Um milhão de habeas corpus no STJ: mais ou menos justiça?

O instrumento jurídico mais ágil para preservar o direito à liberdade, quando utilizado de forma desvirtuada – às vezes totalmente abusiva –, acaba por prejudicar a própria prestação de justiça a quem precisa.



Ao longo do dia 12 de dezembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu 625 habeas corpus – um número tão elevado quanto comum na rotina da corte –, mas o conteúdo de um deles chamou atenção: trazia o pedido de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, sob o argumento de que a medida seria necessária para cumprir decisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional.

Classificado pelo presidente da corte, ministro Herman Benjamin, como “inusitado“, o caso é curioso não apenas pelo personagem em questão, mas pela contradição entre o pedido e a natureza do habeas corpus – instituto criado para assegurar a liberdade da pessoa, não para restringi-la.

Ainda assim, a petição, como todas que chegam à Justiça, precisou ser analisada e decidida – não apenas de forma monocrática, mas também em colegiado e pela Vice-Presidência do STJ, após sucessivos recursos internos –, juntando-se aos mais de um milhão de habeas corpus recebidos pelo tribunal em sua história – marca atingida em 30 de abril deste ano.

Em uma era marcada pelo avanço da litigância em larga escala, o habeas corpus ocupa lugar central no cotidiano do STJ. Concebido para ser acionado diante de ameaça ou coação ilegal ao direito de ir e vir, tornou-se, ao longo dos anos, uma das ações mais manejadas na Justiça brasileira, revelando não apenas o alcance democrático do instituto, mas também o uso distorcido que dele tem sido feito.

Por trás da impressionante quantidade de habeas corpus impetrados no STJ, emergem questões como as fragilidades do sistema recursal, as dificuldades estruturais das cortes sobrecarregadas e a defasagem entre legislação e jurisprudência.

As consequências vão muito além do atraso na tramitação dos processos. O excesso de habeas corpus, especialmente nos colegiados de direito penal, tem prejudicado o cumprimento da missão mais importante do STJ: uniformizar a aplicação das leis por meio do julgamento do recurso especial.

Impetrações sem suporte legal mínimo justificam a aplicação de multas

Absurdos como o requerimento de prisão do presidente russo não são raros. No plantão judiciário de 20 de dezembro de 2024 a 31 de janeiro deste ano, foram protocolados no STJ habeas corpus para impedir a cantora Cláudia Leitte de participar de uma audiência pública e invalidar um pregão eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho para aquisição de itens utilizados em eventos.

Após analisar uma série de habeas corpus de um mesmo impetrante, o presidente do STJ aplicou multa de R$ 6 mil pela reiteração de pedidos sem qualquer base constitucional ou legal. O comportamento – que, segundo afirmou Herman Benjamin no julgamento do HC 980.750, configura ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância ímproba – foi punido com base no artigo 77, II e IV, e parágrafos 2º ao 5º, do Código de Processo Civil (CPC), entre outros dispositivos legais.

Em 2024, muitas situações semelhantes foram identificadas nos mais de 89 mil habeas corpus analisados apenas pela Terceira Seção – órgão do STJ que julga os casos da área criminal.

Características do habeas corpus o tornam um instrumento atrativo

A lista de habeas corpus manifestamente incabíveis, com temas que passam longe de qualquer violação ao direito de locomoção, é extensa e variada. A corte já recebeu, por exemplo, um pedido de guardas municipais para obter porte de arma. Em outro caso, o impetrante pretendia uma espécie de “licença para beber e dirigir”: ele queria um habeas corpus preventivo para não se submeter ao exame de bafômetro.

Houve ainda o habeas corpus manejado contra o Tribunal de Justiça do Piauí para questionar a substituição do peticionamento em papel pelo peticionamento eletrônico. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz (aposentada), relatora, definiu a pretensão como “descabida” e afirmou que demandas como aquela só contribuíam para o abarrotamento dos tribunais.

A preocupação manifestada por Laurita Vaz e pelo presidente do STJ se confirma em números. O tribunal demorou 30 anos para atingir a marca de 500 mil habeas corpus, mas levou apenas seis anos para dobrar o quantitativo.

O cenário da Terceira Seção ilustra o problema. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, que presidiu o colegiado de março de 2023 a fevereiro de 2025 e é o relator do HC 1.000.000, os habeas corpus correspondem a quase 70% dos casos analisados nos órgãos julgadores de direito penal. “Isso desfigura, de certa maneira, o que se espera da jurisdição do STJ em matéria criminal”, avalia o magistrado.


Previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, o habeas corpus é um poderoso aliado na proteção do direito à liberdade de locomoção, pois é gratuito, não exige maiores formalidades e tem tramitação mais rápida. 

Na mesma linha do texto constitucional, o atual Código de Processo Penal (CPP) dispõe no artigo 647: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”

Devido às suas características, o habeas corpus se tornou um instrumento atrativo também para quem deseja outras coisas que não preservar a liberdade do indivíduo diante de coações ou ameaças ao direito de locomoção. Não é de estranhar, portanto, o aumento de sua utilização nos últimos anos, sobretudo com a facilidade de acesso aos tribunais trazida pelo processo eletrônico.

O que mais preocupa o Judiciário, pelo volume, não são nem os pedidos que de tão despropositados chegam a soar folclóricos, e sim o uso do habeas corpus como panaceia para tentar reformar toda e qualquer decisão desfavorável no processo penal – inclusive proferidas em outros habeas corpus –, em substituição aos recursos previstos na legislação.

História da Justiça no Brasil revela uso amplo do habeas corpus

A utilização do habeas corpus no Brasil é antiga. Ribeiro Dantas conta que ele surgiu no país por meio de decretos, nos tempos do Império, mas a sua introdução expressa no ordenamento jurídico se deu no CPP de 1832. A Constituição republicana de 1891 elevou o instituto à categoria de garantia constitucional.

“É essa Constituição (não se sabe até hoje se foi de propósito ou se foi um esquecimento, isto é, se foi um silêncio simples ou um silêncio eloquente) que diz que se daria habeas corpus para qualquer violação por ilegalidade ou abuso de poder. Não se explicitava que era o direito à livre locomoção”, recorda o ministro.

Com isso, prossegue Ribeiro Dantas, advogados reivindicavam diversos direitos por meio de habeas corpus, e o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecia o caráter mais amplo da ação. Apenas em 1926, uma emenda constitucional definiu que o habeas corpus deveria ser impetrado para assegurar a liberdade de locomoção. Mesmo assim, o instrumento já havia se consolidado, nas palavras do magistrado, como um “bebê grandão”.

Modelos adotados em outros países são mais restritivos

O ministro Rogerio Schietti Cruz, membro da Terceira Seção e presidente do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (Nugepnac) do STJ, aponta que o habeas corpus, de fato, se estabeleceu como um instrumento de uso mais extenso e flexível, especialmente em comparação com modelos adotados em outros países.

“No Brasil”, relata Schietti, “o habeas corpus foi ampliando seu leque de incidência de tal modo que, hoje, tudo que ocorre no processo penal, ou mesmo antes dele, pode ser objeto de um habeas corpus. É uma tradição nossa difícil de mudar, porque se você, de alguma forma, criar limitações, isso causará reações, além da desproteção a alguns direitos que são alcançados por uma interpretação bem ampla do instituto”.

A dificuldade para limitar o habeas corpus à sua finalidade expressamente prevista na Constituição e no CPP tem a ver também com o fato de que o Brasil viveu – em um passado não muito distante – mais de 20 anos de ditadura militar. Nesse período, entre as muitas arbitrariedades perpetradas pelo Estado, houve a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), cujo artigo 10 suspendeu a concessão do habeas corpus nos casos enquadrados como “crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.

Com a redemocratização, a chamada Constituição Cidadã de 1988 restabeleceu o devido processo legal, e o habeas corpus – impulsionado pelo sentimento de rejeição ao arbítrio anterior – passou a ser admitido na jurisprudência para corrigir situações apenas indiretamente ligadas à liberdade de locomoção.

