PEC 65/2023: BC como empresa pública e lawfare

Tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023 [1], com o objetivo de transformar o BC (Banco Central) em empresa pública. Recentemente, a LC (Lei Complementar) 179/2021 o transformou em autarquia de natureza especial, aproximando-o do regime jurídico de maior autonomia das agências reguladoras federais. Na justificação, os autores da PEC alegam que o BC não possui autonomia orçamentária e financeira para garantir a plena execução de suas atividades; e que a recente autonomia formal, concedida em 2021, não é possível de ser materializada sem uma alteração da Constituição que traga uma previsão constitucional de sua autonomia orçamentária e financeira.

Banco Central sede

Também defendem que o orçamento da autarquia deve ter tratamento distinto do Orçamento Geral da União, uma vez que a execução das funções de autoridade monetária não poderia se sujeitar ao mesmo tratamento e às mesmas restrições aplicáveis à execução das demais despesas do OGU. Além disso, a proposta inova ao prever o uso de receitas de senhoriagem para pagar suas despesas. Senhoriagem é a prática dos antigos reis que, para cunhar moedas de prata e ouro, cobravam um percentual que ficava em seus cofres.

Naquela época, ainda havia lastro em metais preciosos. Porém, no caso atual, a senhoriagem se refere ao fato de reservar parte do papel-moeda impresso pelo banco central para se autofinanciar. É criação de moeda pura. Nesse caso, a atividade de custeio do aparato administrativo se apoia não mais nos limites da tributação e na vinculação ao orçamento público, que dá sustentação ao regime monetário em uma economia de produção.

Aqui, já se pode tecer uma crítica: o viés inflacionário da proposta. Em uma economia monetária de produção, a moeda precisa ser neutra. Nesse sentido, os gastos da administração pública devem decorrer de um rígido controle fiscal, que é um dos pilares da manutenção do valor do Real. Não à toa o BC e seu próprio presidente defendem a necessidade de se garantir equilíbrio de gastos a partir da receita dos tributos, cumprindo as metas fiscais, como um dos pilares do próprio regime monetário doméstico.

Propor o financiamento do BC a partir da simples criação de moeda, desvinculada da produção econômica e da respectiva tributação e custeio do setor público, desvirtua a construção do regime fiscal-monetário do país, que se baseia em parte do valor gerado em riquezas no país para sustentar os gastos públicos. Não há, mais, criação de moeda para pagar despesas públicas, um descontrole que ocorria no país até os anos 1980, e que explica, em grande medida, o processo inflacionário histórico da economia brasileira.

No caso, a proposta envolve um custeio alto do BC, em torno de R$ 4 bilhões. Alternativamente, poder-se-ia pensar em separar uma parte das receitas do orçamento federal diretamente ao BC, constituindo uma exceção à inclusão das despesas de custeio do BC no OGU. Porém, sob a ótica do Direito Financeiro, a opção também contraria o princípio da unicidade orçamentária, insculpido no artigo 165, § 5º, da CF, e que segue uma tradição já posta na Lei 4.320/1964.

Em se tratando de proposição legislativa, é preciso, preliminarmente, questionar a problemática e a realidade subjacente à alteração almejada, que se trata de mudança constitucional sobre matéria relevante para a administração pública federal.

Por um lado, questionamos se há, de facto, um problema a ser equacionado pela PEC e qual sua real natureza. Parte-se da percepção de que o BC, pós-LC 179/2021, já dispõe atualmente de autonomia suficiente para o cumprimento adequado de suas atribuições, com manutenção de suas atividades sem restrições relevantes. A discussão também envolve avaliar se a função do BC justifica o proposto tratamento fiscal privilegiado, e quais as implicações para a administração pública federal.

Restrições fiscais da União e orçamento dual da autarquia

As únicas restrições orçamentárias e financeiras enfrentadas pelo BC se referem a despesas de pessoal e custeio administrativo e investimentos. Tais restrições podem, efetivamente, criar algumas dificuldades para a instituição, como limitações para a contratação de pessoal, restrições na fixação da remuneração dos servidores da instituição, como, de resto, todo o serviço público. No entanto, não se pode sustentar que sejam tão expressivas, ainda mais quando a entidade se encontra em fase de processo seletivo para contratação de mais 300 analistas com salário inicial de quase R$ 21 mil – as provas ocorreram no dia 4 de agosto de 2024.

As restrições orçamentárias do BC são as mesmas de outras autarquias como a CVM e as agências reguladoras, e demais órgãos públicos, que observam a rigidez e controle de gastos da máquina pública federal, de modo consolidado. Trata-se de uma preocupação premente para a União, que se encontra em situação fiscal deteriorada desde 2015, e está atualmente em contingenciamento fiscal. Tais restrições apenas refletem as limitações fiscais da União, bem como a necessidade de alcançar as metas fiscais, como sempre ressaltado em pronunciamentos públicos pelo presidente do BC.

De todo modo, as restrições fiscais são apenas parciais para o BC. Há uma lógica dual do orçamento do BC, que se divide em orçamento administrativo e orçamento de autoridade monetária. O orçamento administrativo engloba os gastos da autarquia que entram na LOA e nos gastos primários da União, e que alcançaram R$ 3,8 bilhões em 2023. Isso segue o estipulado pelo artigo 5º, § 6º, da LC 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina a inclusão do orçamento administrativo do BC no OGU.

Já o orçamento de autoridade monetária, que é aquele referente a receitas e despesas ligadas às políticas monetária e cambial, é aprovado pelo CMN, nos termos da Lei 4.595/1964. Este está, portanto, fora da LOA, que já é uma das grandes críticas à política de juros do país, cujos gastos oscilam em torno de 5% do PIB sem restrição ou contingenciamento fiscal algum. Ou seja, independe de qualquer meta fiscal, e mesmo de aprovação pelos parlamentares, além de não enfrentar qualquer restrição de gastos. O arcabouço legal garante, inclusive, cobertura pelo Tesouro Nacional de resultados negativos do BC, nos termos da Lei 13.820/2019. O controle público ocorre apenas por prestação de contas a posteriori ao Congresso, algo de natureza apenas protocolar.

Isso já aponta que a justificação quanto a suposto impedimento de funcionamento do BC e de suas atribuições é pouco aderente à realidade fática.

Problema de facto a ser equacionado pela PEC

A transformação do BC em empresa pública implica a sua não sujeição aos limites de gastos impostos a todos os órgãos da administração pública, nem ao teto de salários no serviço público, com regras de contratação de pessoal e aquisição de bens e serviços mais flexíveis. Isso permite maior autonomia na contratação de pessoal, fixação dos salários de servidores e diretores, e realização de outras despesas de custeio e investimento de forma mais flexível, sem observar as regras de controle da administração federal, que são mais rígidas do que para instituições públicas de direito privado, como os Correios, por exemplo.

Em nossa visão, isso servirá para majorar os salários de membros da diretoria colegiada do BC, que têm remuneração considerada inferior à de diretores de instituições financeiras do setor privado e mesmo de instituições financeiras públicas, como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. Isso tem especial relevância para aqueles diretores (e presidente) que vêm do setor privado.

Questões relevantes

A matéria suscita uma série de questionamentos. O primeiro é se é possível transformar autarquia em empresa pública? A resposta é positiva, apesar de não ser comum, até pela natureza jurídica muito distinta entre os dois regimes. Há o registro da conversão da Casa da Moeda de autarquia em empresa pública pela Lei 5.895, de 19 de junho de 1973. A peculiaridade, entretanto, é que não há função de Estado envolvida, mas efetivamente uma empresa que produz papel-moeda, produto que pode ser, inclusive, exportado para outros países.

1. Precedente para outras agências reguladoras e órgãos da administração pública

A criação de exceção ao princípio da unidade orçamentária significa um precedente para outras autarquias reivindicarem autonomia semelhante, visando a mesma prerrogativa de financiar suas despesas permanentes a partir de receitas próprias. Isso inclui: CVM, Previc, Susep, Aneel, Anatel, ANP, Anvisa, ANS, ANA, Ancine, ANTT, Antaq e Anac.

Também significa potencial risco de demandas de outros órgãos da administração direta do Poder Executivo (como universidades públicas) e do próprio Poder Judiciário, que tem elevado potencial de obter receitas próprias. Tanto os incentivos para aumento de despesas permanentes como para expansão de receitas podem ser substanciais, com a cobrança de taxas diretamente pela prestação de serviços e que não entrariam mais no caixa único da União.

