Alternativas à não validação de recolhimentos do segurado facultativo de baixa renda

O Regime Geral da Previdência Social (RGPS) é um sistema de natureza contributiva, com o objetivo de assegurar aos seus beneficiários meios de subsistência em face de riscos sociais como incapacidade laboral, idade avançada, maternidade, falecimento, entre outros (artigo 201, CF/88).

TRF-1 suspendeu eficácia de instrução normativa que limitava oferta de crédito consignado

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A Emenda Constitucional nº 103/2019 reforçou o caráter contributivo do sistema e criou uma norma essencialmente importante aos segurados, pois permite o rearranjo das contribuições vertidas a fim de que sejam potencializados seus direitos: o ajuste de contribuições previsto no artigo 29 da EC 103/19 para os fins do artigo 195, §14, da Constituição.

Nesse sistema contributivo, houve uma multiplicação de regras de contribuição para garantia de sua sustentabilidade financeira. No entanto, a complexidade dessas regras dificulta o entendimento da população, resultando em erros frequentes nas contribuições.

Por isso, é preciso analisar os meios de se garantir ao segurado contribuinte que suas contribuições tenham validade perante o regime previdenciário, ainda que, para isso, sejam necessários ajustes, aportes ou reenquadramentos formais.

Modalidades contributivas para o segurado facultativo

O segurado facultativo, nos termos do artigo 13 da Lei 8.213/91, é aquele que, sendo maior de 14 anos de idade, não estando enquadrado como segurado obrigatório do RGPS (empregado, empregado doméstico, trabalhador avulso, contribuinte individual e segurado especial), opta por contribuir ao sistema visando a garantir proteção previdenciária.

As modalidades de contribuição para essa classe de segurado, segundo o artigo 21 da Lei 8.212/91, são:

  • Plano Normal (Código 1406):  20% sobre o salário de contribuição.
  • Plano Simplificado (Código 1473):  11% sobre o salário-mínimo mensal.
  • Plano do segurado facultativo de baixa renda — SFBR (Código 1929): 5% sobre o salário-mínimo mensal.

O segurado facultativo de baixa renda (SFBR) é uma categoria específica criada pela Lei nº 12.470/2011 com o objetivo de facilitar o acesso à Previdência Social para pessoas que se dedicam exclusivamente ao trabalho doméstico. Por isso, tal modalidade contributiva ficou conhecida como a “contribuição da dona de casa” e constituiu um marco na inclusão previdenciária dessas pessoas que, até então, estavam excluídas por não terem renda pessoal, nem familiar, em condições de suportar a contribuição de 11% sobre o salário-mínimo.

Para ser considerado SFBR, o segurado deve atender aos requisitos do artigo 21, §2º, II, ‘b’, da Lei nº 8.212/91:

  • Não possuir renda própria
  • Dedicação exclusiva ao trabalho doméstico residencial
  • Família de baixa renda (até 2 salários-mínimos)
  • Cadastro Único atualizado.

Sem respeito a esses requisitos legais, as contribuições pagas pelo segurado serão consideradas inválidas pelo INSS e não surtirão efeitos para fins previdenciários.

Invalidação das contribuições do SFBR e as consequências do recolhimento irregular

Muito embora a categoria do SFBR remonte a 2011, muitos segurados não têm conhecimento dos requisitos legais e, também, sequer sabem se as suas contribuições estão válidas perante o INSS.

O segurado que recolhe pelo Código 1929 precisa verificar se suas contribuições estão sendo reconhecidas como válidas. Para isso, o INSS disponibiliza pela plataforma Meu INSS, o serviço de “validação das contribuições do segurado facultativo de baixa renda”, que permite o cruzamento de dados a fim de aferir se os requisitos legais estão cumpridos em cada período contributivo.

Após solicitar o serviço, o INSS fará um relatório informando problemas como:

  • Existência de renda pessoal.
  • Renda familiar superior ao limite de dois salários-mínimos
  • Ausência de inscrição no Cadastro Único ou desatualização

A não validação de contribuições pode acarretar prejuízos significativos no reconhecimento de direitos previdenciários, como a falta de tempo para aposentadoria por idade, ausência de qualidade de segurado ou carência para auxílio-doença e salário-maternidade, entre outros.

Nestes casos, o segurado precisará adotar, com a máxima brevidade, providências para regularizar as contribuições, sob pena de ter prejuízos financeiros (perda de valores) ou prejuízos previdenciários (impossibilidade receber benefícios).

Soluções para a não validação das contribuições do SFBR

Em caso de não validação dos recolhimentos o INSS irá mencionar no relatório de análise os períodos e os motivos. Sabendo disso, o segurado pode adotar medidas para regularização:

  1. Complementação de contribuições: o segurado pode complementar o valor das contribuições que fez (5% do salário-mínimo) até alcançar o valor correspondente à alíquota de 11% do salário-mínimo ou de 20% do salário-de-contribuição.
  2. Contestação da decisão administrativa: o segurado pode discordar da análise do INSS e apresentar os meios de prova que possui para demonstrar que cumpria os requisitos legais para ser considerado SFBR.
  3. Pedido de restituição das contribuições: se não ocorreu o fato gerador das contribuições pagas, o segurado pode solicitar a restituição dos valores perante a Receita Federal em face do pagamento indevido.

A partir da reforma da Previdência promovida pela EC 103/2019, há exigência geral de que os recolhimentos observem o limite mínimo do salário-mínimo para que as contribuições valham como tempo de contribuição. Caso isso não ocorra, a regularização de contribuições inválidas pode ocorrer por três formas de ajustes contributivos, segundo o artigo 29 da EC 103/2019:

  • Complementação: permite ao segurado complementar o valor pago para atingir o salário-mínimo. Exige aporte novo de recursos do segurado.
  • Utilização: possibilita utilizar o excedente de contribuições de uma competência para completar e atingir o valor mínimo em outra. Essa modalidade não exige aporte novo de recursos do segurado, pois transfere o excesso de aporte de um mês para outro.
  • Agrupamento: autoriza o segurado a agrupar contribuições inferiores ao salário-mínimo para criar contribuições que respeitem esse limite. Essa modalidade também não exige aporte novo de recursos do segurado, pois agrupa aportes anteriores para respeitar o mínimo em uma ou mais competências.

A norma constitucional estabeleceu que esses ajustes somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil.

Para efetivar os ajustes, o INSS disponibiliza pela plataforma Meu INSS o serviço de “ajustes para alcance do salário mínimo — Emenda Constitucional 103/2019”, por meio do qual o segurado escolhe o ano civil e recebe da autarquia uma simulação com as opões existentes para regularização das contribuições, seja apenas com utilização ou agrupamento, seja com complementação de valores, se necessária.

Entretanto, para o caso do SFBR, o INSS somente disponibiliza a opção de complementação das contribuições. Não há, até agora, na esfera administrativa, nenhuma ferramenta que permita ao SFBR efetuar ajustes contributivos sem pagamento de novos aportes, o que nos faz refletir sobre a legalidade dessa medida.

Possibilidade do ajuste via agrupamento para o SFBR

Embora a Lei 8.212/91 mencione no artigo 21, §5º, a complementação como meio de regularizar as contribuições do SFBR não validadas, fato é que, de forma superveniente, a Emenda Constitucional nº 103/2019 inovou o ordenamento jurídico com mais duas alternativas viáveis para ajustes contributivos, quais sejam, a utilização e o agrupamento.

Ainda que, neste caso do SFBR, esteja esvaziada a modalidade de utilização como ferramenta legal de ajuste, pois ela pressupõe excesso contributivo em pelo menos uma competência, o agrupamento permite, justamente, a concatenação de contribuições inválidas para montar competências válidas.

Por mais que o artigo 29 da EC 103/2019 se refira expressamente aos ajustes de contribuições pagas sobre salário-de-contribuição abaixo do salário-mínimo (o que excluiria do escopo a contribuição do SFBR, pois é paga sobre 5% do salário-mínimo), entende-se que a ratio legis da norma é permitir a regularização de contribuições inválidas e garantir um equilíbrio entre direitos e deveres no regime previdenciário.

Nessa linha de entendimento, o artigo 194, §14, da Constituição, com a redação dada pela EC 103/2019, estabeleceu que “o segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições”.

A norma constitucional, portanto, expressamente assegura o agrupamento contributivo para os casos em que a contribuição da categoria de segurado facultativo tenha sido paga sobre valor inferior à contribuição mínima exigida.

Qualquer interpretação restritiva dessa norma, impedindo o SFBR de acessar o ajuste por agrupamento, se revela manifestamente inconstitucional por violar o artigo 195, §14, e os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da proteção social, todos consagrados na Constituição. Mais grave ainda, chancelaria o enriquecimento ilícito do Estado em detrimento do cidadão vulnerável (donas de casa), que, na maioria das vezes, já contribuiu com enorme esforço financeiro, de boa-fé, e não terá condições de complementar as contribuições invalidadas de vários anos.

É oportuno, ainda, criticar a postura do INSS de sequer analisar cautelarmente a validade das contribuições que recebe mensalmente para informar aos segurados, contemporânea e tempestivamente, eventual impedimento para seu enquadramento legal como facultativo de baixa renda. Ou seja, há um vetor de séria omissão estatal que contribui para o agravamento do quadro desses segurados, vulneráveis, e que muitas vezes irão descobrir a invalidade das contribuições somente após décadas.

A legislação previdenciária estabelece que é dever do INSS, por meio do serviço social, esclarecer junto aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer conjuntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade (artigo 88 da Lei 8.213/91).

Diante desse cenário, é imperioso que, nos casos em que o SFBR não tenha condições de fazer a complementação das contribuições, seja porque são muitas competências para regularizar, seja porque o acréscimo de alíquota mais a correção monetária e os juros torna o valor inacessível a sua realidade econômica, a possibilidade de agrupamento das contribuições pode ser a única alternativa para que o segurado não tenha um prejuízo irreparável em seu patrimônio e em seu histórico contributivo.

A possibilidade de o SFBR optar pelo agrupamento de suas contribuições feitas à alíquota de 5% do salário-mínimo, “transformando-as” em menos contribuições sob a alíquota de 11% do salário-mínimo, não causa prejuízo ao equilíbrio financeiro e atuarial do sistema e garante a proteção social de um segmento vulnerável da população que, muitas vezes, sequer recebeu orientação acerca dos requisitos legais dessa contribuição específica.

Esse estado de coisas inconstitucional já foi, inclusive, objeto de decisão judicial na qual o julgador entendeu possível o agrupamento de 12 contribuições como segurada facultativa de baixa renda (5%) para composição de cinco contribuições válidas (à alíquota de 11%), nos seguintes termos:

“A de cujus possui conjunto de contribuições como facultativa no período de 01/08/2021 a 31/08/2022. Assiste razão ao INSS quanto à impossibilidade de validação em razão de o CADUNICO informar a presença de renda, o que afasta o requisito de que trata o art. 21, §2º, II, b, da lei 8212/91. Entretanto, conforme reconhecido pelo próprio INSS, trata-se de CID que dispensa carência, de modo que bastaria à de cujus única contribuição para que adquirisse qualidade de segurada. Considerando-se que a de cujus possui 12 contribuições em 5%, é possível sua unificação para resultar em 5 (art. 29, III, da EC103/19), o que lhe garante o necessário para ter qualidade de segurado.”(PROCESSO: 1065575-04.2023.4.01.3900, Juízo Federal da 8ª Vara Federal de Juizado Especial Cível da Seção Judiciária do Pará, Juiz Federal PAULO CESAR MOY ANAISSE, Data 15/10/2024).

Com efeito, para além da análise formal da legalidade dos atos administrativos, a função jurisdicional deve priorizar o acertamento da relação jurídica de proteção social, assegurando a máxima correspondência entre a normatividade e a efetividade da tutela dos direitos. Isso significa que, ao invés de se ater a uma interpretação restritiva das normas que dificultam a validação das contribuições do SFBR, o juiz deve buscar soluções que garantam a sua inclusão previdenciária e sua proteção social, com a possibilidade de agrupamento de contribuições para atingir valor equivalente à alíquota mínima exigida da categoria.

O ajuste por agrupamento como mecanismo de regularização das contribuições do SFBR, ainda que não esteja disponível em nenhuma ferramenta específica no Meu INSS, decorre diretamente do princípio da máxima efetividade aplicado ao direito da seguridade social, que impõe ao intérprete do direito previdenciário a obrigação de buscar soluções que maximizem a proteção social dos segurados, especialmente daqueles em situação de vulnerabilidade.