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio e overruling

Segundo o defensor público Marcos Paulo Dutra, coordenador de Defesa Criminal e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o habeas corpus, atualmente, simboliza a democratização do acesso à Justiça e é um instrumento fundamental para a superação de entendimentos jurisdicionais (overruling).

“Quando pensamos na guinada promovida pelo STJ a respeito do reconhecimento pessoal e fotográfico, isso se deu por meio do habeas corpus, o que é sensacional”, afirma o defensor.

Ao falar sobre o aumento das impetrações, ele lembra o debate jurisprudencial em torno da admissibilidade do chamado habeas corpus substitutivo de recurso especial ou substitutivo de recurso ordinário constitucional.

“O STJ tem uma jurisprudência consolidada que não admite o denominado habeas corpus substitutivo. Mas, em muitíssimos casos, os ministros, com acerto, evoluem e acabam concedendo a ordem de ofício, tamanhas as teratologias identificadas”, observa Dutra.

Via paralela mais ágil e desestímulo ao uso do recurso especial

Na avaliação do advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, autor do livro Habeas Corpus na Jurisprudência dos Tribunais Superiores, a atual arquitetura recursal tem levado os operadores do direito a enxergar no habeas corpus uma via paralela – e mais ágil – para garantir a apreciação de questões urgentes, especialmente quando há alguma possibilidade de risco à liberdade do acusado.

Para ele, o sistema atual desestimula o uso regular do recurso especial, cujas exigências procedimentais muitas vezes inviabilizam o exame do mérito.

Como forma de enfrentar o número excessivo de habeas corpus, o advogado sugere uma flexibilização que permitisse à defesa pleitear medidas de urgência diretamente no corpo do recurso especial, à semelhança do que já ocorre com a concessão de habeas corpus de ofício em certos casos. “Essa possibilidade traria mais segurança aos advogados, que hoje recorrem ao habeas corpus temendo que a discussão de direito nem sequer seja apreciada nos tribunais superiores”, diz.

Ministro alerta para necessidade de atualização do CPP

Essa percepção encontra eco no próprio STJ. O ministro Ribeiro Dantas alerta que o uso massivo do habeas corpus se relaciona diretamente com a defasagem do CPP, em vigor desde 1941. Para ele, a legislação brasileira não foi atualizada para lidar com a complexidade e as demandas do processo penal contemporâneo, especialmente no que se refere à celeridade na análise de decisões interlocutórias que afetam a liberdade do réu.

Ribeiro Dantas traça um paralelo histórico com o uso excessivo do mandado de segurança entre as décadas de 1970 e 1990, quando esse instrumento funcionava como uma espécie de “válvula de escape” para ineficiências do processo civil.

Segundo ele, somente após reformas profundas no CPC – que tornaram os mecanismos recursais mais funcionais e acessíveis –, o mandado de segurança perdeu seu caráter emergencial e passou a ser utilizado de forma mais racional. No processo penal, no entanto, o ministro destaca que faltam instrumentos processuais adequados para lidar com situações que não podem esperar.

“Nesses casos, o habeas corpus muitas vezes se apresenta como a única via rápida e eficaz, diante de recursos ordinários excessivamente formais, complexos e morosos”, comenta o ministro.

Leis em descompasso com jurisprudência geram “avalanche” de ações

Para o jurista Guilherme de Souza Nucci, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior problema não se encontra no manejo do habeas corpus ou na esfera do processo penal, mas sim na falta de atualização de alguns normativos, como a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas).

O magistrado, que é autor de obras na área do direito penal e do direito processual penal, aponta que as drogas respondem por mais de 50% da carga de trabalho da Justiça criminal, mas esse dado não recebe a devida atenção por parte do legislador. O resultado dessa lentidão é que os tribunais superiores acabam definindo parâmetros que já poderiam estar no texto legal, como é o caso da descriminalização, decidida no STF, do porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal.

Outro exemplo citado pelo magistrado diz respeito à incidência do princípio da insignificância. Ele lembra que, nesse caso, o STJ já estabeleceu filtros em sua jurisprudência.

“Mas onde está na lei? Não tem. Então, o advogado vai reclamar junto ao STJ o tempo todo. Nós temos que atualizar a lei penal utilizando os próprios institutos que os tribunais estão adotando, para que pare a avalanche de habeas corpus reclamando, muitas vezes, o óbvio”, declarou Nucci.

Uma resposta efetiva diante da violação de direitos

Em meio ao debate sobre o uso excessivo do habeas corpus, a história do vídeo abaixo mostra como, apesar das distorções e do volume preocupante de impetrações, esse instrumento continua a representar uma resposta efetiva à violação de direitos fundamentais. No caso de Romário dos Santos, foi a decisão do STJ no HC que fez a diferença entre uma condenação injusta e o restabelecimento da paz em sua vida.​

A série especial HC 1 milhão: mais ou menos justiça? debate o aumento expressivo do uso desse instrumento constitucional, trazendo diferentes pontos de vista sobre o fenômeno e o seu impacto nas atividades dos tribunais.

No próximo domingo: o papel de cada ator do Sistema de Justiça no ingresso massivo de habeas corpus no STJ.

Fonte: STJ

Empregada transexual não reconhecida por nome social será indenizada

A 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou uma empresa de teleatendimento a indenizar em R$10 mil uma empregada transexual por conduta discriminatória.

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Para o colegiado, situações como não ser reconhecida pelo nome social e restrição ao uso do banheiro feminino caracterizam transfobia por parte da empresa.

Segundo o processo, a empregada foi admitida em maio de 2021 como operadora de telemarketing. Ela afirma que nunca teve seu nome social respeitado pela empresa, mesmo com todos sabendo que ela era uma mulher transexual.

Sofrendo com os preconceitos, ela disse que chegou a procurar a direção para relatar as condutas discriminatórias, sendo bem recebida. Poucos dias depois, todavia, foi demitida.

Em agosto de 2023, a primeira instância condenou a empresa a indenizar a trabalhadora em R$ 10 mil por conduta de transfobia no ambiente de trabalho e dispensa discriminatória. Em sequência, a sentença foi confirmada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA). Diante da decisão, a empresa recorreu ao TST.

‘Ambiente saudável’

No recurso, a empresa declarou que sempre procedeu de maneira correta ao propiciar um ambiente de trabalho saudável e inclusivo para todos.

Acrescentou que, apesar de a empregada ter apresentado, na contratação, documentos pessoais com nome de batismo e ter sua certidão de nascimento expedida após o fim do contrato, sempre esteve aberta a lhe dar o tratamento requerido, ou seja, o nome social.

Ainda no recurso, a empresa observou que a empregada prestava serviços em uma instituição bancária, com rígidas regras de segurança e informação.

Por isso, o nome social apenas poderia ser incluído em tais documentos caso ela fizesse a mudança do seu nome em registro. A empregadora lembrou que o nome social da empregada fazia parte dos canais internos da empresa e no crachá utilizado por ela.

Quanto ao uso do banheiro, a empresa informou que estes eram utilizados conforme a identidade de gênero, sem qualquer restrição. A empresa também rechaçou a alegação de demissão discriminatória, disse que nada foi provado e que a companhia sempre prezou pela diversidade.

Violação grave de direitos

Ao analisar o caso, a 2ª Turma do TST considerou correta a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais.

Segunda a relatora do processo, ministra Maria Helena Mallmann, os fatos narrados evidenciaram violação grave aos direitos da empregada, gerando angústia e constrangimento incompatíveis com o dever de respeito à dignidade humana.

De acordo com a ministra, assim como órgãos públicos, empresas privadas devem respeitar o nome social dos funcionários e dos clientes. “O nome social é a forma pela qual a pessoa trans se identifica e quer ser reconhecida socialmente nas diferentes instituições”, observou Mallmann.

A ministra observou que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADO 26 e do MI 4.733, reconheceu a transfobia como espécie de racismo, vedando práticas discriminatórias contra pessoas transgênero. “A recusa em utilizar o nome social configura afronta à dignidade humana e gera danos morais”, frisou a relatora.

Por fim, quanto à restrição ao uso do banheiro feminino, a ministra ressaltou que o direito ao uso do banheiro condizente com a identidade de gênero resulta da proteção à igualdade e à dignidade, sendo a restrição a esse direito uma forma de discriminação direta.