Isso fortalece também a pauta de outros setores como os militares, que buscam a garantia constitucional de 2% do PIB para seus gastos (atualmente, em 1,4% do PIB, ou R$ 123 bilhões). Pode-se deduzir que o resultado esperado seja a perda de controle sobre o orçamento da União, com a sua fragmentação em várias partes autônomas, com aumento das despesas públicas, sem preocupações com a eficiência e economicidade desses gastos como um todo. Pode-se até sugerir que esse tipo de agenda favoreça, basicamente, grupos seletos de funcionários públicos.

2. As atribuições do BC são compatíveis com a natureza de empresa pública?

BC não exerce especificamente uma atividade econômica, mas presta atividade estatal fundamental. Trata-se de atividade típica de Estado. O BC é executor de políticas públicas delineadas nas Leis 4.595/1964 e LC 179/2021. Em nosso ordenamento jurídico, as atividades típicas de Estado são desempenhadas sob regime de direito público, pela administração direta ou pelas autarquias, neste caso se for recomendada gestão administrativa descentralizada para seu melhor funcionamento.

Além disso, diferentemente de empresas privadas ou mesmo públicas, o BC não objetiva lucro. O BC não explora atividade econômica, como faz, por exemplo, na área financeira, os bancos públicos Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, e que justifica um regime jurídico de direito privado para essas instituições financeiras. Não é o caso da autoridade monetária.

Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias são instituições estatais caracterizadas pela exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (artigo 173 da CF). Esses bens ou serviços produzidos geram as receitas que irão pagar suas despesas. O artigo 5º do Decreto-lei 200/1967 delineia claramente a diferença de natureza entre os dois regimes jurídicos. Nesse sentido, pode-se concluir por uma incompatibilidade entre o modelo de empresa pública e as atribuições típicas de Estado exercidas pelo BC.

3. Delegação de poder de polícia a pessoa jurídica de Direito Privado?

Juridicamente, o STF já entendeu a viabilidade de delegação administrativa do poder de polícia estatal a “pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial” (Recurso Extraordinário nº 633.782, do Relator Min. Luiz Fux). Todavia, a Suprema Corte deixou claro que não estava compreendido, nessa possibilidade, o exercício de capacidades normativas, que são essenciais para o BC.

A autarquia regula não apenas a moeda e o mercado de câmbio, mas o sistema financeiro como um todo. De fato, o BC exerce poder de polícia sobre o sistema financeiro nacional, atividade típica da Administração Pública. Isso inclui: regimes de autorização e de resolução, pelos quais a autarquia intervém diretamente na gestão de instituições privadas do sistema financeiro, e quanto ao direito sancionador, no exercício de supervisão prudencial.

4 Outros aspectos

É provável a judicialização pelos servidores do BC de demandas trabalhistas, diante da mudança de regime estatutário para CLT, o que envolverá valores bilionários. Com efeito, a PEC não está lidando com o impacto orçamentário-financeiro em termos previdenciários que derivarão da PEC em sendo aprovada, o que contraria o espírito de responsabilidade fiscal que se tem construído no país desde os anos 1990, nos termos do próprio artigo 113 do ADCT.

Outra crítica é que não há estipulação de teto remuneratório aos novos servidores. O Substitutivo apresentado pelo relator na CCJ prevê apenas um teto global para crescimento de despesas de pessoal e custeio, a ser futuramente definido por LC. Isso significa dizer que haverá limite global para as despesas, mas os diretores e funcionários da empresa pública BC não estarão limitados individualmente ao teto dos servidores públicos.

Conclusão

Como se procurou mostrar, o arcabouço jurídico de sustentação orçamentária e financeira às políticas monetárias e cambial não impõe restrição que justifique a alteração constitucional. O BC não possui constrangimentos para execução de política monetária e cambial, o que contesta a necessidade de transformação da autarquia em empresa pública.

As restrições que observa são apenas aquelas típicas do serviço público. Nesse sentido, a PEC consiste em uma “jabuticaba” que desvirtua a natureza jurídica do BC, que decorre de sua atividade estatal e que não é de empresa. Além disso, constitui perigoso precedente para aprovar novas proposições em desmonte ao regime fiscal federal.

A proposta é clara no sentido de enfraquecer o regime fiscal do país, em benefício dos dirigentes do BC, mas não da administração pública. Rompe-se a unicidade orçamentária e a eficiência da alocação de recursos federais. Além de desnecessária, identifica-se um desacoplamento da justificação com a realidade fática, apontando para uma problemática muito pontual, para aumentar salários dos dirigentes, que sugere constituir caso de lawfare. Há a instrumentalização do Direito sem correspondência com a promoção de eficiência da administração pública ou de outro parâmetro coletivo que aprimore a atuação estatal.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161269. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Direito Administrativo da organização e as relações organizativas

A organização administrativa brasileira exige para o seu estudo mapas e roteiros: conhecimento das estruturas organizacionais e, igualmente, ciência do modo de interação entre os órgãos e as entidades públicas.

As estruturas de organização típicas aparecem no mapa da administração e facilitam identificar a individualidade organizatória, os traços presumidos de determinada entidade ou órgão (sempre sujeitos a confirmação ou transformação ao longo do tempo). As relações organizativas informam, por outro lado, o modo efetivo de funcionamento das estruturas organizacionais e o seu grau de independência ou subordinação, isolamento ou integração, em face das demais unidades do aparato administrativo.

Surpreendentemente, as relações organizativas são amplamente subestimadas, objeto de abusos e incompreensões, manejadas por atos secundários ou individuais pouco transparentes da autoridade pública. Essa situação cria insegurança jurídica para indivíduos, empresas e para os próprios gestores, pois a indeterminação das fronteiras da atuação legítima de autoridades públicas prejudica a agilidade e a estabilidade das decisões administrativas. Sem roteiros claros quanto ao tráfego real das competências ou do exercício das competências a informação caminha enviesada na intimidade da organização e a decisão é adiada ao máximo, atitude defensiva de gestores que compromete a produtividade das estruturas públicas.

Relações organizativas ou atos de organização?

Hierarquia, autonomia, supervisão, coordenação, cooperação e controle — para referir apenas as mais usuais — não são atos ou fatos administrativos e sim relações organizativas densificadas por atos administrativos. É equívoco ainda as definir como um “estado natural” ou “uma relação entre indivíduos/autoridades”, desconsiderando relações interorgânicas e interadministrativas dentro da complexa pluralidade das estruturas públicas.

O direito administrativo da organização não é exclusivamente um direito de sujeitos administrativos, mas igualmente um direito de relações organizativas. E por sujeitos administrativos não se alude necessariamente a pessoas, pois há sujeitos administrativos que não são pessoas jurídicas (por exemplo, os órgãos, que são unidades de atuação despersonalizadas e ao mesmo tempo sujeitos administrativos na medida em que a lei lhes atribua identidade organizatória, direitos-função e sejam centros individualizados de imputação jurídica) [1].

As normas de organização podem ser primárias (legais e constitucionais) e secundárias (regulamentares ou derivadas), mas é grave quando relações de organização e prorrogativas derivadas não encontram balizas claras em normas antecipadamente estabelecidas. O jogo mais perigoso é o jogo sem regras. Há necessidade de o legislador voltar os olhos com maior atenção para as relações organizativas como elemento essencial à garantia dos cidadãos, pois a distribuição de tarefas e encargos, competências e prerrogativas, no interior da administração não deve ser imprevisível. Este não é um problema de determinado governo, ou do governo do momento, mas do Estado brasileiro.

A determinação da competência como problema organizatório

A Constituição e as leis criam as competências públicas. E não pode ser de outro modo: “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, artigo 5, II). No entanto, a distribuição concreta das competências legais, a sua abrangência prática e o grau de sua definitividade no âmbito público dependem de relações mantidas na intimidade da organização dos poderes. E assim também ocorre na organização administrativa.