Conclusão

Diante do exposto, torna-se evidente que as contribuições do SFBR, ainda que parcialmente invalidadas pelo INSS, representam um ativo valioso do segurado e que pode ser aproveitado por meio do agrupamento. Essa modalidade de ajuste, garantida constitucionalmente, permite a composição de contribuição no Plano Simplificado, impede o enriquecimento ilícito do Estado, e abre caminho para o acertamento da relação jurídica previdenciária que até então estava obstado.

Diante do exposto, conclui-se que:

  1. O SFBR precisa solicitar a “Validação das Contribuições” para verificar a regularidade de seus recolhimentos e evitar surpresas futuras.
  2. Caso tenha contribuições invalidadas, o SFBR tem direito de contestar a decisão do INSS apresentando provas que comprovem o cumprimento dos requisitos legais para essa contribuição.
  3. Se a contestação for inviável, o SFBR pode optar pela complementação das contribuições, solicitando o cálculo e a emissão da GPS ao INSS. Caso não haja interesse em complementar, pode requerer à Receita Federal a restituição dos valores pagos, observando as normas de direito tributário aplicáveis.
  4. Com a EC 103/2019, surgiu a possibilidade fazer ajuste contributivo por agrupamento, que, para o SFBR, consiste em reunir contribuições pagas em 5% do salário-mínimo e convertê-las em menos contribuições com alíquota de 11% do salário-mínimo (Plano Simplificado). Essa pode ser a única alternativa preservar o patrimônio e histórico contributivo do SFBR, que muitas vezes não teve acesso tempestivo aos requisitos legais da contribuição e só tomou ciência da situação tardiamente, quando ocorrido o evento social protegido no RGPS.

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Cobrança pelo uso da faixa de domínio: plenário do STF encerra a controvérsia

Dois julgamentos realizados pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal encerraram uma disputa que se repete em centenas de processos nos tribunais estaduais. De um lado, concessionárias de rodovias responsáveis pela gestão de malhas rodoviárias insistiam em cobrar pelo uso da faixa de domínio, local onde as concessionárias de energia instalam seus equipamentos como postes e linhas de transmissão. De outro lado, as concessionárias de energia, que se opõem à cobrança, colocando como pontos principais de objeção a violação às regras de repartição de competências e poderes estabelecidos na Constituição e, notadamente, os inevitáveis impactos sobre as tarifas dos seus serviços.

Apesar da clareza das normas que fundamentam a pretensão das concessionárias de energia pelo uso gratuito das faixas de domínio das rodovias concedidas, a questão controvertida nunca foi de fácil resolução, ao menos sob a ótica da jurisprudência.

Em acórdão publicado no dia 6 de fevereiro de 2025, o Plenário do STF, no julgamento dos embargos de divergência no Recurso Extraordinário n° 1.181.353/SP, acabou com qualquer dúvida em relação à (in)constitucionalidade da cobrança. Em seu voto, o ministro Nunes Marques, relator para o acórdão, trazendo à luz a exceção normativa prevista em favor das concessionárias de energia (Decreto 84.398/80), salientou que “é possível que as empresas concessionárias aufiram receitas adicionais, mediante a exploração de atividade secundária, isto é, distinta do objeto principal da concessão, salvo quando no contexto da implantação dos equipamentos das empresas de energia elétrica em faixas de domínio”. Ao final definiu-se a seguinte tese:

(i) a controvérsia ostenta estatura constitucional e (ii) a cobrança de preço público ou tarifa pela ocupação de bens públicos por concessionárias de serviço de energia elétrica é ilegítima, pois (ii.a) a norma estadual que ampara a exação se imiscuiu na competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica, (ii.b) o Decreto federal n. 84.398/1980, recepcionado pela Constituição de 1988, assegura a não onerosidade da ocupação de faixas de domínio de rodovias, ferrovias e de terrenos de domínio público para instalação de linhas de transmissão de energia elétrica e (ii.c) a previsão do art. 11 da Lei n. 8.987/1995 não se mostra aplicável à espécie.

Esse entendimento foi acompanhado integralmente por cinco ministros (Carmen Lúcia, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Edson Fachin e André Mendonça). Outros três ministros (Alexandre de Morais, Flávio Dino, Cristino Zanin) sequer reconheceram a divergência havida entre as turmas do Supremo, por compreender que a questão já estaria pacificada no âmbito daquela Corte em desfavor da cobrança pelo uso das faixas de domínio. Já o ministro Roberto Barroso apresentou divergência, acompanhada pelo ministro Luiz Fux, por compreender que a discussão teria índole infraconstitucional.

De forma resumida, 9 dos 11 ministros se manifestaram no sentido de que a pretensão das concessionárias de rodovia é, de fato, inconstitucional.

Não é caso de redução de custos

Já nos embargos de divergência no Recurso Extraordinário 889.095/RJ, finalizado no dia 21 de fevereiro de 2025, o relator do caso, ministro André Mendonça, acrescentando valiosas contribuições sobre a matéria, além de novamente reconhecer a compatibilidade do supramencionado Decreto 84.398/80 com a Constituição, salientou que o objetivo da não onerosidade é reduzir os custos da implantação da infraestrutura de postes e de cabos para transmissão de energia elétrica, “sem que os prestadores do serviço público tenham de, ainda, arcar com uma espécie de ‘aluguel’ das faixas marginais”. Apresentou inclusive importantes reflexões sobre os impactos que a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovias poderia ocasionar nas tarifas de energia elétrica:

Embora os serviços de manutenção das rodovias e do fornecimento de energia elétrica visem ao bem-estar da coletividade, com importância equivalente, o interesse público primário teria, com efeito, saldo negativo se equacionados os quocientes das concessionárias – de rodovia de um lado, e de energia elétrica de outro.

Não o bastasse, poderiam as concessionárias de energia elétrica demandar o reequilíbrio de seu contrato em face da União (pela superveniência de fato do príncipe), de forma a onerar os cofres públicos.

Concluiu ainda o ministro relator que “é inarredável a conclusão pela inviabilidade de que um mesmo serviço público seja cobrado (tributado ou tarifado) de maneira distinta, ao exclusivo talante de cada ente político estadual ou municipal, de suas autarquias ou, até mesmo, de concessionárias privadas”.

Esse entendimento foi acompanhado por nove dos dez ministros votantes, considerando o impedimento declarado pelo ministro Luiz Fux. O ministro Luis Roberto Barroso apresentou divergência no mesmo sentido daquela anteriormente manifestada: considerar a discussão de índole infraconstitucional.

Entendimento do STJ

Este caso (RE 889.095/RJ), em específico, apresenta especial relevância, na medida em que modifica o entendimento diverso da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça nos autos dos embargos de divergência no Recurso Especial 985.695/RJ. Referido julgado que uniformizou a jurisprudência no âmbito do STJ, e que vinha sendo aplicada por alguns tribunais estaduais, consagrou compreensão pela viabilidade da cobrança.

Em outras palavras, o Supremo, em dois julgamentos muito recentes realizados pelo Plenário, reconheceu a amplitude constitucional da controvérsia e aplicou aos casos envolvendo concessionárias de serviços públicos (rodovias e energia), a mesma premissa já reconhecida por aquela corte em julgamentos de controle concentrado de constitucionalidade: estados e municípios não podem onerar um serviço público federal, sob pena de violar a repartição de competências e poderes estabelecidos na Constituição.

O Supremo reconhece, igualmente, que o artigo 11 da Lei de Concessões (Lei 8.987/90), apesar de garantir a possibilidade de as concessionárias aferirem receitas extraordinárias, não derrogou o artigo 2º do Decreto nº 84.398/80, que contém expressa previsão para a implantação dos equipamentos das concessionárias de energia elétrica em faixas de domínio sem custos para sua alocação. Confere, ainda, especial atenção à modicidade tarifária, ao compreender, corretamente, que a cobrança pretendida pelas concessionárias de rodovias geraria a chamada “distorção alocativa”, na medida em que os usuários das rodovias não seriam beneficiários diretos do repasse feito pelas concessionárias de energia às empresas administradoras da malha rodoviária. Lado outro, o repasse de tal cobrança teria impacto nas tarifas de energia, onerando diretamente os consumidores finais.

Esse entendimento já vinha sendo adotado de forma isolada por ambas as turmas, mas, ao julgar a matéria em Plenário, o Supremo Tribunal Federal dá contornos finais a eventuais controvérsias e referenda tese pela impossibilidade da cobrança pelo uso das faixas de domínio pelas concessionárias de rodovias em desfavor das concessionárias de energia, seja por seu aspecto ilegal e inconstitucional, seja em razão dos impactos econômicos da exação.

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Acordo entre CNMP e STJ objetiva atuação judicial mais eficiente

Racionalizar a tramitação de processos que envolvem o Ministério Público da União e dos estados, executar projetos nas áreas de prevenção de litígios, gerenciamento de precedentes qualificados e resolução consensual de conflitos. Esses são os objetivos de um acordo de cooperação firmado entre o Conselho Nacional do Ministério Público e o Superior Tribunal de Justiça. O compromisso tem hoje a adesão de 15 unidades do Ministério Público, entre eles, o Ministério Público do Distrito Federal e o Ministério Público do Trabalho, ambos ramos do Ministério Público da União, e os Ministérios Públicos estaduais do Acre, Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rondônia, Roraima e Tocantins.

Na solenidade de adesão ao acordo, em 2024, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, destacou que o objetivo final é contribuir para a consolidação de uma cultura institucional que priorize o diálogo, o consenso e a racionalidade na resolução de conflitos. “O apoio dos ramos e das unidades dos MPs pretende que todas as instâncias do Ministério Público nos âmbitos Federal e estadual desfrutem dos benefícios dessa importante e estratégica parceria com o STJ”, disse.

Página 34 - MP 24
Os números do Conselho Nacional do Ministério Público

 

Na ocasião, a então presidente do STJ, Maria Thereza Moura, afirmou que “o acordo tem como premissa o compartilhamento de informações e dados processuais referentes à atuação do Ministério Público e, a partir desse trabalho de inteligência, a construção de uma visão sistêmica sobre a dinâmica processual, bem como a formulação de diagnósticos para a aplicação de estratégias com vistas a uma atuação judicial mais eficiente e pautada na orientação jurisprudencial do STJ”.

Já o então presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais e procurador-geral de Justiça do MP de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior, destacou que o STJ buscou a origem dos problemas que vivencia para fazer uma boa prestação jurisdicional. “O excesso de litigância e de teses já consagradas por aquele Tribunal e, indiretamente, pelo Supremo Tribunal Federal, tem trazido excesso de trabalho aos ministros do STJ, com resultados que todos sabemos: a decisão já está formada depois de profundos e longos debates. Por isso, a qualificação dos recursos das nossas iniciativas perante o STJ dá maior credibilidade aos nossos recursos e às nossas instituições”, pontuou.

Até o final de 2023, quase 84 milhões de processos estavam em tramitação no Judiciário brasileiro, segundo dados do relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça. A solução de conflitos por meio da conciliação e mediação busca racionalizar a tramitação desses processos. O relatório mostra que, em 2023, o índice de conciliação no Poder Judiciário foi de 12%.Página 35 - MP 24

Ritmo de processos distribuídos, arquivados e em tramitação diminuiu em 2023

Com o acordo, o CNMP passou a ter acesso a dados do sistema informatizado do STJ e, em maio, lançou o portal de acompanhamento de processos de interesse do MP no STJ. “O compartilhamento do Painel Processual do STJ com o MP Brasileiro propiciará o aprimoramento das estratégias de atuação, além de permitir que possamos propor temas e teses relevantes à submissão na sistemática de precedentes qualificados – tanto para superação quanto para a distinção. O que se pretende é o aumento do índice de sucesso nas teses do Ministério Público e a redução da litigância infrutífera”, avaliou o secretário-geral do CNMP, Carlos Vinícius Alves Ribeiro.

