Compromisso arbitral de atleta depende de previsão em acordo coletivo, diz TST

Havendo norma específica regulando o contrato de trabalho, não é possível aplicar dispositivo da CLT que contraria a lei especial, em respeito ao princípio da especialidade.

A decisão é da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que declarou a invalidade de cláusula compromissória de arbitragem firmada no contrato de um jogador de futebol por entender que a medida contraria o artigo 90-C da Lei 9.615/1998, que institui normas gerais sobre esportes e recebeu o apelido de “Lei Pelé”.

Caso envolve jogador de futebol e Ponte Preta – Fernando Torres/CBF

O caso chegou ao TST após o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região aplicar a regra contida no artigo 507-A da CLT. O dispositivo estabelece cláusula de arbitragem em contratos de empregados hipersuficientes, que recebem salário maior que duas vezes o limite dos benefícios da Previdência.

Nesses casos, diz a regra, pode ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, por iniciativa do empregado ou mediante sua concordância expressa. O contrato analisado contava com a cláusula.

 

Embora mais recente, o trecho da CLT contraria o artigo 90-C da Lei 9.615/1998, que também permite a arbitragem para a resolução de litígios, mas diz que a medida deve constar também em acordo ou convenção coletiva de trabalho, o que não ocorreu no caso concreto

A disputa envolve o clube Ponte Preta e o ex-jogador Roberto César. O atleta atuou no time em 2018.

Transcendência jurídica

A disputa envolvendo verbas salariais e rescisórias foi parar no TST após o TRT-15 extinguir o caso sem resolução de mérito, entendendo que há cláusula arbitral, nos termos da CLT.

O TST discordou, entendendo que deve ser aplicada ao caso a lei específica, levando em conta o princípio da especialidade, segundo o qual normas específicas se sobrepõem a leis gerais.

A 5ª Turma reconheceu a transcendência jurídica do tema, levando em conta que a aplicação do artigo 507-A da CLT ao atleta profissional ainda não foi suficientemente enfrentada no âmbito do TST.

O relator do caso, ministro Breno Medeiros, pontuou, no entanto, que a 1ª Turma do TST já se pronunciou sobre o tema, entendendo que o artigo 507-A, incluído na CLT com a reforma trabalhista, por ser regra de abrangência mais ampla, não revoga o artigo 90-C da Lei 9.615, que exige o acordo coletivo para que ocorra a arbitragem.

Relator concorda

O ministro relator entendeu em sentido semelhante ao da 1ª Turma. Para ele, havendo norma específica a regular o contrato de trabalho especial do atleta, não é possível aplicar o dispositivo da CLT, já que a norma geral “contraria o regramento da lei de desporto”.

“Tal constatação deflui da própria regra de colmatação de lacunas e antinomias do sistema jurídico, segundo a qual a lei especial prevalece sobre a lei geral quando ambas possuem comandos conflitantes, sendo esse exatamente o caso dos autos”, disse o ministro.

Segundo ele, como a reforma trabalhista não modificou a lei específica, não pode o Judiciário deixar de aplicar o regramento especial que rege o contrato do jogador de futebol.

“Conhecido o recurso, a consequência lógica é o seu parcial provimento para, reformando o acórdão regional, declarar a invalidade da cláusula compromissória de arbitragem firmada no contrato profissional do reclamante, determinando-se o retorno dos autos ao Regional, a fim de que julgue o recurso ordinário no mérito, como entender de direito”, concluiu o relator.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 11748-91.2019.5.15.0043

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Nova fase da reforma tributária preocupa ainda mais

Realizado na semana passada, em merecidíssima homenagem ao emérito e querido professor baiano Edvaldo Brito, o III Congresso Internacional de Direito Tributário do IAT, presidido pelo professor Tácio Lacerda Gama, teve entre uma de suas principais plenárias dedicada ao tema “O Novo Federalismo Fiscal”.

Essa plenária foi sede de intensos e calorosos debates sobre a reforma tributária do consumo e sobre o primeiro projeto de lei complementar enviado pelo governo ao Congresso Nacional: o PLP 68/24, pelo qual se propõe a instituição do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS).

O encontro se deu no deslumbrante anfiteatro do espaço L’Occitane, em Trancoso (BA), e contou com a participação de Fernando Facury Scaff, Suzy Hoffmann, Mary Elbe Queiroz, Eduardo Maneira, Lina Santin e Raquel Preto. A mim, coube a condução e o fomento dos debates.

Na plateia, tivemos a satisfação de contar com a presença do professor Eurico de Santi, um dos principais idealizadores da PEC 45/19. A sua determinação e resiliência na condução do projeto lhe renderam merecida salva de palmas ao final do evento.

Prós

Como nas edições anteriores desse já tradicional congresso de Trancoso, a experiência de vivenciar o confronto de ideias ocorrido nesse painel teve o condão de sedimentar, ainda mais, a minha convicção sobre diversos aspectos positivos e negativos dessa reforma, cuja regulamentação se encontra em andamento.

Os aspectos positivos estão, em sua grande maioria, relacionados à ampliação da regência axiológica de todo o Sistema Tributário Nacional, bem como à sensível melhora das regras relativas ao cumprimento de obrigações acessórias por parte dos sujeitos passivos dos tributos cuja instituição se propõe.

De fato, traz grande amparo jurídico ao Sistema Tributário Nacional a menção expressa que a EC 132/23 fez inserir no texto constitucional quanto à necessária observância dos princípios da simplicidade, transparência, justiça tributária, neutralidade, cooperação e defesa do meio ambiente.

No que diz respeito às novas regras relativas ao cumprimento de obrigações acessórias, o PLP 68/24 propõe excelentes inovações, tais como o cadastro único de contribuintes, a unificação das notas fiscais, o preenchimento automático de declarações (com a ressalva de que, diversamente do que dispõe o PLP,  a utilização dos documentos assim preenchidos dependerá de expressa anuência por parte do contribuinte), a possibilidade de centralização da apuração e compensação de créditos e débitos centralizada em um único estabelecimento do contribuinte.

Contras

Se esses aspectos da reforma trazem alento aos contribuintes, há outros que são geradores de indesejada perplexidade ou, no mínimo, de intensa preocupação.

O primeiro desses aspectos diz respeito à forma inadequada como as discussões dessa disruptiva reforma da tributação do consumo estão se dando, tanto no Congresso quanto no Ministério da Fazenda.

No Congresso, já tivemos oportunidade de demonstrar neste espaço o mais absoluto açodamento com que a PEC 45/19 foi examinada e votada na Câmara dos Deputados, sob a presidência do deputado Arthur Lira.

Essa injustificada precipitação deu no que vimos: a aprovação de uma emenda constitucional (EC 132/23) marcada por equívocos, com a criação de:

(a) normas desestruturadas e topograficamente confusas, com regras sobre um mesmo tema (regimes especiais, por exemplo) sendo reguladas ora no texto constitucional (regimes específicos de tributação), ora no âmbito da EC 132/23 (regimes diferenciados), ora em ambos os textos (regimes favorecidos);

(b) normas tecnicamente equivocadas, como aquela que condiciona os créditos de não cumulatividade ao pagamento do imposto pelo elo anterior da cadeia; e

(c) normas inusitadas, como aquela cuja introdução no texto da PEC 45/19 ocorreu já no curso da sua votação na Câmara dos Deputados, conferindo competência aos estados para, por meio de uma esdrúxula contribuição, tributar produtos primários e semielaborados, entre eles o feijão, que integra a cesta básica…

Grupos de trabalho

A regulamentação das novas regras está sendo, agora, elaborada no âmbito do Ministério da Fazenda, por 19 grupos de trabalho (GTs), de cuja composição participaram exclusivamente representantes das Fazendas dos três níveis da Federação. Apesar de solicitações nesse sentido, não foram admitidos nesses GTs quaisquer representantes da sociedade civil ou das diversas categorias de contribuintes, dos mais variados setores.

Não fossem os debates ocorridos no âmbito dos denominados GTs paralelos, criados pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE) e da União das Frentes Parlamentares, com o indispensável apoio do grupo Mulheres no Tributário, a sociedade civil não teria tido qualquer espaço de fala para manifestar-se sobre os seus anseios, no que diz respeito às novas regras de tributação.

Essa ausência de diálogo culminou com a apresentação de projetos ao Congresso Nacional, tanto pelo governo quanto pelas frentes parlamentares.

Split payment

O projeto entregue pelo governo (PLP 68/24), além de conter espantosa quantidade de dispositivos (499 artigos) — absolutamente incompatível com a eliminação da complexidade que antes se prometia —, deixa muito a desejar no que tange à clareza das suas disposições. Senão, vejamos a forma pouquíssimo clara com que o artigo 50 conceitua o tão controvertido “split payment”:

Art. 50. O arranjo de pagamento que disciplina serviço de pagamento baseado em instrumento de pagamento eletrônico deverá estipular que, nas transações de pagamento relacionadas a operações com bens ou com serviços, haja vinculação entre as informações da transação e os documentos fiscais relativos às operações e, quando for o caso, os valores do IBS e da CBS.

Complicado, não?

split payment nada mais é do que o procedimento eletrônico pelo qual o pagamento de valores pelo adquirente ao fornecedor, em cada elo da cadeia de circulação de mercadorias e serviços, é realizado de forma dividida, a fim de que o montante correspondente ao preço da mercadoria ou serviço seja direcionado ao seu fornecedor, e o montante correspondente ao tributo por ele devido seja, de imediato, recolhido ao órgão responsável pelo registro dos créditos e débitos inerentes a cada operação, bem como pelo controle de saldos devedores e/ou credores formados em cada período de apuração.

Essa técnica foi testada na Europa, não de forma abrangente como se pretende aplicá-la no Brasil, mas somente em algumas operações e/ou setores específicos.  E, mesmo assim, a experiência foi malsucedida. De fato, em estudo encomendado à Deloitte no âmbito da União Europeia, restou evidenciada a desvantajosa relação custo/benefício decorrente da sua implementação. Tanto assim, que países como a Polônia e a Bulgária, entre outros, desistiram da sua adoção.