A  transferência de competências de um para outro órgão na administração direta, possível de realizar-se por simples decretos de organização (CF, artigo 84, VI, a);  a decisão de recursos hierárquicos e de recursos hierárquicos impróprios (em verdade, recursos de supervisão), no segundo caso quando isto seja expressamente admitido por lei (CF, artigo 37 XIX e XIX); a arbitragem administrativa de conflitos interorgânicos ou conflitos de competência; medidas de desconcentração de competências na intimidade de uma mesma pessoa administrativa ou de descentralização de competências de uma pessoa administrativa para outra, inclusive em termos interfederativos (CF, artigo 241), são algumas hipóteses que evidenciam a distância que separa a dinâmica da organização do quadro geral estático das formas de organização.

A exigência de autorização legal para o exercício da competência material pelos órgãos e entidades públicas indiscutivelmente é garantia fundamental de liberdade, mas é insuficiente: ela oferece segurança apenas quando há regras que definem antecipadamente o como, o quando e a extensão possível relativamente às transferências de competências (ou de exercício de competência) na intimidade da organização administrativa. Essas regras devem ser flexíveis, permitir o manejo seguro e facilitado de encargos e prerrogativas no interior da organização, mas devem existir com precisão e serem conhecidas de todos, para a segurança dos próprios gestores.

Por exemplo, hoje não há regras para definir claramente as prerrogativas decorrentes do artigo 84, VI, a, da Constituição. Pode o presidente, por decreto de organização, esvaziar amplamente as competências de órgãos públicos, sem extingui-los, transferindo-as para outros órgãos? Pode invocar a previsão do artigo 84, VI, a (“dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal”), combinada com prerrogativa constante do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) para transferir competências inseridas na esfera de pessoas descentralizadas ou apenas manejar e redistribuir competências de órgão da administração direta? Se não pode, com decreto de organização, aumentar despesa, criar ou extinguir órgãos públicos, pode inviabilizar o exercício dessas mesmas competências com a omissão, sem limite, do ato de nomear dirigentes ou integrantes de órgãos colegiados essenciais ao funcionamento desses órgãos ou de entidades supervisionadas? Pode reduzir despesas, e a liberação financeira de recursos orçamentários, suprimir ou transferir todo o pessoal de determinado órgão sem que essas ações sejam consideradas “extinção de órgão”? Pode fundir órgãos subordinados, preservadas todas as competências materiais estabelecidas pelo legislador, para evitar a duplicidade de estruturas organizativas? Em outras palavras, a proibição de extinção de órgãos por decreto de organização é material ou formal? Órgãos devem ser considerados extintos quando a previsão orçamentária aprovada não se converter em liberação financeira efetiva em termos relevantes e substanciais?

Na supervisão ministerial, por igual, permanecem incertos os limites dos recursos de supervisão. Cabem para atos normativos ou apenas para atos administrativos concretos? Podem ser consideradas implícitas na competência do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) ou exigem lei expressa autorizativa, dada a natureza da entidade supervisionada de possuir personalidade autônoma, destacada da administração direta por decisão do legislador (CF, artigo 37, XIX e XX)? O legislador pode afastar completamente os poderes de tutela quando adotadas decisões finais em diretoria colegiada, como parece ter fixado o artigo 3º, da Lei 13.848/2019? Quais os limites da supervisão ministerial em termos de “adequação das entidades às políticas públicas”? Como assegurar a efetiva ampliação de autonomia gerencial, orçamentária e financeira de órgãos e entidades que assinarem contratos de desempenho, na forma do artigo 37, §8º, da Constituição, sem que os compromissos assumidos sejam comprometidos por contingenciamentos ou lentidão na liberação financeira?

Na relação de hierarquia, do mesmo modo, há limites pouco explorados. Além dos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público, Defensoria, Tribunais de Contas), mesmo na intimidade dos órgãos exclusivamente administrativos da administração direta há alguns que não podem, pela natureza das funções, subordinarem estas a determinações hierárquicas. É o caso dos colegiados consultivos, com frequência não remunerados e de representação social; os colegiados deliberativos, presididos pela autoridade máxima do órgão, mas que deliberam em votação e discussão as matérias a seu cargo; os órgãos periciais e policiais na matéria pertinente às investigações e perícias a serem produzidas.

Por óbvio, para várias dessas perguntas professores de direito oferecem diferentes respostas. Respostas com frequência polêmicas, que dividem e apaixonam correntes de entendimento, suscitam questionamentos, repercutem no Poder Judiciário e deixam inseguros os próprios gestores.  Se desejamos uma administração pública mais eficiente e menos vacilante, mais econômica e menos redundante, socialmente mais efetiva e menos questionada em cada passo, devemos cuidar de disciplinar com maior clareza e precisão as suas normas de organização como tarefa urgente e estruturante do Estado, sobretudo as normas dedicadas às relações organizativas [2].

Comissão de Revisão do DL 200/67

No âmbito dessa missão de Estado, de complexidade indiscutível, o governo federal recentemente instituiu Comissão de Especialistas destinada a sugerir a revisão global do Decreto Lei 200/1967, editado em pleno período autoritário, ainda hoje considerado norma referencial em matéria de organização administrativa.

Embora amplamente superado pela legislação superveniente, o Decreto-Lei 200 segue sendo norma que suscita incompreensões e oculta lacunas relevantes da disciplina da organização administrativa no Brasil. Nessa missão de revisão, a Comissão dividiu os seus trabalhos em cinco eixos temáticos:

1) Eixo A – Estrutura Organizacional: Administração direta e supervisão ministerial; Autarquias, fundações e novas figuras; ⚬ Governança de estatais;

2) Eixo B – Governança, planejamento e orçamento: Ciclo de política pública; Tomada de decisão e sistemas de governança; Coordenação entre planejamento e orçamento; Metodologias e instrumentos para planejamento e acompanhamento da execução orçamentária; Monitoramento e avaliação;

3) Eixo C – Parcerias em políticas públicas: Articulação e atuação interfederativa; Parcerias com a sociedade civil ⚬ Participação social;

4) Eixo D – Inovação e controle: Inovação na gestão e em políticas públicas; Transformação digital na administração pública; Integridade e transparência; Sistema de controle; Relação entre gestão, inovação e controle.

Os eixos revelam a abrangência do trabalho, que pretende seguir metodologia participativa: realização de eventos em diversas capitais para debate ampliado dos tópicos referidos, oitiva de instituições interessadas e elaboração de relatórios propositivos para cada eixo antes da consolidação dos resultados dos debates em anteprojeto normativo a ser apresentado ao presidente da República. Trata-se de percurso mais demorado do que a simples elaboração de uma proposta normativa direta, porém uma escolha que pode render frutos e sugestões enriquecedoras.

Tendo sido convidado a integrar a Comissão, desta vez formada não apenas por professores de direito e integrada também por administradores e cientistas políticos, pretendo nos próximos meses – e colunas – abordar tópicos relacionados à organização administrativa brasileira e possíveis respostas para o seu desenvolvimento.

Há reformas administrativas que dispensam emendas constitucionais, proclamações solenes, balas de prata, enunciados eloquentes. A reforma da organização federal, que nos formatos organizacionais de direito privado aplica-se a todos os entes da Federação, pode eventualmente oferecer soluções para uma administração mais eficaz, eficiente e socialmente justa e sintonizada com o nosso tempo. Para a atender a esses fins ela deve cuidar com atenção especial, além das formas de organização, das relações organizativas que movimentam e articulam as decisões na intimidade da administração pública.


[1] Sobre o tópico dos órgãos como sujeitos administrativos, e a dissociação entre os conceitos de sujeito de direito e personalidade jurídica (presente também no direito privado), cf. MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo governo federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009; 2ed, 2011. Na internet, disponível no endereço: https://www.academia.edu/45494341 Sobre o conceito de direito-função, direito à própria função, reconhecido aos órgãos inclusive para a defesa judicial de atos contrários a suas prerrogativas institucionais, há inúmeros precedentes (entre muitos, STF, MS 21.239, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgamento 05/06/1991, DJ 23-04-1993; ADI 1557, rel. min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 18.06.2004; RE 595176 AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julg. 31/08/2010, DJe-235, 03-12-2010; ADI 5.275, rel.  Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julg. 11/10/2018, DJe-230, 26-10-2018). A doutrina administrativa repete como mantra que os órgãos não são pessoas, embora possam gozar de “personalidade judiciária, podendo demanda em juízo e defender os seus direitos institucionais” (STJ, Súmula 525). Mas não é isto que está em causa no plano interno da organização administrativa. Neste domínio, os órgãos possuem subjetividade organizatória, desde que a lei assim o estabeleça, seja diretamente (assegurando independência) seja indiretamente (fixando competências materiais incompatíveis com o exercício desimpedido de poderes hierárquicos). O direito real não está submetido a mantras.

