O novo ‘ouro negro’: créditos de carbono no sistema monetário global

Um relatório divulgado no começo do ano pela Bolsa de Valores de Londres — London Stock Exchange Group (LSEG) — superou expectativas e trouxe o valor de US$ 949 bilhões em créditos de carbono negociados no ano de 2023. O número próximo a US$ 1 trilhão impressiona, mas ainda é uma gota no oceano. Estados Unidos e China, de longe os maiores emissores de carbono, mal triscaram o novo “ouro negro”. Quando isso acontecer, o sistema monetário global pode virar de cabeça para baixo.

Os resultados serão imprevisíveis e perigosos. Um mercado global de títulos lastreados em créditos de carbono pode assumir as funções de uma quase-moeda de circulação internacional, à imagem do que fazem hoje os títulos da dívida dos EUA, os “Treasuries”. Alguns países, principalmente a China, estão especialmente interessados nesse cenário.

Assim como o padrão dólar ajudou os EUA a financiar sua economia após a Segunda Guerra Mundial, o “padrão carbono” pode ajudar países líderes no mercado de carbono a extraírem vantagens para sua própria economia à custa do resto do mundo. O agravante é não se saber exatamente como esse “padrão carbono” vai se comportar.

A moeda de carbono não seria uma moeda como as que conhecemos, pois trata-se de um título lastreado em um produto real. O sistema lembra “padrão ouro”, ordem monetária vigente em meados do século 20, que resultou em recessão e crise em grandes proporções, mas não para todo mundo. Nesse jogo, alguns ganham e o resto perde.

Ganhadores e perdedores

Nem todos terão fôlego para acompanhar a mudança. Alguns sistemas produtivos, como parte do agronegócio, do setor de transportes e a cadeia da construção civil simplesmente não dispõem de alternativas tecnológicas viáveis para reduzir emissões. Estudos indicam que o maior gargalo para a redução de emissão por negócios locais continua sendo o acesso a crédito, algo que os mercados de carbono não têm se mostrado capazes de resolver.

Há também dúvidas se o modelo de créditos de carbono tem realmente algo a ver com meio ambiente. Muitos dos títulos não absorvem carbono nenhum, e são comuns denúncias de fraudes e falsificação. Críticas e abaixo-assinados de autoridades, especialistas e ativistas são o novo normal. Enquanto isso vai ficando claro que os apoiadores do modelo parecem estar mais interessados em taxas de administração e corretagem.

No Brasil, o modelo do mercado de carbono está em fase final de definição de suas bases jurídicas e regulatórias no Projeto de Lei 2.148/2015, aprovado na Câmara depois de uma tramitação tumultuada, agora em andamento no Senado. A percepção de que os apoiadores do modelo estão mais preocupados com derivativos e a reforma do sistema monetário internacional pode servir de alerta para os legisladores favoráveis à proposta.

O sistema de créditos de carbono é propenso a fraudes e manipulação, distribui custos de forma desigual ao longo da cadeia produtiva da economia e distorce o funcionamento dos mercados. É um assunto sensível e complexo, para o qual reguladores locais, a exemplo da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), dificilmente estarão equipados. Não bastasse isso, a regulação do carbono pode abrir as portas para uma nova ordem monetária global na qual o Brasil pode ser dar mal.

A China entra no jogo

Alguns movimentos indicam que a China já se posiciona para ser o dono da bola no jogo global da economia do carbono. Depois de uma entrada tímida no mercado no início dos anos 2010 acompanhada de um recuo estratégico, o interesse ressurgiu redobrado. A primeira jogada foram investimentos maciços em “energia limpa”, principalmente painéis solares, baterias de lítio e carros elétricos, seguidos da criação de um novo arcabouço regulatório do carbono.

“Os investimentos chineses representam um terço dos investimentos em energia limpa em todo o mundo e uma parte importante do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da China. Em 2023, a China encomendou tanta energia solar fotovoltaica como o mundo inteiro. O ano de 2023 assistiu a um crescimento robusto das chamadas “três novas” (xin-sanyang) indústrias – células solares, baterias de lítio e veículos elétricos – que registaram um salto de 30% nas exportações em 2023”, diz relatório da Agência Internacional de Energia.