Em 2024, o CNMP teve uma atuação intensa na proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Em abril, foi lançada a campanha Primeiros Passos, com a abordagem em três eixos prioritários de atuação: o destravamento de obras de creches, a implementação de serviços de acolhimento familiar e o combate à violência contra crianças. Após aplicação de um questionário às procuradorias-gerais de Justiça e aos membros do MP que atuam na área da infância, o CNMP apresentou um diagnóstico das ações do Ministério Público. Nos últimos três anos, 88% das unidades dos MPs implementaram programas para melhorar os serviços e acolhimento familiar, conforme as Recomendações CNMP 82/21 e Conjunta 2/24, e 65% dos MPs desenvolveram ações para ampliar vagas em creches e garantir o acesso à pré-escola.Página 35 (2) - MP 24

As sanções do CNMP em 2022 e 2023

“Com o diagnóstico, o Ministério Público dá um importante passo para estruturar ações que permitam aprimorar a atuação ministerial e garantir uma intervenção mais assertiva e estratégica na proteção dos direitos da primeira infância. A utilização desta ferramenta possibilita não apenas uma análise mais precisa das realidades locais, mas também a formulação de políticas públicas mais eficazes e direcionadas, aumentando significativamente as chances de resultados positivos e duradouros”, afirmou o presidente do CNMP, Paulo Gonet. Em novembro de 2024, 17 MPs assinaram termo de adesão ao projeto Primeiros Passos.

Em 2023, o CNMP expediu 27 resoluções, 11 recomendações, quatro emendas regimentais e dois enunciados. Entre os destaques está a Resolução 281/2023, que institui a Política e o Sistema Nacionais de Proteção de Dados Pessoais no MP. A resolução estabelece diretrizes para as ações de planejamento e de execução das obrigações funcionais, bem como confere ao MP a missão de assegurar a proteção integral dos dados pessoais.

A publicação da norma trouxe ao CNMP um pioneirismo na implementação da Lei Geral de Proteção de Dados. A instituição encontra-se em nível intermediário de maturidade, e busca atingir o nível aprimorado. “O CNMP passou por duas auditorias nos últimos anos. Uma auditoria realizada pelo TCU, em todos os órgãos federais, e uma auditoria interna, com o intuito de verificar a adequação do CNMP à Lei Geral de Dados (Lei 13.709/2018)”, afirmou a encarregada pelo Tratamento de Dados Pessoais do CNMP, a promotora de Justiça do MP de Goiás Ana Paula Franklin.

A promotora destacou que a resolução criou obrigações não apenas para os ramos e unidades do Ministério Público, mas também para o CNMP, que deve observar a estrutura criada para garantir a conformidade da instituição com a lei. Ela também disse que um dos desafios é a adaptação global dos processos de trabalhos internos, já que a abrangência e a complexidade da LGPD exigem uma reavaliação completa de como os dados são coletados, armazenados, processados e compartilhados.

Para o conselheiro Fernando Comin, os pontos mais relevantes da resolução são o ineditismo e a envergadura. “Trata-se de uma regulamentação sólida, bem feita, influenciada pelo que se faz e se aplica de mais moderno no continente europeu, onde o tema já é tratado há pelo menos 40 anos. Com 173 artigos, a Resolução CNMP 281/2023 se apresenta, na verdade, como um verdadeiro código, de viés protetivo, mas ao mesmo tempo orientativo e até fiscalizatório aos ramos e unidades, aos membros e servidores e, até, aos terceiros que interagem com a instituição. Uma referência que, aos poucos, está sendo implementada e que irá permitir fazer um diagnóstico nacional de conformidade do MP, assim como de um cronograma nacional padronizado de implementação de princípios, regras e ações organizadas em prol desse ‘novo petróleo’, como esse direito vem sendo visto no mundo”, afirmou em entrevista à Secretaria de Comunicação Social do CNMP.

O MPF já está atuando de forma integrada para implementar a cultura de proteção de dados na instituição. O órgão atingiu, em outubro de 2024, cerca de 66% dos requisitos estabelecidos pela Resolução 281/2023. Entre as medidas adotadas, está a realização de campanhas e capacitações a criação do Comitê Estratégico de Proteção de Dados Pessoais (Cepdap) e da Unidade de Proteção de Dados Pessoais do MPF, que é responsável, entre outras atividades, pelo planejamento, coordenação, monitoramento e controle das ações de conformidade com a LGPD.

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Em 2023, CNMP julgou menos casos em suas sessões que no ano anterior

 

O CNMP expediu recomendações sobre temas relativos à infância e à juventude, tratados internacionais, direitos humanos, transações penais, crise hídrica, entre outras. As recomendações 100/2023, 9/2023 e 98/2023, tratam de infância e juventude e estão relacionadas à atuação da instituição no processo de escolha de membros dos Conselhos Tutelares; efetivação do direito à alimentação adequada; e combate à exploração do trabalho infantil em atividades artísticas. Em plenário, o conselho aprovou proposta para a criação do cadastro nacional e casos de violência contra crianças e adolescentes. Previsto na Lei 13.344/2022 (Lei Henry Borel), o cadastro vai permitir que os MPs compartilhem informações e experiências sobre os casos de violência e as medidas adotadas para enfrentá-los. Também foram publicadas a Recomendação 96/2023, que trata da observância dos tratados, convenções e protocolos internacionais de direitos humanos, e a 102/2023, sobre o aprimoramento da atuação do MP nos casos de recuperação judicial e falência de empresas.

Decisões relevantes do CNMP
REPRESENTAÇÃO DE CLASSE
Proposição 1.00951/2024-81
Requerente: Paulo Gonet
Relator: Paulo Gonet
Julgamento: 27/8/2024
Em discussão: Proposta de Emenda Regimental que visa estender a todos os conselheiros, durante o exercício do mandato, a vedação de exercer cargo de direção em entidade de classe.
Posição do CNMP: Por unanimidade, o Conselho aprovou a proposta, que alterou o artigo 28 do Regimento Interno do CNMP. O objetivo é zelar pelo desempenho das atribuições inerentes ao cargo de conselheiro do CNMP, de modo que o artigo 30-A da Constituição seja cumprido de forma eficiente e não se dilua frente a outras atividades exercidas.

PROCESSOS DISCIPLINAR

PAD 1.00415/2024-30
Requerentes: Corregedoria Nacional do MP
e OAB-PR
Relator: Fernando Comin
Julgamento: 27/8/2024
Em discussão: Apurar se promotora de Justiça do MP do Paraná ofendeu advogados durante audiência virtual ao ter áudio acidentalmente vazado em que verbaliza a expressão “são bosta esses advogados”.
Posição do CNMP: Por unanimidade, o Conselho julgou improcedente o PAD. O relator entendeu que ao divergirem sobre o método usado pelos advogados de defesa, com repetição e reformulação de questionamentos, os atores processuais tumultuaram a audiência, prolongaram o julgamento e desgastaram os presentes, levando ao debate acalorado. Para afastar a sanção disciplinar, o CNMP levou em consideração condições pessoais da promotora, como cumulação de trabalho com as funções maternas, luto pelo óbito de seus genitores e as adversidades enfrentadas no ato processual. Além disso, houve retratação por parte da promotora.

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

(Resultou na Resolução 296/2024)
Proposição 1.01126/2023-69
Proponente: Moacyr Rey Filho
Relator: Jayme de Oliveira
Julgamento: 11/6/2024
Em discussão: Necessidade de disciplinar a criação de procedimentos administrativos destinados a acompanhar o cumprimento das cláusulas de acordo de não persecução cível e do procedimento de autocomposição.
Posição do CNMP: Proposta de resolução aprovada com unanimidade pelo Conselho para alterar a Resolução 174/2017. A necessidade de adequação surgiu após deliberações técnicas do Comitê Gestor Nacional de Tabelas Unificadas, vinculado à Comissão de Planejamento Estratégico, que concluiu que a medida é indispensável para considerar as atualizações legislativas relacionadas à temática. A inclusão atenderá à geração de dados estatísticos, à agilização da movimentação processual e ao aprimoramento do controle institucional.

CONCESSÃO DE APOSENTADORIA
Proposição 1.00328/2018-90
Relator: Jaime Miranda
Julgamento: 28/5/2024
Em discussão: Impedir a concessão de aposentadoria voluntária ao membro ou servidor que responda a processo administrativo disciplinar.
Posição do CNMP: Por maioria, o Conselho rejeitou a proposta de resolução. Para o colegiado, a aposentadoria tem natureza previdenciária, sendo que seu caráter contributivo a reveste de natureza de seguro, e não de prêmio. A vedação à concessão de aposentadoria voluntária no curso de processo administrativo disciplinar ofende o princípio da presunção de inocência, pois constitui consequência desabonadora a ser aplicada ao membro ministerial antes mesmo do seu trânsito em julgado.

ANPP
Proposição 1.00714/2023-01
Requerentes: Rodrigo Badaró e Rogério Magnus Varela
Relator: Jaime Miranda
Julgamento: 14/5/2024
Em discussão: Dispensar a exigência da confissão formal e circunstanciada, a que alude o artigo 28-A do CPP, como requisito à propositura de acordo de não persecução penal.
Posição do CNMP: Proposta de recomendação rejeitada com unanimidade pelo Conselho. A previsão legal da confissão como requisito para a celebração de ANPP é válida e de observância obrigatória. Para a dispensa da confissão, seria necessária uma mudança legislativa expressa ou declaração de constitucionalidade por parte do STF. O CNMP não tem competência para o controle de constitucionalidade da lei, pois trata-se de órgão de natureza administrativa.

ELEIÇÃO DE PGJ

Proposição 1.00447/2023-91
Requerente: Augusto Aras
Relatora: Ivana Cei
Julgamento: 12/11/2024
Em discussão: Proposta de resolução que visa estabelecer parâmetros básicos para as eleições de procurador-geral de Justiça no âmbito do Ministério Público brasileiro.
Posição do CNMP: Proposta rejeitada por unanimidade com o entendimento de que é necessário assegurar as garantias do autogoverno e de autorregulação normativa, derivadas do princípio da autonomia político-administrativa de cada MP. A proposição é inconstitucional e ilegal.

CRIANÇA E ADOLESCENTE
Proposição 1.00206/2024-79
Requerente: Rogério Magnus Varela
Relator: Fernando Comin
Julgamento: 27/8/2024
Em discussão: Proposta de resolução para instituir cadastro nacional de casos de violência contra crianças e adolescentes, previsto na Lei 14.344/2022.
Posição do CNMP: Proposta aprovada com unanimidade. A criação do cadastro nacional pretende dar concretude ao compromisso do MP com a proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, previstos no artigo 227 da Constituição Federal. A proposta possibilita que as informações sobre casos de violência sejam registradas e compartilhadas entre os MPs, aperfeiçoando a transparência na atuação dos órgãos ministeriais e auxiliando na avaliação dos resultados das medidas adotadas.

QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL
Proposição 1.00886/2024-58
Requerentes: CNJ e Paulo Gonet
Relator: Paulo Gonet
Julgamento: 13/8/2024
Em discussão: Proposta de recomendação conjunta entre o CNMP e o CNJ para que os tribunais e os MPs da União e dos Estados adotem, prioritariamente, ações conjuntas para o fortalecimento, apoio e estímulo à implementação e ao desenvolvimento da aprendizagem e qualificação profissional de adolescentes, a partir dos 14 anos, e jovens durante ou após o cumprimento de medidas socioeducativas, em meio aberto e fechado.
Posição do CNMP: Proposta aprovada por unanimidade. A iniciativa encontra-se em consonância com os regramentos constitucionais e legais do ordenamento jurídico pátrio que regem a matéria.

VEDAÇÃO SUPRIMIDA

Proposição 1.00432/2024-69
Proponente: Engels Augusto Muniz
Relator: Rogério Magnus Varela
Julgamento: 30/4/2024
Em discussão: Proposta de emenda regimental para suprimir as vedações aos membros do MP de, durante o exercício do mandato de conselheiro do CNMP, integrarem lista para promoção por merecimento ou para preenchimento de vaga na composição de tribunal.
Posição do CNMP: Proposição aprovada por unanimidade. A proposta preenche os requisitos de técnica legislativa e regimentalidade, pois atende às disposições da Lei Complementar 95/1998. Para o colegiado, são vedações que ofendem a Constituição Federal, uma vez que criam proibições não previstas no texto constitucional violam o princípio da igualdade ao instituírem limitações inextensíveis aos demais integrantes da carreira e aplicáveis a apenas um grupo de conselheiros do mesmo colegiado.

MEDIDAS PREVENTIVAS

Proposição 1.00148/2024-29
Requerente: Jaime Miranda
Relator: Edvaldo Nilo
Julgamento: 30/4/2024
Em discussão: Proposta de recomendação aos ramos e unidades do MP a adoção de medidas para a prevenção e o enfrentamento da tortura e maus-tratos em estabelecimentos de privação de liberdade.
Posição do CNMP: A proposta, aprovada por unanimidade, enfatiza a necessidade de uma atuação coordenada por parte do MP, o que inclui a adoção de medidas extrajudiciais e judiciais, a promoção de políticas públicas de prevenção, a articulação com outros órgãos e a sociedade civil e a garantia de investigações céleres e imparciais, contribuindo para a efetivação do direito à não tortura dos privados de liberdade, em consonância com os princípios constitucionais que regem o Estado brasileiro e os Direitos Humanos.

ANUÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASIL 2024
3ª Edição
ISSN: 2675-7346
Número de páginas: 204
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur. Clique aqui para comprar a sua edição
Versão digital: gratuita. Acesse pelo site anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário de Justiça

* Reportagem publicada na nova edição do Anuário do Ministério Público. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

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Recurso extraordinário trabalhista e a usurpação da competência do STF

No passado já sustentamos a inconstitucionalidade do recurso de revista (RR) para o Tribunal Superior do Trabalho em matéria constitucional.

No caso, sustentamos essa posição ao fundamento de que o recurso de revista em matéria constitucional é uma repetição do recurso extraordinário. Nesta hipótese, quando a CLT estabelece o cabimento do recurso de revista em matéria constitucional, ela estaria usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal para julgamento do recurso extraordinário interposto contra decisão de única ou última instância em matéria constitucional. No caso, lembramos que na vigência da Constituição de 1969 havia uma regra que dispunha que apenas “das decisões do Tribunal Superior do Trabalho […] caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal quando contrariarem esta Constituição” (artigo 143/CF/1969).

Essa regra não se repetiu na Constituição de 1988. Logo, o dispositivo da CLT que admite o recurso de revista em matéria constitucional foi revogado pela atual CF ou é inconstitucional, por violar o artigo 102, inciso III, da CF, que estabelece a competência do STF para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida” contrariar dispositivo constitucional.

Mas ainda que cabível o recurso de revista (“extraordinário”) em matéria constitucional, já defendemos também a possibilidade da interposição do recurso extraordinário contra a decisão do Tribunal Regional do Trabalho quando não admissível o recurso de revista quando a decisão recorrida está de acordo com a “iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho” (Súmula 333 do TST).

E assim concluímos, já que, quando a decisão regional está em acordo com a jurisprudência “iterativa e notória” do TST, não se admite o recurso de revista. Daí se tem que, quando se interpõe recurso de revista (RR) contra a decisão regional em matéria constitucional e ela está em consonância com a iterativa e notória jurisprudência do TST, invariavelmente é negado seguimento ao RR já na origem. Contra essa decisão, em geral, a parte interpõe agravo de instrumento, ao qual, por sua vez, é negado provimento pelo TST. Já contra essa decisão do TST no agravo de instrumento não cabe a interposição do recurso extraordinário, pois a referida decisão não contém matéria constitucional.

Vejam que, neste caso, o fundamento do agravo de instrumento é o fato de que a decisão recorrida em recurso de revista está de acordo com a jurisprudência iterativa e notória do TST. Logo, a parte não tem acesso ao STF em grau de recurso extraordinário, pois esta última decisão do TST não aprecia questão constitucional.

Apesar dessa situação um tanto quanto irracional, o STF, de forma pacífica, entende que não cabe recurso extraordinário diretamente contra decisão do TRT. Esse entendimento, assim, acaba por negar à parte o acesso ao STF quando se questiona a decisão regional em matéria constitucional que está em harmonia com a jurisprudência do TST.

Irracional e inconstitucional

E essa situação está se agravando diante dos precedentes vinculantes do TST em matéria constitucional, objetos de decisões em incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR), incidentes de assunção de competência (IAC) e recursos de revista repetitivos. Já nestes casos, diante da decisão regional que está de acordo com o precedente  vinculante do TST em matéria constitucional, se a parte interpuser o recurso de revista ele terá seu seguimento negado na origem (no TRT), cabendo a interposição do agravo interno para impugnar essa decisão denegatória de seguimento ao recurso de revista. Já a decisão regional em agravo interno é irrecorrível, além de não conter apreciação da questão constitucional. Logo, da mesma forma, à parte inconformada não se dará oportunidade de acesso ao STF pela via do extraordinário.

Em resumo, o sistema recursal trabalhista quando diante da questão constitucional decidida se revela irracional e inconstitucional, pois ele nega acesso ao STF sempre que a decisão regional em matéria constitucional estiver de acordo com a jurisprudência dominante do TST, incluindo suas súmulas e orientações jurisprudenciais (OJs), ou a decisão regional estiver de acordo com os precedentes vinculantes do TST em matéria constitucional.

Óbvio, assim, que essa situação não pode perdurar, sob pena de violação ao artigo 102, inciso III, da CF, que assegura o acesso ao STF, pela via do extraordinário, quando se alega que a decisão de única ou última instância contrária à Constituição.

E quais são as alternativas?

Pode-se pensar em quatro. A primeira é manter o atual entendimento do TST e do STF, negando-se o acesso ao STF sempre que se questionar a decisão regional em matéria constitucional e ela estiver de acordo com a jurisprudência iterativa e notória do TST, inclusive reveladas em suas súmulas e OJs (decisões impeditivas de recurso) ou quando a decisão regional estiver de acordo com os precedentes vinculantes do TST (IRDR, IAC, repetitivos) em matéria constitucional.

A segunda alternativa é o STF reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo que admite o recurso de revista em matéria constitucional e passar a admitir a interposição do recurso extraordinário diretamente contra a decisão regional em matéria constitucional. Manteria o TST apenas como instância extraordinária para as questões  infraconstitucionais.

Essa alternativa tem a vantagem de igualar o sistema recursal extraordinário em todas as “justiças”, exceto em relação à Justiça Eleitoral, que tem regra própria, e contribuir para a duração razoável do processo trabalhista, acabando com o sistema atual em que a parte é obrigada a interpor dois recursos em matéria constitucional. Um para o TST e depois para o STF, quando e se admissível aquele primeiro.

A terceira alternativa é o STF, em interpretação conforme, admitir o recurso de revista em matéria constitucional contra a decisão regional quando não se está diante da jurisprudência impeditiva deste recurso (jurisprudência iterativa/dominante do TST) ou quando não se tem uma decisão vinculante do TST em matéria constitucional, admitindo-se, porém, o recurso extraordinário contra a decisão regional se ela está em acordo com a jurisprudência dominante ou vinculante do TST em matéria constitucional (quando não caberia o recurso de revista).

Essa alternativa, porém, é criticável diante da certa insegurança dela decorrente. Primeiro, porque ela sempre dependeria de uma decisão do TST, que seria  impeditiva do recurso de revista, abrindo-se caminho para o extraordinário. Segundo porque, se é de certo modo objetivo apontar quais são as teses reveladas em súmula, OJs ou firmadas em IRDR, IAC e repetitivo, o mesmo não se pode afirmar em relação à jurisprudência “iterativa e notória” do TST. E essa jurisprudência “iterativa e notória” não se resume às teses constantes de súmulas, OJs, IRDR, IAC e repetitivo. Ela se revela, ainda, pelas reiteradas decisões do TST sobre o tema, inclusive por suas turmas.

A questão, portanto, é insegura, pois não se tem um critério objetivo para apontar quais seriam essas decisões dominantes (“iterativas e notórias”) impeditivas do recurso de revista. E também insegura, porque ela sempre dependeria ou de uma decisão do TST ou de uma decisão do Regional negatória de seguimento do recurso de revista para se verificar se admissível ou não o recurso de revista

A quarta e última alternativa, é o STF, em interpretação conforme, concluir que as decisões do TST em matéria constitucional não são impeditivas do recurso de revista em matéria constitucional, nem vinculantes em matéria constitucional. Logo, por esta alternativa, admitir-se-ia o recurso de revista em matéria constitucional em qualquer hipótese, para, após a decisão colegiada o TST, em última instância, admitir o recurso extraordinário para o STF.

Essa quarta alternativa, porém, tem o inconveniente de manter o irracional sistema recursal trabalhista que admite a interposição de dois recursos em matéria constitucional: o recurso de revista “extraordinário” para o TST e o recurso extraordinário para o STF, atentando contra a duração razoável do processo.

Conclusão

Cabe ao STF reapreciar essa questão de modo a resguardar sua competência para apreciar o recurso extraordinário contra qualquer decisão de única ou última instância em matéria constitucional, sugerindo-se que seja adotada a segunda alternativa acima indicada, qual seja: considerar inconstitucional o recurso de revista para o TST em matéria constitucional e admitir o recurso extraordinário diretamente das decisões dos TRTs em matéria constitucional, assegurando-se nos processos do trabalho o acesso ao STF em duração razoável.

Uma sugestão final. Diante do quadro acima, em relação à parte inconformada com a decisão regional na matéria constitucional e que esteja em sintonia com a jurisprudência do TST, sugere-se que ele interponha o recurso extraordinário diretamente contra a decisão regional. Muito provavelmente, esse recurso terá seu seguimento denegado, cabendo, assim, à parte inconformada, interpor o devido agravo para o STF. Somente assim a matéria alcançará o STF, ainda que seja através do agravo em recurso extraordinário, de modo que ele possa rever as questões postas acima.

De qualquer forma, sugere-se, ainda, que tanto no RE como no agravo em recurso extraordinário se peça, por semelhança, que se adote o procedimento previsto no artigo 1.033 do CPC, de modo que o STF, em interpretação conforme, possa remeter o recurso extraordinário, convertido em recurso de revista, para o TST, para que este aprecie o mérito da questão constitucional, abrindo-se, depois, a oportunidade para acesso ao STF.

É um caminho tortuoso, mas o único possível que se apresenta na presente quadra.

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Compartimentalização pela indústria e governos inibe enfrentamento do negacionismo climático

Os discursos envolvendo o negacionismo climático ganharam notoriedade recentemente na cultura popular. Os meios de comunicação noticiam constantemente os elevados números de queimadas e desmatamentos na floresta amazônica e em outros biomas sensíveis no Brasil. Por outro lado, observa-se a existência de um intenso aparato voltado também não só a negar estas ocorrências como a minimizar a gravidade dos danos causados. Este cenário, contudo, não se limita às queimadas, estendendo-se também aos impactos ambientais gerados pela indústria de combustíveis fósseis.

Reprodução

Tal proceder não é inédito na indústria dos combustíveis fósseis, a qual, por pelo menos sete décadas, tem buscado ativamente minimizar os riscos de suas atividades. Durante esse período, o negacionismo climático passou por transformações constantes, reagindo a pressões sociais, moldando narrativas e apaziguando preocupações ambientais. Até a década de 1990, as empresas de combustíveis fósseis não demonstravam constrangimento em discutir o poder e influência de sua capacidade de alterar o clima por meio de tecnologias extrativas em larga escala. Foi somente quando o seu principal modelo de passou a ser ameaçado que elas se voltaram ao negacionismo.

No entanto, durante todo esse período, tanto internamente quanto publicamente, buscaram posicionar seu núcleo empresarial como o ponto de Arquimedes em torno do qual tudo deveria gravitar, em vez de reconhecerem a realidade imposta pelos limites ecológicos da Terra frente à exploração irrestrita. Desde a década de 2010, com o consenso científico consolidado e os impactos das mudanças climáticas cada vez mais evidentes, a negação clássica deu lugar a um “negacionismo brando”, caracterizado por estratégias de adiamento, divisão, distração e pessimismo. Essa abordagem, contudo, mantém a inação climática, mas sem o mesmo nível de reação pública.

Dentro desse quadro, o greenwashing se tornou uma ferramenta central para disfarçar danos ambientais. Empresas utilizam linguagem enganosa, omissões seletivas e distorções retóricas para sustentar uma imagem sustentável enquanto perpetuam práticas destrutivas. Além disso, estratégias mais amplas buscam diluir a responsabilização ao tratar os danos ambientais como externalidades inevitáveis. Isso fragmenta a percepção pública dos impactos ambientais, dificultando respostas coordenadas e diminuindo a responsabilidade dos agentes poluidores.

A ideia de compartimentalização emerge, então, como um padrão estrutural do negacionismo climático e antiambientalismo. Ao tratar cada caso de degradação como algo isolado, governos e corporações enfraquecem esforços coletivos de mitigação. Esse fenômeno redireciona a atenção da ciência e da sociedade das causas estruturais para fatores imediatos, limitando a compreensão dos riscos climáticos e desviando responsabilidades.

Nessa ordem de ideia, o presente artigo analisa a compartimentalização como uma tática-chave do negacionismo climático.

Modos de compartimentalização

A compartimentalização no discurso climático e antiambiental funciona ao separar efeitos complexos em elementos destacados e reprimidos, o que enfraquece a narrativa ambiental. Diferentes formas dessa prática incluem:

1. Setorização: Regulamentar um único químico (exe: PFOA) sem abordar toda a classe a que pertence (PFAS), prolongando exposições desnecessárias.

