Terceirização, pejotização e fraudes trabalhista e tributária

O debate no Supremo Tribunal Federal sobre relação de emprego, terceirização e pejotização envolve posições divergentes quanto à regulação e à autonomia de contratos trabalhistas. Essa discussão inclui dois focos principais: a terceirização, cuja licitude para atividades-fim foi definida pelo STF no Recurso Extraordinária 958.252 (Tema 725), e a pejotização, em que o trabalhador se constitui como pessoa jurídica (PJ) para prestação de serviços, muitas vezes com características de vínculo empregatício.

Sobre a terceirização, o STF consolidou em 2018 que ela é permitida mesmo para atividades-fim, desde que a empresa contratante tenha responsabilidade subsidiária em caso de descumprimento de obrigações trabalhistas. Essa decisão marcou uma ruptura com a Justiça do Trabalho, que historicamente reconhecia a existência de vínculo empregatício quando elementos como subordinação e pessoalidade estavam presentes, mesmo com a contratação via PJ​

A pejotização, tratada em diversas reclamações (como as RCL 39.351 e 47.843), ganhou apoio de ministros como Luís Roberto Barroso, que argumenta que profissionais hipersuficientes (aqueles com diploma superior e renda elevada) podem optar por esse regime, buscando menor carga tributária e maior flexibilidade contratual. O STF tem frequentemente revertido decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam o vínculo de emprego em casos de pejotização, argumentando que o art. 7º da Constituição não impõe a formalização de toda relação remunerada como empregatícia, apoiando-se nos princípios de livre iniciativa e autonomia das vontades​.

O ministro Flávio Dino,  expressou um voto favorável à repercussão geral em casos de motoristas de aplicativos, indicando sensibilidade ao impacto social das decisões do STF sobre novos formatos de trabalho. Esse voto, aliado à postura de outros ministros, aponta para um julgamento que pode consolidar as regras sobre vínculos e pejotização em plataformas digitais, com potencial para impactar milhares de ações na Justiça do Trabalho​.

Esse debate no STF não está encerrado e pode evoluir com a revisão da jurisprudência, especialmente à medida que aumentam os casos envolvendo trabalhadores em regimes que mesclam pejotização e informalidade.

Fraude trabalhista

No debate recente, em Plenário do STF, observa-se uma complexa divisão quanto ao reconhecimento de fraudes trabalhistas e tributárias associadas à pejotização — prática em que empresas contratam indivíduos como pessoas jurídicas para evitar encargos trabalhistas. O ministro Flávio Dino tem destacado que a pejotização é potencialmente fraudulenta em casos onde sua finalidade principal é disfarçar vínculos empregatícios reais, o que ele identifica como uma ameaça aos direitos dos trabalhadores e à arrecadação tributária devida. Dino e outros ministros preocupam-se com a possibilidade de violação do princípio da dignidade do trabalhador e dos direitos trabalhistas fundamentais que a pejotização incorretamente aplicada pode causar.

Flávio Dino argumenta que é necessário distinguir entre uma contratação legítima entre empresas e uma simulação de relação de trabalho subordinado, em que empresas buscam reduzir custos à custa da proteção ao trabalhador. Ele defende que a Justiça do Trabalho deve manter sua competência para averiguar fraudes e definir a existência de vínculo empregatício com base nas evidências de cada caso específico.

Outros ministros, como Edson Fachin, têm enfatizado que as decisões do STF sobre terceirização e a atividade-fim (por exemplo, na ADPF 324) não foram projetadas para cobrir casos de fraude por pejotização, um posicionamento que Dino também endossa. Essa posição destaca a importância de interpretar a terceirização e pejotização com base na “boa-fé objetiva” e na legitimidade dos contratos firmados, defendendo que, na presença de elementos de fraude, a Justiça do Trabalho deve requalificar tais contratos como de emprego formal.

Entretanto, a posição de Dino contrasta com a visão de ministros como Gilmar Mendes e Nunes Marques, que interpretam as decisões precedentes como suporte à terceirização e formas flexíveis de contratação, contanto que sigam os princípios da livre iniciativa e da liberdade contratual. Para estes ministros, as tentativas de estabelecer vínculos empregatícios em casos de pejotização tendem a interferir na autonomia das empresas e nos arranjos econômicos contemporâneos, desde que não haja abuso flagrante. Em suma, o ministro Flávio Dino alinha-se a uma posição mais rigorosa, apontando para a fraude como um risco real na pejotização quando esta é usada para evitar responsabilidades trabalhistas e tributárias, e acredita que deve haver uma maior fiscalização para proteger tanto os trabalhadores quanto o erário.

O STF tem discutido de maneira intensa a pejotização e a terceirização, abordando suas consequências para as relações de trabalho e as obrigações tributárias. No centro desse debate, está o reconhecimento do risco de fraude e desvio de direitos trabalhistas, uma preocupação enfaticamente levantada pelo ministro Flávio Dino. A pejotização, prática em que o trabalhador é formalmente constituído como pessoa jurídica (PJ) para prestar serviços, tem, para Dino, o potencial de desfigurar a proteção ao trabalhador e impactar gravemente a dignidade do trabalho.

A pejotização surge, muitas vezes, como uma estratégia empresarial para reduzir custos trabalhistas, especialmente ao substituir a contratação formal por um contrato de prestação de serviços entre empresas. No entanto, o que parece uma escolha contratual entre partes é, com frequência, uma manobra para camuflar uma relação de subordinação, pessoalidade e onerosidade, elementos essenciais que definem o vínculo empregatício conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Para Flávio Dino, essa prática representa uma ameaça real aos direitos fundamentais do trabalhador. Na maioria das vezes, o trabalhador que atua como PJ não tem, na prática, os privilégios de escolha ou autonomia de um verdadeiro empresário. Como exemplo, um motorista de aplicativo ou um entregador de plataforma digital muitas vezes têm sua rotina controlada pela empresa, trabalham exclusivamente para ela e dependem diretamente da remuneração obtida nesse vínculo, um perfil que seria de um empregado formal. O ministro Dino vê nisso uma simulação, uma vez que tais PJs não gozam dos benefícios da formalidade, como férias, 13º salário, FGTS, descanso semanal remunerado, estabilidade, e a contribuição previdenciária.

Fraude tributária

No entendimento do ministro Dino, a pejotização não apenas viola direitos individuais do trabalhador, mas também configura fraude ao sistema tributário. Uma contratação formal implica contribuições significativas ao INSS, além de encargos que mantêm a Previdência Social e outros direitos garantidos pela Constituição. A pejotização, ao rebaixar esse vínculo, diminui esses aportes, prejudicando o financiamento das políticas públicas e sociais.

O ministro Dino, ao lado de outros ministros que compartilham preocupações semelhantes, acredita que, quando existe fraude, é dever do Judiciário requalificar o vínculo como empregatício, garantindo, assim, o recolhimento correto dos tributos e a proteção do trabalhador. Dino defende que as decisões que permitem a terceirização irrestrita (atividade-meio e fim) não devem ser confundidas com um aval para a pejotização fraudulenta.

Ele lembra que os princípios constitucionais de livre iniciativa e autonomia das partes não são absolutos e precisam ser lidos em conjunto com a função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, um ponto central da Constituição de 1988.

Os prejuízos à dignidade do trabalhador ficam claros ao observar setores onde a pejotização é mais comum, como o de comunicação, tecnologia e transporte de aplicativos. Em muitos desses casos, os profissionais enfrentam longas jornadas, trabalham de forma subordinada, mas são privados de benefícios que a CLT estabelece como essenciais. Um jornalista contratado como PJ, por exemplo, pode ter que se submeter às mesmas exigências de um empregado formal, mas sem a possibilidade de descanso remunerado, amparo em caso de demissão ou indenização por rescisão.

Esses casos geram um ciclo de instabilidade que afeta diretamente a qualidade de vida e o planejamento futuro dos trabalhadores. Sem os direitos trabalhistas, muitos se veem incapazes de construir uma carreira de longo prazo ou de usufruir de garantias mínimas. Isso prejudica não apenas os trabalhadores, mas também a economia como um todo, pois trabalhadores desprotegidos e com menor segurança de renda tendem a consumir menos, impactando o mercado.

O ministro Flávio Dino defende que, no contexto do STF, o debate sobre pejotização e terceirização deve evoluir para preservar a dignidade do trabalhador e evitar o uso de manobras contratuais fraudulentas. O ministro entende que é necessário um olhar atento às configurações de fraude, mantendo a Justiça do Trabalho competente para investigar e requalificar, sempre que necessário, as relações simuladas.