[2] Sobre a tentativa anterior, na Gestão Lula I, de reforma da organização administrativa, conferir: MODESTO, Paulo. Anteprojeto de novas lei de lei de organização administrativa: síntese e contexto. REDE, n. 27, 2011. Disponível em https://www.academia.edu/7789782 ou http://www.direitodoestado.com.br/artigo/paulo-modesto/anteprojeto-de-nova-lei-de-organizacao-administrativa-sintese-e-contexto

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Erro em manuseio de sistema de tribunal afasta renúncia a prazo recursal, decide STJ

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que um recurso interposto após a parte ter renunciado ao prazo deve ser aceito para julgamento, pois foi reconhecido que a renúncia decorreu de erro no manuseio do sistema eletrônico. De acordo com o colegiado, esse entendimento privilegia os princípios da razoabilidade, da confiança e da boa-fé processuais.

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Parte selecionou campo de renúncia a prazo, apesar de ter peticionado agravo – Freepik

Em ação de execução de título extrajudicial, uma das pessoas envolvidas no processo renunciou ao prazo para recorrer no sistema eletrônico do tribunal de segundo grau, sem, contudo, peticionar nesse sentido, tendo apenas selecionado o campo correspondente no sistema.

Logo em seguida, a mesma parte interpôs agravo contra uma decisão da corte. A parte contrária, então, apresentou contrarrazões ao agravo, alegando que o recurso não poderia ser conhecido em virtude da expressa renúncia ao prazo.

O tribunal estadual, porém, considerou que os pressupostos de admissibilidade estavam presentes e que, diante da interposição do recurso dentro do prazo, a renúncia informada no sistema era irrelevante. A corte concluiu que houve apenas um erro material e conheceu do agravo.

Princípio da boa-fé

A relatora do caso na 3ª Turma, ministra Nancy Andrighi, explicou que, nos termos do artigo 225 do Código de Processo Civil, a parte poderá renunciar ao prazo estabelecido exclusivamente em seu favor, desde que o faça de maneira expressa.

A ministra também observou que, conforme preceitua a doutrina, a renúncia ao prazo se caracteriza como negócio jurídico, devendo ser interpretada de acordo com as normas respectivas previstas no Código Civil.

Apesar da previsão normativa, a relatora apontou que vícios de vontade podem contaminar negócios processuais. A partir da interpretação do artigo 138 do Código Civil, Nancy Andrighi afirmou que o negócio jurídico pode ser anulado devido a erro que, além de essencial, seja desculpável, resultante do manuseio equivocado do sistema eletrônico.

Para a magistrada, se houve renúncia ao prazo e, ainda assim, foi interposto recurso que cumpre os requisitos de admissibilidade, tendo a parte peticionado para informar que sua intenção era a de efetivamente recorrer e tendo o julgador concluído pela ocorrência de erro escusável no manuseio do sistema eletrônico, a renúncia deve ser anulada.

Esse entendimento está apoiado em jurisprudência do STJ, que demonstra a necessidade de tolerância em situações semelhantes (EAREsp 1.759.860).

“Com este entendimento, privilegiam-se os princípios de razoabilidade, confiança e boa-fé presentes no Código de Processo Civil, bem como interpreta-se o negócio jurídico processual conforme determina o Código Civil”, pontuou a ministra Nancy Andrighi. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 2.126.117

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Novo sistema de peticionamento usado no plantão judiciário passa a valer para todos os habeas corpus

O novo sistema de peticionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), adotado inicialmente para os dias de plantão judiciário (sábados, domingos e feriados), está disponível também para a impetração de habeas corpus a qualquer tempo. As petições continuam sendo enviadas pela Central do Processo Eletrônico (CPE), mas o ambiente atualizado torna a operação mais fácil e segura.

De acordo com a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, o aperfeiçoamento da plataforma tem importância estratégica, pois dá mais rapidez e segurança ao processamento dos pedidos. “O habeas corpus é uma das classes processuais com maior crescimento nos últimos anos. Aprimorar a tramitação desse instrumento de defesa dos direitos do cidadão é fundamental para que o tribunal possa dar respostas à sociedade de forma célere”, comentou a ministra.​​​​​​​​​

As vantagens do novo ambiente, criado para o peticionamento no plantão judiciário, agora estão a serviço da impetração de habeas corpus em qualquer dia da semana.

Atualmente, o habeas corpus é a segunda classe processual mais recebida pelo STJ, ficando atrás apenas do agravo em recurso especial. Em 2024, até o mês de agosto, foram recebidos cerca de 53,3 mil habeas corpus, o que corresponde a aproximadamente 18% de todos os processos em tramitação na corte.

Somente durante as férias forenses de julho, a Presidência e a Vice-Presidência receberam mais de 10 mil processos, a maioria dos quais – 6.856 – era constituída de habeas corpus.

Peticionamento mais rápido e seguro para advogados

O novo sistema traz atualizações baseadas em visual law (uso de recursos visuais para facilitar a compreensão de mensagens na área do direito) e linguagem simples, para evitar equívocos quanto às possibilidades de peticionamento. Além disso, ele é capaz de fazer perguntas direcionadas e solicitar dados e documentos com base nas respostas fornecidas pelo usuário.

Nas palavras de Augusto Gentil, titular da Secretaria Judiciária (SJD), a plataforma foi totalmente repaginada para oferecer mais segurança e assertividade aos advogados no ato de peticionar. “O novo formato trará mais celeridade ao processamento inicial dos habeas corpus e permitirá ao STJ promover a automação de rotinas cartorárias a partir das informações obtidas”, disse o gestor.

O novo ambiente de peticionamento foi inaugurado durante os dias de plantão judiciário de julho, e os primeiros resultados positivos já apareceram. A funcionalidade foi aprovada pelos advogados, que destacaram a interatividade do sistema e a facilidade de peticionar.

Essa percepção foi compartilhada pelo coordenador de Classificação e Distribuição de Processos da SJD, Jorge Gomes, que revelou os avanços da nova plataforma: “Observamos uma redução no número de processos encaminhados. Isso indica que o sistema está mais claro e tem ajudado os advogados, pois os processos passaram a ser recebidos com mais informações preenchidas e documentos devidamente identificados. Diante desses resultados, decidiu-se expandir o uso da versão interativa”.

Fonte: STJ

Restrição do STJ à judicialização do Carf valoriza tribunal administrativo

Ao restringir o uso da ação popular para atacar acórdãos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), o Superior Tribunal de Justiça valoriza a função exercida pelo órgão dentro da administração tributária.

Acórdão do Carf foi atacado por ação popular ajuizada por auditor fiscal inconformado com resultado pró-contribuinte – André Corrêa/Agência Senado

A conclusão é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em relação ao julgamento da 1ª Turma do STJ, concluído na terça-feira (6/8).

O colegiado definiu que a ação popular só serve para contestar acórdãos do Carf se as posições assumidas forem ilegais, contrárias a precedentes sedimentados ou maculadas por abuso de poder.

Presidente do Conselho entre 2022 e 2023 e conselheiro de 2012 a 2018, Carlos Henrique de Oliveira, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, avalia que a posição do STJ é pertinente, por demonstrar uma visão sistêmica.

Embora o Carf faça parte da administração tributária, é um tribunal administrativo de composição paritária — metade composto por representantes da Receita, metade por indicados por entidades empresariais — que se pauta pelo respeito ao equilíbrio entre o Fisco e os contribuintes.

“O Carf só tem relevância pública se efetivamente pacificar os litígios tributários. Se ele não tiver essa função pacificadora, não adianta. Aí vai tudo pro Judiciário. E ele exerce essa função proferindo decisões justas”, disse o advogado.

“A visão do STJ valoriza o tribunal administrativo, permitindo que suas decisões sejam atacadas desde que eivadas de ilegalidade”, afirmou.

A ex-conselheira Mírian Lavocat, sócia do Lavocat Advogados, também elogiou a posição do STJ, ao destacar que as decisões pró-contribuinte do Carf passam por um processo amplo, com contraditório e ampla defesa respeitado para ambas as partes.