“Promover a diversidade de gênero é um passo essencial para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva”, concluiu a relatora. Com informações da assessoria de imprensa do TST. 

Clique aqui para ler o acórdão
Processo 
0000416-46.2022.5.05.0029

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Juiz não deve mudar valor de multa por descumprimento que já incidiu, reforça STJ

Ao analisar casos que apontam a exorbitância da multa por descumprimento de decisão judicial, o juiz só deve alterar o valor do que ainda vai incidir, preservando o que já incidiu por causa da recalcitrância do réu.

Valor da multa por descumprimento de decisão pode ser revisado, mas o total deve ser mantido devido à recalcitrância do réu

Essa conclusão é da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que manteve o veto às seguidas revisões das chamadas astreintes, sempre requeridas por quem ignorou ordens judiciais.

A ideia é que essa multa possa ser alterada ou até excluída pelo juiz a qualquer momento. Mas, uma vez feita a alteração, não serão lícitas novas e sucessivas revisões, sob pena de desestimular o devedor a cumprir a obrigação.

Assim, a mudança só vale para a “multa vincenda”, termo usado no artigo 537, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, que regula o tema das astreintes.

Trata-se da confirmação de um precedente firmado pela própria Corte Especial pouco mais de um ano atrás. Apesar disso, a votação foi apertada, de 7 votos a 5.

Multa por descumprimento

O caso concreto é o de uma financeira que foi alvo em 9 de fevereiro de 2012 de decisão liminar, confirmada em sentença, que estabeleceu obrigações e o pagamento de R$ 36 mil a título de lucros cessantes.

O juízo de primeiro grau impôs multa diária de R$ 250 pelo descumprimento da obrigação, limitada a R$ 75 mil. Ou seja, o limite seria alcançado se a recalcitrância durasse 300 dias.

Diante da inércia da financeira, o juiz posteriormente aumentou a multa diária para R$ 1 mil e retirou a previsão de limite. A medida judicial só foi cumprida em 13 de maio de 2016, mais de quatro anos depois (1.555 dias).

Valor da multa

A discussão sobre a exorbitância do valor começou quando a parte tentou executar provisoriamente o valor da multa, que já alcançava R$ 2,1 milhões, levando em conta o fato de que o contrato entre as partes tinha valor de R$ 96,6 mil.

A redução da multa foi rejeitada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2018. Em 2021, a 3ª Turma do STJ julgou o caso em recurso especial e entendeu que o valor diário era, de fato, exorbitante. E reduziu-o de R$ 1 mil para R$ 300.

O colegiado concluiu que poderia reavaliar a proporcionalidade do valor diário da multa, mas não o montante acumulado, já que esse deriva da recalcitrância do devedor em cumprir a ordem judicial.

A financeira, então, recorreu à Corte Especial do STJ, em embargos de divergência. O advogado da empresa, na sustentação oral, disse que o valor atualizado da multa ultrapassa R$ 1 milhão.

Proposta de superação

Relator, o ministro João Otávio de Noronha votou por reduzir o acumulado da multa para R$ 200 mil, com base nos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e do não enriquecimento sem causa.

Para isso, tomou como base um julgado da 4ª Turma (AREsp 2.558.173) que desrespeitou o precedente da Corte Especial no sentido de que o artigo 537, parágrafo 1º, do CPC não se restringe à multa vincenda, podendo atingir a multa vencida.

Noronha, que não participou do julgamento de 2024 sobre o tema na Corte Especial, propôs a revisão dessa posição. Ele ficou vencido, acompanhado do ministro Sebastião Reis Júnior e dos colegas de 4ª Turma (os ministros Isabel Gallotti, Raul Araújo e Antonio Carlos Ferreira).

Desestímulo à recalcitrância

Abriu a divergência vencedora o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que foi o relator do precedente da Corte Especial de 2024, o qual definiu como vinculante, apesar de ter sido tomado em embargos de divergência.

Para ele, o valor acumulado decorre da recalcitrância da financeira em cumprir a ordem judicial. Reduzi-lo implicaria estímulo para novos descumprimentos.

Cueva ainda fez referência a uma fala recente do presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, que fez um alerta para a existência da litigância abusiva reversa, causada por empresas que dão origem a milhares de processos por sua própria conduta.

“Nesse caso, como em tantos outros, o pano de fundo é a litigância abusiva reversa da instituição financeira, que deve ser combatida com firmeza, o que certamente não ocorrerá se a corte, contrariando texto expresso da lei, decidir pelo enfraquecimento da técnica processual que dá efetividade à tutela jurisdicional.”

Formaram a maioria os ministros Humberto Martins, Maria Thereza de Assis Moura, Og Fernandes, Benedito Gonçalves, Francisco Falcão e Nancy Andrighi.

Corrupção e teratologia

Na corrente vencida, o ministro Raul Araújo destacou que a revisão do valor da multa já incidente no caso concreto deve ser possível para evitar que isso se torne fonte de corrupção no Poder Judiciário.

“Não podemos esquecer que a fixação de multas para além daquilo que é razoável fragiliza bastante a parte que é obrigada. Há possibilidade de conluios, que infelizmente ocorreram em situações do passado”, destacou Araújo.

“Foi com base nesses cuidados que o STJ sempre estabeleceu a possibilidade de revisão do valor das astreintes a qualquer tempo, fator essencial para coibição de episódios muito tristes no Poder Judiciário”, acrescentou ele.

A ministra Isabel Gallotti seguiu linha parecida ao apontar que o alto valor das multas por descumprimento acaba se tornando fator de descrédito dos tribunais, pois convertem-se em obrigações impossíveis de cumprir.

Ela admitiu a renitência de instituições financeiras, mas destacou que há frequentes comportamentos de credores que preferem deixar a multa acumular do que pedir providências simples para o cumprimento da obrigação judicial.

“Penso que esta corte haverá de revisitar esse tema, até para evitar teratologias. Há multas que são teratológicas e acabam com o descrédito do Poder Judiciário.”

EAREsp 1.479.019

Fonte: Conjur

Boas práticas e diretrizes internacionais para o processo legislativo democrático

Há uma crescente atenção de diversas organizações internacionais para a necessidade de democratizar o processo legislativo. Como destaca Tímea Drinóczi, para além da expansão da realização de análises de impacto legislativo ex ante em diversos países, organizações internacionais passaram a se dedicar à disseminação de boas práticas e diretrizes (guidelines) democráticas para o processo legislativo como estabelecimento de padrões de legística, fortalecimento da participação social e aumento da transparência das atividades parlamentares [1].

O presente artigo apresenta em visão panorâmica iniciativas recentes de algumas organizações internacionais que têm apontado boas práticas e diretrizes para o processo legislativo democrático, fazendo-se, quando possível, vinculações com o cenário brasileiro. Apresentam-se, em breves linhas, essas iniciativas com algumas conclusões gerais ao final.

Uma das organizações mais tradicionais é a União Interparlamentar – Inter-Paliamentary Union (IPU). Fundada em 1889, é sediada em Genebra e congrega mais de 180 Parlamentos nacionais, inclusive o Brasil. Sua atuação é destinada a promover a cooperação entre os Parlamentos para fortalecimento de suas capacidades institucionais e suas democracias. Alguns de seus temas de maior atenção são a resiliência democrática e os parlamentos, participação feminina na política, transformação digital e combate à crise climática.

Entre suas iniciativas, destacam-se os World e-Parliament Reports, sendo o mais recente de 2024, em que são apontadas as principais tendências de transição digital dos Parlamentos [2]. Como o Report demonstra, há uma tendência acentuada no período pós-Covid 19 de que as inovações digitais sejam permanentemente incorporadas às práticas parlamentares, gerando desafios de transparência, segurança e inclusão digital e oportunidades de aumento da participação social e resiliência democrática em contextos de crise. Há também o robusto “Indicadores para os Parlamentos Democráticos”, lançado em 202 [3], em que há 25 indicadores do caráter democrático dos parlamentos, já com estudos de casos em que países os utilizaram para avaliar suas instituições e práticas.

Outra instituição que tem se destacado é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual é o Brasil é um país associado com possível ingresso pleno futuro. Na OCDE, há dois principais órgãos que trabalham o tema das boas práticas e diretrizes em processo legislativo e democracia.