Ademais, esse sistema, além de prejudicar o fluxo financeiro das empresas envolvidas, impõe-lhes o pagamento do tributo, mesmo que não concordem com a sua legalidade.  Com efeito, caso o contribuinte discorde da respectiva incidência, seja por que motivo for, só lhe restará repetir o indébito. É a adoção do indesejado solve et repete como forma exclusiva de discussão da legalidade das cobranças feitas. Os autos de infração relacionados aos dois tributos criados serão instrumentos esvaziados nesse novo modelo.

Doações

Outro aspecto causador de preocupação no PLP do governo são as previsões nele constantes de que doações passarão a ser tributadas pelo IBS/CBS, numa flagrante invasão da competência privativa dos estados para fazer incidir o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) nesses negócios jurídicos.

De fato, a competência compartilhada entre estados e municípios para a cobrança do IBS não permite que qualquer deles possa, por meio do novo imposto, tributar negócios jurídicos originariamente atribuídos exclusivamente à competência do outro.

O que se compartilha é tão somente a competência relativa à incidência do IBS, e não a competência tributária outorgada a ambos os entes políticos de forma indiscriminada.

No que concerne à CBS, a invasão perpetrada pela União Federal é ainda mais flagrante.

Eliminar os equívocos

Enfim, são múltiplas e variadas as preocupações e perplexidades que o texto desse PLP nos traz. Certamente, nós nos ocuparemos delas em diversas outras ocasiões neste espaço.

Por ora, resta-nos buscar convencer os parlamentares da necessidade de que sejam eliminados os equívocos cometidos, para que, no futuro, não tenhamos que recorrer ao Judiciário com a mesma finalidade.

Fonte: Conjur

Simplificação da linguagem no Legislativo é medida urgente e necessária

O acesso à informação é um direito fundamental do cidadão, consagrado na Constituição de 1988. No Brasil, porém, esse direito se vê comprometido pela linguagem muitas vezes complexa e inacessível utilizada na redação legislativa. Leis, decretos e outras normas jurídicas, muitas vezes elaboradas em jargões técnicos, dificultam a compreensão por parte da população, criando barreiras à participação social e à efetividade do Estado democrático de Direito.

Nesse contexto, a simplificação da linguagem no Legislativo brasileiro surge como um desafio urgente e necessário, visando tornar as leis mais claras, concisas e compreensíveis para o cidadão comum, permitindo que ele acompanhe o processo legislativo, exerça seus direitos e cobre dos seus representantes o cumprimento das leis.

Boas práticas

Como alento, dentro da esfera pública, é notável o avanço do Executivo com bem-vindos exemplos de como uma redação mais breve e acessível pode tornar o diálogo entre o cidadão e o Estado mais alcançável

O Portal Brasil oferece conteúdos em linguagem simples e acessível, com informações sobre serviços públicos, direitos do cidadão e legislação. O portal conta com recursos como glossários, FAQs e vídeos explicativos, facilitando a busca e compreensão das informações.

Já a Lei nº 14.129/2017 estabelece diretrizes para a comunicação pública clara, concisa e acessível dentro do contexto do Governo Digital. Aplicável a todos os órgãos e entidades da administração pública federal, ela tem como princípio basilar o uso da linguagem simples e direta em seus documentos, portais eletrônicos e serviços de atendimento ao cidadão, como forma de se aumentar a eficiência pública.

Por sua vez, a Lei nº 13.926/2019, conhecida como Lei da Simplificação da Linguagem, estabelece diretrizes para a comunicação pública clara, concisa e acessível. A lei aplica-se a todos os órgãos e entidades da administração pública federal, obrigando-os a utilizar linguagem simples e direta em seus documentos, portais eletrônicos e serviços de atendimento ao cidadão.

O Laboratório do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos LA-BORA! gov, criado em 2019 por servidoras públicas, é um que visa impulsionar a inovação e aprimorar a experiência dos servidores. Por meio de um ambiente colaborativo e experimental, o laboratório empodera os servidores como cocriadores de soluções, promovendo o bem-estar, o engajamento e a produtividade no serviço público, tudo isso com foco na geração de valor público e na melhor experiência para o cidadão.

Exemplos internacionais

Ainda dentro das boas práticas trazidas sobre simplificação da linguagem quando da elaboração legislativa, algumas inspirações internacionais se destacam pela robustez e impacto. Diversos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já implementaram iniciativas exitosas de simplificação da linguagem jurídica. No Canadá, por exemplo, o Canada.ca Content Style Guide, constantemente atualizado, estabelece princípios e diretrizes para a redação de leis em linguagem acessível, incluindo a utilização de vocabulário simples, frases curtas e estrutura lógica clara.

A Nova Zelândia, por sua vez, possui o Plain Language Act de 2023, que também busca tornar as leis mais compreensíveis, utilizando linguagem cotidiana e evitando termos técnicos desnecessários, alcançando também a pessoa do agente público, além do conteúdo por si só.

Para sair um pouco da tradição anglófona e francófona, já expoentes consolidados no movimento de plain language, e apresentar uma contribuição mais próxima da realidade brasileira em termos linguísticos, Portugal, com o Decreto-Lei n° 135/1999 estabelece medidas para a simplificação da linguagem administrativa, incluindo a utilização de linguagem clara, concisa e direta, a organização lógica dos textos e a eliminação de jargões técnicos, além do Decreto-Lei 97/2019 que aplicou os mesmos princípios dentro dos tribunais portugueses, favorecendo uma comunicação, em todos os seus atos, mais acessível às partes envolvidas.

Possíveis repercussões

O que percebemos com essas práticas são benefícios mensuráveis e replicáveis no contexto brasileiro da simplificação, considerando as devidas adaptações necessárias à realidade do país. Dentre estes benefícios, podemos citar:

  • Maior acesso à informação: os cidadãos teriam mais facilidade para compreender as leis, seus direitos e deveres, o que lhes permitiria participar mais ativamente da vida pública e cobrar dos seus representantes o cumprimento das leis.
  • Maior transparência: a linguagem clara e acessível tornaria o processo legislativo mais transparente, permitindo que a população acompanhe as discussões e decisões dos parlamentares de forma mais dialógica e equilibrada.
  • Maior efetividade das leis: normas mais compreensíveis teriam maior chance de serem cumpridas, uma vez que os atores da sociedade brasileira teriam mais clareza e segurança os sobre seus direitos e deveres.
  • Redução de litígios: a linguagem clara e precisa nas leis poderia reduzir o ativismo judicial, considerando o potencial para diminuição de dúvidas sobre a interpretação normativa.
  • Melhoria da imagem e aumento da confiança institucional: a simplificação da linguagem contribuiria para melhorar a imagem do Poder Legislativo junto à população, tornando-o mais próximo e acessível aos cidadãos, que ainda têm como referência máxima de governabilidade o Executivo.

Dentre os percursos a serem trilhados dentro do Brasil, ainda assim é importante ressaltar que a liberdade de expressão, atributo inerente à linguagem e à aplicação prática da lei, encontra-se em momento de ascensão, como trazido pelo Global Expression Report de 2024. Vindo de um contexto de liberdade mais restrita para aberto, o Brasil, junto com Fiji, Níger, Sri Lanka e Tailândia, evoluíram no quesito, o que afirma a importância, dentre vários aspectos considerados, do papel da legislação em um cenário mundial agravado por fake news e desinformação [1].

Obstáculos

Todavia, ainda que os benefícios da simplificação da linguagem repercutam em contextos de maior acessibilidade informativa, e cada vez mais tenhamos sólidos movimentos em prol dessa maior transparência, notadamente no Executivo e no Judiciário, existem alguns desafios a serem superados quanto à simplificação por parte do Legislativo

O primeiro deles, é a resistência à mudança, pois a cultura jurídico-política tradicional é marcada pelo uso de linguagem complexa, cerimonial. Essa forma de comunicação emula a arquitetura parlamentar do plenário com os parlamentares posicionados de frente à Mesa, o que ressalta a sua supremacia. O projeto Parliament já documentou os modelos de plenário no mundo e as consequências sobre a forma da política via interação entre os parlamentares.

Outro obstáculo é a falta de expertise: muitos profissionais do direito não possuem o conhecimento e as habilidades necessárias para redigir textos em linguagem clara e acessível. Essa constatação, evidencia a necessidade de treinamento e o investimento na formação de profissionais especializados em elaboração legislativa clara e simples que considere o contexto de aplicação da lei. A atualização da padronização de normas ( manuais de redação) exige o estabelecimento de normas e diretrizes para a redação de leis em linguagem clara e acessível, com o fim de garantir a uniformidade e a qualidade dos textos.

A outra ação é no sentido de modificar os currículos das Faculdades de Direito com a inclusão de disciplinas sobre elaboração legislativa que considerem o seu aspecto informacional, comunicacional nos diversos cenários existentes na Federação brasileira.

Urgente e necessário

A simplificação da linguagem no Poder Legislativo brasileiro, ainda que tenhamos o marco da Lei Complementar 95/1998, apresenta-se como um desafio urgente e necessário para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e participativa. Inspirando-se nas experiências de sucesso de outros países e superando, de forma colaborativa os obstáculos existentes, o Brasil pode dar um passo importante para tornar as leis mais acessíveis à população, fortalecendo o Estado Democrático de Direito. Uma política de boa legislação, um verdadeiro “Pro leg”, “Quali Leg”, asseguraria uma posição mais permanente para o Brasil, no reconhecimento tanto nacional quanto internacionalmente, no cenário de legislações, transparentes, acessíveis e inteligíveis.

E é claro, fortaleceria o espaço republicano, representado pelos Legislativos de toda a federação brasileira.


[1] Importante destacar que a escala usada para avaliar a liberdade de expressão varia de “crise” para “altamente restrita”, “restrita”, “menos restrita” e, finalmente, “aberta”. O Brasil realizou um salto significativo, diferentemente dos outros países que apresentaram melhorias, por saltar a fase “menos restrita”, indo diretamente para “aberta”.