2. Burocratização: Empresas estatais norueguesas que exploram a Amazônia enquanto este mesmo estado financia o Fundo Amazônia para a sustentabilidade.

3. Deslocamento: Anunciar ‘neutralidade de carbono até 2050’, mas adiando ações concretas até 2049.

4. Análise seletiva de risco: Avaliar apenas ingredientes ativos em produtos químicos, ignorando os impactos da formulação completa (exemplo: testes em glifosato por si só, mas não em RoundUp® como vendido).

5. Distração: Criar narrativas para desviar a atenção de danos ambientais e sociais, abafando críticas com estratégias de relações públicas.

Dividir medições e regulamentos em categorias isoladas impede uma redução real da poluição, promovendo uma “responsabilidade moral”, onde ações ambientalmente positivas são usadas para justificar práticas prejudiciais. Essa lógica também separa justiça social de questões ambientais ao invés de tratá-las como interligadas.

A responsabilidade moral, assim como a compartimentalização, pode até piorar os problemas ambientais. O sentimento de “compensação” leva indivíduos e empresas a adotarem comportamentos antiambientais sob a justificativa de já terem feito algo positivo. Um exemplo clássico é economizar emissões ao não dirigir, mas compensar voando mais. A disseminação do LED reduziu o consumo energético por lâmpada, mas a proliferação dessas luzes aumentou a poluição luminosa, refletindo o paradoxo de Jevons.

Embora o greenwashing envolva engano intencional, a compartimentalização opera de forma mais sistêmica, criando um cenário onde empresas e governos fragmentam custos e benefícios para evitar lidar com as consequências reais de suas ações. Isso permite que empresas promovam credenciais ambientais enquanto mantêm atividades altamente poluentes.

A compartimentalização não é exclusiva do setor privado. Governos também ignoram ou contradizem informações científicas para manter a viabilidade de práticas extrativistas. O conceito de “megamáquina” (megamachine), de Fabian Scheidler, descreve essa relação simbiótica entre Estado e indústria, onde diferentes blocos de poder competem para garantir vantagem comparativa, intensificando a extração de recursos e ampliando zonas de ignorância para justificar danos colaterais.

O sistema internacional recompensa a produção de ignorância quando isso favorece interesses econômicos, criando um acúmulo de crises não resolvidas. O maquinário do negacionismo climático opera em várias dimensões – setorial, narrativa, política e estrutural – com estratégias que incluem compromissos vazios, como aderir ao Acordo de Paris sem investimentos correspondentes, ou empresas de petróleo declarando metas de neutralidade de carbono enquanto omitem suas emissões indiretas (Escopo 3).

O negacionismo climático, assim, faz parte de um sistema maior de defesa industrial, que inclui lobistas, relações públicas e grupos financiados para manipular a percepção pública e proteger lucros. Esse “exoesqueleto corporativo” sustenta a continuidade da exploração ambiental. Para combater essa dinâmica, é necessário descompartimentalizar as conexões entre setores e atores envolvidos, compreendendo a negação climática como um processo coordenado que transcende a indústria de combustíveis fósseis e atinge outras indústrias poluentes.

Origens da compartimentalização

A compartimentalização pode ser entendida como um problema de prestação de contas e responsabilidade: ela isola benefícios em um setor e minimiza custos, mantendo impactos separados de outros setores afetados. Um exemplo disso são diferentes formas de greenwashing que ocultam o real impacto ambiental de um produto ou serviço. No entanto, a compartimentalização vai além do greenwashing, incluindo omissões estratégicas e divulgações seletivas, resultando na supervalorização de compromissos climáticos e na negligência das ações concretas necessárias.

Esse processo permite que metas como “net zero até 2050″ sejam utilizadas para adiar a responsabilidade real. No âmbito da comunicação empresarial e governamental, Habermas distingue entre comunicação voltada à compreensão e comunicação estratégica, que busca o sucesso independentemente da verdade. A compartimentalização se insere nessa segunda categoria, ao minimizar problemas e favorecer discursos convenientes.

No contexto regulatório, esse fenômeno aparece quando agências governamentais analisam produtos químicos isoladamente, sem considerar suas interações no meio ambiente. Além disso, investimentos filantrópicos em iniciativas ambientais muitas vezes mascaram o financiamento simultâneo de atividades extrativistas prejudiciais. Essa assimetria entre sustentabilidade e extração precisa ser abordada para garantir maior transparência.

A compartimentalização também ocorre na responsabilização do consumidor, transferindo para indivíduos a culpa pelos custos climáticos, enquanto grandes corporações mantêm impactos estruturais. Na ciência, observa-se quando financiamentos industriais direcionam pesquisas para favorecer interesses econômicos, ocultando impactos adversos.

Ao fragmentar problemas, a compartimentalização dificulta soluções sistêmicas e sustentáveis para desafios climáticos e ambientais.

Dinâmicas Norte-Sul que exacerbam a compartimentalização do negacionismo climático

As estruturas e discursos contemporâneos do negacionismo climático têm raízes na colonização histórica, quando as nações europeias exploraram outras partes do mundo para obter matérias-primas e disputar supremacia. Essa história de extração das periferias coloniais para os centros imperiais permite que o negacionismo climático se manifeste de maneira única no Sul Global, facilitando práticas poluidoras.

O colonialismo teve um papel importante no subdesenvolvimento do Sul Global. A pobreza não era preexistente, mas causada pela economia de queimada e pela exploração de riquezas, depredando culturas e ecologias. Hoje, as economias globais pós-coloniais são vistas como meritocráticas, mas as cadeias globais de commodities refutam essa narrativa, pois empresas do Norte pressionam fornecedores do Sul, mantendo os preços altos.

O “mito da modernidade” justifica a exploração ao enquadrar os danos ecológicos como preço do progresso. Justificativas de modernização minimizam e ocultam os danos ambientais causados por empresas extrativas, compartimentalizando os prejuízos ao criar legitimidade. Nesse contexto, o negacionismo climático favorece um sistema em que as práticas poluidoras ocorrem sem barreiras. A promessa de desenvolvimento, porém, se torna inatingível devido a condições econômicas impostas, mantendo o Sul Global dependente da exportação de matérias-primas.

Compartimentalização mineração norueguesa e a ecofilantropia no Brasil

O mito da modernidade se manifesta nas operações de corporações transnacionais em regiões empobrecidas do Sul Global, como o Brasil, oferecendo investimentos industriais, empregos e avanços tecnológicos. Diferente das atividades poluidoras realizadas por empresas nacionais, a extração transnacional compartimentaliza os danos ao longo de cadeias de commodities, separando a legitimidade e a validade dos impactos ambientais.

Durante o regime militar brasileiro (1964-1986), o governo focava na exploração dos recursos naturais, especialmente na Amazônia, favorecendo investimentos estrangeiros. Nesse cenário, empresas norueguesas, como a Norsk Hydro, contribuíram para a poluição de biomas sensíveis. A Norsk Hydro, mineradora parcialmente controlada pelo governo da Noruega, está envolvida na poluição por resíduos tóxicos na refinaria de bauxita de Alunorte, na Amazônia. Investigações indicam que a empresa adota padrões ambientais duplos no Brasil, onde as regulamentações são mais flexíveis, em comparação com a Noruega, onde normas mais rigorosas são seguidas.

Em 2024, decisões judiciais no Brasil reconheceram a responsabilidade da empresa pela poluição excessiva na região, destacando as discrepâncias nas práticas ambientais da companhia entre os dois países.

Compartimentalização nas políticas químicas

Investigar danos químicos um por vez reduz a proteção ambiental, atrasa indevidamente o progresso e obscurece padrões de risco. Órgãos reguladores raramente analisam produtos em suas formulações comerciais, focando apenas nos ingredientes “ativos” listados pelas empresas, mesmo quando as misturas químicas representam maiores riscos. Isso ocorre com pesticidas, cujas análises excluem surfactantes, adjuvantes e aditivos presentes nas fórmulas comerciais. Apesar dos avanços em bancos de dados que preveem interações químicas adversas, como Bioregistry e BioGRID, tais conhecimentos ainda não foram plenamente incorporados às políticas regulatórias.

A regulamentação química frequentemente avalia substâncias isoladamente, ignorando efeitos combinados e impactos ecotoxicológicos. Como múltiplas exposições químicas afetam populações com menor poder político e econômico, suas consequências são difíceis de detectar epidemiologicamente devido a desigualdades sociais preexistentes. O conceito de “anestesia política”, de Andrew Szasz, descreve como soluções individuais para problemas coletivos reforçam a desigualdade ambiental, permitindo que setores privilegiados comprem proteção privada contra toxinas, em vez de melhorar opções públicas.

Essa compartimentalização também se manifesta na discrepância entre estudos laboratoriais e exposições reais. Experimentos mostraram que sapos expostos ao herbicida glifosato eram 15 vezes mais vulneráveis quando na presença de predadores, um efeito ignorado nos estudos da Monsanto. A captura regulatória pela indústria química distorce avaliações de risco, favorecendo estudos financiados por empresas em detrimento de pesquisas independentes. Para evitar essa influência, a segregação entre ciência acadêmica e pesquisas patrocinadas pela indústria é essencial.

Conclusão

Na Europa medieval as indulgências permitiam que pecadores ricos pagassem pela absolvição, perpetuando seus erros. Hoje, os créditos de carbono funcionam de maneira semelhante, permitindo que poluidores transfiram sua culpa sem mitigar os danos de forma significativa. Ao utilizarem empresas como intermediárias, os Estados se distanciam da destruição ambiental, evitando responsabilidades diretas e conflitos geopolíticos. Essa compartimentalização possibilita a contínua exploração do Sul Global sob a fachada da sustentabilidade.

A compartimentalização mantém fronteiras artificiais entre dano e benefício, supervalorizando compromissos ambientais enquanto oculta a exposição a poluentes. Ela institucionaliza a negação—afetando normas de segurança química, filantropia corporativa (eco) e arbitragem ambiental. A vergonha pode ser uma força de mudança, como demonstram campanhas que pressionaram empresas como o Burger King a modificar suas cadeias de suprimentos. Boicotes e ativismo financeiro tornam visíveis os danos ambientais.

A injustiça climática se fortalece com visões compartimentalizadas dos problemas ambientais. Enfrentar desigualdades sistêmicas é essencial para fortalecer os movimentos por justiça climática. Empresas de combustíveis fósseis não podem alegar responsabilidade enquanto perpetuam emissões nocivas. Expor os danos ambientais oculta estratégias de negacionismo e reduz as margens para impunidade corporativa e estatal.

Conclusivamente, a sobrevivência da humanidade está condicionada a tornar explícitos e salientes os danos ocultos e complexos dissimulados para manter os status quo corporativos e estatais. Na medida em que pudermos ver e entender melhor as reais complexidades envolvidas na poluição em todos os níveis a máquina de negacionismo climático (climate denial machine) terá menos álibis e menos lugares para se esconder.

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Contratos de parceria entre contador, técnico de contabilidade e escritórios

No fim do mês passado, a Câmara dos Deputados informou que a respectiva Comissão de Trabalho aprovou projeto de lei que autoriza escritórios de contabilidade a celebrar contratos de parceria com contadores e técnicos em contabilidade na condição de pessoa física ou jurídica.

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Em consulta do histórico de tramitação, vislumbra-se que o PL 4.463/2021 trouxe como justificativa as mutantes relações de trabalho e o desafio de organizá-las nas atuais relações corporativas e empresariais, em busca de um método mais eficiente de desenvolvimento.

Assim, tendo em vista o entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade da Lei de Parcerias entre empresas de beleza e profissionais (ADI 5.625/DF), o PL tem por objetivo adaptar à atual realidade dos escritórios de contabilidade para melhor atendimento aos seus clientes e cumprimento das obrigações acessórias correlatas.

Designada a Comissão de Trabalho, o PL 736/2023 foi apensado ao PL 4.463/2021, sem apresentação de emendas aos projetos. Foi, então, apresentado substitutivo, posteriormente aprovado pela Comissão de Trabalho da Câmara.

De modo geral, o texto prevê as figuras do “escritório de contabilidade” e “profissional-parceiro”, podendo estes exercerem a atividade de “contador” e “técnico em contabilidade”, desde que devidamente registrados em seus conselhos regionais.

Centralizar pagamentos e recebimentos

O PL também estabelece que o “escritório de contabilidade” será o responsável por centralizar os pagamentos e recebimentos decorrentes das atividades de prestação de serviços de contabilidade pelo “profissional-parceiro”, bem como reterá a sua cota-parte estabelecida consensualmente no contrato, com retenção dos tributos e contribuições sociais e previdenciárias devidas pelo profissional-parceiro.