Flávio Dino defende que a Justiça do Trabalho deve intervir para requalificar relações que apresentam traços de fraude, reafirmando a função social do contrato e a proteção aos trabalhadores. Ele vê a pejotização como um desvio que vai contra o pacto social estabelecido pela Constituição, comprometendo a igualdade e os direitos fundamentais. E, para ele, a Justiça do Trabalho precisa ter sua competência mantida para desconsiderar tais práticas, assegurando a dignidade do trabalhador.

Conclusão

Diante desse contexto, a posição de Flávio Dino parece crucial para proteger a dignidade dos trabalhadores e garantir uma sociedade mais justa. Ao sustentar que a pejotização, em sua aplicação fraudulenta, é um risco aos direitos dos trabalhadores, Dino defende a essência dos direitos sociais e a importância da função social do trabalho. Sua visão reforça que o papel do STF deve ser o de garantir a efetivação dos princípios constitucionais de proteção ao trabalhador e de combate a fraudes, e não permitir que práticas disfarçadas de autonomia contratual erodam conquistas históricas de direitos laborais.

Assim,  o STF precisa atuar como guardião dos direitos fundamentais, limitando a pejotização fraudulenta e assegurando que as relações de trabalho, baseadas na dignidade e na justiça social, sejam efetivamente respeitadas.

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Inconstitucionalidade da alíquota única de 25% de IR sobre aposentadorias de residentes no exterior

Não é incomum encontrar, na Justiça Federal, ações propostas por cidadãos brasileiros que recebem aposentadorias ou pensões e que, por residirem no exterior, ficam sujeitos à retenção de imposto de renda à alíquota de 25% (tributação exclusiva na fonte).

Nessas demandas, eles alegam que tal alíquota única acarreta violação aos princípios da isonomia tributária e da progressividade do referido imposto. Então, postulam o afastamento da exação fiscal, quando o valor recebido se situa na faixa de isenção, ou que seja garantido o respeito à tabela progressiva do imposto, com a restituição dos valores indevidamente retidos.

O artigo 7º da Lei nº 9.779/99, que teve sua redação alterada pela Lei nº 13.315/16, dispõe o seguinte:

“Os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, de aposentadoria, de pensão e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)”.

Entendimento dos TRFs e da TNU

Chamados a julgar esse tipo de conflito entre contribuintes e Estado Fiscal, os Tribunais Regionais Federais consideraram constitucional e legal a retenção de 25% de IR sobre os rendimentos recebidos por contribuintes domiciliados no exterior. A propósito:

“CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 7º DA LEI Nº. 9.779/99 COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 13.315/16. IMPOSTO DE RENDA SOBRE RENDIMENTOS OU PROVENTOS DE APOSENTADORIA RECEBIDOS POR RESIDENTES OU DOMICILIADOS NO EXTERIOR. REJEIÇÃO DO INCIDENTE. (…) 2. Caso em que o acórdão da Quarta Turma, entendendo ser inconstitucional o art. 7º da Lei nº. 9.779/99, com a redação dada pela Lei nº 13.315/17, deliberou submeter a questão ao Plenário desta Corte. (…) 4. Não há qualquer laivo de inconstitucionalidade na norma em apreço. Primeiramente, o fato do tributo em testilha não ser progressivo, mas fixado objetivamente em 25% não representa qualquer incompatibilidade com a Constituição Federal. Com efeito, a legislação pátria é prenhe de exemplos de alíquotas fixas, como o lucro incidente sobre a venda de imóveis. Em segundo lugar, não há falar em desproporcionalidade do tributo, afinal, o percentual de 25% é menor que o próprio percentual de 27,5% da última faixa da alíquota normal de imposto de renda, não configurando patamar confiscatório. Por último, ressalte-se que os rendimentos pagos no exterior não são revertidos em proveito do país, o que por si só justifica o tratamento legal diferenciado dado pela norma ora em debate. 5. Equivocada é a pretensão de ver declarada a inconstitucionalidade da norma examinada em face das circunstâncias particulares do caso concreto (contribuinte pobre e proventos equivalentes a um salário mínimo) dado que o incidente em análise deve ser resolvido em tese, desvinculado de qualquer cenário específico, restrito à aferição da compatibilidade da norma hostilizada com a Constituição. (…) 6. Arguição de inconstitucionalidade rejeitada” (TRF da 5ª Região. Apelação cível nº 08119635420164058400. Relator: desembargador federal: Paulo Roberto de Oliveira Lima. Data do julgamento: 30/01/2019).

“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. DOMICÍLIO NO EXTERIOR. ART. 7º DA LEI Nº 9779/99. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Conforme o entendimento desta Corte, é legítima a retenção na fonte de imposto de renda sobre os rendimentos recebidos por contribuinte domiciliado no exterior, à alíquota de 25%, na forma do art. 7º da Lei nº 9.779/99. 2. Aos contribuintes maiores de 65 (sessenta e cinco) anos domiciliados no exterior é inaplicável a parcela de isenção do imposto de renda prevista no art. 6º, XV, da Lei nº 7.713/88, pois as disposições da referida Lei referem-se apenas aos rendimentos recebidos por pessoas físicas domiciliadas no Brasil. Precedentes” (TRF-4, AC 5016729-78.2021.4.04.7001, 2ª Turma. Relator: desembargador federal Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, Data do julgamento: 16/3/2023).

Nessa mesma linha se posicionou a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, que fixou o entendimento de que, a partir da vigência da Lei nº 13.315/2016, que modificou a redação do artigo 7º da Lei nº 9.779/99, “os rendimentos de aposentadoria e pensão pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)” (TNU. Pedilef nº 0008253-71.2017.4.03.6301. Relator: juiz federal Jairo da Silva Pinto. Data do julgamento: 1/9/2021).

Inconstitucionalidade

Em maio de 2021, o assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do ARE nº 1.327.491, e, em outubro daquele ano, foi reconhecida a repercussão geral da questão constitucional suscitada, acarretando o surgimento do Tema 1.174 (relator: ministro Dias Toffoli) com o seguinte objeto: “Incidência da alíquota de 25% do imposto de renda exclusivamente na fonte, sobre as pensões e os proventos de fontes situadas no país, percebidos por pessoas físicas residentes no exterior”.

No dia 18/10/2024, a Corte Suprema concluiu o julgamento da matéria e firmou a seguinte tese: “É inconstitucional a sujeição, na forma do art. 7º da Lei nº 9.779/99, com a redação conferida pela Lei nº 13.315/16, dos rendimentos de aposentadoria e de pensão pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento)”.

O julgamento do STF é mais do que acertado. Quando se elabora ou discute uma forma de imposição tributária, a capacidade tributária deve ser o principal critério a ser levado em consideração para eventuais tratamentos distintos entre contribuintes. Na hipótese em discussão, ficou claro o equívoco do legislador, que ignorou o princípio da progressividade fiscal, inerente a esse tipo de imposto (art. 153, III, e § 2º, I, da CF/1988), e elegeu o local de residência do contribuinte (território nacional ou exterior) como motivo para o discrímen, estabelecendo uma tributação exclusiva na fonte, com uma alíquota única de 25%.

O critério geográfico de residência não deveria ter sido invocado para justificar tratamento discriminatório, acentuadamente gravoso, ao aposentado ou pensionista contribuinte que opta por residir no exterior (artigo 19, III, e artigo 150, II, da CF/1988). É verdade que, do ponto de vista jurídico, não se pode dizer que estão em situação similar um contribuinte residente no país e outro domiciliado no exterior, pois não se encontram eles na mesma situação fiscal, vivendo em países diversos. Entretanto, sem embargo disso, a regra questionada é inconstitucional por violar o postulado da progressividade tributária.

A Constituição Federal de 1988 dispõe que o IR “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei” (artigo 153, III, e § 2º, I). Segundo Eduardo Sabbag [1]“a progressividade do IR prevê a variação positiva da alíquota do imposto à medida que há aumento de base de cálculo”. Assim, como a norma atacada não observa esse critério, estabelecendo uma alíquota única (e não alíquotas diferentes e graduadas), o STF agiu bem ao reconhecer sua inconstitucionalidade.