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STJ vai definir início dos juros por danos morais a anistiado político

A controvérsia, cadastrada como Tema 1.251 na base de dados do STJ, está em “definir o termo inicial dos juros de mora, nos casos em que reconhecido judicialmente o direito à indenização por danos morais a anistiado político ou seus sucessores, nos termos da Lei 10.559/2002″.

Dinheiro, reais, real, imposto
A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça afetou dois recursos especiais de relatoria do ministro Afrânio Vilela para julgamento pelo rito dos repetitivos.

O colegiado decidiu suspender o trâmite de todos os processos individuais ou coletivos, na segunda instância ou no STJ, que versem sobre a mesma matéria e nos quais tenha havido a interposição de recurso especial ou de agravo em recurso especial — observada a orientação do artigo 256-L do Regimento Interno do STJ.

Segurança e transparência

No REsp 2.031.813, a União defende que os juros moratórios incidentes na indenização por danos morais, em caso de anistiado político, devem ser contabilizados a partir do arbitramento da condenação. Subsidiariamente, requer a aplicação dos juros a partir da data da citação. Por outro lado, o indenizado pede a incidência dos juros desde a data do evento danoso.

De acordo com o ministro Afrânio Vilela, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas do STJ constatou a existência de dois acórdãos e 153 decisões monocráticas sobre o assunto nas turmas que compõem a 1ª Seção.

O relatou verificou ainda que apenas no âmbito do acordo de cooperação entre a Advocacia-Geral da União e o STJ, nos anos de 2021 e 2022, foram distribuídos ao menos 55 processos relacionados à matéria.

“A tese a ser adotada contribuirá para oferecer maior segurança e transparência na solução da questão pelas instâncias de origem e pelos órgãos fracionários desta corte, porquanto o tema ainda não recebeu solução uniformizadora, concentrada e vinculante sob o rito especial dos recursos repetitivos, apesar de ser recorrente na jurisprudência de ambas as turmas que compõem a Primeira Seção do STJ”, disse Afrânio Vilela.

Recursos repetitivos

O Código de Processo Civil regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como saber a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

REsp 2.031.813
REsp 2.032.021

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A inconstitucional dupla incidência de ITBI e CIBS na venda de imóveis

Aconteceu na semana passada o 3º Congresso do IAT (Instituto de Aplicação do Tributo), presidido pelo incansável professor Tácio Lacerda Gama. Muitas opiniões surgiram nos diversos painéis do evento em decorrência das inúmeras modificações tributárias ocorridas em nosso ordenamento jurídico, no âmbito da tributação do consumo, da renda e da propriedade, com destaque para a recente EC 132, que ainda ocasionará muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

Um dos debates envolveu a possibilidade de superposição entre a incidência da CBS e do IBS (que, simplificadamente já grafo como CIBS) e o ITBI em operações de compra e venda de imóveis.

A hipótese é simples. Uma construtora vende um imóvel para um indivíduo e as normas municipais preveem a incidência de ITBI, por força do artigo 156, II, CF. Ocorre que também está prevista a incidência de IBS (artigo 156-A, parágrafo 1º, I, CF), embora esteja sujeito a regime específico de tributação (artigo 156-A, parágrafo 6º, II, CF), o que também se aplica à CBS (artigo 195, parágrafo 16).

O PLP 68 prevê a incidência da CIBS sobre a alienação de bens imóveis, inclusive em caso de incorporação imobiliária (artigo 234), tendo por base de cálculo o valor da operação (artigo 239), que é o mesmo utilizado para o ITBI. Observa-se, contudo, que a base de cálculo da CIBS é até mesmo mais ampla do que a do ITBI, pois prevê sua incidência inclusive sobre os juros do financiamento imobiliário (artigo 239, parágrafo 1º, I). Identifica-se um enorme âmbito de superposição, mas a base de cálculo da CIBS é mais ampla que a do ITBI.

Há inconstitucionalidade? Entendo que sim, de forma ainda potencial, pois o PLP 68 é, por ora, apenas um projeto de lei complementar. Caso aprovado tal qual proposto, diversas normas constitucionais e jurisprudência assente do STF ampararão tal arguição de inconstitucionalidade.

Como corrigir isso durante a tramitação do PLP? Uma hipótese é a de abater o que for pago de ITBI do montante de CIBS, uma vez que a base de cálculo desta é mais ampla do que daquela. Existem precedentes nesse sentido no âmbito das taxas ambientais.

Logo, dá para corrigir, pois ainda há tempo

O que não pode ocorrer é o terrorismo verbal que vem grassando, sob o argumento de que “caso alguma coisa seja alterara no PLP, a alíquota será maior do que 26,5%”. Ora, nenhum cálculo  absolutamente nenhum  foi disponibilizado de forma oficial para debate sobre essa alíquota. Da mesma maneira, nenhuma demonstração de impacto econômico foi feito sobre o projeto de reforma  mas, como já foi aprovada e transformada na EC 132, trata-se de página virada.

No mesmo sentido, não dá para se jogar fora toda a doutrina tributária “sob pena de acabar com a reforma aprovada”, como ouvi em um dos painéis. O orador se referia à doutrina sobre competência tributária, dizendo-a ultrapassada, e, se acatada, seria o “fim de tudo”. Puro terrorismo verbal.

Não podemos colocar nos debates técnicos a polarização que se vê na sociedade, criando tributaristas do bem e tributaristas do mal, como muito bem expôs Raquel Preto, no painel em que participei.

Sigo na torcida para que esta reforma tributária dê certo, e estou colaborando, como se vê, na medida do possível.

E parabenizo o Tácio Lacerda Gama e sua equipe pelo evento, sucesso de público e de crítica, que ainda renderá muitos bons debates.

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Demandas judiciais por violência contra a mulher crescem 51% em três anos

Violência doméstica, lesão corporal, estupro, estupro de vulnerável, feminicídio. De acordo com o DataJud, painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça, esses e outros crimes reconhecidos no arcabouço legal brasileiro representaram em 2023 21% do total de demandas na área penal em apreciação pelo Judiciário brasileiro. No período de 2020 a 2023, o volume de demandas sobre o tema evoluiu 51% — mais que o dobro do incremento constatado por todas as demandas do Direito Penal juntas, que no mesmo intervalo de tempo cresceram 23%.

Um outro dado alarmante dos riscos de nascer mulher em um país profundamente machista como o Brasil foi identificado pela ministra Daniela Teixeira em novembro de 2023, assim que ela tomou posse no Superior Tribunal de Justiça. “No meu gabinete havia 511 processos relacionados a crimes de estupro de vulneráveis, ou seja, cometidos contra pessoas com menos de 14 anos. Esse dado foi o que mais me chocou desde a minha chegada na corte”, afirmou a ministra, mãe de uma menina de 10 anos e uma das cinco mulheres no universo de 31 ministros que atualmente integram a corte.

O volume escandaloso de demandas na Justiça relacionadas à violência contra a mulher reflete o cotidiano de uma população que é numericamente maioria no Brasil, mas que apesar disso sofre a cólera da minoria empoderada por séculos de patriarcado. De acordo com a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado em 2023, 30% das mulheres com 16 anos ou mais já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar praticada por homens. Conforme outro levantamento sobre o tema, “Feminicídios em 2023”, divulgado em março pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um total de 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil em 2022, um crescimento de 1,6% quando comparado ao ano anterior e maior número da série monitorada pela organização desde a tipificação do crime pela Lei 13.104, de 2015. O feminicídio é uma qualificadora do homicídio doloso, quando o crime decorre de violência doméstica e familiar em razão do menosprezo e da discriminação à condição feminina.

Para fazer o levantamento, o FBSP coleta e consolida as bases de dados dos feminicídios registrados pelas Polícias Civis dos Estados e do DF, que incluem informações detalhadas sobre o perfil das vítimas, dos autores e as características do crime. Assim, é possível traçar o perfil das mulheres que tiveram a vida ceifada em função de gênero. Entre elas, 72% tinham entre 18 e 44 anos, 61% eram negras. Morreram assassinadas em 73% dos casos pelo parceiro ou ex-parceiro, 70% em sua própria residência, fatalmente feridas, em metade dos registros, por golpes de armas brancas. “O espaço da casa, ‘o asilo inviolável’ do qual a Constituição fala, não se apresenta como um espaço do lar, é um espaço de insegurança”, lamentou a secretária-geral do CNJ, juíza federal Adriana Alves do Santos Cruz em palestra para juízes e servidores do STJ no final de 2023. “Quando esses casos chegam à Justiça é porque tudo deu errado”, diz.

Não é por carência de legislação que o Brasil não consegue mitigar a violência cometida contra a população feminina. “A Lei 11.340/2006, batizada em homenagem a Maria da Penha, traduz a luta das mulheres por reconhecimento, constituindo marco histórico com peso efetivo, mas também com dimensão simbólica, e que não pode ser amesquinhada, ensombrecida, desfigurada, desconsiderada. Sinaliza mudança de compreensão em cultura e sociedade de violência que, de tão comum e aceita, se tornou invisível – ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’, pacto de silêncio para o qual a mulher contribui, seja pela vergonha, seja pelo medo”, disse a ministra Rosa Weber na ocasião de seu voto na ADC 19, julgada procedente por unanimidade do STF para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da lei, que vinha sofrendo resistência por uma parte de juízes e desembargadores.

Depois da Lei Maria da Penha, o Brasil ganhou uma série de outras normas concebidas a partir do debate entre a sociedade civil, o parlamento e o Judiciário, caso da Lei do Minuto Seguinte (Lei 12.845/2013), que oferece garantias a vítimas de violência sexual, como exames preventivos e informações sobre seus direitos, a lei que tipificou o crime de Violência Psicológica contra a Mulher (Lei 14.188/2021), a Lei do Feminicídio (Lei 1.463/2022), entre outras.