“É bom que o STJ uniformize essa questão, no sentido de que a ação popular não pode ser diminuída para combater vícios inexistentes. Não se pode diminuir o objeto de uma ação popular.”

Respeitem o Carf

A posição do STJ é benéfica para os contribuintes porque a ação popular, regulada pela Lei 4.717/1965, é o meio à disposição de qualquer cidadão para invalidar atos que considere lesivos ao patrimônio público.

Quando usadas contra o Carf, elas apontam que esse prejuízo seria causado pelas posições contrárias ao Fisco tomadas pelo conselho, ao entender não serem devidos os créditos tributários alegados pela Receita Federal.

Esse uso da ação popular, portanto, será sempre contrário às pretensões do contribuinte. Até porque as empresas que são derrotadas administrativamente não têm qualquer restrição ao ajuizamento de ações para discutir judicialmente as mesmas questões tributárias.

O recurso julgado partiu de uma entre centenas de ações populares ajuizadas por um único auditor fiscal contra o Carf. Só no STJ há mais de 200 recursos especiais e agravos, segundo a ministra Regina Helena Costa.

Esse grau de litigiosidade decorre de uma opção pessoal do auditor fiscal e não reflete uma visão institucional. Ainda assim, um procurador da Receita Federal fez sustentação oral na 1ª Turma para defender o uso da ação popular, invadindo o mérito da discussão.

Esse fator não passou despercebido e gerou críticas. A ministra Regina Helena Costa disse que nota uma cruzada contra o Carf em andamento e que a própria União, por vezes, não o reconhece como um órgão de sua própria estrutura.

“Se não for assim, que se extinga o Carf. Se não se aceita que um órgão de composição paritária possa julgar favoravelmente ao contribuinte, então para que existe esse órgão?”, provocou a relatora.

Bronca propícia

Para Carlos Henrique de Oliveira, a bronca chama atenção para o fato de que Carf, Fisco e Procuradoria-Geral da Receita Federal estão do mesmo lado e em pé de igualdade. “Se o Carf faz parte da administração tributária, não faz sentido a procuradoria se insurgir.”

“Pena que, nesses casos de ação popular, não existe sucumbência”, disse Mirian Lavocat. “Em situações como essa, de litígio despropositado, mereceria uma sucumbência inclusive recursal no STJ.”

Ela avalia que, desde 2015, após a “operação zelotes”, há uma tentativa de diminuir e desmoralizar o Carf, órgão que é prolator de decisões citadas nas jurisprudências de STJ e do Supremo Tribunal Federal.

A investigação citada envolveu denúncia de redução e anulação de créditos tributários de grandes empresas, mediante suposto pagamento de propina a conselheiros.

Ela gerou auditoria do Tribunal de Contas da União, que concluiu que o Carf tinha risco de conflito de interesse no sistema de escolha dos conselheiros, além de problemas de transparência, gestão da ética, processo de responsabilização e morosidade dos julgamentos.

“Acredito que essa postura busca desacreditar o tribunal administrativo e consequentemente, diminuir as garantias constitucionais dos contribuintes, eis que a composição do Carf é paritária, ou seja, composto por representantes da Receita Federal e dos contribuintes”, opinou a advogada.

REsp 1.608.161

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Acidente de trabalho: obrigações para um meio ambiente preventivo

No último dia 27 de julho foi celebrado o marco nacional pela prevenção dos acidentes do trabalho nas organizações, de sorte que a referida data visa alertar e conscientizar sobre a importância da adoção de práticas que possam minimizar a redução dos acidentes e das doenças relacionadas ao trabalho, e, por certo, proporcionar um meio ambiente do trabalho seguro e saudável [1].

Dada a sensibilidade e a importância do assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Dados estatísticos

De plano, impende frisar que as pesquisas revelam dados alarmantes. De acordo com o Ministério Público do Trabalho, entre os anos de 2012 e 2022, o Brasil registrou aproximadamente 6,7 milhões de acidentes de trabalho, sendo que o país lidera o ranking mundial [3]. Outro estudo indicou que uma pessoa morre a cada 3 horas em razão de acidente típico de trabalho sofrido no Brasil, de modo que os gastos com afastamentos previdenciários ultrapassaram a quantia de R$ 150 bilhões [4].

De outro norte, somente no ano de 2022, o país registrou 612,9 mil notificações de CAT (Comunicação de Acidentes do Trabalho), resultando em mais de 148,8 benefícios concedidos pelo INSS e mais de 2.500 óbitos por acidentes [5]. O estado de São Paulo, aliás, foi o que apresentou maior volume de notificações por acidentes de trabalho, seguido por Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Dentre os setores da economia que mais registraram casos de acidentes de trabalho está o segmento da saúde, justamente por conta do atendimento hospitalar, e, na sequência, os profissionais que atuam nos setores da construção civil, transporte rodoviário de cargas e comércio [6].

Legislação

Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, a Constituição, em seu artigo 7º, inciso XXII [7], estabelece como um direito social dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio das normas de saúde e segurança. Lado outro, a CLT possui um capítulo específico sobre a temática, de sorte a disciplinar acerca dos deveres da empresa [8] e dos empregados [9] quanto à segurança e à medicina do trabalho.

De outro norte, não se pode esquecer das conhecidas “Normas Regulamentadoras – NR”, que consistem em obrigações, direitos e deveres que devem ser respeitados pelos empregadores e pelos empregados [10], sendo válido lembrar que, para a elaboração e revisão dessas normas regulamentares, adota-se um sistema tripartite paritário, que é proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como por grupos e comissões de representantes do governo, de empregadores e trabalhadores.

Aliás, no ano de 2018, o Ministério do Trabalho publicou a Portaria nº 787, de 27 de novembro de 2018 [11], que dispõe sobre as regras de aplicação, interpretação e estruturação das Normas Regulamentadoras, tal como dispõe o artigo 155 da Consolidação das Leis do Trabalho [12].

Já do ponto de vista internacional, a Convenção 155 da OIT sistematiza a segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, com o objetivo de prevenir acidentes e danos, reduzindo, pois, os riscos laborais [13].

Entrementes, é relevante registrar a existência da American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH) [14], uma organização sem fins lucrativos que se dedica a fornecer informações e orientações sobre saúde ocupacional e higiene industrial, fundada em 1938 por um grupo de higienistas industriais governamentais dos Estados Unidos [15].

E no que tange ao aspecto previdenciário, intrínseco aos acidentes laborais, cabe destacar que a Lei nº 8.213, de julho de 1991 [16], que dispõe sobre os planos de benefícios da previdência social, cujo artigo 118 [17] traz a estabilidade no emprego em caso de acidente de trabalho pelo prazo mínimo de 12 meses. De igual modo, a Súmula 378 da Corte Superior Trabalhista enfrenta e questão envolvendo a estabilidade do trabalhador acidentado [18].

Lição de especialista

A propósito da temática, no que se referem aos deveres gerais das empresas e dos trabalhadores em torno da prevenção dos acidentes de trabalho, oportunos são os clássicos ensinamentos de Arnaldo Sussukind, Delio Maranhão, Segadas Viana e Lima Teixeira [19]:

“A legislação brasileira deu ênfase especial a prevenção dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Como veremos adiante, as empresas estão obrigadas – dependendo do respectivo porte e da atividade que empreende – a manter serviço especializado em segurança e medicina do trabalho, além da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), integrada por representantes dela e dos trabalhadores.

Os empregadores têm o dever de instruir seus empregados sobre as precauções a tomar, a fim de evitar acidentes do trabalho, doenças e intoxicações ocupacionais e ainda, colaborar com as autoridades na adoção de medidas que visem à proteção dos empregados e a fiscalização, como veremos adiante, especialmente quanto a comissão de prevenção. Mas a verdadeira prevenção decorre da conscientização do empresário, uma vez que, além do aspecto humano e social, o acidente de trabalho acarreta prejuízo à empresa. E também necessária é a conscientização do trabalhador de que mais graves e dolorosas consequências recaem sobre ele próprio e de sua família”.

Portanto, indubitavelmente, tanto o empregado quanto o empregador possuem obrigações quanto à prevenção aos acidentes, sendo de suma relevância o estudo aprofundado e aplicação das normas regulamentares, que para além de garantirem uma maior segurança e um ambiente laboral equilibrado, previnem casos de doenças e acidentes do trabalho típicos.