Carga sem justificativa

Apontando a violação de princípios constitucionais (capacidade contributiva, isonomia progressividade, proporcionalidade e não confisco), o relator do caso em nossa corte máxima de justiça, ministro Dias Toffoli [2], entendeu haver, na situação, uma carga tributária efetiva muito elevada, sem justificativa razoável:

“(…) o imposto de renda é severamente mais gravoso em relação aos aposentados e pensionistas residentes no exterior atingidos pelo art. 7º da Lei nº 9.779/99, com a redação conferida pela Lei nº 13.315/16. Ressalte-se, ainda, que o fato de o contribuinte residir no exterior, por si só, não revela ser ele detentor de maior capacidade econômica do que aquele que aqui reside e recebe aposentadoria ou pensão”.  Eles “(…) ficam sujeitos a uma única e elevada alíquota de 25% incidente sobre a totalidade dos rendimentos de aposentadoria ou pensão, sem poderem, ademais, realizar qualquer dedução.”

Enfim, ainda que as regras-matrizes do IR possam ser organizadas em grupos diferentes (IR-Antecipação, IRF-Exclusivo, IR-Definitivo, IR-Mensal e IR-Anual) [3], em todas elas devem se garantir o respeito ao princípio da progressividade fiscal. Se as instâncias inferiores não fizeram a melhor leitura do problema e não entregaram a solução mais adequada, o STF agora o fez, bem cumprindo o seu papel, como espera a sociedade.


[1] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 210.

[2] Voto disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/10/6298465.pdf. Acesso em: 21/10/2024.

[3] NOGUEIRA, Julia de Menezes. Imposto de Renda na Fonte. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 186.

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Não há lado vencedor nas movimentações contrárias ou favoráveis à moratória da soja

O último trimestre do ano tem deixado o setor de agronegócios de orelha em pé em razão dos debates relacionado às atividades legislativas de alguns estados sobre a moratória da soja e suas implicações no cenário nacional. A questão se divide assim: de um lado, produtores rurais com propriedades no bioma amazônico que estão sendo prejudicados com a moratória e sustentam que é a imposição de um acordo privado na negociação de soja, em contraposição ao Código Florestal ao qual os produtores já estão sujeitos para desempenho regular de suas atividades; de outro, associações e as tradings, que controlam 95% do mercado de exportação da soja, defendem que a adoção da moratória da soja concede uma certificação adicional a respeito do compromisso de barrar o desmatamento da Amazônia.

Wenderson Araujo/Trilux/CNA

O assunto é importantíssimo para o setor agrícola e envolve um debate complexo. A questão principal é o reconhecimento de que qualquer movimentação em direção à aplicação ou não da moratória onera não só produtores localizados no bioma amazônico, mas o setor como um todo. Os danos reputacionais relacionados à moratória acabam contribuindo para a imagem de vilão ambiental atribuída ao setor, quando a moratória sequer é objeto de regulamentação. Explico.

As empresas privadas que atuam na originação e exportação de produtos do complexo da soja e algumas associações do setor que adotam a moratória, utilizam o critério de desmatamento zero no bioma amazônico a partir de 22 de julho de 2008 (data de corte aplicada para discussão da regulamentação do Código Florestal), independentemente de o desmatamento ser legal ou não.

Ocorre que a legislação brasileira aplicável à matéria (Código Florestal), que entrou em vigor em 2012 e se tornou referência mundial, adota métrica diferente: além do critério temporal, que é maio de 2012 (e não julho de 2008), impõe ao produtor que queira desenvolver atividades em determinada propriedade o dever de cuidado e manutenção (ou conforme o caso, de restauração) da vegetação original pelo produtor rural, que deve variar entre 20% e 80% do total da área da propriedade, conforme o bioma onde está inserida a propriedade. No caso do bioma amazônico, o produtor deve preservar pelo menos 80% e utilizar até 20% da área para produção agrícola.

Bioma amazônico

Com a aplicação da moratória pelas tradings, os produtores do bioma amazônico que cumprem a legislação e atuam dentro dos limites concedidos pelo Código Florestal estão tendo problemas caso a área da plantação tenha sido aberta após a 2008. Ou seja, um acordo comercial é soberano em relação à legislação federal. Esse impacto é importante porque 95% da produção de soja brasileira é comercializada por meio das tradings que fazem um processo de triagem ao receber o produto em seus armazéns para exportação.

Ademais, o processo de triagem passa a ser mais rigoroso no contexto da moratória, uma vez que o produto oriundo de uma propriedade em conformidade com os critérios de restrição imposto pela moratória pode se misturar a outro que não cumpra tais critérios, fazendo com que produtores de outras regiões, que não no bioma amazônico, sejam compelidos a fornecer a comprovação, que até então era aplicada apenas àqueles localizados no referido bioma.

Essas questões evidenciam o problema reputacional, já que, apesar de a moratória não ser aplicável a propriedades localizadas em estados do Sul e sudeste do país, qualquer discussão envolvendo a sua adoção em território nacional ou por determinadas organizações acaba impactando todo o setor de soja, gerando um efeito em cadeia dado ao caráter continental do Brasil. A aplicação da moratória já impacta e impactará ainda mais o setor como um todo, uma vez que mesmo os produtores que seguem o Código Florestal enfrentam dificuldades em exportar o produto.

A isso tudo, se soma uma discussão relacionada a autonomia legislativa dos estados e soberania nacional. No âmbito das discussões estaduais, temos legislação já aprovada em Rondônia e mais recentemente em Mato Grosso para retirar e impedir a concessão de benefícios fiscais para empesas que adotem a moratória da soja. Essas leis foram aprovadas pelos referidos estados dentro de suas atribuições legislativas relacionadas à concessão de benefícios fiscais.

Estados com dependência agrícola

Tais medidas também estão em discussão em Roraima, Tocantins, Maranhão e Amazonas a fim de contrabalancear o impacto que está sendo causado no segmento pelas medidas adotadas por tais empresas da iniciativa privada. Não podemos esquecer que boa parte das receitas de alguns desses estados são originadas pelo setor (tanto produtores como tradings), o que tem gerado impactos a produtores e a economia da região, já que estamos falando de estados com forte dependência agrícola.

A problemática complica ainda mais quando outros entes federados começaram a questionar a utilização pelos estados de critérios ambientais, sobre os quais apenas a União teria competência para legislar, apesar da autonomia legislativa dos estados na adoção das medidas acima.

Por fim, outro fator que permeia a discussão jurídica trazida pela moratória envolve a soberania nacional e seu conflito com a norma local, já que temos um pacto comercial não incorporado ao ordenamento jurídico pátrio e seu conflito com uma norma local legitimamente aprovada que é o Código Florestal. A mesma discussão vem sendo travada a respeito da aplicação da Regulamentação Europeia Antidesmatamento, que proíbe a importação por países europeus de determinados produtos (que inclui o complexo soja) de áreas que tenham sido objeto de desmatamento após 2020.

O assunto ainda vai gerar muita discussão e principalmente prejuízos reputacionais para o setor como um todo, que mais uma vez se encontra no centro de discussões questões ambientais que impactam a produção de alimentos que ultrapassam o âmbito local e de regulamentação nacional.

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Continuidade delitiva não impede celebração de ANPP, diz STJ

A continuidade delitiva não impede a celebração do acordo de não persecução penal, já que não consta como óbice no artigo 28-A do Código de Processo Penal, nem se confunde com a habitualidade delitiva.

Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para permitir que um homem acusado de peculato negocie o acordo com o Ministério Público Federal.

Ele foi condenado em continuidade delitiva, por ter praticado o crime 16 vezes. Funcionário da Caixa Econômica Federal, apropriou-se de valores pertencentes à instituição mediante fraudes e manipulação de contas bancárias.

A pena final, de 3 anos, 8 meses e 13 dias em regime aberto, foi substituída por duas restritivas de direitos. O montante permitiria, em tese, a celebração do ANPP, por estar abaixo de quatro anos.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no entanto, entendeu que o acordo não seria possível porque a condenação em continuidade delitiva por 16 vezes indicaria dedicação à atividade criminosa.

Ao STJ, a Defensoria Pública da União apontou que o TRF-3 acrescentou requisito para o ANPP que não está previsto em lei. Relator na 5ª Turma, o ministro Ribeiro Dantas deu razão e foi acompanhado à unanimidade.

Continuidade x habitualidade

O caso envolve a intepretação do artigo 28-A, parágrafo 2º, inciso II do Código de Processo Penal, que veda o oferecimento do ANPP se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual do investigado.

O ministro Ribeiro Dantas destacou que crime continuado e habitualidade criminal são coisas diferentes que não se confundem.