Aparentemente a tecnocracia chinesa decretou que a mudança de matriz energética é vantajosa para o país. Por um lado, o investimento coordenado no complexo industrial mineral, químico e metal-mecânico é próprio ao modelo de economia planejada chinês e faz contrapeso ao estouro da bolha imobiliária local. Por outro lado, inundar o planeta com painéis fotovoltaicos, carros elétricos e baterias de lítio produz montanhas de créditos de carbono, que podem ter importância estratégica a longo prazo.

O ‘padrão carbono’

Alguns trabalhos publicados na China apresentam a tese de que, havendo regulação adequada e um volume suficientemente grande de créditos de carbono em circulação, é possível criar um sistema monetário internacional baseado no “padrão carbono”. A principal vantagem é destruir o padrão dólar, objetivo histórico da política econômica chinesa.

O ensaio “A viabilidade da emissão de uma moeda de carbono” divulgado em conferência da Universidade de Chongqing em janeiro de 2022 apresentou a tese de que uma moeda baseada em carbono é um modelo não só viável como superior ao padrão dólar. “Sob o atual sistema monetário unilateral do dólar norte-americano, a ordem econômica é volátil e propensa a crises”, diz o texto.

A pesquisa “Uma teoria de uma moeda de carbono”, publicada em maio de 2022 pela revista Pesquisa Básica (Fundamental Research), da Fundação Nacional de Ciências Naturais da China, assinada por economistas da Universidade de Pequim, apresenta um manual prático de como colocar o modelo em pé.

“Propomos um novo sistema monetário internacional baseado na moeda de carbono (o padrão carbono) para enfrentar externalidades no contexto econômico e político global de hoje. O Federal Reserve implementa cada vez mais políticas monetárias não alinhadas com o interesse comum global”, diz o artigo.

O trabalho apresenta um desenho completo de como seria um mundo dominado pelo padrão carbono. Prevê regras e mecanismos regulatórios, enumera vantagens sobre outras alternativas e antecipa a necessidade da criação de uma espécie de “Fundo Monetário Internacional (FMI) do carbono” para o sistema funcionar.

A pesquisa sugere que o padrão carbono pode penalizar quem ficar para trás e mostra semelhanças entre esse sistema e o padrão-ouro. Tanto no padrão ouro como no padrão carbono as moedas são lastreadas a um produto real. Isso torna a oferta monetária rígida e traz consequências graves em caso de desequilíbrios cambiais.

O lobby do padrão-carbono

O principal lobby internacional pela criação de um padrão-carbono é a organização não-governamental Global Carbon Reward, fundada pelo engenheiro civil australiano Delton Chen. A organização não esconde a semelhança entre o padrão carbono e o padrão ouro e até faz uso dessa comparação: “A moeda de carbono será um novo tipo de ‘dinheiro representativo’ porque representará o carbono mitigado. Isto é análogo a representar o ouro armazenado sob um padrão de troca de ouro”, diz a Global Carbon Reward.

No padrão ouro, bancos centrais mantinham reservas em ouro para lastrear o papel moeda em circulação. O resultado é um sistema monetário rígido, que leva ao acúmulo de reservas em alguns países e a crises cambiais e recessão nos demais. Vigorou de forma instável entre o fim do século 19 e a Segunda Guerra Mundial, e uma versão alternativa usando o dólar como intermediário foi implantada após o “Acordo de Bretton Woods”, nos anos 1940, mas entrou em colapso nos anos 1970.

Greenwashing

Em junho deste ano, a Polícia Federal lançou a Operação Greenwashing, que desbaratou um esquema que vendeu R$ 180 milhões em créditos de carbono de terras griladas da União. Ano passado uma série de reportagens descobriu que a Verra, uma das maiores fornecedoras de créditos de carbono verificados do mundo, vendia até 90% de “créditos fantasmas”. Ou seja, áreas florestais “protegidas” não tinham redução relevante de desmatamento.

No início de julho deste ano uma carta assinada por 80 entidades representativas de movimentos ambientais pediu o fim da política de créditos de carbono. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, é crítico contumaz do modelo. Um relatório do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento — International Institute for Environment and Development (IIED) — de 2023 defende que o modelo pode distorcer mercados, destruir negócios e prejudicar projetos que realmente reduzem emissões.