Mais recentemente duas importantes ferramentas foram adotadas no dia a dia do Judiciário brasileiro na busca por diminuir o número de casos de violência contra a mulher e como forma de evitar que ameaças, agressões atinjam um caminho sem volta. A primeira delas nasceu em 2020 numa parceria do CNJ com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP): o Formulário Nacional de Avaliação de Risco (Fonar) – Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. As 27 perguntas do documento ajudam a entender a situação da vítima, do agressor e o histórico de violência na relação entre ambos.

“O formulário retira muito da subjetividade. Às vezes, a mulher vai numa delegacia e nem mesmo ela lembra nem tem condições de saber se determinado episódio foi importante. O formulário auxilia a identificar os sinais mais evidentes de risco de violência”, explica Alice Bochini, vice-presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ) e membra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). “Adotado pelo Judiciário e pelo MP em 2021 o Fonar transformou-se na Lei 14.149”, tendo sua aplicação estendida a delegacias e entidades que integram a rede de apoio no atendimento a mulheres. Com as respostas do questionário, a autoridade policial e todo o Sistema de Justiça têm condições de requerer ou determinar, por exemplo, a concessão de medidas protetivas.

Segundo a juíza Adriana Cruz, entre as vítimas de feminicídio, em 2022, apenas 11% tinham medidas protetivas deferidas. “Precisamos pensar por que essa política pública judiciária não chegou para essas mulheres.” A medida protetiva de urgência foi criada no escopo da Lei Maria da Penha e é um meio importante para garantir uma proteção emergencial à mulher em situação de risco. No entanto, como demonstram dados dos últimos quatro anos, a concessão de medidas protetivas aponta tendência de queda. Segundo números do Painel de Monitoramento das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha, ferramenta do DataJud/CNJ, em 2020, do total de 347 mil solicitações feitas por mulheres em todo o Brasil, perto de 78% foram concedidas. Em 2023, as solicitações saltaram para 704 mil e as concessões caíram para 68% do total.

Na tentativa de garantir a efetividade destas medidas, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão colegiado ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicou em abril recomendação de uso de tornozeleira eletrônica nos agressores denunciados por violência doméstica e familiar contra a mulher. “Magistrados e magistradas deverão, ao determinar o monitoramento eletrônico, fundamentar a decisão, definir o perímetro de circulação, os horários de recolhimento e o prazo para reavaliação do uso. É mais um equipamento que permite manter os agressores distantes das vítimas”, explica a advogada Alice Bochini.

Outro importante instrumento estabelecido recentemente pelo Judiciário na luta para reduzir a violência contra a mulher é o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo CNJ como recomendação em 2021 e convertido em resolução em 2023 após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no paradigmático ‘caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil’.

Márcia Barbosa de Souza, uma jovem de 20 anos, negra e moradora de Cajazeiras, município a cerca de 450km de João Pessoa, vivia com o pai e uma irmã pequena na periferia da cidade. Em 1997, em uma viagem à capital paraibana em busca de trabalho, conheceu Aércio Pereira de Lima, 54 anos, casado e no exercício do quinto mandato como deputado estadual. No ano seguinte, de volta à João Pessoa, reencontrou o parlamentar. Estavam em um motel, de onde a moça falou pelo celular do deputado com diversas pessoas.

Apareceria morta no dia seguinte nos arredores de um bairro chique da cidade, com diversas escoriações e hematomas na região da cabeça e no dorso. Causa mortis, segundo laudo pericial: asfixia por sufocamento, resultante de ação mecânica.

A jovem Márcia é a personificação de incontáveis mulheres vítimas de feminicídio no Brasil. Teve a vida esmiuçada, foi julgada e até condenada como se fosse ela a criminosa. Protegido pelas garantias do mandato existentes na época, seu algoz só iria a júri popular em setembro de 2007, sendo condenado a 16 anos de reclusão. Ainda em liberdade, em meio ao recurso contra a sentença, teve um infarto e morreu. Mesmo não sendo mais deputado, recebeu homenagens de seus pares. Foi velado na sede da Assembleia Legislativa da Para-íba como se herói fosse.

Paradigma

“Foi a primeira condenação da corte ao Estado brasileiro concernente integralmente à temática de violência contra a mulher”, escreveu em artigo na revista eletrônica ConJur a delegada da Polícia Civil de Pernambuco Bruna Cavalcanti Falcão. “Não se pode ignorar que as decisões proferidas nesse caso e em outros que tramitaram perante a comissão e a corte refletiram em relevantes transformações sociais, notadamente no fortalecimento do sistema de enfrentamento à violência contra a mulher. Isoladamente, no entanto, não se prestam a revoluções”, analisou.

A partir da condenação na Corte Internacional, o protocolo passou a ser um imperativo legal. “De observância por toda a magistratura”, salienta a secretária-geral do CNJ, Adriana Cruz, que atua em alguns momentos como uma porta voz da norma, elaborada por um grupo de trabalho com juízes e juízas de diferentes segmentos do Judiciário, tendo como modelo o protocolo sobre o mesmo tema feito pelo México, também condenado pelo tribunal interamericano. Além de um chão teórico, o protocolo é composto por um banco de decisões com aplicação da norma, uma espécie de “boas práticas” para inspirar integrantes do Judiciário na tomada de decisões. A ideia do Comitê para Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero, encampado pelo CNJ desde a gestão do ministro Luiz Fux, é sensibilizar e capacitar juízes para a incorporação do protocolo no seu dia a dia.

Na primeira reunião do comitê, em dezembro de 2023, uma das informações registradas na ata do encontro não era das mais alvissareiras: “Sobre a capacitação da magistratura, foi relatado que a Enfam possui um curso básico sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e que realizou essa capacitação para 25 juízes e juízas de diversos locais do país, em turma formada majoritariamente por mulheres, consignando-se que as vagas inicialmente oferecidas não foram todas preenchidas.”

Priorizar o julgamento dos processos relacionados ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres é o item 8 das metas nacionais aprovadas durante o 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em dezembro de 2023 em Salvador. Coube no planejamento para 2024 atribuir ao STJ o julgamento de 100% dos casos relativos aos temas distribuídos até 2022, enquanto na Justiça Estadual a apreciação de 75% dos processos de feminicídio distribuídos até 31/12/2022.

Em 1º de agosto de 2023, coube ao STF, por unanimidade, pôr a pá de cal que faltava numa daquelas excrescências que perduravam em decisões judiciais Brasil afora: a tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. “Hoje, é preciso que isso [matar ou agredir em legítima defesa da honra] seja extirpado inteiramente”, afirmou em seu voto a ministra Cármen Lúcia. “Como disse, mais do que uma questão de constitucionalidade, tendo como base exatamente a dignidade humana, conforme aqui sustentado como fundamento dos votos até agora exarados, estamos falando de dignidade humana no sentido próprio, subjetivo e concreto de uma sociedade ainda hoje machista, sexista, misógina e que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são: mulheres donas de suas vidas”, resumiu a ministra.

JURISPRUDÊNCIA

TESES COM PERSPECTIVA DE GÊNERO DEFINIDAS PELO STJ

1 OITIVA DA VÍTIMA
A vítima de violência doméstica deve ser ouvida para que se verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas protetivas, ainda que extinta a punibilidade do autor.
AgRg no REsp 1.775.341/SP
Relator: Sebastião Reis Julgado em 12/4/2023 na 3ª Seção

2 PROTEÇÃO INDISPONÍVEL
A medida protetiva de urgência, que busca resguardar interesse individual da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher, tem natureza indisponível e poderá ser requerida pelo Ministério Público.
REsp 1.828.546/SP
Relator: Jesuíno Rissato Julgado em 12/9/2023 na 6ª Turma

3 PALAVRA DA VÍTIMA
No contexto de violência doméstica contra a mulher, a decisão que homologa o arquivamento do inquérito deve observar a devida diligência na investigação e os aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima.
RMS 70.338/SP
Relatora: Laurita Vaz Julgado em 22/8/2023 na 6ª Turma

4 CORPO DE DELITO
No contexto de violência doméstica, é possível a dispensa do exame de corpo de delito em crime de lesão corporal na hipótese de subsistirem outras provas idôneas da materialidade do crime.
AgReg no AREsp 2.078.054/DF
Relator: Messod Azulay Julgado em 30/5/2023 na 5ª Turma

5 AGRAVANTE
A aplicação da agravante prevista no art. 61, II, “f”, do Código Penal em condenação pelo delito de lesão corporal no contexto de violência doméstica (art. 129, § 9º, do CP), por si só, não configura bis in idem.
AgRg no REsp 2.062.420/MS
Relator: Joel Paciornik Julgado em 20/12/2023 na 5ª Turma

6 INTENÇÃO DE MATAR
A qualificadora do feminicídio, art. 121, § 2º-A, II, do Código Penal, deve incidir nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar por possuir natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente.
AgRg no AREsp 2.358.996
Relatora: Laurita Vaz Julgado em 20/10/2023 na 6ª Turma

7 QUALIFICAÇÃO DE FEMINCÍDIO
É inviável o afastamento da qualificadora do feminicídio pelo Tribunal do Júri mediante análise de aspectos subjetivos da motivação do crime, dada a natureza objetiva da qualificadora, ligada à condição de sexo feminino.
AGRG NO HC 808.882/SP
Relator: Rogerio Schietti Julgado em 30/8/2023 na 6ª Turma

8 DEVER DE CUIDADO
Não há bis in idem pela incidência da agravante do art. 61, II, “e”, do Código Penal – que tutela o dever de cuidado nas relações familiares -, e a qualificadora do feminicídio.
AgRg no REsp 2.007.613/TO
Relator: Ribeiro Dantas Julgado em 10/03/2023

9 CUSTÓDIA CAUTELAR
A manifestação da ofendida sobre a revogação de medidas protetivas de urgência é irrelevante para a manutenção da prisão preventiva do acusado, pois a custódia cautelar, fundada na gravidade concreta da conduta, não está na esfera de disponibilidade da vítima de violência doméstica.
AGRG NO HC 768.265/MG
Relator: Rogerio Schietti Julgado em 21/12/2023