A figura do crime continuado foi criada para evitar a exacerbação das penas em razão de infrações similares que resultam de um plano comum. Serve para tornar a pena menos rigorosa.

Na hipótese da habitualidade delitiva, a posição é exatamente contrária: existe uma reincidência de crimes já consumados, a indicar que o acusado faz do delito seu meio de subsistência.

Assim, a lei em nenhum momento teve a intenção de incluir a continuidade delitiva como causa impeditiva para a celebração do ANPP.

“A inclusão da continuidade delitiva como óbice à celebração do acordo constitui, conforme indicado no acórdão recorrido, uma interpretação que extrapola os limites impostos pela norma, inserindo um requisito que o legislador, de forma deliberada, optou por não contemplar”, concluiu.

Com o provimento do recurso especial, a 5ª Turma do STJ determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Federal para que se manifeste sobre a possibilidade de oferecimento do ANPP, no prazo de 15 dias.

AREsp 2.406.856

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AGU apresenta a movimentos sociais nova proposta para repactuação do acordo de Mariana

O advogado-geral da União, Jorge Messias, apresentou à comunidade de Mariana (MG), na sexta-feira (18/10), a proposta do Poder Público para repactuação do acordo pelo rompimento da Barragem de Fundão (MG), em 2015, totalizando investimentos de R$ 167 bilhões, dos quais R$ 130 bilhões serão recursos novos. A apresentação ocorreu durante reunião no auditório do Ministério da Agricultura e Pecuária, em Belo Horizonte.

Distrito de Bento Rodrigues em 2016, um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG)
Distrito de Bento Rodrigues em 2016, um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG) – Léo Rodrigues/Agência Brasil

Os valores deverão ser custeados pelas empresas responsáveis pelos danos causados à região da bacia do Rio Doce (Vale, BHP e Samarco). Do conjunto de investimentos previstos, R$ 640 milhões serão destinados ao fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos municípios da Bacia do Rio Doce. Já a saúde coletiva será contemplada com R$ 12 bilhões, sendo que R$ 3,6 bilhões serão destinados à infraestrutura e equipamentos.

Também foram destacados R$ 7,09 bilhões às ações previstas para a retomada econômica. Entre outros pontos, constam ainda, na nova proposta de repactuação, auxílio financeiro de R$ 1 bilhão às mulheres que foram vítimas de discriminação de gênero durante o processo reparatório; R$ 17,8 bilhões para projetos socioambientais dos Estados; R$ 11 bilhões para um amplo programa de saneamento básico; e R$ 4,6 milhões para recuperação de rodovias, como a BR-262 e BR-365.

O montante total dos investimentos é quatro vezes maior do que os R$ 37 bilhões que as empresas afirmam já ter gasto por meio da Fundação Renova, criada para reparar os impactos negativos causados pelo rompimento da barragem.

“Viemos de forma respeitosa dialogar com os movimentos sociais. Eles precisam ser ouvidos e terem seus pleitos contemplados. Apresentamos um conjunto de investimentos que serão feitos e que vão atender e transformar profundamente a região. Tratamos de olhar em primeiro lugar para as pessoas, em segundo lugar para o meio ambiente e em terceiro lugar para um programa de retomada econômica na região. A repactuação fará uma transformação de verdade na vida das pessoas” disse o advogado-geral da União, Jorge Messias.

Pela nova proposta, parte das obrigações relativas à reparação pela tragédia passa ao Poder Público (União, estados de Minas Gerais, Espírito Santo e municípios), que implementarão ações e programas em prol dos atingidos e para reparar o meio ambiente na região da bacia do Rio Doce com os recursos que serão repassados pelas empresas. Essas últimas permanecem com a obrigação de implementar medidas diversas de caráter reparatório. Dentre elas estão a de finalizar reassentamentos, implantar sistema indenizatório para parte dos atingidos que não conseguirem comprovar documentalmente os danos sofridos, retirar rejeitos, recuperar a floresta nativa e nascentes na Bacia do Rio Doce, dentre outras.

Participantes

Participaram da reunião membros da sociedade civil, representantes dos movimentos sociais organizados, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e os próprios atingidos da bacia do Rio Doce.

Pelo governo federal, além do advogado-geral da União, participaram do encontro o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macedo; o adjunto do advogado-geral da União, Junior Fideles; e representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério da Saúde e do Ministério das Minas e Energia.

Os representantes dos movimentos sociais tiveram a oportunidade de avaliar os pontos apresentados e fizeram observações que serão avaliadas e poderão eventualmente integrar o acordo. Com informações da assessoria de imprensa da AGU.

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TST cita negativa de prestação e reconhece necessidade de reanálise de horas extras

Alegando negativa de prestação jurisdicional, a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho ordenou que um processo retorne à segunda instância para que as horas extras trabalhadas por um empregado de banco sejam devidamente recalculadas.

O autor juntou à ação recibos salariais e prints dos cartões de ponto que mostravam que ele fazia duas horas extras por dia durante determinado período, o que não foi levado em conta pelo tribunal de segundo grau.

No caso em discussão, o bancário alegou que, no primeiro dia na função, firmou acordo para trabalhar duas horas extras diárias, fazendo o turno das 9h às 18h. Já o banco sustentou que esse acordo foi firmado um ano depois da contratação, ou seja, ele só teria direito às horas extras pleiteadas depois desse período.

Provocado pelo autor, o tribunal regional não se pronunciou sobre os documentos que mostravam as horas extras devidas e afirmou que os recibos salariais indicados no processo não eram suficientes para comprovar suas alegações.

Ainda na decisão de segundo grau, o relator afirmou que as horas extras requeridas já haviam sido quitadas, e disse que a natureza extraordinária do recurso de revista não permite reexame das provas. O autor, então, ajuizou no TST ação de nulidade por negativa de prestação jurisdicional.

“Diante da afirmação anterior, no sentido de que não seria possível apurar a habitualidade apenas pelos recibos salariais, passou a ser crucial a resposta da Turma Regional para que o autor possa defender a tese de que, apesar da contratação formal apenas no ano seguinte, desde o início do pacto laborativo já havia pactuação de labor em oito horas diárias”, escreveu o ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, relator do caso na corte superior.

Silêncio total

O autor ainda rebateu o argumento de que a sede recursal escolhida não foi a correta, porque mesmo após propor embargos de declaração o referido juízo não se pronunciou sobre as horas extras.

Pinto Junior concordou com o trabalhador. “A omissão impede que o autor defenda sua tese em sede extraordinária, motivo pelo qual é suficiente para caracterizar negativa de prestação jurisdicional.”

“É necessário, portanto, que sejam expressamente extirpadas as omissões apontadas, de forma a esclarecer, nos moldes provocados nos embargos de declaração e reiterados na arguição de nulidade por negativa de prestação jurisdicional, se a jornada de trabalho consignada nos controles de frequência do período anterior ao acordo de prorrogação de jornada é, em média, das 9 às 18 horas de segunda a sexta-feira, conforme alegado pelo demandante”, escreveu o ministro.

Atuou no caso a advogada Tayane Dalazen, sócia do escritório Dalazen, Pessoa & Bresciani Sociedade de Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo TST-RR 1000713-76.2019.5.02.0012

Fonte: Conjur

Nulidade de interrogatório no Júri: renovação apenas do ato ou de toda a instrução?

Partamos de uma hipótese e da consequente indagação: se reconhecida a nulidade do interrogatório no Tribunal do Júri, por ter sido o réu impedido de responder parcialmente às perguntas, deve-se anular todos os atos da sessão ou somente o referido interrogatório?

De maneira bem direta, a anulação somente do interrogatório acarretará sua renovação, mas perante um conselho de sentença diferente daquele perante o qual foi realizada a produção da prova testemunhal da sessão de julgamento anterior, criando a curiosa, mas também ilegal oportunidade, de sete pessoas leigas julgarem com base em prova oral não produzida em suas presenças.

Esta hipótese é objetável porque a sessão de julgamento é una e os jurados que votam os quesitos — que também prestam compromisso de agir com imparcialidade e de acordo com os ditames da Justiça (CPP, artigo 472) — têm de ser os mesmos que acompanham a produção da prova oral, composta pela inquirição do ofendido, se possível, testemunhas arroladas pela acusação (CPP, artigo 473), testemunhas arroladas pela defesa (CPP, artigo 473, §1º), e o interrogatório do acusado (CPP, artigo 474).