Neste ponto, entende-se que a lei atribuiu ao “escritório contábil parceiro” a responsabilidade tributária de retenção na fonte dos respectivos tributos (artigo 121, parágrafo único, inciso II, do CTN).  Porém, a cota-parte do “profissional-parceiro” não será considerada para o cômputo da receita bruta do “escritório contábil”, ainda que adotado o sistema de emissão de nota fiscal unificada ao consumidor.

O substitutivo apresentado manteve a previsão do texto original de que as responsabilidades e obrigações decorrentes da constituição do escritório de contabilidade continuarão sendo de única e exclusiva responsabilidade do “escritório contábil parceiro”, não lhe sendo transferido o risco do negócio, o que, de forma alguma, se confunde com a responsabilidade na execução do serviço em si aos clientes, hipótese na qual lei expressamente estabeleceu o regime de responsabilidade solidária.

Uma previsão legal (e que vai de afronta à justificativa do PL) é a obrigatoriedade de que o contrato de parceria seja homologado pelo sindicato da categoria de profissional e, na ausência, pelo órgão local competente do Ministério do Trabalho e Emprego.

Soma-se, ainda, a previsão do artigo 3º ao estabelecer hipóteses expressas de reconhecimento de vínculo de emprego especialmente quando “I- não existir contrato de parceria formalizado na forma descrita nesta Lei”, em que pese o reconhecimento do vínculo de emprego dependa de declaração judicial pela Justiça do Trabalho e do preenchimento das hipóteses previstas em lei (artigo 2º e 3º da CLT).

Regulamentação para fiscalização

Ainda que a positivação não fosse expressamente necessária (por se tratar de imperativo lógico decorrente da livre iniciativa e do posicionamento do STF acerca da possibilidade de coexistência de outras formas de associação para o desempenho do trabalho que não unicamente a relação de emprego — vide ratio decidendi firmada no julgamento da ADPF 324/DF, ADI 5625/DF e ADC 48/DF), a exigência contida no artigo 1º, §7º do PL revela o seu real intuito: regulamentar aquilo que dispensa regulamentação para notória fiscalização, sob a justificativa de trazer segurança jurídica ao já tão conhecido contrato de parceria.

Se se permite a celebração de contratos de parceria que possuem o intuito de que as partes, no exercício máximo de suas autonomias de vontade, estabeleçam entre si uma verdadeira relação de coparticipação para a execução de um determinado serviço, razão não há exigir que o seja homologado por sindicato, quiçá pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Se a ideia do legislador com a homologação do contrato é estabelecer a publicidade dos contratos de parceria celebrados entre “escritório contábil parceiro” e “profissional-parceiro”, bem como eventual controle formal das cláusulas contratuais, que o contrato seja averbado à margem do contrato de sociedade da pessoa jurídica perante o respectivo órgão de classe, impedindo-se a averbação de contratos que possuam os requisitos do vínculo de emprego.

Por fim, o substitutivo apresentado alterou significativamente a redação do artigo 4º, ao prever que “os conflitos provenientes do descumprimento do contrato de parceria de que trata a presente Lei serão de competência da Justiça do Trabalho e dirimidos no foro do profissional-parceiro, podendo-se fazer uso da mediação e da arbitragem técnica”.

Reconhecimento da parceria

A antiga redação nos PL’s originariamente apresentados permitia às partes estabelecerem o foro para dirimir eventuais conflitos, a reconhecer o caráter civil do contrato de parceria e justificar a incoerência de homologação em sindicato ou órgão vinculado ao Ministério do Trabalho.

Já a nova redação apresentada, além de trazer mais um entrave à celebração do referido contrato, atribui de forma ampla à Justiça do Trabalho a competência para a análise de contratos cíveis. O legislador não definiu o que se entenderia por “descumprimento de contrato”.

Portanto, da análise que se extrai, o descumprimento decorrente de uma obrigação contratualmente estabelecida ou falta de repasse do valor estabelecido entre as partes submeteria à análise da Justiça do Trabalho, em que pese não se esteja discutindo o reconhecimento de vínculo de emprego. Flagrante a inconstitucionalidade (artigo 114 da Constituição).

Para além, a previsão de submeter eventuais controvérsias à Justiça do Trabalho também se constata de irrelevante normativo, considerando que independentemente do arranjo contratual firmado, qualquer parte pode submeter à Justiça do Trabalho pleito de reconhecimento de vínculo de emprego, ultrapassando, assim, a questão de competência, e partindo à análise do mérito da controvérsia.

Mais confusão ainda se estabelece com a previsão de se permitir a utilização da arbitragem técnica, ao mesmo tempo em que se firma que a competência será da Justiça do Trabalho para dirimir eventuais controvérsias.

O texto substitutivo ainda será analisado por outras Comissões internas da Câmara de Deputados, especialmente de Constituição e Justiça, para posterior aprovação pela Câmara e Senado, nas quais se espera que os pontos acima trazidos sejam levados à discussão para melhor coerência com o atual ordenamento jurídico, sem representar um retrocesso e desestímulo à formulação de novos arranjos contratuais.

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Profissionais do Direito devem pensar nas consequências econômicas de seus atos, diz advogado

Advogados, magistrados e demais profissionais da área jurídica devem usar a análise econômica do Direito em sua atividade profissional. É essencial que meçam as consequências das medidas para a sociedade e para o mercado, de forma a preservar a segurança jurídica e o fluxo de dinheiro. É o que afirma Luiz Roberto Ayoub, sócio do escritório Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida Advogados e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

 

“Eu, por exemplo, fiquei praticamente 30 anos no TJ-RJ, mas comecei a trabalhar muito cedo, fui engenheiro, aprendi a ter uma visão prática das coisas. Eu olho qual é a decisão, qual é a melhor decisão para a sociedade, para a economia, para a política. E depois dou a roupagem jurídica. Isso para mim é fazer Justiça. O resto é obsolescência”, aponta.

Especialista em Direito Empresarial, Ayoub foi o juiz do processo de recuperação judicial da Varig, a primeira após a entrada em vigor da Lei 11.101/2005, que inseriu o instituto no ordenamento jurídico. Foi um caso difícil, em que faltou colaboração para ajudar a companhia aérea a se reestruturar, avalia. Nos 20 anos da norma, porém, agentes do mercado, advogados e magistrados entenderam que o principal é buscar salvar as empresas viáveis — e, com isso, preservar empregos e renda.

Ayoub também atua em casos envolvendo clubes esportivos. Ele diz ser positiva a criação da figura das sociedades anônimas do futebol (SAFs), dizendo que elas ajudaram bastante o seu time de coração, o Botafogo — que venceu o Campeonato Brasileiro e a Libertadores em 2024.

Quanto às apostas esportivas, o advogado diz que elas podem ajudar a gerar renda para o mercado de futebol. Porém, defende que as bets inescrupulosas sejam banidas.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Até que ponto as transações com os precatórios influenciam no mercado ou na economia?Luiz Roberto Ayoub — Direito e Economia são áreas do saber que devem dialogar. O Direito precisa da Economia, assim como a Economia precisa do Direito. Os precatórios são importantes porque, se o dinheiro não gira, a roda da economia também não gira. Quando um determinado valor autorizado pela Justiça não fica dormitando, pode ser injetado ou negociado no mercado, movimentando a economia. Em nosso escritório, sempre temos a preocupação de analisar a higidez dos documentos, para que não haja nenhuma surpresa, porque, apesar de o risco ser inerente a qualquer negócio, nós buscamos minimizá-los. Então, fazemos um double check sobre o que é possível, o que é remoto, o que é provável de acontecer. Nós chegamos a avaliar a possibilidade ou não de uma ação rescisória, para calibrar o deságio dos precatórios e chegar a um preço interessante para comprador e vendedor.

ConJur — O regime de pagamento de precatórios não é muito demorado? Seria possível e positivo acelerar os pagamentos?
Luiz Roberto Ayoub — O tempo é o fator que mais causa malefícios ao Direito e à sociedade. A dinâmica social não compactua com a lentidão. O fator tempo corrói o bom direito. Como mudar isso é um grande desafio, porque temos uma sociedade que é tradicionalmente formada para litigar. Enquanto houver essa cultura do litígio, nós sempre vamos conviver com o fator tempo. O Código de Processo Civil buscou reduzir a chamada “prodigalidade recursal”. É a quantidade de recursos, incidentes, que fazem com que um bom direito possa se tornar um bom direito, mas corrupto pelo tempo. Como resolver isso? Os hábitos legislativos existem, mas o comportamento humano depende de cada um.

ConJur — Como advogados, magistrados e integrantes do MP devem usar a análise econômica do Direito em suas atividades?
Luiz Roberto Ayoub — Eu sou um consequencialista. Eu sempre segui a linha do ministro Luiz Fux [de defender o uso da análise econômica do Direito]. O artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942) fala que profissionais do Direito — magistrados, advogados e outros — devem sempre analisar os impactos do que se pede e do que se decide. Eu, por exemplo, fiquei praticamente 30 anos no TJ-RJ, mas comecei a trabalhar muito cedo, fui engenheiro, aprendi a ter uma visão prática das coisas. Eu olho qual é a decisão, qual é a melhor decisão para a sociedade, para a economia, para a política. E depois dou a roupagem jurídica. Isso para mim é fazer Justiça. O resto é obsolescência.

ConJur — Como avalia as alterações ao Direito Empresarial feitas no anteprojeto do novo Código Civil?Luiz Roberto Ayoub — Eu ainda estou estudando o projeto. Em uma análise muito precoce, eu diria que o Direito Empresarial, conforme o anteprojeto de lei do Código Civil, pretende, como todas as outras áreas do Direito, seguir o dinamismo social. A sociedade tem o seu dinamismo, e o Direito não pode ficar estagnado. A necessidade de editar normas legais a todo instante significa, em última análise, reconhecer uma insegurança jurídica, porque não sabe o que está previsto, o que vem amanhã. Hoje a sociedade é uma, amanhã é outra. Os fatos que estão acontecendo nesse exato momento que eu estou conversando com você merecem um tratamento jurídico. Amanhã será outro, porque a dinâmica social nos impõe que haja uma interpretação que esteja coadunada com a realidade econômica. Mas há boas intenções por trás do anteprojeto. E cabe aos tribunais uniformizar as interpretações e os entendimentos.

ConJur — O crescimento da procura pela recuperação judicial tem sido persistente desde 2021, na saída da crise provocada pela crise de Covid-19. E o número de pedidos de recuperação vem superando os de falências. Isso significa que o instituto da recuperação tem sido eficaz em recuperar empresas?
Luiz Roberto Ayoub — “Recuperação judicial” peca pela nomenclatura. “Recuperação” nos remete a algo que não é melhor. Mas a recuperação judicial salva, ela não mata. O problema é saber fazer. A recuperação judicial é um procedimento que se caracteriza por uma ampla negociação entre devedores e credores, por um prazo de 180 dias, que pode ser renovado por igual período, desde que não seja imputada a demora à empresa devedora, ao agente econômico devedor que postou a recuperação judicial. Então, na recuperação, há um potencial imenso.

Agentes econômicos passam por crises. Isso foi intensificado durante a epidemia de Covid-19, mas acontece sempre. A Lei de Recuperações e Falências (Lei 11.101/2005) foi recentemente atualizada pela Lei 14.112/2021, eu participei do grupo que ajudou a aperfeiçoar a norma. Hoje ela já precisa de outro aperfeiçoamento. Aí eu repito o que disse anteriormente: é melhor que os tribunais firmem entendimentos que atualizem a aplicação da norma do que ficar editando atos normativos a toda hora. E essas decisões devem ser seguidas, em nome da segurança jurídica, da economia e do ambiente de negócios.

ConJur — Como avalia a reforma da Lei 11.101/2005 pela Lei 14.112/2021?
Luiz Roberto Ayoub — A reforma é muito positiva em diversos pontos. Ela aperfeiçoa muito a figura do financiamento, cria a figura da insolvência transacional. Quando eu comecei a advogar, há 37 anos, as empresas eram majoritariamente locais, nacionais. Hoje não, são conglomerados que se espalham por todo o país, por todo o mundo. Então, o que acontece em um país tem consequências em outros. A figura da insolvência transnacional já vinha sendo admitida pela jurisprudência, mas é positivo positivá-la.