10 AUMENTO DE PENA
No contexto de violência doméstica contra a mulher, é possível a exasperação da pena-base quando a intensidade da violência perpetrada contra a vítima extrapolar a normalidade característica do tipo penal.
AGRG NO ARESP 2.384.703/SP
Relator: Reynaldo Soares da Fonseca Julgado em 27/11/2023, na 5ª Turma

11 MAL DO CIÚME
O ciúme é fundamento apto a exasperar a pena-base, pois é de especial reprovabilidade em situações de violência de gênero, por reforçar as estruturas de dominação masculina.
AGRG NO ARESP 2.398.956/SP
Relator: Sebastião Rei Julgado em 28/11/2023, na 6ª Turma

12 VEDAÇÃO DE MULTA
A vedação constante do art. 17 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) obsta a imposição, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de pena de multa isoladamente, ainda que prevista de forma autônoma no preceito secundário do tipo penal imputado.
REsp 2.049.327/RJ
Relator: Sebastião Reis Julgado em 14/6/2023 na 3ª Seção

13 PRISÃO DE GESTANTE
O afastamento da prisão domiciliar para mulher gestante ou mãe de filho menor de 12 anos exige fundamentação idônea e casuística, independentemente de comprovação de indispensabilidade da sua presença para prestar cuidados ao filho.
AGRG NO HC 805.493/SC
Relator: Antonio Saldanha Palheiro Julgado em 20/6/2023 na 6ª Turma

14 CIRURGIA TRANS
É obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual, pois se trata de procedimentos prescritos por médico assistente, reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e listados no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS).
REsp 2.097.812/MG
Relatora: Nancy Andrighi Julgado em 21/11/2023 na 3ª Turma

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O cram down mitigado e a função social da empresa

A regulamentação da recuperação judicial no ordenamento jurídico pátrio se embasou fortemente no artigo 170 da Constituição (CF/88), na medida em que prevê que a ordem econômica será regida pela função social da propriedade, pela valorização do trabalho humano e pela livre iniciativa.

 

Nesse sentido, no direito pátrio, as empresas devem ser vistas não apenas como um mecanismo da livre iniciativa destinadas exclusivamente à obtenção de lucro, posto que também servem para a geração de empregos e renda, para a sociedade e para o poder público por intermédio do pagamento dos tributos relacionados com a atividade explorada.

Na Lei Federal nº 11.101/05, vislumbra-se a concretização dessas normas no princípio da preservação da empresa, consagrado no seu artigo 47, que aduz:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

A leitura desse dispositivo permite concluir que a recuperação judicial não tem por objetivo único tutelar os interesses dos credores, devendo esses se adequarem à manutenção da fonte produtiva e dos empregos dos trabalhadores, dentre outros.

Marcelo Sacramone [1] aduz que a Lei Federal nº 11.101/05 rompe com a tradição eminente liquidatória das legislações pretéritas para estabelecer uma visão conciliatória de defesa dos credores, com a preservação das empresas e os interesses de terceiros, consumidores, empregados e outros.

Por outro lado, o artigo 45 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (LFRE) aduz a forma como o plano de recuperação judicial (PRJ) será devidamente aprovado, exigindo-se o alcance dos quóruns da maioria dos presentes de cada uma das quatro classes, bem como mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia, para os titulares de créditos com garantia real e quirografários.

Esse dispositivo é o responsável por corporificar o princípio da soberania da vontade dos credores na recuperação judicial.

Aprovação forçada de PRJ

Ainda que não atinja esse quórum, o artigo 58, parágrafo 1º da LFRE previu a possibilidade da aprovação forçada do PRJ mediante o “cram down” à brasileira, desde que preenchidos critérios mais brandos, como voto favorável de mais da metade de todos os créditos presentes à assembleia, reprovação em apenas uma das classes de credores votantes e voto favorável de 1/3 dos credores na classe que houver a rejeição.

Ainda assim, pode-se imaginar situações em que a não aprovação do plano decorra exclusivamente da arbitrariedade de algum(ns) dos credores, o que poderia macular o postulado da preservação da empresa do artigo 47 da LFRE.

Marcelo Sacramone [2] esclarece que a aprovação por intermédio do quórum alternativo previsto no artigo 58, parágrafo 1º da LFRE não se confunde com o “cram down” americano, já que a legislação brasileira previu um conjunto de requisitos mais brandos para que o plano fosse aceito pela própria assembleia de credores, segundo o seu juízo de conveniência e oportunidade, não havendo a interferência do magistrado nessa situação.

Já o “cram down” americano ocorre quando o próprio juiz aprova o PRJ apresentado pelo credor, mesmo não tendo havido o preenchimento dos requisitos legais, havendo nitidamente uma aprovação “goela abaixo” do planejamento formulado pela recuperanda. Esse instituto se aproxima do “cram down” mitigado, que vem sendo autorizado, em situações excepcionais, pelo STJ.

A Lei Federal nº 14.112/20 incluiu o parágrafo 6º no artigo 39 da LFRE, que previu expressamente a nulidade do voto abusivo, quando exercido pelo credor com um propósito manifestamente ilícito para si ou para terceiro.

A lógica da abusividade [3] caminha no sentido de que o credor deve demonstrar que a proposta exposta no PRJ seria mais desvantajosa de que eventual situação sua diante de uma virtual falência, sob pena de não se mostrar razoável o seu voto contrário à aprovação, já que a decretação da falência é a decorrência lógica da rejeição do plano, situação essa que também se denomina de irracionalidade econômica do voto.

Outra situação que demonstra o abuso do direito de voto do credor ocorre quando há o manifesto desinteresse em se debater os termos do PRJ, com a ausência de questionamentos ou oposição de contrapropostas por parte do titular do direito, evidenciando a ilicitude da finalidade do ato do titular do direito.

Por oportuno, verifica-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) já declarou a nulidade do voto do credor em situações semelhantes, confira-se:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. Nulidade de voto, determinada a realização de nova AGC. Decisão mantida. Ausência de racionalidade econômica e interesse em negociar. Voto meramente emulativo. §6º do art. 39 da LRF. Prevalência do princípio da preservação da empresa. Art. 47 da LRF. Doutrina e precedentes. RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2144262-09.2023.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado 1ª RAJ/7ª RAJ/9ª RAJ – 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem; Data do Julgamento: 13/12/2023; Data de Registro: 13/12/2023)

Agravo de Instrumento. Recuperação judicial. Insurgência contra a decisão que declarou nulo o voto da agravante/credora, fundado no abuso de direito. Direito ao voto que não é absoluto. Aprovação do plano que, no caso, dependia, exclusivamente, do voto favorável da recorrente. Agravante que se opôs à aprovação por mero desinteresse, sequer apresentando fundamentos jurídicos ou questionando as suas cláusulas. Opção pela quebra, defendida pela recorrente, que, além de revelar comportamento excessivamente individualista, vai de encontro com os princípios da função social, preservação da empresa e estímulo à atividade econômica, frustrando o próprio objetivo da lei de regência. Decisão mantida. Agravo desprovido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2208230-13.2023.8.26.0000; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado 1ª RAJ/7ª RAJ/9ª RAJ – 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem; Data do Julgamento: 18/11/2023; Data de Registro: 18/11/2023) (grifei).

Ou seja, o credor tem o dever de cooperar com as negociações ainda que se oponha ao PRJ, apresentando contrapropostas, fundamentos jurídicos explicitando a sua contradição a proposta apresentada pelo devedor, demonstrando interesse na negociação, sob pena do seu comportamento ser tido como abusivo, resultando na nulidade do seu voto contrário.

Onde pode estar o veto ao PRJ

A situação se agrava mais quando o credor que atua abusivamente possui mais de 50% de determinada classe, o denominado supercredor [4], de modo que o seu posicionamento contrário possa implicar em um verdadeiro veto ao PRJ, em uma atuação que simplesmente nega a vigência do princípio da função social em âmbito empresarial, previsto no artigo 170 da CF/88.

O que se percebe é que a aprovação do PRJ “goela abaixo” pode ocorrer tanto mediante a flexibilização dos requisitos do artigo 58, parágrafo 1º da LFRE, quanto mediante a declaração da abusividade dos votos dos credores, acarretando a aceitação do plano, dando-se preponderância ao princípio da preservação da empresa [5].

Efetivamente esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que orienta que os juízes pautem os seus posicionamentos na apreciação da rejeição do PRJ com prudência e moderação, verificando-se a possibilidade efetiva do soerguimento das empresas, tendo em conta o princípio da preservação das cooperações.

Seguindo essa linha de entendimento, cita-se o AgInt no AREsp 1551410/SP, da relatoria do ministro Antônio Carlos Ferreira:

[…]. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO. APROVAÇÃO JUDICIAL. CRAM DOWN. REQUISITOS LEGAIS. EXCEPCIONAL MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. DECISÃO MANTIDA.

1. A jurisprudência do STJ entende pela possibilidade de se mitigar os requisitos do art. 58, § 1º, da LRJF, para a aplicação do chamado ‘cram down’ em circunstâncias que podem evidenciar o abuso de direito por parte do credor recalcitrante.

“Assim, visando evitar eventual abuso do direito de voto, justamente no momento de superação de crise, é que deve agir o magistrado com sensibilidade na verificação dos requisitos do ‘cram down’, preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores” (REsp 1337989/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/05/2018, DJe 04/06/2018). […]. (AgInt no AREsp n. 1.551.410/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 24/5/2022.).

Posicionamento semelhante também foi manifestado pelo STJ no AREsp 1.551.410, em que o Banco do Brasil detinha 56% de uma das classes, vetando a aceitação do PRJ em situação de abusividade, o que acarretou na atuação do judiciário pela aprovação do plano mediante um autêntico “cram down” ao estilo americano, com a flexibilização das regras do artigo 58, parágrafo 1º do PRJ.