Bem por isso, é preciso uma mudança de mentalidade para entender que a prevenção não se trata de um custo para empresa (monetização da saúde), mas sim de um investimento. Vale dizer, é muito mais benéfico a prevenção do acidente do que a reparação em si pelos danos e prejuízos daí resultantes.

Portanto, é imprescindível que haja uma melhor conscientização a respeito da problemática, sobretudo por meio de maior acesso à informação, como também de realização de treinamentos, fornecimento de equipamento de proteção, dentre outros mecanismos. Em arremate, é preciso que sejam adotadas medidas estratégicas e práticas efetivas para a implementação das medidas de segurança, vez que a redução dos acidentes não só garante a proteção e a dignidade dos trabalhadores, mas também proporciona benefícios à sociedade, inclusive, à própria saúde financeira das empresas.


[1] Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/27-7-dia-nacional-da-prevencao-de-acidentes-do-trabalho-7/. Acesso em 30/7/2024.

[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[3] Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2024/04/6847365-brasil-e-um-dos-paises-mais-perigosos-do-mundo-para-trabalhar-diz-mpt.html. Acesso em 30/7/2023.

[4] Disponível em https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/especial-publicitario/soc/noticia/2024/03/26/uma-pessoa-morre-a-cada-3-horas-vitima-de-acidente-de-trabalho-no-brasil.ghtml. Acesso em 30/7/2024.

[5] Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-07/acidentes-de-trabalho-no-brasil-chegaram-612-mil-no-ano-passado. Acesso em 30/7/2024.

[6] Disponível em https://www.cut.org.br/noticias/brasil-registra-mais-de-612-mil-acidentes-de-trabalho-e-mais-de-2-500-mortes-em-f130. Acesso em 30/7/2024.

[7] CRFB, Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XXII redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

[8] CLT, Art. 157 – Cabe às empresas: I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.

[9] CLT, Art. 158 – Cabe aos empregados: I – observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior. Il – colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo. Parágrafo único – Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada: a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior; b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.

[10] Disponível em https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/normas-regulamentadoras-nrs . Acesso em 30/7/2024.

[11] Disponível em https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/seguranca-e-saude-no-trabalho/sst-portarias/2018/portaria_sit_787_-estrutura_e_interpretacao_de_nrs-_atualizada_2019.pdf/view. Acesso em 30/7/2024.

[12] CLT, Art. 155 – Incumbe ao órgão de âmbito nacional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho:  I – estabelecer, nos limites de sua competência, normas sobre a aplicação dos preceitos deste Capítulo, especialmente os referidos no art. 200; II – coordenar, orientar, controlar e supervisionar a fiscalização e as demais atividades relacionadas com a segurança e a medicina do trabalho em todo o território nacional, inclusive a Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes do Trabalho; III – conhecer, em última instância, dos recursos, voluntários ou de ofício, das decisões proferidas pelos Delegados Regionais do Trabalho, em matéria de segurança e medicina do trabalho.

[13] Disponível em https://www.trt2.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_155.html. Acesso em 30/7/2024.

[14] Disponível em https://www.acgih.org/ . Acesso em 30/7/2024.

[15] A ACGIH é reconhecida internacionalmente como uma autoridade líder no campo da higiene industrial e saúde ocupacional.

[16] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em 30.7.2024.

[17] Lei 8.213/1991, Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente.

[18] Súmula nº 378 do TST. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ACIDENTE DO TRABALHO. ART. 118 DA LEI Nº 8.213/1991. (inserido item III) – Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I – É constitucional o artigo 118 da Lei nº 8.213/1991 que assegura o direito à estabilidade provisória por período de 12 meses após a cessação do auxílio-doença ao empregado acidentado. II – São pressupostos para a concessão da estabilidade o afastamento superior a 15 dias e a conseqüente percepção do auxílio-doença acidentário, salvo se constatada, após a despedida, doença profissional que guarde relação de causalidade com a execução do contrato de emprego. III – O empregado submetido a contrato de trabalho por tempo determinado goza da garantia provisória de emprego decorrente de acidente de trabalho prevista no  n  no art. 118 da Lei nº 8.213/91

[19] Instituições de direto do trabalho, volume 1 – São Paulo: LTr, 2005. Página 940.

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Agravamento do risco no contrato de seguro

O contrato de seguro é essencialmente marcado pelo risco. Enquanto elemento que independe da vontade das partes, o risco se caracteriza pela possibilidade da ocorrência de um evento futuro e incerto que ameaça o interesse do segurado [1], de modo a justificar a necessidade de proteção, “relativo à pessoa ou a coisa”, por meio do contrato de seguro (artigo 757 do Código Civil). A obrigação do segurador é, portanto, a de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados mediante o recebimento de uma contraprestação. É dizer, o seguro é a transferência do risco do segurado para o segurador.

 

O mutualismo é também uma característica fundamental do seguro. A partir da contribuição dos prêmios, os riscos são pulverizados entre os segurados, formando um fundo comum que suportará o ônus em caso de sinistro. Daí porque a boa-fé no contrato de seguro desempenha um papel crucial na análise precisa do risco assumido pela seguradora, uma vez que essa avaliação é resultado das informações fornecidas pelo segurado.

Qualquer desajuste nesta etapa — seja por omissão de dados, seja pela prestação de informações distorcidas ou imprecisas — pode desequilibrar o contrato.  Afinal, “a qualidade, a transparência e a veracidade das informações transmitidas ao segurador são requisitos que impactam a possibilidade de obter uma cobertura de seguro-garantiadesde a formação, interpretação, execução e extinção contratual” [2].

Essa assimetria também decorre de outro aspecto. O risco não é estático e pode ser alterado durante a vigência do contrato, seja por ação do segurado ou por fatores alheios ao seu controle.  A primeira hipótese interessa à reflexão, isto é, quando o segurado é o agente responsável pela modificação do risco, agravando a probabilidade de sinistro (ou suas consequências) a ponto de perder a garantia.

O artigo 768 do Código Civil estabelece que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. Doutrina e jurisprudência não conseguiram alcançar um consenso a respeito da temática do agravamento do risco, especialmente no tocante ao requisito da “intencionalidade”, devido à subjetividade do conceito. Apesar das divergências, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) delimitou como característica de conduta capaz de gerar a perda do direito à garantia a intencionalidade do agente, ou seja, a existência de conduta volitiva capaz de aumentar o risco.

Além da intencionalidade, é essencial analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro. O STJ enfatiza a necessidade de que exista um nexo de causalidade entre o comportamento do agente e o evento. Um exemplo disso ocorre nos casos de embriaguez ao volante, hipótese em que a conduta do sujeito deve ser determinante para o evento.

Nesse sentido: “[…] o estado de embriaguez do condutor de veículo, caso seja determinante para a ocorrência do sinistro, é circunstância apta a excluir a cobertura do seguro contratado, por constituir causa de agravamento do risco [3]“. Do mesmo modo: “[…] o entendimento jurisprudencial recente procurou buscar amenizar os efeitos do agravamento dos riscos por ato voluntário do segurado, pendendo para a solução de que se deve analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro”. [4]

Seguro para danos derivados de vendaval

Se a intencionalidade é atributo da conduta que agrava o risco, logo, aquilo que foge da vontade e do controle do segurado não tem aptidão para atrair a consequência prevista no artigo 768.

Essa reflexão pode ser ilustrada pela apelação cível nº 0003946-39.2012.8.26.0590, julgada pela 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo [5]. O caso envolvia reclamação de segurado de apólice de seguro empresarial (multirriscos) com cobertura para danos derivados de vendaval. Neste caso, embora comprovada a ocorrência de vendaval (risco coberto pela apólice), a seguradora argumentou que o segurado havia agravado o risco ao não realizar os reparos no telhado por ocasião de um primeiro sinistro decorrente do mesmo fator climático ocorrido no mesmo local.

O Juízo, no entanto, afastou a tese defensiva ao ponderar que os reparos não foram efetuados em virtude da ausência de pagamento da indenização securitária a tempo e modo. A conclusão prestigiou a boa-fé no sentido de que “não se poderia exigir que o segurado arcasse com o prejuízo decorrente do evento coberto para aguardar a boa vontade da seguradora em cumprir sua obrigação de indenizá-lo”.