A lógica protege-nos neste ponto, já que os jurados agem também como fiscais da produção da prova oral e nesta finalidade podem requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento aos peritos (CPP, artigo 473, §3º), bem como fazer perguntas às testemunhas por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 474, §2º). Assim, é até prosaico que não pode o novo conselho de sentença, formado em nova sessão de julgamento, participar apenas da realização do interrogatório para, após os debates, votar os quesitos.

Deve este novo conselho poder exercer o direito que legalmente lhe cabe na produção da prova para, com isso, afastar o odor da parcialidade e do completo desconhecimento sobre a totalidade da prova e da causa.

Nem se argumente que diante do novo conselho de sentença poderia ser exibida, aos jurados, em áudio e vídeo, a prova produzida na sessão anterior.

Esse expediente é uma maneira dúbia e inexitosa de tentar reverter a burla procedimental, já que, como apontado, o novel conselho de sentença estaria impedido de fiscalizar a prova oral cujas audições foram realizadas na sessão anterior, prova esta que, também, estaria validando eventual condenação.

Lições da doutrina

Mittermaier ensina que como, em geral, a prova testemunhal não tem tanto crédito de per si, segue-se que a testemunha deve ser indagada “sobre o fundamento de seu conhecimento dos fatos” [1], ou seja, das razões, subjetivas e objetivas que a levaram a ter ciência do ocorrido, o que só é possível se quem indaga puder acompanhar o depoimento de quem será indagado.

Também pontifica o professor Tedesco que a convicção de quem julga a causa só pode amparar-se na prova oral prestada “em pessoa perante o tribunal [ou juiz] competente”, pois somente assim “se pode e deve-se supor que foram satisfeitas todas as prescrições indispensáveis da lei e da prudência” [2].

Aliás, a doutrina especializada de Mascarenhas Nardelli assevera que o modelo mais adequado de produção de prova oral perante os jurados é o de inquirição cruzada e direta (cross examination e direct examination) — conforme a inspiração da dinâmica anglo-americana em nossa legislação [3] — a qual só é possível se a testemunha for inquirida na presença de quem for lhe julgar e em tempo real.

Consequentemente, percebe-se que o contato extemporâneo dos jurados com a prova oral transforma o depoimento da sessão anterior de julgamento numa espécie de depoimento de primeira fase, já que este sim é que pode ser exibido ao júri para que conheçam do que ocorreu antes da decisão de pronúncia, contudo, veja: mesmo nesta hipótese não está dispensada a obrigatoriedade da repetição do ato testemunhal na segunda fase, ocorrida perante o conselho de sentença e não mais diante do juiz togado.

O destinatário da prova é o juiz, mas não qualquer juiz, e sim aquele que efetivamente irá julgar (CPP, artigo 399, §2º). Há, no júri, a aplicação inconteste do princípio da identidade física, pois se de acordo com a reforma de 2008 a prova a ser valorada pelo juiz é aquela produzida em contraditório, fortalece-se a regra da imediatidade, reforçando-se o sistema da oralidade [4].

Badaró, inclusive, já alertava para a correta interpretação do artigo 399, §2º, do CPP, a fim de que não parecesse haver apenas a vinculação do juiz da instrução à sentença. Diz o mestre paulista que a efetiva oralidade só será permitida, com todas as vantagens dela decorrentes, na interpretação segundo a qual “toda a instrução deve se desenvolver perante um único juiz, que deverá ser o mesmo que sentenciará o feito”.

E quando a concentração dos atos se realizar na forma de sessões consecutivas, “o princípio da oralidade exigirá que se mantenha a identidade física do juiz durante todas as sessões de julgamento, porque senão o ocorrido perante o primeiro juiz chegaria ao conhecimento do segundo somente através das peças escritas nos autos” [5].

O ministro Francisco Campos também alertava nos idos de 1939 sobre a imediatidade e identidade física na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil: “O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira poderia ser, pois o processo visando à investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista do seu valor ou da sua eficácia em relação aos pontos debatidos” [6].

Percebe-se que o exame direto e cruzado da prova oral, a oralidade e a imediatidade na construção probatória não são possíveis se o ato processual de inquirição da testemunha se desenvolver perante pessoas física diversa daquela que irá julgar [7] e por isso não há cumprimento do devido processo legal quando, nulificado o interrogatório no júri, renove-se apenas este ato e não toda a instrução plenária, perante o novo conselho sentença.


[1] Mittermaier, Carl Joseph Anton. Tratado da prova em matéria criminal. 5 ed. São Paulo: Campinas, 2008, p. 356.

[2] Idem, p. 360.

[3] Mascarenhas Nardelli, Marcella. A prova no tribunal do júri. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 475.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 217.

[5] Idem, p. 217-218.

[6] Maya, Andre Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 144, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

[7] Maya, André Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 145, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

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Problema não é o reconhecimento por foto, mas o modo de sua apresentação

O reconhecimento de suspeitos de crimes por fotografias, por si só, não diminui a confiabilidade do resultado. É preciso garantir que a forma de apresentação seja a mais adequada para permitir o procedimento sem sugestionar a vítima.

William Cecconello 2024
William Cecconello defendeu que fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de suspeitos de crime – Gustavo Lima/STJ

Essa conclusão é do professor de Psicologia e coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça, William Cecconello, que falou sobre o tema no Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal, sediado pelo Superior Tribunal de Justiça na semana passada.

O uso de fotos para o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal foi o que primeiro motivou uma virada jurisprudencial do STJ.

Em 2020, a corte concluiu que essa prática teria de ser vista como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não poderia servir para embasar condenações.

A jurisprudência evoluiu para anular provas em casos de total desrespeito ao artigo 226 do CPP, que traz um rito: a vítima deve descrever o suspeito e reconhecê-lo ao lado de outras pessoas que com ele tenham semelhança.

O tema motivou a criação de um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça, resultou na edição de uma resolução para orientar juízes e atores do sistema de Justiça e levou à publicação recente de um manual de procedimentos.

Dados do advogado e pesquisador David Metzker mostram que, neste ano, o STJ concedeu ordem em Habeas Corpus para anular provas por desrespeito ao artigo 226 do CPP em 174 processos. Deles, 141 tratam de reconhecimento feito por fotografia (81% do total).

Ao citar os dados no evento, a ministra Daniela Teixeira, do STJ, deu exemplos que passaram por seu gabinete em que o uso de fotografia prejudicou o procedimento. “Em um deles a fotografia era preta e branca. Era impossível de saber de quem se tratava.”

Segundo Cecconelo, estudos científicos mostram que o uso de fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de pessoas. O problema é a forma como essas imagens são apresentadas às vítimas.

 
Daniela Teixeira 2024
Daniela Teixeira citou casos em que a prova foi anulada porque o reconhecimento foi erroneamente feito por foto – Gustavo Lima/STJ

 

Show-up e álbum

Trata-se de uma questão de método. Um dos mais utilizados pelas polícias é o chamado show-up: a pessoa é apresentada isoladamente, por foto ou presencialmente, para que seja reconhecida de maneira informal.

Segundo o CNJ, essa apresentação isolada faz com que a vítima ou testemunha não tenha rostos para comparar, e essa falta de opções pode levá-la a reconhecer alguém inocente com muita confiança.

Outro método indevido é o uso do chamado álbum de suspeitos: um conjunto de fotografias de pessoas previamente investigadas que esteja nos arquivos policiais. Trata-se de um procedimento sugestivo e, portanto, parcial.

As pessoas apresentadas pela polícia, absolvidas ou não, tornam-se potenciais autoras do crime e ficam à mercê de um reconhecimento errôneo. A conduta também tem potencial para reforçar preconceitos e estereótipos raciais.

“O reconhecimento fotográfico não é o problema. O problema é usar álbum de suspeitos e show-up. É importante esclarecer isso, senão a gente elimina a foto e parece que resolveu o problema. Se, em vez de mostrar a foto, você apresentar a pessoa, o risco é o mesmo”, disse Cecconello.

“É importante que a gente olhe para os procedimentos, não só para o meio que é utilizado para o reconhecimento, porque senão talvez a gente não avance nessa questão”, acrescentou o pesquisador.

 
Evento reconhecimento pessoal
Anderson Giampaoli mostra fillers produzidos com ajuda de inteligência artificial – ConJur

 

Fillers

São vastos os exemplos de injustiças praticadas por meio do uso de álbuns ou show-ups. Eles são comuns porque permitem uma identificação rápida pela polícia, por vezes no momento da ocorrência, por meio do uso de aplicativos de mensagens ou redes sociais.