Não está nem um pouco claro que o modelo dos créditos de carbono é a melhor resposta para o problema dos gases estufa. Também não está claro o que pode ser colocado no lugar, mas simplesmente fixar tetos para emissões e jogar o problema no colo do mercado não é uma solução realista. Como vimos, o modelo dos créditos de carbono tem fortes indícios de atender apenas a ambições de especuladores financeiros e autoridades monetárias estrangeiras. Quem vai pagar a conta não são eles.

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Limitação à eleição de foro pode afetar interesse por investimentos

Ao redigir contratos, as partes em uma transação econômica escolhem livremente as regras às que estarão sujeitas. Determinam, ainda, a forma de resolução de eventuais litígios (se por arbitragem ou por um juiz estatal e, neste último caso, a comarca de tramitação) considerando critérios como isenção, agilidade e aptidão técnica do órgão julgador.

Essa escolha, que é um relevante mecanismo de proteção da transação econômica negociada entre as partes, foi drasticamente afetada por recente mudança legislativa: a Lei nº 14.879/2024, que estabelece que a eleição de foro judicial deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação.

troca de contrato

Até então, desde o Código de Processo Civil de 1973, era reconhecido que as partes contratantes tinham autonomia para escolher o foro competente para resolver suas disputas.

A justificativa apresentada para essa modificação foi de que, embora o Código de Processo Civil autorize a eleição de foro, esta escolha não pode ser aleatória, sob pena de violação da boa-fé e de prejuízo ao interesse público, sobrecarregando certos tribunais (em especial, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e do Distrito Federal) que são escolhidos pelas partes com maior frequência, mesmo sem terem relação com o caso concreto, em razão de possuírem varas especializadas em determinadas matérias, assim como por serem foro neutro em relação às partes, justamente por nenhuma delas possuir domicílio ali, e por resolverem mais rapidamente os litígios, comparativamente à média nacional.

Tal preocupação com a sobrecarga de certos tribunais, no entanto, certamente poderia ser endereçada de outras formas, considerando inclusive que as partes litigantes pagam custas para utilizar-se do Poder Judiciário para dirimir suas disputas.

Os efeitos negativos da nova lei são diversos, a começar pela insegurança jurídica gerada, não apenas para as partes contratantes — que verão reduzida sua autonomia e liberdade de contratar —, como também para a coesão do ordenamento jurídico brasileiro. Se antes a desconsideração do foro judicial escolhido pelas partes era a exceção, aplicável somente a casos limitados, envolvendo algum grau de desequilíbrio contratual (por exemplo, nas relações de consumo), agora o juiz poderá negar o prosseguimento de um processo quando entender que o foro escolhido não guarda relação com as partes ou com a obrigação — o que não raras vezes ficará sujeito ao arbítrio do julgador, sobretudo para operações comerciais complexas que envolvam múltiplas partes e cadeia obrigacional multifacetada.

Alguns exemplos do problema são: em um contrato envolvendo A, B e C, no qual o foro eleito corresponde ao domicílio de C, fica a dúvida se A e B poderão litigar naquele foro. Situação mais complexa ainda poderá ocorrer em contratos coligados, quando A, B e C poderão figurar em um contrato, mas somente A e B figurarão em outro, tendo as partes eleito foro único exatamente em virtude da coligação contratual, para que possam reunir eventuais disputas. Da mesma maneira, coloca-se em xeque as situações de sucessão, em que o domicílio dos sucessores pode não coincidir com a dos contratantes originários.

Redução de investimentos estrangeiros

A mudança legislativa pode gerar, ainda, uma redução dos investimentos estrangeiros em regiões cujos foros que não são usualmente elegidos pelas partes contratantes, pois o investidor estrangeiro que pretender contratar com parte sediada nessas localidades, afastadas de grande centro comercial, terá de possivelmente litigar ali, o que modifica a avaliação de risco do investimento, podendo encarecê-lo ou até mesmo inviabilizá-lo.

Nesse mesmo sentido, essa limitação à eleição de foro pode levar ao aumento da inclusão de cláusulas arbitrais nos contratos: não sendo possível eleger foro judicial neutro, mais célere e/ou mais especializado, a alternativa será a resolução dos litígios mediante arbitragem. Isso pode ocorrer mesmo em casos em que, em razão das peculiaridades do caso concreto, o Poder Judiciário poderia ter sido o foro mais adequado para resolução de disputas.