A temática do agravamento do risco também foi debatida na apelação cível nº 1052968-83.2020.8.26.0100 pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, desta vez no contexto do seguro-garantia. O acórdão fundamentou-se na constatação de que alterações contratuais significativas foram realizadas sem o conhecimento da seguradora, o que resultou em um claro agravamento do risco e ofensa aos artigos 768 e 769 do Código Civil.

No caso em análise, o tribunal registrou que os atrasos e falhas da empresa tomadora no curso do contrato de empreitada não foram comunicados à seguradora e que a providência era necessária para que a companhia, então, “pudesse reavaliar o risco do negócio à luz da nova realidade”.

A decisão enfatizou que a comunicação dessas alterações era não apenas uma obrigação contratual, mas também uma medida necessária para que a seguradora pudesse ajustar sua avaliação de risco de acordo com os novos termos estabelecidos. Essa interpretação consagra a boa-fé objetiva especialíssima aplicável ao seguro e sintetiza em que medida a conduta do segurado pode resultar em desequilíbrio da equação econômica do contrato.

Como visto, os atributos do agravamento do risco capazes de resultar na perda do direito à garantia estão sendo moldados e definidos à luz da casuística. A jurisprudência tem desempenhado papel fundamental nesse processo, buscando interpretar e aplicar os requisitos legais de forma a equalizar os interesses das partes envolvidas. Além disso, a boa-fé tem sido o princípio orientador dessas decisões, garantindo que seja preservado o equilíbrio da mutualidade.


[1] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 3ª edição, Rio de Janeiro, 1999. p. 215.

[2] POLETTO, Gladimir Adriani. O seguro-garantia. São Paulo: Editora Roncarati, 2021. p. 53 e 183

[3] AgInt no AREsp 1.629.694/PB, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 21/09/2020, DJe de 24/09/2020.

[4] STJ – REsp: 1175577 PR 2010/0004761-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/11/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/11/2010

[5] TJ-SP 00039463920128260590 SP 0003946-39.2012.8.26.0590, Relator: Mariella Ferraz de Arruda Pollice Nogueira, Data de Julgamento: 24/04/2018, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/04/2018.

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Juiz pode determinar conciliação em pedido de reintegração de posse, decide STF

Juízes podem determinar etapas de conciliação e mediação, assim como a participação de órgãos públicos, antes de decisões sobre reintegração de posse de imóveis ocupados por populações vulneráveis.

Decisão do STF sobre reintegração foi unânime – Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O entendimento é da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. A corte analisou nesta terça-feira (6/8) reclamação da Ambev envolvendo a ocupação de imóvel localizado no Amazonas.

O pedido afirma que o TJ-AM aplicou incorretamente a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 828. Em novembro de 2022, a corte definiu que os tribunais que tratam de casos de reintegração de posse devem instalar comissões para mediar eventuais despejos antes de qualquer decisão judicial.

O STF, no entanto, limita a incidência da decisão às ocupações ocorridas até 31 de março de 2021, enquanto a ocupação do imóvel da Ambev seria posterior.

Conciliação

Zanin considerou a reclamação parcialmente procedente. Para ele, de fato o caso concreto indica que a ocupação ocorreu depois de 31 de março de 2021 e, por isso, não se enquadraria na regra de transição definida pelo STF.

No entanto, pontuou, “nada impede que as instâncias ordinárias, em atitude prudente e de acordo com a realidade dos autos”, determinem etapas prévias de conciliação, mediação ou que exijam a participação de órgãos públicos antes de tomar decisões sobre reintegração de posse que envolvem população vulnerável. Ele foi acompanhado por todos os colegas de 1ª Turma.

“Nada impede que as instâncias ordinárias imponham como etapa prévia à desocupação forçada regime de transição semelhante (ao definido na ADPF 828), como foi feito no caso concreto, em razão do poder geral de cautela do magistrado. Permanece válido, portanto, o rito adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas para o caso concreto, excluída a incidência do referido precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal”, disse o ministro na decisão.

Segundo Zanin, o TJ-AM determinou etapas prévias levando em consideração “as complexidades intrínsecas ao caso”, em especial a existência de população vulnerável no local, incluindo indígenas e estrangeiros”.

Resolução do CNJ

Zanin também citou uma resolução editada em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual é facultado aos juízes fazer audiência de conciliação ou mediação em casos de reintegração envolvendo vulneráveis.

“Também não existe vedação legal, regulamentar ou imposta em precedente vinculante que impeçam que os autos sejam encaminhados à comissão de conflitos fundiários do Tribunal. Por esse motivo, é possível a utilização de um procedimento mais complexo, fundamentado no poder geral de cautela do magistrado, que também pode adequar o procedimento, considerando as peculiaridades do caso”, prosseguiu Zanin.

O caso estava em segredo de justiça porque a Ambev afirmou que seus empregados estavam sendo ameaçados pelos ocupantes. Zanin, no entanto, retirou o sigilo.

Também acolheu a um pedido feito pelos Moradores da Comunidade Ouro Verde, que contestaram o valor da causa, atribuído em R$ 29 milhões, que seria o valor do imóvel ocupado. O valor foi reduzido para R$ 100 mil.

Clique aqui para ler o voto de Zanin
Rcl 67.652

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STJ restringe uso de ação popular para atacar decisões do Carf

As decisões do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) podem ser atacadas por meio de ação popular, mas apenas se forem ilegais, contrárias a precedentes sedimentados ou maculadas por abuso de poder.

A conclusão é da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. O colegiado restringiu a hipótese de ataque judicial aos acórdãos favoráveis ao contribuinte do Carf, última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal.

Carf é a última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal – André Corrêa/Agência Senado

Na terça-feira (6/8) os ministros julgaram improcedente o pedido de anulação de um acórdão da 3ª Turma, pertencente à 4ª Câmara do Carf, que reconheceu a decadência de créditos tributários devidos à Fazenda Nacional pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

O caso foi alvo de ação popular ajuizada pelo auditor fiscal Luiz Cláudio de Lemos Tavares, sob a alegação de que o acórdão do Carf representa um ato lesivo ao patrimônio público por causar prejuízo ao erário, já que exime a FAAP de quitar os valores.

O resultado no STJ representa uma vitória relevante do contribuinte e do próprio Carf, uma vez que a Fazenda Nacional não ajuíza ações para contestar derrotas na seara administrativa — o mesmo não vale para as empresas brasileiras.

Apesar de ter composição paritária — suas turmas são divididas pela metade entre representantes da Receita e conselheiros indicados por entidades empresariais —, o Carf é um órgão da administração federal.

Por isso, o Fisco processar o Carf representaria um contrassenso: a União estaria litigando contra fato próprio. Segundo a jurisprudência do STJ, isso viola a boa-fé objetiva da administração pública federal para com os contribuintes.

A válvula de escape seria o uso da ação popular, que pode ser ajuizada por qualquer cidadão — até mesmo o auditor fiscal cuja autuação acabou derrubada pelo Carf. Para o STJ, esse uso é indevido e ilegal.

A votação foi unânime, conforme a posição da relatora, ministra Regina Helena Costa.

Cartada final

O caso que motivou o julgamento no Carf parte de ato cancelatório que afastou a imunidade da FAAP para pagamento de pagamento de contribuições sociais relacionada à Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na Área de Educação (Cebas).

A notificação fiscal lavrada em 2006 tratou de crédito tributário referente ao período entre janeiro de 1996 a dezembro de 1998. A FAAP levou o caso ao Carf para defender que a Fazenda havia perdido o direito de cobrar esses valores.

A decadência do crédito tributário foi reconhecida no órgão, já que a autuação foi feita mais de cinco anos após o fato gerador do tributo. Com a derrota administrativa, a Fazenda Nacional deu fim ao caso.

O auditor fiscal, no entanto, ajuizou a ação popular para postular que a decadência deve ser contada a partir do primeiro dia do exercício seguinte à data de expedição do ato formal de cancelamento da imunidade tributária.

Tanto a primeira instancia quanto o Tribunal Regional Federal da 4ª Região deram razão ao autor da ação. No STJ, o tema não chegou a ser analisado, já que o caso foi barrado na questão do uso indevido da ação popular.

200 recursos

Relatora, a ministra Regina Helena Costa apontou que não é qualquer acórdão do Carf que autoriza o manejo da ação popular.