Portanto, o que se conclui diante do estudo apresentado é que um dos nortes mais importantes do instituto da recuperação judicial é o princípio da preservação da empresa, de modo que deve haver uma racionalidade na apreciação da rejeição do PRJ, impondo-se a aprovação por “cram down” por abusividade ou por flexibilizações brandas dos requisitos do artigo 58, parágrafo 1º da LFRE.


[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência – 3. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. P. 387.

[2] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência – 3. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. P. 523.

[3] Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-fev-08/abuso-do-direito-de-voto-do-credor-em-processos-de-recuperacao-judicial/>. Acesso em: 14 mai. 2024.

[4] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cram-down-e-o-abuso-do-direito-de-voto-do-super-credor-na-recuperacao-judicial-07122022>. Acesso em: 15 mai. 2024.

[5] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cram-down-e-o-abuso-do-direito-de-voto-em-assembleias-gerais-de-credores-18052023?non-beta=1>. Acesso em: 15 mai. 2024.

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TST valida geolocalização como prova digital de jornada de bancário

Por maioria de votos, a Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho cassou liminar que impedia que o Banco Santander utilizasse prova digital de geolocalização para comprovar jornada de um bancário de Estância Velha (RS). Segundo o colegiado, a prova é adequada, necessária e proporcional e não viola o sigilo telemático e de comunicações garantido na Constituição Federal. 

whatsapp mensagem telefone celular

 

Numa ação trabalhista ajuizada em 2019, o bancário — que trabalhou 33 anos no Santander — pedia o pagamento de horas extras. Ao se defender, o banco disse que o empregado ocupava cargo de gerência e, portanto, não estava sujeito ao controle de jornada. Por isso, pediu ao juízo da 39ª Vara do Trabalho de Estância Velha a produção de provas de sua geolocalização nos horários em que ele indicava estar fazendo horas extras, para comprovar “se de fato estava ao menos nas dependências da empresa”. 

O bancário protestou, mas o pedido foi deferido. O juízo de primeiro grau determinou que ele informasse o número de seu telefone e a identificação do aparelho (Imei) para oficiar as operadoras de telefonia e, caso não o fizesse, seria aplicada a pena de confissão (quando, na ausência da manifestação de uma das partes, as alegações da outra são tomadas como verdadeiras).

Violação de privacidade

Contra essa determinação, o bancário impetrou mandado de segurança no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) contra a determinação, alegando violação do seu direito à privacidade, “sobretudo porque não houve ressalva de horários, finais de semana ou feriados”.  Na avaliação do trabalhador, o banco tinha outros meios de provar sua jornada, sem constranger sua intimidade.

O Santander, por sua vez, sustentou que a geolocalização se restringiria ao horário em que o empregado afirmou que estaria prestando serviços. Portanto, não haveria violação à intimidade, pois não se busca o conteúdo de diálogos e textos. O TRT-4 cassou a decisão, levando o banco a recorrer ao TST. 

Sem quebra de sigilo

O ministro Amaury Rodrigues, relator do recurso, considerou a geolocalização do aparelho celular adequada como prova, porque permite saber onde estava o trabalhador durante o alegado cumprimento da jornada de trabalho por meio do monitoramento de antenas de rádio-base. A medida é proporcional, por ser feita com o menor sacrifício possível ao direito à intimidade. 

O ministro lembrou que a diligência coincide exatamente com o local onde o próprio trabalhador afirmou estar, e só se poderia cogitar em violação da intimidade se as alegações não forem verdadeiras. Quanto à legalidade da prova, o relator destacou que não há violação de comunicação, e sim de geolocalização. “Não foram ouvidas gravações nem conversas”, ressaltou.

Em seu voto, o ministro lembra que a Justiça do Trabalho capacita os juízes para o uso de tecnologias e utiliza um sistema (Veritas) de tratamento dos relatórios de informações quanto à geolocalização, em que os dados podem ser utilizados como prova digital para provar, por exemplo, vínculo de trabalho e itinerário ou mapear eventuais “laranjas” na fase de execução. 

“Desenvolver sistemas e treinar magistrados no uso de tecnologias essenciais para a edificação de uma sociedade que cumpra a promessa constitucional de ser mais justa, para depois censurar a produção dessas mesmas provas, seria uma enorme incoerência”, observou.

Ainda, segundo o relator, a produção de prova digital é amparada por diversos ordenamentos jurídicos, tanto de tribunais internacionais como por leis brasileiras, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet, que possibilitam o acesso a dados pessoais e informação para defesa de interesses em juízo.

Corrente vencida

Ficaram vencidos os ministros Aloysio Corrêa da Veiga e Dezena da Silva e a desembargadora convocada Margareth Rodrigues Costa. Para Veiga, a prova de geolocalização deve ter ser subsidiária, e não principal. No caso, ela foi admitida como primeira prova processual, havia outros meios menos invasivos de provar as alegações do empregado. 

Na sua avaliação, as vantagens da medida para provar a jornada não superam as suas desvantagens. “A banalização dessa prova de forma corriqueira ou como primeira prova viola o direito à intimidade”, concluiu”. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

ROT 23218-21.2023.5.04.0000

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Veja como cada estado usa o reconhecimento facial para fins policiais

Ainda que não haja regulamentação específica, parte dos estados brasileiros já utiliza mecanismos de reconhecimento facial para efetuar prisões. Aprovada em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê em seu artigo 4º a criação de uma lei complementar para regular o uso dessas informações para fins de segurança pública, mas, nesse período, não houve avanço dos projetos.

A ausência de norma geral fez com que cada estado tratasse de maneira distinta a sua aplicação. Dados levantados pela revista eletrônica Consultor Jurídico mostram que apenas cinco estados informam quantas pessoas já foram presas com o uso da biometria facial: Bahia, Sergipe, São Paulo, Rio de Janeiro e Roraima.

Ao todo, puxados pela Bahia, responsável por 90% das detenções, essas unidades da federação prenderam mais de 1,7 mil pessoas. Por outro lado, enquanto alguns estados como Paraná e Santa Catarina dizem não utilizar a biometria para fins policiais, outros informam que estão com estudos avançados e já dispõem de orçamentos milionários para investir em câmeras com esse propósito, como no caso do Tocantins.

É importante ressaltar que as secretarias estaduais respondem pela atuação das Polícias Civil e Militar, e não pela segurança em âmbito municipal. Segundo dados do projeto O Panóptico, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), há mais de 200 projetos municipais ativos que tratam do tema, alguns deles com investimentos milionários e boa parte associada às Guardas Civis.

 

Leia a seguir como cada Secretaria estadual de Segurança se posiciona no uso de reconhecimento facial para fins policiais (Paraná, Santa Catarina, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Piauí e Rio Grande do Norte informaram que não usam a tecnologia em âmbito estadual para suas polícias; Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Sul e Amapá não responderam as perguntas):

São Paulo

A Secretaria de Segurança Pública utiliza a tecnologia de reconhecimento facial como apoio durante as ações em eventos de grande porte. Com relação à biometria facial, a pasta mantém uma parceria com o Allianz Parque (estádio do Palmeiras) que já auxiliou na captura de 52 procurados pela Justiça. Além disso, 56 pessoas que descumpriam medidas judiciais, cinco torcedores impedidos pelo Estatuto do Torcedor de frequentar estádios e 12 pessoas com uso de documentos falsos foram identificadas. Também foram localizados 275 desaparecidos por meio da tecnologia. Ao todo, o programa já foi utilizado em 275.687 torcedores.

Rio de Janeiro

O estado usa o reconhecimento facial para fins de segurança pública desde o último Ano Novo e já prendeu mais de 130 pessoas com o auxílio da tecnologia.

Espírito Santo

O governo do estado, por meio da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social, diz que há previsão de aquisição de tecnologia de leitura facial para ser integrada às câmeras do programa Cerco Inteligente. Os trâmites devem ser concluídos até o fim deste ano.

Minas Gerais

O governo, por meio da Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), testou, durante o Carnaval deste ano, uma tecnologia de reconhecimento facial. O software cruzou informações do banco de imagens do sistema de gestão prisional do Departamento Penitenciário de Minas Gerais com as imagens captadas pelas seis câmeras de longo alcance e de alta definição que foram instaladas nas duas carretas do Centro Integrado de Comando e Controle Móvel, em pontos estratégicos da capital, Belo Horizonte.

A tecnologia foi bem avaliada pelos operadores da segurança pública. O objetivo é fazer outros testes para que, futuramente, seja tomada uma decisão sobre o seu uso perene em diversas ações rotineiras da segurança pública mineira. Não houve prisões durante o período de teste.

Mato Grosso

O reconhecimento facial está em fase de estudos para ser implantado no Programa Vigia Mais MT, do governo do estado, que está instalando 15 mil câmeras de monitoramento com inteligência artificial nos 142 municípios mato-grossenses.

Goiás

A secretaria goiana informou que, no momento, ainda não está trabalhando com reconhecimento facial e que o projeto está em estudo.

Roraima

A secretaria de Segurança Pública de Roraima informa que há uma licitação para a contratação das câmeras e do sistema de reconhecimento facial.

A pasta diz ainda que o sistema de reconhecimento facial foi utilizado de forma experimental em 2023 em dois grandes eventos (festas juninas e Feira-Exposição Agropecuária) como instrumento de segurança pública. Neles, as forças estaduais trabalharam de forma integrada no monitoramento e na captação de dados.

Nas duas ocasiões, foram utilizados como base de consulta dados da Secretaria da Justiça e Cidadania para saber se as pessoas monitoradas possuíam passagem pelo sistema prisional. Durante os eventos, 15 pessoas foram presas. Destas, 12 ainda continuam na prisão.

Acre

O método de reconhecimento é utilizado por biometria facial desde junho de 2022, por meio do aplicativo Apolo, diz a Secretaria de Segurança do estado. Não há como saber a quantidade de pessoas detidas, visto que o Apolo é somente uma ferramenta de consultas.