Um dos casos mais graves é o de um homem negro do Rio de Janeiro que teve a foto retirada do Facebook e exibida em álbum de suspeitos da polícia. Ele foi reconhecido por 70 vítimas, foi alvo de 62 ações e condenado 11 vezes até o STJ determinar o reexame dos casos.

Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho destacou que esse tipo de conduta colabora para a ocorrência de erros judiciais.

“Mais grave é o reconhecimento fotográfico. Quando você apresenta uma foto, você induz a vítima. E quando apresenta várias, cria a possibilidade de eleger um suspeito errado.”

Responsável pela Secretaria de Cursos de Formação da Academia de Polícia Civil de São Paulo, o delegado de polícia Anderson Giampaoli destacou que o método show-up foi proibido em São Paulo e levantou uma reflexão: como e onde encontrar os fillers?

Fillers são as pessoas que aparecerão lado a lado com o suspeito, para o reconhecimento — seja pessoalmente ou por foto. Elas precisam ter semelhanças com a pessoa a ser reconhecida, sob risco de sugestionar a escolha da vítima.

Giampaoli apresentou no evento duas soluções tecnológicas possíveis. A primeira usa inteligência artificial para vasculhar os dados da polícia em busca de pessoas parecidas com o suspeito ou que se enquadrem na descrição dada pela vítima.

A segunda é usar a IA para criar imagens a partir do suspeito: pessoas parecidas, vestidas da mesma maneira, mas com semelhanças suficientes para dar à vítima a oportunidade de apontar quem, de fato, cometeu o crime.

“A reflexão que deixo é: diante dos avanços, a pergunta que São Paulo enfrenta é como encontrar e onde encontrar os fillers. São muitas iniciativas. Isso não está normatizado.”

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Projeto que tem dois donos morre de fome? Uma análise da iniciativa parlamentar

Diz a sabedoria popular que cão que tem dois donos morre de fome. Sem uma definição clara de responsabilidades entre os donos, nenhum deles assume o dever de alimentar o animal. Ambos esperam que o outro vá alimentar o cachorro, que acaba morrendo de fome. Será que essa lógica também valeria para os projetos de lei?

A resposta é não. Já foi diversas vezes demonstrado, em vários contextos, que projetos de lei com mais de um autor têm maior probabilidade de avançaram no processo legislativo — e serem aprovados. Além disso, parlamentares que se engajam em atividades de coautoria tendem a ser mais bem relacionados e ter mais sucesso em seus objetivos (Sciarini et al., 2021; Kirkland, 2011).

Sciarini et al. (2021) demonstraram que quanto maior for o rol de autoria de um projeto, quanto maior for o número de autores, maiores as chances de esse projeto avançar no parlamento da Suíça. Os autores vão além. Demonstraram, também, que projetos com autores de diferentes partidos e diferentes correntes ideológicas (bridging strategy) têm mais chances de ser aprovados do que aqueles cujos autores são do mesmo campo político (bonding strategy).

Parlamentares que se envolvem em bridging strategies buscam apoio de colegas fora de seu partido e campo político e, por isso, criam maiores redes de contato e têm acesso a uma maior quantidade de informações do que aqueles que permanecem restritos a seu grupo político. Rede de contatos e informações são ativos cruciais para o sucesso de qualquer parlamentar. Ademais, um projeto que foi discutido por um amplo espectro político tende a representar um consenso de diferentes visões. Daí o maior sucesso tanto dos parlamentares que se engajam na busca de coautores para seus projetos quanto dos projetos frutos dessa atividade.

Essa lógica também vale para o Congresso Nacional. Em uma análise da 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados – 2019 a 2022, demonstrei que quanto maior o número de autores de uma proposição, maiores as chances de essa proposição avançar no processo legislativo (Brito, 2023). Cada autor adicional aumenta as chances de uma proposição chegar ao Plenário da Câmara em 2,18%. Essa análise também mostra que buscar apoio de parlamentares de outros partidos é uma estratégia bastante efetiva. Cada partido adicional representado na autoria da proposição aumenta em quase 30% as chances dessa proposição chegar ao Plenário da Casa.

Portanto, tendo em vista que buscar coautoria é uma maneira de aumentar as chances de sucesso de seus projetos, é de se esperar que essa seja uma atividade frequente e que a maior parte dos projetos apresentados tenham diversos autores, certo? Errado.

Na 56ª Legislatura da Câmara dos Deputados, se considerarmos apenas as Propostas de Emenda à Constituição (PEC), Projetos de Lei (PL), Projetos de Lei Complementar (PLP), Projetos de Decreto Legislativo (PDL) e Projetos de Resolução da Câmara (PRC), foram apresentados 18.320 projetos de autoria de deputados. Destes, apenas 1.835 (aproximadamente 10%) são frutos de coautoria e têm mais de um autor [1]. E das 18.320 proposições analisadas, apenas 448 chegaram aos estágios finais de deliberação – o Plenário da Casa – até o final da Legislatura. Isso representa apenas 2.45%.

Projetos de autoria de deputados18.320
Projetos com mais de um autor1.835
Projetos que chegaram ao Plenário448

Quantidade e qualidade

Parece ser um contrassenso. Proposições com mais de um autor têm maiores chances de avançarem em suas tramitações. No entanto, a grande maioria das proposições apresentadas pelas deputadas e deputados são de autoria individual. O que explica essa situação? Será que os deputados não se importam com a aprovação de seus projetos? Existe um custo muito alto para conseguir apoio às proposições?

Em um texto recente aqui neste espaço, João Trindade Cavalcante Filho apresenta uma possível resposta. Ele trata do que considera um número excessivo de proposições que são apresentadas na Câmara dos Deputados. Ainda segundo ele, a maioria é arquivada sem sequer ter sua constitucionalidade analisada no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça.

Ele aponta como um dos motivos a ideia de que a produtividade do Legislativo se mede pela quantidade de projetos aprovados – ou apresentados. Essa ideia é reforçada pelas próprias Casas Legislativas e por “prêmios” de “especialistas” que acabam reforçando e incentivando esse comportamento. Como uma possível solução, sugere a exigência de um requisito de apoiamento mínimo para a iniciativa legislativa. O número sugerido é de um décimo da Casa.

A ideia é que a exigência de um apoiamento mínimo deve forçar os parlamentares a buscar apoio para suas proposições antes de apresentá-las. Isso deve diminuir o número de proposições e, de acordo com as análises aqui apresentadas, aumentar a probabilidade de que essas proposições avancem no processo legislativo.

No entanto, é preciso compreender quais são os incentivos que levam os parlamentares a apresentar um grande número de proposições de autoria individual? Quais são os objetivos dos parlamentares? E se, de fato, a intenção dos parlamentares não for a de aprovar essas proposições?

Um primeiro ponto importante é aquele já levantado por João Trindade: a ideia de que produtividade legislativa se mede pela quantidade de proposições. Essa é uma noção compartilhada e reforçada pelos próprios parlamentares e pelas Casas Legislativas, pela imprensa, por especialistas, e pela sociedade, de uma maneira geral. Obviamente, se o “melhor” parlamentar é aquele que apresenta mais projetos, os parlamentares possuem o incentivo de apresentar mais projetos – que não precisam sequer serem analisados.

Esse ponto levanta uma questão interessante: como avaliar a atuação de um parlamentar? É uma questão que merece um melhor aprofundamento, mas que está além do escopo deste texto.

No entanto, outros incentivos influenciam as atividades dos parlamentares. Seguindo Sciarini et al. (2021), parlamentares são atores estratégicos que perseguem três objetivos: promover boas políticas públicas por meio da definição de agenda e atividade legislativa (orientados para políticas); aumentar as chances de reeleição ao enviar sinais aos eleitores e tentar garantir ganhos eleitorais (orientados para votos); e aumentar o prestígio e a influência institucionais na Casa Legislativa (orientados para cargos).

A apresentação de proposições pode ser utilizada para atingir os três objetivos, de forma conjunta ou isolada. Algumas proposições podem servir apenas para sinalizar preferências e “mostrar trabalho” aos eleitores, com objetivos eleitorais, sem o objetivo de melhorar as políticas públicas. Portanto, o fato de grande parte das proposições não avançarem no processo legislativo não é, necessariamente, um fracasso de seus proponentes. A simples apresentação dessas proposições já cumpriu seu objetivo.