ConJur — Que mudanças ainda poderiam ser feitas na Lei 11.101/2005?
Luiz Roberto Ayoub — Há diversos pontos que poderiam ser aperfeiçoados. Por exemplo, nós encerramos a recuperação da Light, que foi um procedimento bastante complexo. Afinal, se a companhia falisse, o impacto social seria enorme, diversas pessoas iriam ficar sem luz no estado do Rio de Janeiro. Na prática, percebi que havia algumas lacunas na lei, alguns pontos que poderiam estar positivados, mas os tribunais cumpriram o seu papel.

Então, há lacunas, sempre haverá. Mas editar atos normativos a todo tempo é algo tóxico, porque gera mais insegurança. O investidor que estuda a legislação e, no dia seguinte, vê que ela mudou, não vai mais querer aplicar os seus recursos no país. É melhor deixar os tribunais suprirem essas lacunas.

ConJur — Pouco se fala da recuperação extrajudicial. Ela é um bom meio de reestruturar empresas?
Luiz Roberto Ayoub — Sim — eu inclusive estou começando uma recuperação extrajudicial agora. Atuei na recuperação extrajudicial de um clube de futebol sem a lei, mas baseada no princípio do agente econômico, da atividade econômica no passado. Hoje está previsto na lei a possibilidade de um grupo de futebol fazer recuperação extrajudicial. São agentes econômicos, geram riquezas. Não se pode pensar que um grupo de futebol hoje seja apenas lazer. Isso foi no passado. A recuperação extrajudicial originalmente prevista pela Lei 11.101/2005 carecia de maior aperfeiçoamento, enquanto àqueles que dela deveriam e poderiam se utilizar, faltava um maior conhecimento. A Lei 14.112/2020 deu uma grande força à recuperação extrajudicial. E ela ainda vai ser impulsionada com o esforço interpretativo dos tribunais. A recuperação extrajudicial já começou a mostrar a que veio.

ConJur — Como foi ser o juiz do processo de recuperação judicial da Varig?
Luiz Roberto Ayoub — Foi um desafio imenso, foi muito difícil, muito desgastante. Mas, ao mesmo tempo, muito enriquecedor. Se você não for ousado com responsabilidade, se não for inovador, buscando tirar da letra da lei o que você pretende, focado nos princípios constitucionais, não irá gerar resultados que acompanhem o dinamismo político, econômico e social do país.

O processo da Varig iniciou-se logo após a Lei 11.101/2005 entrar em vigor. Era uma lei totalmente desconhecia e muito interdisciplinar, exigia conhecimento de diversas áreas do saber. Por isso, os administradores judiciais devem ter equipes interdisciplinares, não serem meros fiscais do processo. No caso da Varig, eu fiz com que o administrador judicial fosse um auxiliar do juízo, com atribuições baseadas no rol exemplificativo do artigo 22 da Lei 11.101/2005. Isso enriqueceu o processo.

Uma grande dificuldade foi a falta de colaboração entre os juízos e órgãos administrativos. Hoje é um princípio do Código de Processo Civil, e nem precisava estar positivado. Diversos órgãos atuavam pela salvação da Varig. Mas faltou colaboração para ajudar a recuperação da empresa. Recuperação não é um lugar de litígio, mas de ampla negociação. Caso contrário, o resultado será a falência.

E mesmo a falência havia recebido, da Lei 11.101/2005, uma finalidade totalmente diferente da que tinha sob o Decreto 7.661/1945, que previa a liquidação e venda dos ativos, se fosse possível vender, porque tinha um procedimento mais demorado. Hoje o objetivo principal é salvar a empresa. Só não se salva quando a empresa não é viável. Mas dizer que uma empresa falida não é viável é uma conclusão precipitada e equivocada. Porque empreender, principalmente no Brasil, é muito difícil. Às vezes, uma pequena crise pode tirar do empreendedor a possibilidade de empreender, mesmo ele sendo um bom empreendedor. Agora, se é uma pessoa que não respeita as leis, ela tem que ser banida do meio empresarial e punida. Punir o empresário não é punir a empresa.

Hoje, falência não é quebra com a alienação de ativos para pagamento dos credores. Tanto recuperação como falência visam salvar a atividade econômica. Entre os elementos que decorrem nesse salvamento está o pagamento dos credores, dentro do possível. Porque pior do que receber menos é ter o desaparecimento de uma empresa. Isso é negativo para a nação. Não existe nação sem empresa, não existe emprego sem empresa, não existe salário sem empresa, não existe dignidade sem salário.

ConJur — Qual é o impacto das sociedades anônimas do futebol (SAFs) no setor esportivo e na economia brasileiros?
Luiz Roberto Ayoub — Agora que vamos começar a sentir o impacto. Eu inclusive estou atuando em uma recuperação que ainda não sabemos se seguirá o caminho da judicialidade ou extrajudicialidade aqui no Rio de Janeiro [do Vasco da Gama]. Eu comecei nessa área com a recuperação extrajudicial do Figueirense, sem a lei, não como agente econômico. Agora os grandes clubes, que são grandes empresas, podem assumir essa forma econômica. Eles lidam com direitos de imagem, bilheteria de jogos, patrocínios. Tudo isso movimenta a economia, é um mercado muito grande. Eu sou botafoguense, já fui muito mais sofredor do que sou hoje. O trabalho brilhante de Thairo Arruda [CEO do Botafogo], com John Textor [dono da SAF do Botafogo], mostrou o que pode ser feito e o que pode ser melhorado. Eles fizeram uma recuperação extrajudicial com muita responsabilidade. Não há recuperação sem dinheiro novo. Não há recuperação sem ativos para monetizar o procedimento de reorganização de um agente econômico.

ConJur — As empresas de apostas esportivas estão cada vez mais ligadas a times de futebol. Como isso impacta o mercado de futebol?
Luiz Roberto Ayoub — Bom, primeiro é preciso fazer uma separação entre aqueles que são profissionais sérios, corretos, e aqueles que não são. Se forem promovidas com responsabilidade, com olhar na lei, nos princípios constitucionais, as apostas podem gerar um benefício muito grande, não só para as associações esportivas, não só para as SAFs, mas para a economia em geral. Se há dinheiro rodando, há injeção de recursos na economia. Mas as bets que têm propósitos desvirtuados devem ser banidas.

ConJur — Como seria uma regulamentação razoável das apostas esportivas?
Luiz Roberto Ayoub — Não tenho capacidade para responder. Mas, por enquanto, deve haver uma cooperação entre os tribunais e os órgãos envolvidos no setor esportivo, como CBF, Fifa e Banco Central.

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IBS/CBS sobre locação de temporada por pessoas físicas

Um tema que foi pouquíssimo debatido durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 e do Projeto de Lei Complementar nº 68 foi a incidência do IBS e da CBS sobre fornecimento de bens e serviços por pessoas físicas. Na última década, tornou-se cada vez mais comum a locação de imóveis por temporada, por meio de plataformas digitais. Nosso objetivo neste texto é analisar como a Lei Complementar nº 214/2024 (LC 214) disciplinou a incidência do IBS e da CBS nesses casos.

Incidência ampla

Sabe-se que um dos grandes avanços do IBS e da CBS é a sua base de incidência mais ampla. O modelo de tributação sobre o consumo ainda em vigor permite vácuos de incidência inexplicáveis, como a não tributação de atividades de locação pelo ISS.

Já o IBS e a CBS “incidem sobre operações onerosas com bens ou  com serviços” (artigo 4º da LC 214), sendo que as definições de operação com bens (artigo 3º, I, “a” da LC 214) e de operação com serviços (artigo 3º, I, “b” da LC 214) são amplas o bastante para alcançar as atividades econômicas que conhecemos atualmente, ainda mais considerando que a definição de operação com serviços é basicamente residual, prevendo-se que são operações com serviços todas aquelas que não sejam operações com bens.

Dessa forma, da perspectiva da hipótese de incidência do IBS e da CBS, não parece haver dúvidas quanto ao fato de que ela inclui atividades de locação.

Contribuinte do IBS e da CBS

Os contribuintes do IBS e da CBS estão previstos no artigo 21 da LC 214. Segundo o inciso I deste dispositivo, é contribuinte do IBS e da CBS “o fornecedor que realizar operações: a) no desenvolvimento de atividade econômica; b) de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica; ou c) de forma profissional, ainda que a profissão não seja regulamentada”.

A utilização da conjunção “ou” ao final da alínea “b” indica que se trata de situações independentes de sujeição passiva, bastando-se que o fornecedor se enquadre em uma dessas situações para que possa ser considerado contribuinte dos tributos em questão.

Dessa forma, em princípio, uma pessoa física atuando na locação de imóveis por temporada poderia ser contribuinte do IBS e da CBS sobre tal fornecimento de bens.

As regras específicas sobre operações com bens imóveis

A LC 214 trouxe algumas regras específicas sobre a incidência do IBS e da CBS sobre operações com bens imóveis, a partir de seu artigo 251. De acordo com este dispositivo, “as operações com bens imóveis realizadas por contribuintes que apurarem o IBS e a CBS no regime regular ficam sujeitas ao regime específico previsto neste Capítulo” (destaque do colunista).

Uma expressão chave para compreendermos as regras sobre a tributação de operações com bens imóveis é “contribuintes que apurarem o IBS e a CBS no regime regular”. Este artigo 251 está estabelecendo que, no que se refere a operações com imóveis, a incidência ocorrerá em relação a operações realizadas por contribuintes que apurarem o IBS e a CBS no regime regular. Tanto assim, que o § 1º deste artigo 251 vai delimitar quem são tais contribuintes.

O inciso I do § 1º do artigo 251 da LC 214 trata das operações de locação de bem imóvel realizadas por pessoas físicas. Veja-se a redação deste dispositivo:

“§ 1º As pessoas físicas que realizarem operações com bens imóveis serão consideradas contribuintes do regime regular do IBS e da CBS e sujeitas ao regime de que trata este Capítulo, nos casos de:

I – locação, cessão onerosa e arrendamento de bem imóvel, desde que, no ano-calendário anterior:

  1. a) a receita total com essas operações exceda R$ 240.000 (duzentos e quarenta mil reais); e

b) tenham por objeto mais de 3 (três) bens imóveis distintos; […].”

Ao analisarmos o § 1º, verificamos que ele veicula uma regra inclusiva que visa estabelecer quem está dentro do conjunto “contribuintes do regime regular do IBS e da CBS”. Em outras palavras, somente estarão sujeitos à incidência desses tributos as pessoas físicas que atenderem os requisitos previstos em seus incisos.

Locações feitas por pessoas físicas

Segundo o inciso I do § 1º do artigo 251 da LC 214, uma pessoa física que realize uma operação de locação será considerada um contribuinte no regime regular do IBS e da CBS se (a) a receita total dessas operações, no ano-calendário anterior, exceder R$ 240 mil e (b) tais operações tiverem por objeto mais de três imóveis distintos.

Note-se que se trata de requisitos cumulativos. Ou seja, caso a pessoa física tenha receita superior a R$ 240 mil com a locação de um único imóvel, segundo entendemos, ela não seria considerada contribuinte.

Um aspecto interessante, e que pode gerar discussões, é a utilização do conceito de receita, que não é típico da regulação do IBS e da CBS. É possível que surjam discussões qualificatórias sobre determinado fato econômico configurar, ou não, “receita de locação”. Por exemplo, se o locatário assume o dever de pagar o IPTU e o condomínio de um apartamento, esses valores integrariam a “receita de locação”?

Como vimos, estes requisitos previstos no inciso I do § 1º do artigo 251 da LC 214 referem-se ao ano-calendário anterior. Esta regra é complementada pelo inciso II do § 2º deste mesmo artigo, segundo o qual “também será considerada contribuinte do regime regular do IBS e da CBS no próprio ano calendário, a pessoa física de que trata o caputdo § 1º deste artigo”, em relação à “a locação, cessão onerosa ou arrendamento de bem imóvel em valor que exceda em 20% o limite previsto na alínea “a” do inciso I do § 1º deste artigo”.

Este inciso estabelece que, caso, no próprio ano-calendário, a pessoa física tenha rendimentos decorrentes da locação de bem imóvel em valor 20% superior a R$ 240 mil, ou seja, valor superior a R$ 288 mil, ela também será considerada contribuinte do regime regular do IBS e da CBS, mesmo que não tenha atingido os requisitos em relação ao ano-calendário anterior.

Neste caso, não se fez referência à necessidade de tal receita ser auferida mediante a locação de mais de três imóveis distintos.