Vislumbra-se, ainda, que a mudança possa aumentar os custos de transação para negociação dos contratos e levar à abertura de inúmeras novas filiais pelas empresas tão somente para que as partes possam, dessa forma, eleger o foro daquela localidade onde se instaurou a filial para apreciar e julgar demandas advindas dos contratos celebrados por ela, o que pode ter efeitos tributários.

Além disso, essa alteração parece ir na contramão dos esforços legislativos feitos recentemente para incentivar contratações e atividades econômicas no Brasil, como a Lei da Liberdade Econômica, que firmou a regra geral de que, nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, e o próprio Código de Processo Civil de 2015, que permitiu às partes em juízo maior flexibilidade e autonomia na condução da disputa, por meio da celebração de negócios jurídicos processuais.

A contradição é evidente: amplia-se a liberdade econômica, apregoando-se mínima intervenção estatal nas relações entre agentes econômicos, atribuindo-se maior flexibilidade para que as partes decidam como pretendem solucionar seus litígios, mas repentinamente se cria entrave para que elejam o foro dessa disputa. Como exposto, há muitos fatores que aparentemente deixaram de ser considerados na aprovação da nova lei e que têm impacto direto no ambiente institucional para realização de investimentos no Brasil.

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Ajuste em contratos de mini e microgeração distribuída de energia

Muitos consumidores com sistema de mini e microgeração distribuída de energia têm sido surpreendidos com cobranças de valores abusivos. Isso porque muitos foram notificados, com letras miúdas em suas contas de energia, para que no prazo de 60 dias promovessem “ajustes” em seus contratos com a distribuidora, adequando-se às regras tarifárias trazidas pela Resolução Normativa nº 1.059, de 7 de fevereiro de 2023, publicada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

Energia elétrica

 

Dentre esses “ajustes contratuais”, inclui-se o dever de o consumidor efetuar a contratação de “demanda de injeção de geração”. Ocorre que o consumidor sequer sabe o que é “demanda de injeção de geração”, tampouco a quantidade de demanda que deve ser contratada.

Como era de se esperar, alguns consumidores contrataram abaixo do necessário e acabaram pagando tarifas até três vezes mais caras que a originalmente contratadas. Outros não contrataram e seguiram pagando tudo ao custo da demanda ativa.

1. Das conceituações

Antes de aprofundar no tema, necessário fazer o que a lei, as concessionárias e as agências reguladoras não fizeram, informar e esclarecer os conceitos de cada coisa.

Demanda pode ser compreendida como a quantidade de eletricidade que você precisa em um determinado momento. Pense nisso como a quantidade de energia que todas as suas luzes, aparelhos e equipamentos juntos estão usando ao mesmo tempo. Por exemplo, quando você liga a TV, o micro-ondas e o ar-condicionado ao mesmo tempo, a demanda de energia aumenta.

Demanda de Injeção de Geração é a quantidade de eletricidade que um sistema de energia, como painéis solares, coloca na rede elétrica. Imagine que você tem painéis solares no seu telhado que geram mais energia do que você está usando em casa. Essa energia extra vai para a rede elétrica da cidade, e isso é a demanda de injeção.

2. Marco legal da microgeração e minigeração distribuída no Brasil

A Lei nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022, institui o Marco Legal da Microgeração e Minigeração Distribuída no Brasil, estabelecendo um framework regulatório para consumidores que desejam gerar sua própria energia a partir de fontes renováveis, como solar e eólica.

Definições e categorias

A lei trouxe o conceito e distinção entre microgeração distribuída, compreendida como sistemas com potência instalada menor ou igual a 75 kW; e minigeração distribuída: definido como sistemas com potência instalada superior a 75 kW e menor ou igual a 5 MW para fontes renováveis.

Sistema de compensação de energia elétrica

A lei permitiu que os consumidores que geram sua própria energia podem injetar o excedente na rede elétrica e receber créditos com validade de 60 meses, que podem ser usados para abater o consumo em outros momentos.

Tarifas e custos

A lei trouxe a infeliz novidade de submeter os novos consumidores de micro ou minigeração distribuída ao pagamento de tarifas de uso do sistema de distribuição (Tusd) e de transmissão (Tust) sobre a energia injetada na rede, isentando os consumidores que já possuíam o sistema de micro ou minigeração distribuída do pagamento das referidas tarifas até 2045.