O primeiro deles é o Comitê de Política Regulatória, cuja missão é fortalecer a produção de normas jurídicas – legislativas e administrativas – com base em evidências empíricas de forma estratégica e inovadora. Em 2012, foi adotada a importante Recomendação para a Política Regulatória e Governança [4], que sugeriu a seus membros a adoção de uma política regulatória ampla (whole-of-government) fundada em princípios de transparência e participação social, bem como a adoção de boas práticas como a análise de impacto ex ante e avaliação constante de estoque regulatório. O Comitê também faz regularmente a avaliação de políticas regulatórias de determinados países (Regulatory Police Outlook [5]). O Brasil é um dos países regularmente avaliados, sendo que o Relatório de 2022 (Regulatory Reform in Brazil [6]) ressalta, dentre outras sugestões, a necessidade de criação de uma política nacional de melhoria da qualidade regulatória, inclusive envolvendo o Poder Legislativo. No plano do Poder Executivo federal, a retomada do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG – Decreto 11.738/2023) e os Decretos 10.411/2020 e 11.243/2022 dialogam diretamente com essas recomendações.

Destaque e conclusões

Ainda no âmbito da OCDE, em 2022 foi criada a “Iniciativa Reforçando a Democracia” coordenada pelo Comitê de Governança Pública, tendo cinco pilares-chave: 1) combate à desinformação, 2) ampliação da participação social, 3) representação política, transparência na vida pública e igualdade de gênero, 4) práticas de sustentabilidade e 5) democracia digital. Um relatório de 2024 sobre a implementação desses pilares por diversos países retrata, entre outros, a necessidade de repensar respostas estatais lentas em face da desinformação digital e formas inovadoras e criativas de ampliar a participação social nas atividades do poder público no geral e dos parlamentos, em específico [7].

Outra instituição que tem ganhado destaque na atuação internacional a respeito da democratização do processo legislativo é o Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR) –, da Organização para Segurança e Cooperação na Europa). Atualmente com 57 países membros da Europa, Ásia Central e América do Norte, a Organização tem uma atuação destacada na cooperação com países de transição democrática mais recente na avaliação e produção de sugestões para o fortalecimento de eleições transparente e justas e do caráter democrático das normas jurídicas que regem o processo legislativo.

Uma publicação recente que se destaca é o Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws [8], em que são apresentados 17 princípios para o legislar democrático, entre eles os pré-requisitos do processo legislativo: respeito aos princípios democráticos, aderência ao Estado de Direito e respeito aos direitos humanos. Como já destacado em outra oportunidade [9], trata-se de um documento pioneiro focado especialmente na produção legislativo do direito, do seu potencial democrático, boas práticas parlamentares e desafios contemporâneos. Embora produzido por uma organização com atuação mais regionalizada, podem servir de inspiração para outros países, inclusive o Brasil, uma vez que apresentam rica experiência prática de problemas e soluções enfrentadas por parlamentos.

No âmbito das Américas, há o Parlamericas, entidade instalada em 2001, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), como fórum de compartilhamento de experiências e cooperação entre os parlamentos americanos. Atualmente 35 parlamentos nacionais participam do Parlamericas, inclusive o Brasil. Entre suas publicações, se destacam o Mapa para Abertura Legisaltiva 2.0, de 2021 [10], em que há a descrição de diretrizes e iniciativas para o fortalecimento transparência, accountability, participação social e ética na condução das atividades parlamentares.

Diante desse cenário de multiplicidade de documentos, apontam-se quatro conclusões.

É no mínimo curioso perceber que o debate sobre os princípios – aqui não em sentido jurídico, mas de diretrizes políticas – do processo legislativo seja objeto de maior atenção internacional relativamente a pouco tempo. Desde as revoluções liberais do século 17 e 18, entende-se que os parlamentos são órgãos centrais dos governos representativos e, mais recentemente, das democracias representativas, com suas regras e formalidades.

Contudo, é nas últimas décadas, com as transições democráticas especialmente em países da América Latina, leste Europeu, África e Ásia e as constantes crises da democracia representativa, que se aprofundam as demandas por maior qualidade e democraticidade dos trabalhos parlamentares. Como Elsa Pilichowski, diretora de Governança Pública da OCDE e responsável pelo programa Reforçando a Democracia, destaca: “(..) não é que nossas democracias não estão funcionando como elas costumavam funcionar – são as expectativas dos cidadãos que mudaram” [11]. Há, portanto, novas demandas de transformação democrática do processo legislativo e não apenas um retorno a um idealizado modelo de deliberação do passado.

Em segundo lugar, é possível notar alguns pontos largamente comuns nos diversos documentos e diretrizes sobre o legislar democrático. Diretrizes como respeito à democracia e aos direitos humanos, aumento da participação social e de minorias políticas, legislação com base em evidências e análise de impacto legislativo, igualdade de gênero na política e aumento do uso de ferramentas digitais nas atividades parlamentares, apenas para mencionar alguns, são contemplados nos diversos documentos e apontam para aspectos da transformação dos parlamentos no século 21.

Esses pontos comuns podem oferecer o substrato político para justificar e oferecer alternativas para reformas do arcabouço jurídico a respeito da produção legislativa do direito. Como aponta Edoardo Celeste em relação à grandes declarações de direito do século 18 e, mais recentemente, às diversas declarações de direitos digitais produzidas inclusive por entidades do terceiro setor, há um movimento histórico de que pautas inicialmente políticas do constitucionalismo expressadas em documentos esparsos e não vinculantes sejam incorporadas ao discurso jurídico e, posteriormente, transformadas em direito vigente nos planos nacionais [12]. Essa pode ser justamente a tendência no caso da democratização do processo legislativo a partir dessas diretrizes internacionalmente compartilhadas.

Em terceiro lugar, há uma percepção compartilhada de que a transformação dos parlamentos depende, de um lado, de estável compromisso político dos representantes parlamentares e, de outro, institucionalização por meio de regras e instituições dedicadas a essas atividades. Embora a produção legislativa não seja uma atividade meramente técnica, mas essencialmente política na qual diversas visões de mundo e ideologias são apresentadas para o debate público antes da tomada de decisão, há uma dimensão crescente da incorporação de boas práticas regulatórias para o processo legislativo, que requerem pessoal e instituições com algum grau de independência para produzirem informações para subsídio dos parlamentares. Além disso, a participação social por meio de canais institucionalizados cada vez mais é percebida como um elemento central do processo legislativo e não apenas algo que pode ou não ocorrer a critério exclusivo da maioria parlamentar.

Por fim, e a título de conclusão, abre-se amplo campo para estudos e pesquisas. Para mencionaram-se apenas alguns deles: 1) comparação entre os documentos e perspectivas das organizações internacionais sobre o caráter democrático do processo legislativo, 2) ) análise da colaboração entre essas instituições entre si e os parlamentos nacionais e regionais, 3) estudos de caso para a incorporação dessas diretrizes aos diferentes parlamentos nacionais e regionais, 4) relação dessas diretrizes com o direito positivo vigente de diversos países, com destaque para sua tradução em normas jurídicas constitucionais, legais e regimentais, bem como a prática de sua revisão judicial, e 5) estudos de caso do impacto dessas diretrizes sobre o processo legislativo de leis em concreto para avaliar suas potencialidades e desafios. Como é fácil perceber, trata-se de empreitada que mobiliza diversas áreas do conhecimento entre elas a teoria política, ciência política, política comparada, direito constitucional, direito parlamentar e direito regulatório. Fica, portanto, o convite.


[1] Tímea Drinóczi, “Quality Control and Management in Legislation: a Theoretical Framework”, KLRI Journal of Law and Legislation 7 (2017), p. 73.

[2] https://www.ipu.org/resources/publications/reports/2024-10/world-e-parliament-report-2024

[3] https://www.parliamentaryindicators.org/

[4] https://www.oecd.org/en/publications/2012/11/recommendation-of-the-council-on-regulatory-policy-and-governance_g1g3fce5.html

[5] https://www.oecd.org/en/publications/oecd-regulatory-policy-outlook-2025_56b60e39-en.html#:~:text=Adopt%20regulatory%20reviews%20to%20revise,potential%20for%20risk%2Dbased%20enforcement.