Pará

A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) diz que usa a tecnologia desde 2020, em 113 câmeras que são operadas por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop). Além do reconhecimento facial, o monitoramento por vídeo é usado na identificação de placas e veículos roubados e/ou adulterados. A Segup ressalta que nem todos os dados de foragidos são lançados no sistema. A pasta não informa quantas pessoas foram presas por meio da tecnologia.

Alagoas

Não utiliza reconhecimento facial, mas há estudos no estado para o uso da tecnologia para fins de segurança pública.

Bahia

O método é utilizado de forma efetiva para fins de segurança pública desde o ano de 2019, quando no Carnaval de Salvador foi feita a primeira prisão de uma pessoa com o uso das câmeras de reconhecimento facial pela Secretaria da Segurança Pública do estado. Desde então, foram presas 1.547  pessoas foragidas da Justiça em razão de mandado de prisão aberto disponibilizado no Banco Nacional de Mandados de Prisão do Conselho Nacional de Justiça.

Ceará

A secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) afirma que o uso do reconhecimento facial está em fase de teste. A tecnologia foi testada, inicialmente, em dois espaços com intensa movimentação de pessoas na Região Metropolitana de Fortaleza. É importante destacar que, quando a tecnologia for de fato utilizada no Ceará, será com o objetivo de identificar pessoas suspeitas de envolvimento em crimes, bem como pessoas com mandados de prisão em aberto e desaparecidos.

Dessa forma, serão utilizadas informações do Banco Nacional de Mandados de Prisão do CNJ, além da base de dados criminais. Há também a intenção de que a ferramenta seja usada para auxiliar no encontro de pessoas desaparecidas.

Maranhão

A Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) informa que tem investido em tecnologia para auxiliar na prevenção e no combate à criminalidade e que já faz uso de câmeras de reconhecimento facial, além de câmeras para a identificação de placas de veículos. A pasta diz ainda que essas novas tecnologias de combate ao crime são utilizadas pelo Centro de Informações de Operações de Segurança (Ciops) e pelo Instituto de Identificação (Ident), e que têm ajudado na identificação e prisão de criminosos. Ela, porém, não informa quantas pessoas foram presas com o uso da tecnologia.

Sergipe

A secretaria de Segurança de Sergipe informou que já fez oito detenções utilizando a tecnologia. Três pessoas foram presas por roubo, duas por homicídio, uma por receptação, uma por estelionato e uma pessoa por tráfico de drogas. A maior parte dessas prisões foi feita em eventos de grande porte, como na festa “Pré-Caju” e no aniversário da capital Aracaju.

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Nova era da parentalidade: como os seguros podem viabilizar o planejamento familiar

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, mulheres com 30 anos ou mais representaram 38% das novas mães, um avanço de 7,7% em comparação com 2010 e de 11,8% em relação ao ano 2000.

Já o percentual de mães que deram à luz entre 20 e 29 anos — em que pese ainda fossem a maioria – tem diminuído progressivamente: em 2000 e 2010 elas eram 54,5% e 53,1% das novas mães, respectivamente, e agora são 49,1% [1]. Esse fenômeno é denominado de parentalidade tardia [2], qual seja, a concretização da maternidade e da paternidade após a casa dos 20 anos.

Em que pese esse cenário, é fato que a genética não espera, uma vez que com essa idade há uma redução gradativa da taxa de fecundação das mulheres [3], o que implica a necessidade de serem buscados recursos biotecnológicos que viabilizem a realização do projeto parental, como a criopreservação de óvulos, fertilização in vitro e inseminação artificial [4].

O Relatório Sis Embrio, publicado pela Anvisa em 2020, revelou que, naquele ano, cerca de 100 mil embriões foram congelados, e a expectativa é que o conjunto de negócios envolvendo reprodução humana assistida movimente mais de US$ 20 bilhões até 2025 [5]. E embora esses sejam os mecanismos mais conhecidos atualmente, os altos custos dos tratamentos — a criopreservação e a fertilização in vitro custam cerca de R$ 30 mil por ciclo [6][7] — acabam por inviabilizar a concretização do planejamento parental, impedindo que não apenas mulheres e homens mais velhos, mas também casais homossexuais, transexuais, pessoas solteiras ou com problemas de fertilidade se vejam impedidos de exercer o seu direito fundamental à parentalidade e à procriação previstos no artigo 226, §7º da Constituição da República [8].

Seguros e a concretização do planejamento familiar

É nesse contexto, porém, que os seguros se revelam: enquanto um importante mecanismo viabilizador do planejamento familiar e do projeto parental por meio da democratização do acesso a essas técnicas.

O seguro se constitui como um instrumento de compartilhamento do risco, ou seja, a seguradora, mediante uma contraprestação (o prêmio), “garante as consequências patrimoniais de determinado risco que ameaça interesse legítimo do segurado” [9]. Aqui, o interesse legítimo é a concretização do planejamento familiar, que é ameaçado pelos altos custos dos tratamentos que viabilizam a parentalidade.

A Lei nº 9.656/1998, com a redação dada pela Lei nº 11.935/2009, disciplina em seu artigo 35-C que é obrigatório aos planos de saúde prestar atendimentos de planejamento familiar. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, em 2020, no Tema 1.067 [10], fixou que eles não são obrigados a custear tratamentos de fertilização in vitro [11]. Inobstante esse cenário, seguros com coberturas diversas podem ser oferecidos ao público e contratados não só pelos pais, mas também por clínicas e empresas, além de serem integrados às políticas públicas do governo.

Prática internacional

A seguradora japonesa Mitsui Sumitomo divulgou, agora em 2024, a comercialização de um seguro para óvulos não fertilizados cujo objetivo é proteger eventuais danos causados durante o transporte, congelamento e armazenamento. O prêmio será arcado pela clínica, sem repasse dos custos aos clientes, além de contar com subsídios financeiros do governo japonês, com vistas a aumentar a taxa de natalidade no país [12] [13]. Já em países da Europa, algumas clínicas viabilizam a contratação de programas que garantem a devolução do valor investido caso o interessado não tenha um filho dentro de 24 meses [14].

Além disso, aqui no Brasil já existem empresas que oferecem benefícios aos empregados que buscam concretizar a parentalidade. O LinkedIn, por exemplo, oferece um reembolso de até R$ 22 mil aos funcionários, por tentativa de fertilização. Já na PepsiCo, o benefício é de R$ 25 mil para qualquer tratamento de reprodução humana assistida e congelamento de óvulos, e no Mercado Livre, 70% dos custos da criopreservação de óvulos são arcados pela empresa [15]. A cobertura para apólices coletivas, figurando o empregador enquanto estipulante, portanto, é um meio viável.

Planejamento familiar como política pública e a atividade securitária

No que se refere à integração do Estado nessa dinâmica, é preciso destacar que o artigo 226, §7º da Constituição da República prevê que, além de ser de livre decisão do casal – o que aqui estendemos também às pessoas solteiras –, o planejamento familiar deve ser incentivado, mediante recursos educacionais e científicos que viabilizem o exercício desse direito fundamental [16]. E a atividade securitária pode ser um instrumento de viabilização de políticas públicas para auxiliar na efetivação desse dever estatal.

Segundo argumentam os autores Bruno Miragem e Luiza Petersen, além de estimularem a atividade econômica do país, os seguros devem ser levados em conta na criação de políticas de desenvolvimento que envolvam investimento público, de modo a resguardar os riscos financeiros associados [17] e contribuir para a redução das desigualdades sociais, tal qual previsto no artigo 170, VII da Constituição. Em contrapartida, caberá ao Estado atuar para fiscalizar a atividade da seguradora, e aferir o cumprimento das normas e das leis, além da efetiva realização dos princípios constitucionais.

Desse modo, é possível demonstrar que o seguro se articula com o objetivo de desenvolvimento nacional não apenas em relação à livre iniciativa e à ordem econômica brasileira, mas, além disso, pode auxiliar “[n]a ampla proteção dos direitos fundamentais” previstos na Constituição, se revelando enquanto um importante meio de concretização do exercício da autonomia privada [18] e, consequentemente, dos mais diversos projetos parentais.

Em razão disso, a democratização no acesso aos tratamentos de reprodução humana assistida e criopreservação de óvulos poderia ocorrer mediante o incentivo, pelo Estado, a programas de seguros que auxiliem nos custos financeiros dessas técnicas. A exemplo do que ocorre no Japão, o governo poderia firmar parcerias com instituições privadas e seguradoras, direcionando recursos para a contratação de seguros, mediante a inclusão dessas medidas na Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida (Portaria nº 3.149/2012), permitindo que mais pessoas tenham acesso a esses procedimentos, em razão do compartilhamento do risco econômico com as seguradoras.

Tipos de cobertura

Não obstante, pode-se dizer que os seguros não só viabilizam, mas integram o planejamento familiar. Isso porque diversos podem ser os tipos de seguro, com variadas coberturas ofertadas, a serem contratados pelos segurados de acordo com a sua realidade específica. Uma clínica de fertilidade nos Estados Unidos, por exemplo, viabiliza aos pacientes a contratação de três modalidades de seguro, cujas coberturas envolvem, a depender do plano escolhido, (1) procedimentos necessários para diagnóstico das causas de infertilidade, (2) tratamentos para estimular a ovulação e, posteriormente, a inseminação artificial, com alguns medicamentos inclusos, e (3) todos os tratamentos e medicamentos injetáveis, inclusive fertilização in vitro, com um limite de tentativas [19].

Podem ser adquiridas coberturas apenas para a realização de exames para verificar os tratamentos possíveis para a gestação, como já é coberto por diversos planos de saúde; a disponibilização de um rol de médicos e clínicas referenciadas; custos decorrentes de eventuais danos havidos entre a coleta, o armazenamento e o transporte; a própria realização das técnicas de reprodução assistida e criopreservação de óvulos; reembolso em caso de não haver a gestação; ou ainda uma combinação de diversas coberturas. Tudo dependerá da viabilidade das opções inseridas no ambiente de cada estrutura familiar e do risco a ser coberto, com prêmios que se adequem à realidade de cada segurado ou às possibilidades ofertadas pelos empregadores e pelo Estado, se o caso.