Em resumo, parece-nos que o tratamento das operações de locação por pessoas físicas e os casos em que a pessoa física será considerada contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS podem ser sumariadas da seguinte forma:

Ano-Calendário AnteriorAno-Calendário Corrente
– Receita total superior a R$ 240 mil     – Locações que tenham por objeto mais de três imóveis distintos – Receita total superior a R$ 288 mil    

Vale observar que esses valores devem ser atualizados mensalmente pelo IPCA ou por outro índice que venha a substituí-lo, desde a publicação da LC 214 (§ 5º do artigo 251 da LC 214).

Por fim, é interessante destacar que a LC 214 trouxe uma regra de delegação legislativa que transfere para o regulamento o que seriam “imóveis distintos” para fins de aplicação do inciso I do § 1º do artigo 251 da LC 214.

Regras específicas sobre locação por temporada

As regras que analisamos acima referem-se à tributação pelo IBS e pela CBS de locações de bens imóveis em geral por pessoas físicas. Contudo, a  LC 214 trouxe uma regra específica sobre operações de locação por temporada no seu artigo 253, cuja redação é a seguinte:

“Art. 253.A locação, cessão onerosa ou arrendamento de bem imóvel residencial por contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS, com período não superior a 90 (noventa) dias ininterruptos, serão tributados de acordo com as mesmas regras aplicáveis aos serviços de hotelaria, previstas na Seção II do Capítulo VII do Título V deste Livro.” (destaque do colunista)

Vê-se que este artigo trata de situações que estão contidas no conjunto das locações de imóveis por pessoas físicas. O artigo 253 aplica-se apenas a contratos de locação com prazo não superior a 90 dias ininterruptos. Nesses casos, o regime de IBS/CBS aplicável não será o das operações com bens imóveis, mas sim aquele incidente sobre os serviços de hotelaria.

Contudo, e este aspecto é importante, este artigo 253 somente se aplica a “contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS”. Ou seja, se a pessoa física não atende aos requisitos para que seja considerada como tal, o IBS e a CBS seguirão inaplicáveis.

Diferentes situações possíveis

Em linha com os comentários anteriores, podemos cogitar das seguintes situações:

– Receita total no ano-calendário anterior inferior a R$ 240 mil, ou superior, porém decorrente da locação de três imóveis ou menos:

– Se a receita corrente decorrente de operações de locação for inferior a R$ 288 mil, a pessoa física não será considerada contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS e, portanto, estará excluída da incidência do IBS/CBS, independentemente do prazo do contrato.

– Se a receita corrente decorrente de operações de locação for superior a R$ 288 mil, a pessoa física será considerada contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS. Neste caso, o prazo do contrato será relevante:

– Se o prazo do contrato for superior a 90 dias, o regime de IBS/CBS aplicável será aquele referente a operações com bens imóveis.

– Se o prazo do contrato for inferior a 90 dias, o regime de IBS/CBS aplicável será aquele referente aos serviços de hotelaria.

– Receita total no ano-calendário anterior superior a R$ 240 mil, decorrente da locação de mais de três imóveis.

– A pessoa física será considerada contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS. Neste caso, o prazo do contrato será relevante:

– Se o prazo do contrato for superior a 90 dias, o regime de IBS/CBS aplicável será aquele referente a operações com bens imóveis.

– Se o prazo do contrato for inferior a 90 dias, o regime de IBS/CBS aplicável será aquele referente aos serviços de hotelaria.

Vale a pena reiterarmos que esses valores estão sujeitos a atualização pelo IPCA ou outro índice que o substitua desde a publicação da LC 214.

Conclusão

Boa parte do debate sobre a reforma tributária foi pautada pelo seu grande objetivo: a simplificação. Esta, de tão relevante, acabou ganhando referência explícita na Constituição, no § 3º do artigo 145. Contudo, simplificação é uma noção comparativa, não absoluta. Algo torna-se mais simples em relação a outra coisa mais complexa, o que não significa que o novo, em si, será simples.

A Emenda Constitucional nº 132 e a LC 214, se podem ser consideradas um passo adiante em direção a um sistema menos complexo, não significam que a tributação se tornará simples. O tema que tratamos brevemente nesta coluna é prova disso, e estamos falando de um grupo restrito de transações. O novo Sistema Tributário Nacional, e toda a sua complexidade, ainda vão se revelar para nós nos próximos anos, e devemos estar preparados.

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Advogados não devem aceitar determinação do Direito por juízes, diz Streck

O advogado, parecerista e professor Lenio Streck afirmou nesta quarta-feira (5/2) que os advogados não devem aceitar a determinação do Direito por juízes, desembargadores e ministros. Para ele, os causídicos ficarão sem função se pensarem “que o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é”.

Lenio Streck
Streck participou de seminário promovido pelo escritório Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia – Conjur

 

Streck fez esse comentário ao avaliar o atual protagonismo “sem critérios” da figura do juiz no sistema de Justiça brasileiro. “Criou-se a ideia, e o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal compraram essa ideia, de que o Direito é indeterminado. Se o Direito é indeterminado, quem vai determiná-lo são os tribunais. Daí eles se empoderam.”

O jurista classificou esse entendimento como parte de uma postura “cético-realista”. “Se os tribunais dizem o que é o Direito, quem vai poder dizer o que os tribunais não podem dizer do Direito se eles mesmos fazem os seus próprios critérios para dizer o que é o Direito?”, questiona.

Streck defende que o papel dos advogados nesse contexto é apontar os erros cometidos pelas cortes sempre que isso acontecer: “O tribunal precisa se sentir acuado, constrangido (quando errar)“.

Ao fazerem seu trabalho, disse ele, os profissionais precisam “buscar enxergar mais longe” e exigir evidências empíricas para a tomada de decisões. Isso evitaria situações de “gaslighting jurídico” — expressão cunhada por ele mesmo, em texto publicado em sua coluna na revista eletrônica Consultor Jurídico, para se referir a casos em que o Judiciário ignora elementos objetivos ou comete “erros crassos”.

Lenio Streck participou nesta quarta do seminário Jurisprudência Defensiva nas Cortes Superiores, promovido pelo escritório Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia, em Brasília. O evento foi exclusivo para advogados e executivos.

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STJ tem divergência sobre critérios objetivos e limite de renda para Justiça gratuita

O Superior Tribunal de Justiça registrou uma divergência no julgamento que vai decidir se o juiz pode utilizar critérios objetivos, como limite de renda, para indeferir os pedidos de Justiça gratuita.

O tema está em análise na Corte Especial, que reúne os 15 ministros mais antigos da corte. O julgamento, sob o rito dos recursos repetitivos, vai resultar em tese vinculante que será de observância obrigatória por juízes e tribunais.

A gratuidade da Justiça é um benefício que permite acesso ao Poder Judiciário sem custas e despesas processuais, além de suspender o pagamento de honorários de sucumbência dos advogados vencedores, nos casos em que o beneficiário é derrotado.

Código de Processo Civil, no artigo 99, parágrafo 2º, diz que se presume verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. A posição jurisprudencial consolidada, porém, é de que essa presunção é relativa. Ou seja, o juiz pode indeferir a gratuidade se houver elementos nos autos que demonstrem a capacidade financeira de quem a solicitou. Para isso, juízes de primeiro grau e tribunais vêm adotando critérios objetivos, não previstos na lei.

Até o momento, o tema foi alvo de apenas dois votos no STJ. Relator, o ministro Og Fernandes entende que não há previsão em lei que autorize o juiz a definir critérios. Cabe apenas usá-los como motivação para determinar à parte que comprove sua hipossuficiência.

Abriu a divergência o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, para quem cabem critérios objetivos exemplificativos, os quais precisam ser analisados de acordo com cada caso e suas especificidades, para evitar abusos no benefício da gratuidade.

Nesta quarta-feira (5/2), o julgamento foi interrompido por pedido de vista da ministra Nancy Andrighi.

Para o ministro Og Fernandes, lei não permite que o Judiciário defina critérios objetivos para a gratuidade da Justiça – Lucas Pricken/STJ

 

Critérios objetivos, não

O assunto é de grande importância porque mexe com a garantia de acesso à Justiça, que é tratada de forma bastante ampla pela Constituição, pela lei federal e pela jurisprudência do próprio STJ.

As consequências da falta de uniformidade são graves não apenas para quem ajuíza uma ação, mas também para o próprio Judiciário. Manifestações de amici curiae (amigos da corte) apontaram que a ampla concessão de gratuidade favorece processos temerários e sobrecarrega as cortes brasileiras.

Tudo isso foi ressaltado no voto do ministro Og Fernandes, que classificou como razoáveis as preocupações, mas optou por manter a jurisprudência já praticada pelo STJ.

Para ele, é inviável usar parâmetros objetivos para indeferir os pedidos de gratuidade de Justiça, e esses critérios podem ser usados apenas para justificar o procedimento de comprovação da hipossuficiência da parte.

O relator propôs as seguintes teses:

1) É vedado o uso de critérios objetivos para indeferimento imediato da gratuidade judiciária requerida por pessoa natural;
2) Verificada existência nos autos de elementos aptos a afastar a presunção de hipossuficiência econômica da pessoa natural, o juiz deverá determinar ao requerente comprovação de sua condição, indicando de modo preciso as razões que justificam tal afastamento, nos termos do artigo 99, parágrafo 2º, do CPC;
3) Cumprida a diligência, a adoção de parâmetros objetivos pelo magistrado pode ser realizada em caráter meramente suplementar e desde que não sirva como fundamento exclusivo para indeferimento do pedido da gratuidade.

Ricardo Villas Bôas Cueva 2024
Segundo o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, critérios objetivos podem ser usados para que o juiz avalie cada caso concreto – Gustavo Lima/STJ

 

Critérios objetivos, sim

Ao divergir, Cueva defendeu que a definição de critérios objetivos para a análise da gratuidade de Justiça traz segurança jurídica, racionalidade e eficiência às decisões.

Esses critérios devem ser sempre acompanhados de uma análise das peculiaridades do caso concreto. Eles integram a avaliação que o magistrado deve fazer sobre a real capacidade da pessoa de arcar com o custo do processo.

Isso permite que o juiz indefira de pronto o benefício sempre que verificar elementos que comprovem que a parte tem condições financeiras de pagar custas e despesas. Se houver dúvidas, o julgador deverá determinar que a parte comprove suas razões.

“A adoção de critérios objetivos para aferir a insuficiência de recursos da parte mostra-se legítima desde que sirvam de elementos indiciários iniciais, que serão confirmados ou não a partir do caso concreto”, explicou Cueva.

Ele ainda destacou que critérios objetivos para a prestação de serviços públicos são adotados em todas as esferas de atuação do poder público sem maiores polêmicas, e, na tese proposta, listou algumas hipóteses exemplificativas.

O ministro fez a seguinte proposta:

Na apreciação do pedido de gratuidade de Justiça formulado por pessoa natural, da interpretação conferida aos artigos 98 e 99 do Código de Processo Civil extrai-se que:

1) A declaração de pobreza goza de presunção relativa, podendo o magistrado verificar a existência de elementos aptos a afastar e indeferir gratuidade;
2) O dever do magistrado que preside o processo de prevenir eventuais abusos no benefício da gratuidade, aferindo real condição econômica financeira para fim de indeferir total ou parcialmente a gratuidade de Justiça;
3) É legítima a adoção de critérios objetos e de caráter preliminar e indiciário para aferição da insuficiência de recursos, aos quais devem ser aliado às circunstâncias concretas de natureza subjetiva relacionadas à causa;
4) Em caráter exemplificativo, desde que de forma não exclusiva, é possível adotar os seguintes critérios objetivos para a concessão da gratuidade de Justiça:
a) Dispensa de declaração do Imposto de Renda;
b) Ser beneficiário de programa social;
c) Estar representado pela Defensoria Pública no processo;
d) Auferir renda mensal de até 3 salários mínimos ou salário igual ou inferior a 40% do limite máximo de benefícios do regime da previdência social, observada realidade local;
e) Perfil de demanda
f) Custos da causa
5) Na hipótese de o magistrado verificar elementos constantes do autos apto a evidenciar suficiência de recursos da parte requerente a partir do não atendimento dos critérios objetivos e das circunstâncias do caso, poderá, de plano, indeferir o benefício;
6) No caso em que elementos dos autos deixem dúvidas ou sejam insuficientes para comprovar o preenchimento dos pressupostos para concessão do benefício, deverá o magistrado determinar à parte que demonstre as razões que justifiquem a concessão, indicando de modo preciso os elementos que apontem entender seja o caso de deferimento da gratuidade.

REsp 1.988.686
REsp 1.988.687
REsp 1.988.697

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