[6] https://www.oecd.org/en/publications/2022/06/regulatory-reform-in-brazil_da75f3f8.html

[7] https://www.oecd.org/en/publications/2024/10/the-oecd-reinforcing-democracy-initiative_458501ab.html

[8] https://www.osce.org/odihr/558321

[9] Victor Marcel Pinheiro, “Review: ODIHR Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws”, Theory and Practice of Legislation 12 (2024), pp. 344-357.

[10] https://www.parlamericas.org/uploads/documents/Road_map_2.0_ENG.pdf

[11]  Entrevista, “Time to act: Nurturing our democracies for the 21st century”, OECD Podcasts, 2022.

[12] Edoardo Celeste, “Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bill of Rights”, London, Routledge, 2023, pp. 116-7.

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Após 25 anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal vive ou é um fantasma?

A Lei Complementar 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que fez aniversário de 25 anos no dia 4/5/2025, permanece viva ou é apenas um fantasma que assombra nosso ordenamento jurídico? Antes de responder é necessário traçar um panorama geral sobre o tema.

Uma das mais antigas normas sobre Direito Financeiro ainda vigentes é a Lei 4.320/1964, que foi uma das últimas a serem aprovadas durante o governo do presidente João Goulart, que estabelece as normas gerais dessa disciplina. Trata-se de uma boa norma, que cumpriu muitas funções relevantes em nosso ordenamento jurídico, mas que necessita ser atualizada. Algumas iniciativas vêm sendo adotadas nesse sentido, tendo à frente o economista José Roberto Afonso.

A última década do século passado, os anos 90, foi economicamente muito conturbada no Brasil, com diversos desafios tendo que ser enfrentados ao mesmo tempo. Havia uma espiral inflacionária fazendo com que os agentes econômicos públicos e privados corressem atrás da reposição de suas perdas econômicas, driblando o nominalismo da moeda por meio de múltiplas fórmulas de correção monetária. Existiam diversos índices para os contratos privados e os tributos eram expressos em “moedas indexadas”, como a série de ORTNs, OTNs, BTNs, Ufir e assemelhadas. Existia até uma figura tributária muito peculiar, o “lucro inflacionário”, que felizmente ficou no passado.

Limites

Em meados da década de 90 alguns desses problemas foram enfrentados com extrema coragem e competência econômica pela equipe dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, que formularam o Plano Real, o Proer e diversos outros programas para conter a inflação e reorganizar e economia. É nesse contexto que surgiu há 25 anos a LRF, que trata de diversos aspectos referentes às finanças públicas, sendo que dois se destacam: (1) o controle das despesas com pessoal (despesa obrigatória de caráter continuado) e (2) o controle da dívida pública.

No que se refere às despesas com pessoal, quando surgiu a LRF alguns estados gastavam mais de 100% de sua receita corrente líquida com pagamento de pessoal, ou seja, faziam empréstimos para pagar a folha de salários – o que parece inacreditável nos dias atuais. O artigo 19 passou a determinar que, após certo período de transição, os gastos com pessoal dos estados tivessem um limite 60% de sua receita corrente líquida (artigo 19, II).

Você já deve ter ideia do verdadeiro pandemônio financeiro que existia e do enorme problema político que surgiu para a implantação da LRF. Mas, se o artigo 19 era de difícil efetivação, o artigo 20 causou ainda mais confusão. O artigo 20 da LRF estabelece limites para os gastos com pessoal para cada Poder, em cada unidade federada. Por exemplo, um estado só poderia gastar com o Poder Judiciário estadual até 6% do montante estabelecido no artigo 19 (artigo 20, II, “b”). Esta norma gerou reações políticas diversas. Por um lado, reclamaram fortemente os representantes dos Poderes Legislativo, Judiciário, Tribunais de Contas e Ministério Público, pois estariam limitados aos percentuais estabelecidos no artigo 20, sem a possibilidade de obter aumento de remuneração junto ao Poder Executivo. Por outro lado, os governadores ficaram contentíssimos com a limitação estabelecida, pois criava um parâmetro dentro do qual estariam contidos os pleitos financeiros desses Poderes, reduzindo a pressão que poderia ser feita.

Diversas associações ingressaram com ADIs que foram reunidas na ADI 2.237, e julgada após 20 anos de tramitação sob diversos relatores. Dentre outras deliberações, validou a constitucionalidade dos artigos 19 e 20 da LRF, tendo sido o relator final o ministro Alexandre de Moraes (aviso aos eventuais interessados: o acórdão possui mais de 500 páginas).

Curiosamente, estas duas regras (artigos 19 e 20, LRF), somadas à que assegura a autonomia financeira do Poder Judiciário (artigo 99, CF), acabaram por permitir a extrapolação do teto remuneratório estabelecido na Constituição – mas isso é prosa para outro texto.

O segundo foco da LRF foi a questão dos limites de endividamento dos entes federados. O artigo 30 reporta-se à Constituição, mencionando a edição de normas sobre limites globais para o montante (1) da dívida consolidada de cada ente federado e (2) da dívida mobiliária federal.

Para regular a dívida consolidada dos estados, do Distrito Federal e dos municípios foi editada pelo Senado Federal a Resolução 40/01 e para regular as operações de crédito interno e externo desses mesmos entes federados, inclusive concessão de garantias, foi aprovada a Resolução 43/01.

O artigo 3º da Resolução 40/21 traz uma norma de um formalismo impressionante, ao estabelecer que qualquer estado pode se endividar até duas vezes sua receita corrente líquida, e qualquer município pode fazê-lo em percentual menor, até 1,2 vezes. Trata-se de um erro, pois regula situações diferentes como formalmente iguais – dá para comparar o município de São Paulo (12 milhões de habitantes) com o estado do Amapá (800 mil habitantes), sendo que o primeiro, por ser município, pode se endividar até 1,2 de sua receita e o segundo, por ser estado, pode se endividar até 2 vezes? A distinção pela forma (municípios x estados) é inadequada à realidade.

É igualmente gritante a ausência nessas normas de qualquer limite à dívida pública consolidada da União, o que ocasionou a recente proposta de resolução do Senado apresentada pelo senador Renan Calheiros limitando em quatro vezes a receita corrente líquida da União, a ser implementada em 15 anos. O intuito é claro: limitar o endividamento da União, hoje considerado um dos pontos que gera o aumento da taxa de juros no Brasil.

Conselho, teto e arcabouço

Outro aspecto não regulamentado até hoje na LRF é o Conselho de Gestão Fiscal, cuja função é a de acompanhamento e avaliação da política e da operacionalidade da gestão fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade (artigo 67). Existem projetos de lei em trâmite sobre isso, mas que se encontram paralisados em algum lugar do Congresso.

A LRF foi insuficiente para controlar os gastos e a dívida dos governos brasileiros, considerados no tempo e no espaço geográfico, o que levou ao estabelecimento da Emenda Constitucional 95/16, patrocinada pelo governo do presidente Temer, que instituiu o famigerado Teto de Gastos, o qual foi amplamente dinamitado durante o governo do presidente Bolsonaro e revogado no governo do presidente Lula, pela Emenda Constitucional 126/22 (artigo 9º), sendo instituído o Regime Fiscal Sustentável pela Lei Complementar 200/23, conhecido como arcabouço fiscal.

Sugestão

Respondendo à questão acima, se a LRF, ao chegar aos 25 anos de idade, permanece viva ou é apenas um fantasma. Entendo ser uma norma viva e importante, mas insuficiente para fazer frente aos desafios atuais. Foi um marco quando editada, mas não se sustenta sozinha, precisando que incontáveis outras normas, algumas acima mencionadas, que apoiem as finanças públicas nacionais, dando-lhe sustentabilidade (e não singelo equilíbrio).