Há que se destacar, ainda, que as coberturas podem ser incluídas em planos de saúde, seguro de danos ou de pessoas, os primeiros regidos pela Lei nº 9.656/1998 e sob a fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), e os demais sob a as regras do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e da Superintendência de Seguros Privados (Susep). Exemplifica-se a seguir cada uma das possibilidades, sem o objetivo de exaurir o tema, que tanto demanda discussões.

No caso dos planos de saúde, o segurado pode, por exemplo, buscar contratar planos que cubram não apenas os exames de diagnóstico, mas as próprias técnicas de fertilização in vitro e inseminação artificial, mediante lista de médicos e clínicas credenciados ou referenciados. Neste caso, não haveria custos adicionais com o tratamento, uma vez que já estariam incluídos na mensalidade paga à operadora.

Similarmente, pode-se pensar também na contratação de seguro de pessoas, nas modalidades individual ou coletiva, cujo objetivo seja a cobertura para despesas médicas e hospitalares, internação ou outras que se enquadrem enquanto riscos de seguros de pessoas, tal qual autoriza o artigo 74 da Circular Susep nº 667/2022 [20]. Neste caso, deve ser estipulado um capital segurado, que pode corresponder, por exemplo, ao valor total gasto com a contratação da clínica de fertilização, os remédios, exames e outros custos econômicos decorrentes, passível de ser reembolsado caso a gestação não seja efetivada.

Já, caso o objetivo seja contratar um seguro para garantir o congelamento dos óvulos, poderíamos falar de um seguro de danos. Neste cenário, o objetivo seria “garantir ao segurado a restauração da sua situação patrimonial anterior ao sinistro coberto pela apólice, mediante o pagamento de indenização dos prejuízos sofridos” [21]. Assim, podemos falar na hipótese em que, anos após ter congelado seus óvulos, a mulher retorna à clínica e descobre que o material se perdeu ou não tem mais chances de ser fecundado. Neste caso, poderia acionar o seguro, obtendo como indenização o valor total gasto com a técnica, voltando ao status quo ante em termos patrimoniais.

Conclusão

Resumidamente, é evidenciado que, a partir da contratação de seguros, o segurado passa a ter um maior leque de opções para a concretização do desejo de ter filhos, pois tem a sua disposição “recursos materiais e intelectuais para alcançar seu pleno potencial, conforme suas predileções e aptidões” [22]. O valor dos procedimentos deixa, portanto, de ser um fator inviabilizador e a seguradora passa a ser uma parceira na concretização do planejamento parental.

No mais, destaca-se ainda a efetivação do princípio da parentalidade responsável, uma vez que, ao serem mitigados os custos com os tratamentos por meio da contratação dos seguros, a família incorre em um alívio na sua realidade financeira, e o valor médio de R$ 30 mil antes comprometido com os custos das técnicas biotecnológicas pode ser destinado à criança ao nascer, atendendo às condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento [23].

Conclui-se, então, que os seguros despontam enquanto um mecanismo que não só viabiliza, mas incentiva a concretização dos mais diversos projetos parentais, tornando o acesso a esses procedimentos mais acessível, mediante a realização da autonomia privada e, consequentemente, dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República.


[1] IBGE: mães entre 20 e 29 anos ainda são maioria, mas número vem reduzindo. Correio do Povo, 16 fev. 2023. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/cidades/ibge-m%C3%A3es-entre-20-e-29-anos-ainda-s%C3%A3o-maioria-mas-n%C3%BAmero-vem-reduzindo-1.987195. Acesso em: 25/03/2024.

[2] ALMEIDA, Vitor. Planejando a família in vitro: o direito ao planejamento familiar e as famílias monoparentais. IBDFAM, 14 jun. 2013. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/893/Planejando+a+família+in+vitro:+o+direito+. Acesso em: 24/03/2024.

[3] A partir dos 35 anos ocorre uma redução gradativa na taxa de fecundação – enquanto até essa idade a taxa é de 20% ao mês, a partir dela o declínio é de 10% ao ano, do total do ano anterior, até que, a partir dos 40 anos, o percentual mensal é de 5% de fecundidade. (GEBER, Selmo. ROQUE, Matheus. HURTADO, Rodrigo. SAMPAIO, Marcos. Guia de bolso de Técnicas de Reprodução Assistida. São Paulo: Atheneu, 2016).

[4] A criopreservação consiste na conservação de células e tecidos em temperaturas extremamente baixas (-196ºC) com a utilização de nitrogênio líquido. A fertilização in vitro, por sua vez, é uma técnica de reprodução assistida que consiste na fecundação do óvulo e do espermatozoide em laboratório, formando embriões. Finalmente, a inseminação artificial também é uma técnica de reprodução assistida, na qual a amostra de sêmen, preparada em laboratório, é inserida no útero. (Ibid).

[5] MAIA, Bruna. Congelamento de óvulos: o mercado de ‘seguro-maternidade’. Você S/A, 10 ju. 2022. Disponível em: https://vocesa.abril.com.br/carreira/congelamento-de-ovulos-o-mercado-de-seguro-maternidade. Acesso em: 25/03/2024.

[6] No congelamento de óvulos ainda é preciso arcar com cerca de R$ 1 mil por ano com custos de manutenção. Além disso, também é preciso pensar que, por serem procedimentos sensíveis, são grandes as chances de perda do material, desde a coleta até a efetiva fecundação, implicando em gastos com novas tentativas. (HUNTINGTON EUGIN GROUP. Disponível em: https://www.huntington.com.br/blog/congelamento-de-ovulos-quais-sao-os-custos-envolvidos/. Acesso em: 25/03/2024.).

[7] QUANTO custa uma fertilização in vitro em 2024?  Disponível em: https://blog.oya.care/fertilidade/fertilizacao-in-vitro-preco/. Acesso em: 05/03/2024).

[8] Conforme termo cunhado pela professora Maria Celina Bodin de Moraes, a família hoje é entendida como democrática, e possui um papel de instrumento voltado para o desenvolvimento da personalidade de seus membros (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A família democrática. Disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/31.pdf. Acesso em: 26/03/2024.). Nessa linha, o professor Vitor Almeida defende que a previsão constitucional implica no reconhecimento da autonomia reprodutiva dos sujeitos, além de o “reconhecimento do aspecto conceptivo (ou positivo) do direito ao planejamento familiar embasa[r] a existência de um direito à procriação”, de modo que a maternidade e a paternidade podem ser encaradas enquanto um projeto de vida, “relacionado[s] à autonomia reprodutiva e ao próprio desenvolvimento da personalidade de quem almeja ser genitor” (ALMEIDA, Vitor. O direito ao planejamento familiar e as novas formas de parentalidade na legalidade constitucional. In: HIRONAKA, Giselda; SANTOS, Romualdo Baptista dos. (Orgs.). Direito Civil: Estudos: I Coletânea do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa. IBDCIVIL. São Paulo: Blucher, 2018, p. 422).

[9] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 49.

[10] Tema 1.067 do STJ: “Salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro.”

[11] Diferentemente, alguns estados dos Estados Unidos possuem leis que fixam a obrigatoriedade de os planos de saúde cobrirem tratamentos decorrentes de infertilidade. Cf. em: https://ivfoptions.com/ivf-coverage-by-state-2023/.

[12] CNSEG. Seguro para óvulos humanos não fertilizados: novidade chega ao Japão em março. Notícias do Seguro, 29 fev. 2024. Disponível em: https://noticiasdoseguro.org.br/noticias/seguro-para-ovulos-humanos-nao-fertilizados-novidade-chega-ao-japao-em-marco. Acesso em: 24 mar. 2024.

[13] JAPAN’S First Egg Freezing Insurance for Woman. News On Japan, 22 fev. 2024. Disponível em: https://newsonjapan.com/article/140857.php. Acesso em: 24/03/2024.

[14] IVI BABY. Disponível em: https://ivi.pt/tratamentos-procriacao-assistida/ivi-baby/. Acesso em: 24/03/2024.

[15] ALMEIDA, Fernanda de. Empresas oferecem tratamentos de fertilidade como benefício corporativo. Forbes, 18 out. 2022. Disponível em: https://forbes.com.br/carreira/2022/10/empresas-oferecem-tratamentos-de-fertilidade/. Acesso em: 25/03/2024.

[16] Renata de Lima Rodrigues argumenta que “o uso da biotecnologia não pode ser uma ferramenta descartada ou negada a nenhuma pessoa, sob pena de violação da garantia de iguais espaços de liberdade de atuação para que todos possam se tornar aquilo que pretendem ser”. (RODRIGUES, Renata de Lima. Planejamento familiar: limites e liberdades parentais. Indaiatuba: Foco, 2021. E-book).

[17] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 62.

[18] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 34-45.

[19] IVFMD TEXAS. Disponível em: https://www.ivfmd.net/resources/financing/insurance-options/. Acesso em: 08/04/2024.

[20] Circular Susep nº 667/2022: Art. 74. É facultada às sociedades seguradoras a estruturação de outras coberturas nos termos dessa Circular, além daquelas expressamente previstas, desde que os riscos cobertos sejam enquadrados como riscos de seguro de pessoas.

[21] TEPEDINO, Gustavo; BANDEIRA, Paula Greco; MACHADO, Bruna Vilanova. Comentários ao art. 778 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago (Orgs.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 365.

[22] RODRIGUES, Renata de Lima. Planejamento familiar: limites e liberdades parentais. Indaiatuba: Foco, 2021. E-book.

[23] ALMEIDA, Vitor. Planejando a família in vitro: o direito ao planejamento familiar e as famílias monoparentais. IBDFAM, 14 jun. 2013. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/893/Planejando+a+família+in+vitro:+o+direito+. Acesso em 24/03/2024.

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