Em sua análise, o controle judicial das conclusões do órgão administrativo deve considerar o papel exercido na estrutura da administração pública federal: o da interpretação da lei tributária.

Assim, só seria possível afastar as conclusões do Carf quando elas se mostrarem ilegais, contrárias a precedentes judiciais já sedimentados ou quando apresentarem indícios de desvio ou abuso de poder.

Entender diferente tornaria o papel do Carf supérfluo, já que todas as decisões da União favoráveis aos contribuintes estariam sujeitas a revisão por uma instância distinta — a instância judicial — independentemente de sua legalidade.

O caso concreto indica que essa ameaça, novamente, é real. Segundo a relatora, o auditor fiscal autor da ação tem, apenas no STJ, mais de 200 recursos especiais e agravos interpostos nos autos de ações populares de sua autoria.

Na petição inicial do caso julgado ele próprio indica que estava ajuizando diversas ações “para combater a farra do Cebas” em razão de entendimentos favoráveis ao contribuinte exarados por órgãos como o Carf.

A ministra Regina Helena classificou o grau de litigiosidade como chocante por mostrar insubordinação do auditor a entendimentos jurídicos de órgão hierarquicamente superior — em tese, conduta que representa infração ao dever de lealdade à instituição que serve.

Somos todos um

Não se discute que um auditor fiscal, enquanto cidadão, pode usar da ação popular. Admitir esse uso, de acordo com a relatora, subverteria a estrutura hierárquica da administração pública e permitiria ações como instrumento de vingança.

Para a ministra Regina Helena, isso abriria margem para uma avalanche de ações populares para invalidar posições de instância superior oposta a entendimento de servidores subordinados.

“Vejo, em muitas manifestações, não só judicialmente, mas também extrajudicialmente, uma insurgência, quase uma cruzada contra o papel do Carf. Ele é um órgão de composição paritária, mas é da União. E a própria União se manifesta, por vezes, como se ele fosse um aleijão (uma deficiência), como se fosse uma doença que devesse ser exterminada”, disse.

“Quando o Carf decide, é a administração pública federal decidindo em última instância que o contribuinte tem razão. O Carf não pode proferir decisões legítimas só quando forem favoráveis ao Fisco. Quando ele julga contra o Fisco, suas decisões são tão legítimas quanto”, continuou.

“A União não pode agir como se o Carf não fosse um órgão seu. É tão seu quanto os auditores, como a advocacia da União, quanto a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Mas parece que, por vezes, isso não se reconhece”, afirmou.

“Se não for assim, que se extinga o Carf. Se não se aceita que um órgão de composição paritária possa julgar favoravelmente ao contribuinte, então para que existe esse órgão? Que se faça a propositura legislativa para que se revogue lei que instituiu o Carf. Se ele existe, suas decisões precisam ser respeitadas”, concluiu.

A votação foi unânime. O ministro Paulo Sérgio Domingues acrescentou que causou estranheza o fato de a Fazenda Nacional vir ao STJ defender uma posição pela anulação da decisão do Carf. “Não consigo ver coerência nisso.”

REsp 1.608.161

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Falsa antinomia: relação entre acordos para evitar dupla tributação e regime do Simples

Na Solução de Consulta Cosit nº 220, de 24 de julho de 2024, o contribuinte narra que presta serviços de treinamento e desenvolvimento gerencial a uma empresa sediada no Peru. Considerando o acordo para evitar a dupla tributação firmada pelo país com o governo do Peru, questiona sobre a dedução do imposto de renda e a contribuição social pagos alhures.

Receita Federal - Fachada - Brasília - Agência Brasil - Ministério da Fazenda - Superintendência -

A Receita Federal foi consultada sobre a possibilidade de aplicação de acordo para evitar a dupla tributação por contribuintes optantes pelo Simples Nacional.

 
 

Em situação fática semelhante, outro contribuinte, também optante pelo Simples Nacional, que indicou prestar serviços de engenharia para empresa domiciliada no Chile, com base em acordo para evitar a dupla tributação, consultou a RFB sobre a possibilidade de dedução do imposto de renda retido em favor do governo chileno pelo tomador dos serviços. A resposta consta da Solução de Consulta Cosit nº 219, de 24 de julho de 2024.

O entendimento da Receita refletido nas soluções de consulta é de que não seria possível a dedução dos tributos pagos. Ainda que reconheça que, em tese, a remuneração pelos serviços independentes comportaria a dupla tributação (nos termos do artigo 14, ‘a’, dos acordos) e que, portanto, seria aplicável o mecanismo de crédito (artigo 22, 2), viabilizando a dedução do tributo pago na apuração do imposto doméstico, ainda assim, haveria uma antinomia com a norma que trata do Simples Nacional (Lei Complementar nº 123/2006 — LC 123/2006).

Diante da suposta antinomia, a Receita sustenta a incompatibilidade da aplicação dos acordos para evitar a dupla tributação aos optantes pelo Simples Nacional com base em sete argumentos:

  • (1) a restrição da LC 123/2006 (artigo 18, §14) a redução da carga fiscal a determinados tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) para receitas de exportação, não permitindo a redução relativamente ao imposto de renda;
  • (2) ausência de autorização da LC 123/2006 para que a União conceda isenção ou redução de percentual de imposto sobre a renda (artigo 18);
  • (3) a impossibilidade de compensação de créditos e débitos exceto se ambos fossem apurados dentro do regime do Simples Nacional (LC 123/2006, artigo 21, §9º);
  • (4) a impossibilidade de o contribuinte optante pelo Simples Nacional obter qualquer outro benefício fiscal não previsto na lei complementar de regência (LC 123/2006, artigo 24, §1º);
  • (5) o acordo para evitar a dupla tributação teria status de lei ordinária no sistema brasileiro e só prevaleceria sobre outras leis ordinárias diante da sua especialidade;
  • (6) a Constituição (artigo 146, §1º) exigiria lei complementar para regulação do Simples Nacional (reserva material) e, dada a natureza de lei ordinária aos acordos para evitar a dupla tributação, a LC 123/2006 prevaleceria; e
  • (7) a facultatividade do regime do Simples Nacional, o que impediria ao contribuinte fruir outros benefícios além dos expressamente previstos no regime da LC 123/2006.

Acordo para evitar dupla tributação

Não obstante os fundamentos apontados, chama-se atenção para o fato de que não há real antinomia para que se decida sobre a prevalência da lei complementar, quer em razão da reserva material, quer por razões de hierarquia. O acordo para evitar a dupla tributação não concede benefício fiscal, não dispõe sobre os critérios quantitativos da norma tributária ou institui, majora ou reduz tributo.

Atua em outro plano [1]. Diz com a possibilidade de o Estado tributar determinada renda (regras de alocação do poder de tributar) e, havendo direito de ambos estados contratantes de tributar, aponta qual o mecanismo adequado para aliviar a dupla tributação. Nos casos analisados, utiliza-se o do crédito, autorizando a dedução do tributo pago no Peru ou no Chile.

Não há, portanto, conflito para que se alegue a prevalência hierárquica da lei complementar ou a reserva material fixada pela Constituição. Reforça-se: não há antinomia notadamente porque os escopos dos diplomas normativos são distintos. A LC 123/2006 trata, dentre outras coisas, do regime tributário próprio ao Simples Nacional. Já os acordos para evitar a dupla tributação dizem respeito ao poder do Estado brasileiro de tributar determinadas categorias de renda e, havendo dupla tributação, como neutralizá-la.

As soluções de consulta não se sustentam, e outras razões poderiam ser invocadas. Para reforçar o ponto, vale a observação de que, para enquadramento no regime, a LC 123/2006 traz requisito a partir da receita bruta da empresa. Houve majoração do valor e hoje o limite está em R$ 4,8 milhões (LC 123/2006, art. 3º, II). Parcela importante dos contribuintes está submetida ao regime do Simples.

Prevalecendo o entendimento da Receita, bastaria ao governo majorar o regime ou criar regimes específicos com base em lei complementar para descumprir o que acordou com outros países. Violaria, assim, os compromissos internacionais assumidos, em comportamento que não respeita a boa-fé esperada.


[1] Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os tratados internacionais sobre tributação. In AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (coord.). Tratados internacionais na ordem jurídica brasileira – 2. ed. , rev., atual. e ampl. – São Paulo : Lex, 2014, p. 319.

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