Uma sugestão simples, que reduziria muita litigância judicial e extrajudicial: fazer com que a dívida interfederativa, isto é, a que existe entre estados, DF e municípios com a União, deixe de ser tratada como uma qualquer dívida bancária. Melhor explicando: a União utiliza a lógica bancária nessas operações e não a lógica da cooperação federativa, pois cobra juros financeiros e não juros legais. Um exemplo fala por si: estudos da Febrafite apontam que “em valores corrigidos para dezembro de 2024 pela inflação oficial brasileira, o estado (de São Paulo) recebeu R$ 255 bilhões, já pagou R$ 455 bilhões e ainda estava devendo R$ 289 bilhões. Esta absurda diferença de R$ 489 bilhões decorre exclusivamente dos juros reais cobrados pela União pelo empréstimo feito com base na Lei federal 9.496/97”. A mentalidade banqueira da União, em detrimento da cooperação federativa, acarreta a impossibilidade de quitação dessas dívidas.

Em algum momento teremos que descolar o que é reposição de perda inflacionária (a antiga correção monetária) do que são juros reais, hoje reunidos na taxa Selic. Dados concretos: a inflação anual de 2024 medida pelo IPCA foi de 4,83% e a taxa Selic no mesmo período foi de 12,25%. Essa diferença de quase 8 pontos percentuais representa juros reais. O Brasil é viciado em juros altos e isso deve ser alterado para diversas indexações que ainda permanecem em nossa economia. Trata-se de um resquício “imexível” do Plano Real.

Enfim, a LRF permanece viva, mas é insuficiente em face da complexidade atual.

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Securitização e reforma tributária: da não cumulatividade do IBS e da CBS

A reforma tributária possui como um dos seus fundamentos a neutralidade fiscal, definida como a mitigação da influência dos tributos sobre as decisões de consumo e de organização da atividade econômica. Ela tende a representar um empecilho para o planejamento tributário das empresas, pois, em tese, o novo sistema é formulado para que, independentemente das estruturas societárias criadas, dos contratos firmados e das nomenclaturas utilizadas, o encargo tributário permaneça o mais constante possível.

A securitização de crédito, conforme Resolução nº 60/2021 da CVM, consiste na aquisição de créditos para utilização como lastro para a emissão de títulos. Em suma, a empresa que possui créditos a receber no longo prazo, aliena-os à securitizadora com deságio a fim de ter uma antecipação do valor a receber. Assim, incrementa seu caixa, viabilizando o aumento de suas operações e outros investimentos.

Apesar de ser uma estratégia eminentemente financeira para as empresas, a securitização também é recorrentemente utilizada como meio de obter benefícios tributários, já que o deságio aplicado na venda do crédito pode ser deduzido na apuração do Imposto de Renda como despesa financeira.

Esta vantagem tributária, no entanto, depende da conjugação e equilíbrio de diversos fatores, incluindo a tributação da própria atividade de securitização. Logo, os contribuintes devem estar atentos à manutenção deste equilíbrio diante da reforma tributária, que prevê a modificação também da tributação dos serviços financeiros.

Securitização

Para uma análise mais completa, é necessário entender alguns aspectos tributários atuais da securitização de crédito.

Em primeiro lugar, a atividade não é submetida à cobrança de ISS, por conta da sua ausência de previsão na Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003, o que se confirmou em precedentes dos tribunais brasileiros.

A IN 2.121/22 dispõe que há a incidência de Contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins sobre as securitizadoras com um regime cumulativo com alíquota de 4,65%. A base de cálculo é composta pela diferença entre o custo de aquisição dos direitos creditórios e o valor recebido pela securitizadora, o que permite o desconto das despesas com a captação de recursos.

A LC 214/25, que regulamenta o IBS e da CBS sobre os serviços financeiros, dispõe que, na operação de securitização, a base de cálculo será composta pelo desconto aplicado sobre a liquidação antecipada do crédito com a dedução das despesas com captação de recursos e das despesas com emissão, distribuição, custódia, escrituração, registro, preparação e formalização de documentos, administração do patrimônio separado e atuação de agentes fiduciários, de cobrança e de classificação de risco.

Há uma grande semelhança entre as bases de cálculo antes e depois da reforma, com uma maior definição das despesas passíveis de dedução da receita. Uma eventual majoração dos encargos tributários sobre a atividade, para análise da manutenção do benefício tributário, dependerá, portanto, da alíquota designada para o cálculo dos novos tributos.

Na Reforma, a securitização de crédito está sujeita à incidência de IBS e CBS, calculados conforme a alíquota geral do regime de serviços financeiros. Essas alíquotas serão fixadas de modo a manter a atual carga tributária incidente sobre as operações de crédito praticadas pelas instituições financeiras bancárias.

Considerando a IN 2.121/2022 e a LC 214/25, percebe-se que a definição da base de cálculo para operações de crédito possui semelhanças, porém, a alíquota dos novos tributos será acrescida dos encargos tributários não recuperados, atualmente, pelas instituições financeiras. Assim é provável que a nova alíquota de modo que poderá resultar em valor superior a 4,65%, porém espera-se que não seja um aumento abrupto, de modo que as operações de securitização não devem ser excessivamente oneradas com o novo sistema.

Já sob a perspectiva daquele que cede o crédito, uma novidade da Reforma é a possibilidade de permitir o crédito de IBS e CBS sobre o valor do deságio aplicado sobre o título. Ou seja, além do benefício já existente quanto à dedução do deságio no IRPJ e CSLL, o novo sistema permitirá a dedução (crédito) também em relação aos tributos do consumo, o que atualmente não ocorre com o PIS e a Cofins. Assim, a operação pode se tornar ainda mais atrativa, do ponto de vista fiscal, para os contribuintes.

Em conclusão, ainda não é possível avaliar com precisão o impacto das novas regras sobre a atividade de securitização de créditos. Contudo, a semelhança na composição das bases de cálculos entre o atual e o novo regime, permite vislumbrar uma perspectiva de baixo impacto, salvo diante de variação abrupta da alíquota. Como aspecto positivo, o creditamento sobre o deságio tende a potencializar os benefícios tributários obtidos pela securitização, podendo fazer com que esse tipo de operação se mantenha como uma opção viável de planejamento para as empresas diante do novo sistema.

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Plano não pode limitar tratamento de TEA ao município do paciente

Planos de saúde não podem limitar a cobertura de tratamentos para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) a estabelecimentos médicos localizados no município do paciente ou nos limítrofes.

Com esse entendimento, a 4ª Vara Cível de Atibaia determinou que uma empresa do setor cubra integralmente o tratamento prescrito por um médico a uma criança com TEA, mesmo se o serviço tiver que ser prestado fora da rede credenciada. O juízo também condenou a operadora do plano a pagar indenização por dano moral de R$ 10 mil por falha na prestação de serviço. A decisão atendeu parcialmente aos pedidos formulados em ação de obrigação de fazer, com pedido de indenização, ajuizada pela família da criança contra a operadora.

A autora pleiteava indenização de R$ 40 mil. E pelo menos dez horas semanais de psicoterapia com análise do comportamento aplicada (ABA, na sigla em inglês), duas horas semanais de fonoaudiologia com ABA e uma hora semanal de psicopedagogia com ABA — esta última foi negada por fugir do escopo do contrato firmado entre as partes.

Já a ré argumentou que não houve negativa de prestação dos serviços solicitados, pois indicou profissionais da rede referenciada em municípios limítrofes. Alegou não ter a obrigação de credenciar profissionais em todos os municípios e evocou a taxatividade do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Em sua decisão, o juiz José Augusto Nardy Marzagão considerou a perícia médica que confirmou a validade dos tratamentos prescritos e a necessidade de a paciente recebê-los. O julgador, então, lembrou do enunciado 39.4 da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que afaste ou limite a cobertura obrigatória de terapias para o tratamento de beneficiários com transtorno do espectro autista e outros transtornos globais do desenvolvimento em clínicas e estabelecimentos médicos situados no município do paciente ou em municípios limítrofes, desde que, em quaisquer dos casos, seja observada a distância máxima de 10 quilômetros, ressalvada especificidade da região de abrangência do plano, devidamente comprovada.

Tratando-se de relação de consumo, o julgador inverteu o ônus da prova, nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990). A ré não apresentou provas que afastassem a falha na prestação do serviço. Tampouco comprovou a existência de estabelecimentos credenciados no município ou em distância viável.