Por outro lado, as proposições que têm como objetivo promover boas políticas públicas, essas sim, precisam ser aprovadas, ou pelo menos incentivar o debate sobre o tema, para cumprir seus objetivos. Podemos supor que nesses casos os parlamentares busquem apoio para seus projetos e que isso se traduza, em alguns casos, em projetos com mais de um autor para terem maiores chances de aprovação.

No entanto, não é tarefa fácil identificar qual é o objetivo de um parlamentar ao propor um projeto de lei – se é que é possível. Ademais, se considerarmos que a apresentação de proposições é utilizada pelos parlamentares como uma maneira de alcançar seus objetivos eleitorais – ser reeleito, e que essa estratégia tem um custo quase zero para eles, podemos esperar uma grande resistência a propostas de limitação da iniciativa parlamentar individual.

E ficam os questionamentos: é legítimo, ou desejável, que o instrumento de iniciativa parlamentar seja utilizado para esses fins? É um problema os parlamentares utilizarem a apresentação de proposições como forma de enviar sinais a seus eleitores? Que outros instrumentos podem ser utilizados para sinalizar preferências aos eleitores e atingir os objetivos eleitorais dos parlamentares?

Entender melhor esses incentivos e os instrumentos disponíveis para a atividade parlamentar pode ser um caminho mais interessante do que simplesmente limitar a iniciativa parlamentar. Disponibilizar e incentivar outros instrumentos pode reduzir a necessidade da utilização da iniciativa parlamentar para objetivos meramente eleitorais. Ademais, melhorar o entendimento da atividade parlamentar e a forma como é avaliada – pelas próprias Casas, pela imprensa, pela sociedade – pode alterar os incentivos que moldam o comportamento dos parlamentares.

Enfim, esse é um tema bastante interessante e que merece mais atenção. Longe de querer apresentar soluções, esse texto tem o objetivo de levantar questionamentos.


Referências

BRITO, Daniel. Agenda Setting in the Brazilian Chamber of Deputies: Assessing the Influence of Political Parties and Legislative Member Organizations. 2023. Master’s thesis (Master of Public Policy) – Hertie School of Governance, Berlin, 2023.

Kirkland, J. H. (2011). The relational determinants of legislative outcomes: Strong and weak ties between legislators. The Journal of Politics, 73 (3), 887–898.

Sciarini, P., Fischer, M., Gava, R., & Varone, F. (2021). The influence of co-sponsorship on mps’ agenda-setting success. West European Politics, 44 (2), 327–353.

[1] Houve um problema com a coleta de dados das PECs. No banco de dados coletado, a maioria das PECs cotinha apenas o primeiro signatário. Apenas 18 PECs apresentavam os dados de todos os autores.

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Lei Geral de Comércio Exterior: um alinhamento importante

Evento híbrido sobre a nova lei sobre comércio exterior

No dia 28 de outubro de 2024 (segunda-feira), das 9h às 17h, será realizada, na sede do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), o evento híbrido (presencial e on-line) “A lei geral de comércio exterior e a modernização das aduanas” para discutir o projeto de lei geral do comércio exterior desenvolvido por especialistas da Receita Federal do Brasil, da Secretaria de Comércio Exterior, e da Consultoria Legislativa do Senado.

O evento será realizado conjuntamente pelo Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e pela Comissão de Estudos Aduaneiros do IASP, contando com a participação de alguns dos autores do anteprojeto, de membros desta coluna e de especialistas na área aduaneira e do comércio internacional.

Os impactos práticos da nova lei sobre as empresas

O projeto da nova lei tem por objetivo aprimorar o gerenciamento de riscos e introduzir a obrigatoriedade do Portal Único de Comércio Exterior, que pretende trazer maior eficiência no despacho aduaneiro e no controle de mercadorias por meio do emprego de tecnologias digitais e documentos eletrônicos. Além disso, busca eliminar barreiras burocráticas e promover o uso intensivo de automação, com foco na transparência e previsibilidade, bem como ampliar o escopo das “soluções antecipadas” e com foco na autorregularização de processos, oferecendo ferramentas de prevenção litígios no âmbito aduaneiro.

O projeto também visa reclassificar os regimes aduaneiros, alinhando-os aos moldes da Convenção de Quioto Revisada (CQR), já em vigor no Brasil, bem como ao Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 (Reforma Tributária sobre o Consumo) que ainda tramita no Senado Federal. A importância do projeto, portanto, vai além de modernizar e consolidar a legislação referente ao comércio exterior no Brasil. Ele busca simplificar o conjunto de normas vigentes, torná-las mais acessíveis e previsíveis para importadores, exportadores e operadores logísticos, e aproximar a legislação brasileira das melhores práticas internacionais.

Um dos seus principais objetivos, como tratado em texto desta coluna (link), é reunir as diversas disposições esparsas em um único corpo legislativo de normas gerais que cuidam de regulação, fiscalização e controle sobre mercadorias, simplificando o conjunto de regras que hoje são regidas, em grande parte, pelo Decreto-Lei nº 37/1966, com o intuito de reduzir a complexidade das operações de comércio exterior e aumentar a segurança jurídica. Outro ponto central é a introdução de inovações, como o uso de ferramentas digitais e a adaptação às exigências internacionais, que têm impacto direto na competitividade do país, criando, ainda, o marco legal doméstico para a facilitação do comércio e para o controle administrativo de mercadorias.

A trinca estrutural do anteprojeto

Livro I do anteprojeto trata das disposições gerais, estabelecendo os conceitos fundamentais e a base legal que regulamenta o comércio exterior, define o território aduaneiro, os sujeitos de comércio exterior, e conceitua as áreas alfandegadas. Introduz um título dedicado à facilitação do comércio, trazendo conceitos inéditos como o do Portal Único de Comércio Exterior (Pucomex), a divulgação de informações na plataforma também em inglês, a possibilidade de uso de documentos digitais ou nato-digitais em substituição aos documentos físicos, a ampliação do uso de pagamento eletrônico para as operações, e a ampliação do escopo temático de soluções antecipadas.

Por sua vez, o Livro II é dedicado ao controle e fiscalização das operações de comércio exterior. Aborda a forma como deverá ser estruturada a gestão de riscos, trazendo maior transparência no uso e divulgação das informações, regulamentando os procedimentos de inspeção, despacho de mercadorias, e auditorias aduaneiras. Também abrange as regras para o depósito temporário de mercadorias e o controle pós-liberatório, permitindo que as autoridades fiscalizem as operações mesmo após a liberação das mercadorias.

O livro destaca o papel da Receita e de outros órgãos, reforçando a importância da automação e do uso de sistemas digitais para tornar o processo mais rápido, objetivo e eficiente, com foco no detalhamento dos procedimentos fiscais aduaneiros, além de um título inédito dedicado ao controle desempenhado pelos órgãos intervenientes, havendo o detalhamento dos estágios de Tratamentos Administrativos que podem ser promovidos sobre importação ou exportação de mercadorias no âmbito do Pucomex.

Por fim, o Livro III é focado nos regimes aduaneiros, finalmente conceituando a categoria de um regime comum e agrupando em quatro gêneros internacionalmente conhecidos os regimes aplicados em áreas especiais[1] (e.g. trânsito aduaneiro, depósito aduaneiro, permanência temporária e regimes de aperfeiçoamento).

Ademais, deixa de se falar em um Termo de Responsabilidade para constituição de obrigações fiscais, adotando-se implicitamente a ideia de não incidência quando da aplicação desses regimes. A lógica buscada pelo Livro III determina que uma de suas formas de extinção é o despacho para consumo, hipótese que agora aproxima os regimes de Drawback e Recof. Aborda, ainda, os benefícios a eles associados e traça as linhas gerais dos regimes aduaneiros aplicados em áreas especiais (Áreas de Controle Integrado, Zona Franca de Manaus e Zonas de Processamento de Exportação). Embora o anteprojeto forneça diretrizes gerais, deixa a cargo de órgãos como a Receita Federal a complementação e regulamentação de aspectos operacionais específicos.

Contexto e justificativas

Em artigo publicado nesta coluna (link), abordamos que as codificações e consolidações têm como objetivo comum racionalizar, organizar, simplificar e tornar mais transparente e acessível a legislação. Sob este viés, o Projeto de Lei nº 508/2024 (PL 508), apresentado ao Senado Federal, em 29/02/2024, ao buscar consolidar a legislação federal esparsa sobre o comércio exterior e a tributação aduaneira, recebeu a crítica de repaginar mecanicamente uma legislação sexagenária e, em alguns aspectos, retrógrada, como os autores deste artigo já trataram em outros escritos (link).

