência, em cumprimento aos deveres fiduciários em relação à entidade de previdência complementar e aos participantes e assistidos dos planos de benefícios; II – dentro de suas atribuições e poderes, sem violação da legislação, do estatuto e do regulamento dos planos de benefícios; e III – fundado na técnica aplicável, mediante decisão negocial informada e refletida.

§ 2º Para avaliação do ato regular de gestão, devem ser consideradas as informações e dados disponíveis à época em que a decisão foi tomada ou o ato praticado, competindo à entidade fechada de previdência complementar manter registro dos documentos que fundamentaram a decisão ou o ato.

§ 3º Não se caracterizará o ato regular de gestão quando demonstrada, a qualquer tempo, a existência de ato ilícito ou de simulação que afastem quaisquer dos requisitos de que trata o §1º.

[3] Expressão usualmente traduzida como “regra de decisão empresarial”. Nas palavras de Nelson Eizirik: “A finalidade da regra é oferecer um ‘porto seguro’ aos administradores, que devem ser encorajados a correr os riscos inerentes à gestão empresarial e não podem ficar permanentemente sujeitos a terem suas decisões revistas. Os administradores devem ter uma razoável margem de discricionariedade em sua atuação, podendo avaliar a conveniência e a oportunidade de determinadas decisões visando à maximização dos lucros da companhia. A redução da discricionariedade da administração pode inviabilizar a gestão empresarial, pelo excessivo ‘engessamento’ de suas atividades.” (EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada, São Paulo/Quartier Latin, 2011, v. II, p. 416-417).

caput do art. 158 da Lei das S.A. assim dispõe: “O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder […]”.

[4] O Acórdão foi proferido no âmbito da TC-004.920/2015-5 em 04.11.2015. Tratou-se de auditoria realizada na Petróleo Brasileiro S.A., com o objetivo de examinar os atos de gestão relativos ao prejuízo da ordem de R$ 2,8 bilhões, reconhecido no balanço Patrimonial de 2014 da companhia, decorrente do encerramento dos projetos para a construção das Refinarias Premium I e II, nos Estados do Maranhão e Ceará, respectivamente.

[5] Acórdão 964/2024-Plenário-TCU. Voto do Min. Relator. P. 10.

[6] Acórdão 964/2024-Plenário-TCU. Voto do Min. Relator. P. 10.

Destaca-se que a própria Lei de Improbidade Administrativa dispõe, no § 2º do seu art. 10, que “a mera perda patrimonial decorrente da atividade econômica não acarretará improbidade administrativa, salvo se comprovado ato doloso praticado com essa finalidade”.

Fonte: Conjur

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