“A propósito, não obstante a inconcussa insuficiência do atendimento prestado ao autor pela rede credenciada da ré, tem-se que disponibilizar cobertura em rede credenciada em distância superior a 10 km do município de residência do beneficiário ou em municípios limítrofes, máxime diante do caráter multidisciplinar do tratamento conferido ao autor, relega o contrato de prestação de serviços assistenciais à saúde à inutilidade, a ponto de não permitir que o autor transite adequadamente entre os diversos profissionais de saúde responsáveis pelo sucesso de seu tratamento”, escreveu o juiz.

Argumentou, ainda, que o rol da ANS elenca os procedimentos mínimos da cobertura que deve ser feita pelos planos de saúde, sem limitar os serviços que devem ser prestados ao rol. Esse entendimento, recordou, está consagrado na Súmula 102 do TJ-SP: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.”

A obrigação valerá enquanto os tratamentos forem necessários e o plano de saúde não poderá limitar a quantidade de horas das terapias.

O advogado Cléber Stevens Gerage representou a autora da ação.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1000537-92.2024.8.26.0048

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Reviravolta nas políticas de ESG da UE: o que muda na iniciativa ‘Omnibus’ e como pode afetar Brasil?

Em linha com sua agenda climática, a União Europeia apresentou proposta para a simplificação de algumas de suas principais normas ESG (sigla em inglês para práticas de sustentabilidade ambiental, social e governamental). O intitulado pacote “Omnibus” busca suavizar requerimentos e processos previstos na diretiva sobre devida diligência em matéria de sustentabilidade empresarial (CSDDD), na diretiva relativa a relatórios de sustentabilidade de empresas (CSRD), na regulação sobre taxonomia de atividades ambientalmente sustentáveis (EU Taxonomy), no programa InvestEu e no mecanismo de ajuste de carbono de fronteira da UE (CBAM).

A proposta é parte de uma iniciativa para diminuir os custos administrativos gerados por essas normas ao setor empresarial. Ao longo dos últimos anos, a UE tem fomentado a criação de diversas políticas de sustentabilidade com base na regulação de seu mercado, seja pela atuação de empresas domésticas ou localizadas no exterior. Por exemplo, práticas comuns incluem a necessidade de condução de atividades de devida diligência, como no caso da CSDDD e CSRD.

Ditas normas têm gerado amplo debate quanto à sua compatibilidade com acordos internacionais e possíveis impactos econômicos negativos em todo mundo. Críticas, em especial originadas do setor privado, levaram à proposta do novo pacote como forma de mitigar preocupações. No entanto, a Omnibus parece ter ido além, uma vez que governos e representantes empresariais afirmam que as normas foram demasiadamente diluídas, assim perdendo seu objetivo original.

Possíveis impactos

Apesar de a discussão se centrar na União Europeia, o resto do mundo acompanha ativamente a “reviravolta” trazida pelo pacote, visto que negócios e operações com a UE dependem do cumprimento integral dessas normas. O Brasil, em particular, tem um laço comercial histórico com a região e depende do mercado da União Europeia para o escoamento de diversos de seus produtos. Inclusive, no final do ano passado, o país e os demais membros do Mercosul comemoraram a finalização das negociações do acordo bilateral com a UE, um processo que durou cerca de 25 anos e que poderá representar um avanço nas relações econômicas entre ambos.

O que pode parecer um alívio para as empresas brasileiras, bem como de outros países, também tem gerado indagações sobre como a proposta pode afetar outras normas da UE que impactam o Brasil. Caso notório é a Lei Antidesmatamento (EUDR) que institui atividades de devida diligência para a entrada e a circulação no mercado da UE de produtos de sete commodities (soja, gado, óleo de palma, madeira, cacau, café e borracha natural) de forma que se comprove sua origem livre de desmatamento. Para o Brasil, ainda que não esteja em total vigor, a EUDR é particularmente preocupante, uma vez que grande parte da produção de commodities nacionais é dependente de exportação para a UE, como nos casos de café e soja.

Apesar de não serem diretamente abarcadas pelo pacote Omnibus, empresas sob o escopo da EUDR também podem ser afetadas pelas mudanças propostas. Por exemplo, a CSDDD reconhece a EUDR como norma mais específica, o que significa que aqueles abrangidos por ambas as normas devem cumprir com os seus requisitos separadamente, mas de forma complementar no contexto de suas operações. Dessa forma, empresas potencialmente deverão integrar suas atividades de devida diligência em um processo único, resultando na aplicação das simplificações trazidas pela Omnibus no que tange aos requerimentos da CSDDD.

Ainda assim, a EUDR continua a ser um regime jurídico distinto, impondo seus próprios requisitos de forma independente. O que não se sabe, contudo, é se a norma também estará sujeita a propostas de reforma, tais como a Omnibus, para que se mitiguem suas exigências. Se for o caso, isso pode representar uma tendência de simplificação de regras ESG com base na recepção negativa do mercado da UE.

O aumento de normas similares na UE, as críticas internacionais e as dúvidas quanto à sua real capacidade de implementação devem seguir como assuntos notórios não só pelas implicações que instauram na UE, mas também para com o mercado internacional. Quanto a essa discussão, o Brasil deverá seguir ativo de forma a atender os objetivos de sustentabilidade dessas normas sem, no entanto, acarretar em ônus para as empresas brasileiras.

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Defesa da democracia não pode depender do Judiciário, diz pesquisador

Embora seja visto como uma barreira ao autoritarismo no Brasil e no exterior, o Judiciário tem poder limitado para proteger a democracia e os direitos individuais. A avaliação é do pesquisador britânico Chris Thornhill, professor de Direito na Universidade de Birmingham.

 

Especialista em Direito Constitucional Comparado, Thornhill lançou em dezembro passado o livro A Sociology of Post-Imperial Constitutions: Suppressed Civil War and Colonized Citizens, publicado pela editora da Universidade de Cambridge.

Na obra, que não foi lançada em português, o professor estuda a evolução das constituições pelo mundo desde o século 18. No livro, ele argumenta que os regimes constitucionais têm retomado, nos últimos anos, um caráter militarizado que era uma tendência histórica até a Segunda Guerra Mundial, mas que havia se enfraquecido.

O pesquisador, que está no Brasil como professor visitante do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), falou à revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as constituições modernas, avaliou a solidez das democracias pelo mundo e tratou do papel e dos limites do Judiciário nesse processo.

“No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, preservar as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo”, diz.

Thornhill sustenta que o Judiciário tem poder limitado para conter crises democráticas. “Os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade das instituições judiciais de proteger os direitos individuais, que são um requisito básico da democracia, foi corroída ao longo do tempo.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Seu livro mais recente trata da história das constituições modernas. Pode resumir o teor da obra?
Chris Thornhill — O livro é uma tentativa de reconstruir o desenvolvimento do Direito Constitucional desde o século 18. Meu argumento, em essência, é que a elaboração de constituições é orientada por imperativos de segurança. As constituições refletem o ambiente internacional de segurança do momento histórico em que foram criadas.

Até o final da década de 1980 as constituições eram, em geral, guiadas pela necessidade de mobilizar a força militar para conflitos internacionais, um fenômeno que está ligado ao imperialismo. A partir desse período, início dos anos 1990, vimos um declínio da pressão do imperialismo sobre o Direito Constitucional. As constituições foram, então, estabilizadas com base em direitos individuais e no Estado de bem-estar social.

Esse panorama, porém, voltou a mudar em anos recentes. Podemos observar uma nova tendência de militarização nas constituições, ou formas de constitucionalismo em que os militares têm papel importante. O ambiente de segurança internacional está novamente influenciando o Direito Constitucional.

ConJur — Em que países ou regiões o sr. notou a retomada da militarização no Direito Constitucional?
Chris Thornhill — O livro faz uma distinção entre dois tipos de militarização: vertical e horizontal. Na vertical, que tem foco na segurança externa, os governos buscam legitimidade integrando os cidadãos aos exércitos regulares e tratando o conflito militar como a maior ameaça a essa legitimidade. Já a militarização horizontal é uma resposta a um possível conflito civil. Nesse caso, os governos se legitimam por meio da gestão desse conflito, ou tomando partido nele.