O projeto de consolidação teve o mérito de fomentar não apenas a discussão em torno do tema, mas também de impulsionar (e mesmo possibilitar) a reunião de especialistas para promoverem os estudos para a elaboração do anteprojeto de uma lei, de caráter nacional, baseada na modernização do aparato normativo voltado a tratar do comércio internacional.

Este novo texto produzido pela comissão não teve a pretensão de sistematizar os principais temas da matéria (e, portanto, sem as credenciais para se apresentar como um código), mas tampouco buscou apenas reunir em um único corpus coeso e coerente o texto positivo preexistente, mas inovar e adequar o direito posto para a realidade atual do país e do estado da arte da tecnologia (e, portanto, sem as características de uma consolidação). Por este motivo, tratou-se, antes, de uma “lei geral do comércio exterior”, ao estabelecer “normas gerais” para a matéria.

Objeto e normas gerais em matéria de comércio exterior

O objeto da lei é, como define em seu artigo inaugural, estabelecer “normas gerais” para o desempenho das atividades de regulação, fiscalização e controle sobre o comércio exterior de mercadorias.

Apesar de possuir um dispositivo de diretrizes aplicáveis a toda a legislação aduaneira que emana comandos mais genéricos, o texto irradia também disposições específicas que deverão ser consideradas na interpretação de temas relativos aos eixos temáticos de que tratam os Livros I, II e III. Neste contexto, o anteprojeto transbordará seus efeitos desde seu glossário – explicando conceitos básicos do comércio exterior – até aspectos pontuais importantes de Regimes Aduaneiros Especiais – como a refundação conceitual do que caracteriza os Regimes Aduaneiros.

Definições e vaguezas

O artigo 2º do anteprojeto proposto, em prestígio à busca de precisão determinada pelo artigo 11 da Lei Complementar nº 95/1988, busca incorporar um glossário mínimo ao definir determinados termos e expressões. Observe-se que o esforço se dobra à tradição em determinados momentos como ao reafirmar o “despacho para consumo” como o “procedimento” para submeter a mercadoria ao regime aduaneiro comum, aproximando o conceito da lógica do Direito Administrativo.

Em outros momentos, meramente reproduziu o conhecido conceito de importação apenas para a interpretação do PL, definida como a “entrada da mercadoria no território aduaneiro”, mantendo-se em aberto discussões teóricas em outros domínios como a mera transposição física ou cruzamento da fronteira, não apenas por meio dos recintos alfandegados, mas de qualquer ponto do território.

Tal definição se aproxima daquela eleita pelo Acordo de Facilitação do Comércio (AFC), ao optar pelo termo “introdução” de mercadorias estrangeiras no território nacional. Por outro lado, a escolha pela CQR confere um acento maior no procedimento e na entrada regular ao fazer remissão expressa à regularidade da entrada com animus de definitividade (documentos, conferência e recolhimento de tributos). A interpretação, portanto, acaba por precisar de uma construção com caráter sistemático para chegar à norma, o que pode ser reforçado pela definição mercosulinas da materialidade da tarifa, que pressupõe “importação definitiva de mercadoria para o território aduaneiro”.

Para fins aduaneiros, passou explicitamente a se definir (conceito até então inexistente) o que vem a ser um “regime aduaneiro comum”, traduzindo que o signo jurídico da importação precisa se somar ao aspecto volitivo (entrada definitiva) para que assim se possa consumar o tratamento aduaneiro à mercadoria importada.

Portanto, o texto caminha no seu glossário de definições na exata medida do necessário ao utilizado pela mesma Lei, sem conceituar temas que nem sequer poderiam dele fazer parte, como definições de “erro escusável”, esta afeta ao campo da aplicação de penalidades e infrações.

Controle aduaneiro, conferência e fiscalização

Algo semelhante pode ser dito a respeito de um específico aspecto da “modernização” utilizado pelo anteprojeto: o recurso intensivo a tecnologias digitais como forma de viabilização do controle aduaneiro. De fato, tal escolha pode criar barreiras para pequenas e médias empresas, havendo uma tendência a direcionar determinados custos operacionais ao setor privado (a “privatização” dos custos administrativos, que se tornam custos de conformidade, proporcionalmente maiores conforme menor o porte da empresa) [2].

No entanto, as alegações de eventuais dificuldades em se adaptar ao novo sistema tecnológico não parecem ser suficientes para deixar de lado a constatação de que tal postura seja um aliado (inevitável) da facilitação do comércio, e que a crítica poderá ser dirigida à forma da implementação [3], não parecendo ser necessário que o anteprojeto preveja (de maneira textualista) prazos e detalhes operacionais.

O texto avança em incrementar garantias às pessoas intervenientes. Cite-se a divulgação, de forma pública, de fatores abstratos considerados pela administração aduaneira para fins de gestão de riscos, ou a necessidade de se continuamente melhorar os critérios de seleção de risco. Digno de nota, ainda, a obrigação de a autoridade aduaneira indicar objetivamente os elementos analisados em relação às mercadorias importadas.

O ganho de transparência é imensurável. Outras questões a respeito do controle poderão ser bem conduzidas no debate legislativo a respeito do anteprojeto, como a ampliação do aspecto temporal do despacho aduaneiro para momentos posteriores à própria liberação da mercadoria, permitindo-se um debate a respeito sucessivas intervenções sobre um mesmo fato jurídico (e.g. auditoria pós-liberatória), fato que pode aumentar o contencioso aduaneiro  que agora irá se debruçar sobre nova terminologia em detrimento da conhecida expressão “revisão aduaneira” .

Estabelece o artigo 13 do anteprojeto que a autoridade aduaneira possui o poder de, entre outras coisas, requisitar documentos e informações, inclusive em formato digital, e de solicitar o auxílio da força pública em situações que apresentem risco à segurança ou possibilidade de fuga de pessoas, veículos ou mercadorias. Tais previsões são aceitas pelo ordenamento brasileiro, desde que realizadas “no interesse do controle aduaneiro”, à semelhança do § 2º do artigo 113 do CTN, expressão que pode ser acrescida ao caput.

O artigo 3º do anteprojeto aponta para os nortes magnéticos a serem perseguidos pela regulação, fiscalização e controle sobre o comércio exterior, tais como a sutil menção ao “interesse nacional” em substituição ao conhecido termo do artigo 237 da CF/88, que somente resguardava o “interesse fazendário nacional”.

Nota-se, assim, que a regulação, fiscalização e controle passam a ter de modo geral todos os valores da sociedade brasileira insculpidos pelo constituinte originário, exemplificando-se aqueles mais afetos aos domínios comércio exterior como o fortalecimento da economia brasileira, o fomento ao desenvolvimento nacional e a livre concorrência.

Todos os vetores indicados (e não indicados) pelo dispositivo são importantes, mas a ampliação do escopo de valores a serem protegidos é o que sobressai. Isso sem descurar da ideia de não-discriminação, importante garantia da livre circulação de mercadorias, e pedra estruturante de diversos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, merecendo seu lugar no artigo como forma de resguardar os interesses também dos importadores, uma vez que a liberalização regrada das políticas comerciais e a integração à disciplina multilateral de regulação do comércio são igualmente formas de expressão dos interesses nacionais.

Conclusão

No dia 15 de outubro de 2024, celebramos o Dia dos Professores no Brasil. Em meio aos debates sobre a nova Lei Geral do Comércio Exterior, esperamos que essa temática continue a ganhar destaque nas salas de aula e na Academia. Que esse projeto seja amplamente discutido em pesquisas científicas, contribuindo para o fortalecimento e desenvolvimento de um direito aduaneiro sólido e atualizado, essencial para o alinhamento do Brasil às melhores práticas internacionais e à modernização do seu aparato regulatório no comércio exterior.


[1] Vide ANDRADE, Thális. O conceito de Regime Aduaneiro Especial no Brasil in Perspectivas e desafios do Direito Aduaneiro no Brasil (org. TREVISAN, Rosaldo et al), Brasília: Ed. Caput Libris, 2024.

[2] TAKANO, Caio Augusto. Deveres instrumentais dos contribuintes: fundamentos e limites. São Paulo: Quartier Latin, 2017.

[3] Como tem sido feito em trabalhos como: REIS, Raquel Segalla. Gestão de riscos no despacho aduaneiro de importação: inteligência artificial como instrumento e agente de controle. 2024. 194 f. Dissertação (Programa Stricto Sensu em Direito) – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2024. Disponível neste link.

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