A dimensão vertical tem sido observada na Europa. Vários governos europeus caminham para uma remilitarização constitucional principalmente devido à guerra na Ucrânia, mas também pelas mudanças nas políticas de segurança dos EUA. Processos semelhantes têm aparecido na Índia e em países da Ásia Central.

Também temos exemplos a nível horizontal. Nos EUA, o aparato constitucional criado a partir de 1945 vive uma crise de legitimidade porque o governo promove o descrédito do Direito Internacional. O resultado disso é uma clara incubação de conflitos internos na sociedade americana. A democracia constitucional está mais ameaçada pela intensificação desses conflitos do que pela militarização externa.

ConJur — Como o Brasil se posiciona nessa análise?
Chris Thornhill — O Brasil é uma das democracias constitucionais mais importantes do mundo. Desde 1988, o sistema democrático no Brasil teve conquistas extraordinárias, particularmente no combate à pobreza. É um caso incomum de Constituição que não foi criada por pressões militares e lançou bases para um Estado de bem-estar social.

Mas podemos ver, nos últimos anos, que esse investimento no bem-estar social tornou-se um estopim para vários tipos de movimentos radicais. E estes movimentos assumem uma forma parcialmente militar, ou são apoiadas por atores com força militar.

ConJur — As democracias atuais têm conseguido preservar sua integridade?
Chris Thornhill — Acho importante não ser apocalíptico nessas análises. Não vejo, pelo menos por enquanto, uma crise constitucional global. Nos últimos anos, alguns Estados com grandes populações tornaram-se mais democráticos.

Mas muitos Estados tornaram-se menos democráticos. Eu diria que já é questionável se os EUA são uma democracia. A Rússia claramente não é mais uma democracia. E vários sistemas constitucionais na Europa não correm necessariamente o risco de um colapso democrático, mas podem enfraquecer as estruturas da democracia por influência de regimes populistas.

Já o Brasil, como sabemos, sobreviveu a um desafio muito sério à democracia. Em alguns aspectos, o sistema constitucional brasileiro se mostrou mais resistente que o de países europeus.

ConJur — O Judiciário tem conseguido exercer seu papel na preservação da democracia?
Chris Thornhill — Uma coisa que venho repetindo em minhas publicações, nos últimos anos, é que não sabemos muito sobre democracia. Não temos um arcabouço teórico muito forte sobre como ela se desenvolve e como pode ser estabilizada.

O que sabemos com bastante segurança é que a democracia geralmente tem dois pré-requisitos: ela precisa estar pautada pelo Direito Internacional dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, ter um sistema robusto de bem-estar social, que englobe renda, saúde e educação. A questão, portanto, é saber se os órgãos judiciais nacionais são capazes de preservar essas condições.

No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, proteger as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo.

Mas o que podemos ver a nível global é que os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade do Judiciário de preservar um requisito básico da democracia, que é a proteção dos direitos individuais, foi corroída ao longo do tempo.

O que podemos observar pelo mundo, de maneira praticamente invariável, é que ataques ao Judiciário são um sinalizador de crise democrática. Quando governos começam a se voltar contra a democracia, ou são influenciados por movimentos antidemocráticos, a hostilidade ao Judiciário é o primeiro indicador disso.

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O IRPF e o abatimento dos gastos com planos de saúde empresariais

É fato que os planos de saúde são caríssimos e que possuem uma política de negócios que concede descontos significativos se os contratos forem firmados por meio de uma pessoa jurídica. Caso membros de uma família sejam sócios de uma empresa, é usual que seu plano de saúde seja por ela custeado, sendo a despesa abatida no IR corporativo — me refiro às empresas em geral, inclusive os family office e as tributadas pelo lucro presumido ou pelo Simples.

O aspecto aqui analisado ocorre nas famílias que não possuem empresas para administrar seus negócios e criam uma pessoa jurídica apenas para aproveitarem os descontos ofertados pelos planos de saúde. Tais empresas serão pessoas jurídicas “formais”, pois não possuirão receita, nem operacional e nem financeira, tendo sido criadas apenas para a contratação do plano de saúde da família, aproveitando a substancial redução de preços ofertada no âmbito negocial. O problema está no fato de que o contrato é firmado com essa pessoa jurídica formal, e, como ela não possui receita, não tem como utilizar esse valor como despesa para fins de apuração de seu Imposto de Renda corporativo.

Haverá a possibilidade de abater esse valor do Imposto de Renda das pessoas físicas que efetivamente custeiam essa despesa, a despeito de o contrato ser firmado com uma pessoa jurídica com esse perfil?

A resposta será negativa caso seja reconhecida a prevalência da forma sobre a essência dessa operação negocial, pois o contrato será firmado com a pessoa jurídica, e o custeio deveria ser realizado por esta, com o correspondente aproveitamento da despesa para fins de apuração do Imposto de Renda corporativo — embora, na prática, isso não vá ocorrer, pois não possui receita.

Ao revés, a resposta será positiva caso seja reconhecida a prevalência da essência da operação negocial sobre a forma, pois o desembolso efetivo ocorreu pelas pessoas físicas que custearam os valores correspondentes ao plano de saúde. A comprovação dessa operação deverá se dar por meio de extratos bancários que demonstrem que as pessoas físicas pagaram os valores correspondentes; e que a pessoa jurídica formal — que não possui receita — não tinha como custeá-los, e, portanto, não utilizou dessa despesa em seu Imposto de Renda corporativo.

Como não estou entre aqueles que fazem prevalecer a forma dos negócios jurídicos sobre sua essência, admito a segunda hipótese, entendendo como válido o abatimento dos gastos com saúde nas declarações de ajuste do Imposto de Renda das pessoas físicas que efetivamente custearam aquela despesa, muito embora formalmente o contrato tenha sido firmado com uma pessoa jurídica.

Alguém poderá dizer que se trata de planejamento fiscal abusivo, atribuindo uma carga semântica negativa a essa expressão, carimbando-a como perniciosa ao Fisco. Trata-se de um engano.
O CTN, no parágrafo único do artigo 116, prescreve que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

Iniciemos abstraindo o fato de que ainda não foi editada a lei ordinária mencionada no parágrafo único do artigo 116, CTN, o que compromete sua eficácia jurídica. Centremos a atenção na finalidade dessa norma, que é a de dissimular “a ocorrência do fato gerador do tributo” ou “a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. O caso relatado não está presente em qualquer dessas duas hipóteses.

Não há “dissimulação”, pois a operação é claríssima, escancarada, e decorre de um modelo de negócios das empresas que comercializam planos de saúde.

Também não há o afastamento dos “elementos constitutivos da obrigação”, pois não existe duplicidade de aproveitamento da mesma despesa, o que ocorreria se a pessoa jurídica formal e a física se utilizassem dele ao mesmo tempo.

O que existe é uma operação efetiva daquele núcleo familiar com o plano de saúde que pratica esse modelo de negócios. Trata-se de uma operação negocial lícita, pois os contratantes têm o direito de organizar seus negócios da maneira que entendem mais adequada, consoante o modelo de negócios firmado entre partes privadas.

Observando com lupa: qual a perda do Fisco nessa operação? A empresa não terá utilizado a despesa (aspecto importante, pois, caso contrário, toda a análise jurídica é modificada) e os contribuintes pessoas físicas efetivamente pagaram aquela despesa (o que deve ser provado), obtendo o direito de a abater. Na prática, ocorre uma espécie de desconsideração da pessoa jurídica pelo contribuinte para contratação de um plano de saúde com maior desconto.

Trata-se de uma operação lícita caso existam provas da não utilização da despesa pela pessoa jurídica formal e do efetivo pagamento pela pessoa física, gerando para esta o direito de abater esses gastos com plano de saúde em sua declaração de ajuste do Imposto de Renda. Trata-se da prevalência da essência econômica da operação sobre a singela forma jurídica.

Última observação de cunho lateral: se uma situação como a descrita pode causar alguma confusão, imaginem se o PLP 1.087 for aprovado (analisado anteriormente aqui) e retornar a análise fiscal da distribuição disfarçada de lucros nas empresas que declaram pelo lucro presumido e pelo Simples. Será uma festa para a litigância tributária.

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