3. Alteração das regras para a conexão e o faturamento de centrais de microgeração e minigeração distribuída

A Resolução Normativa nº 1.059, de 7 de fevereiro de 2023, publicada pela Aneel, trouxe mudanças significativas nas regras de contratação de demanda para consumidores e geradores de energia, especialmente aqueles com sistemas de geração distribuída, como placas solares.

A REN Aneel nº 1.059/2023 foi introduzida com o objetivo de atualizar e consolidar a regulamentação do setor elétrico brasileiro, especialmente em relação à micro e minigeração distribuída. Esta resolução visava garantir a adequação das demandas contratadas pelos consumidores e geradores, promovendo a eficiência e a estabilidade do sistema elétrico.

No entanto, a implementação dessas mudanças resultou em desafios significativos para muitos consumidores, particularmente aqueles que possuem sistemas de geração distribuída, como placas solares.

Dentre as principais alterações trazidas pela REN Aneel nº 1.059/2023 e que merecem destaque, trata-se da alteração do artigo 23 da Resolução Normativa nº 1.000, de 7 de dezembro de 2021, que passou a vigorar com a regra de que a unidade consumidora com minigeração distribuída (potência instalada superior a 75 kW) deve ser enquadrada no Grupo A e que os consumidores com microgeração distribuída pode ser enquadrada no Grupo A, desde que tenha potencial de prejudicar a prestação do serviço a outros consumidores e demais usuários, e seja justificado no estudo da distribuidora.

O enquadramento do consumidor no grupo A tem várias implicações importantes que afetam tanto o custo da energia elétrica quanto a forma como a energia é fornecida e faturada. O grupo A é composto por consumidores que recebem energia em alta tensão, como indústrias, grandes comércios e outros grandes consumidores. As principais consequências do enquadramento no grupo A incluem:

Modalidade Tarifária Diferenciada

Os consumidores do grupo A podem optar por diferentes modalidades tarifárias, como a tarifação horária verde ou azul. Essas modalidades oferecem tarifas variáveis de acordo com o horário de consumo (ponta e fora de ponta), incentivando um uso mais eficiente da energia.

Demanda contratada

Consumidores do grupo A devem contratar uma demanda de potência junto à distribuidora, o que significa que eles se comprometem a não ultrapassar um determinado limite de consumo de energia. Ultrapassar essa demanda resulta em penalidades financeiras, chamadas de tarifas de ultrapassagem.

 Custos com demanda de injeção de geração

Para aqueles que geram sua própria energia, como através de painéis solares, a demanda de injeção de geração é uma nova exigência. A falta de contratação adequada pode resultar em custos elevados e multas significativas.

Penalidades por ultrapassagem de demanda

Se a demanda medida durante o período de testes ou após o ajuste contratual exceder a demanda contratada, o consumidor é sujeito a penalidades significativas. A ultrapassagem pode resultar em tarifas três vezes mais altas, conforme estipulado pelo artigo 301 da REN Aneel 1.000/2021.

Acréscimos e reduções de demanda

Os consumidores do grupo A têm a flexibilidade de ajustar suas demandas contratadas, mas isso deve ser feito com cuidado para evitar penalidades. Acréscimos de demanda superiores a 5% da contratada precisam ser comunicados e ajustados de acordo com os regulamentos vigentes.

A título ilustrativo pode-se referir aos valores praticados pela Equatorial S/A no Estado do Pará para as demandas ativa e demanda de geração, onde a primeira possui um custo de R$ 67,38 o KW, ao passo que a segunda possui um custo de R$ 43,77.

Período de testes

Como muitos consumidores são leigos e não possuem noção do quanto deveriam contratar a título de demanda de injeção de geração, aliado ao fato de que os sistemas de geração distribuída, como placas solares, têm uma variabilidade natural na geração de energia devido a fatores climáticos e sazonais.

O artigo 311 da REN Aneel nº 1.059/2023 estabelece um período de testes de três ciclos consecutivos e completos de faturamento. Durante esse período, os consumidores podem ajustar suas demandas sem penalidades imediatas, mas devem estar cientes das exigências para evitar cobranças excessivas após o período de testes.

Ultrapassagem de demanda durante o período de testes

Contudo, essa regra do período de testes trouxe consigo o que identificamos como uma pegadinha, haja vista que durante o período de testes, a distribuidora faturará a demanda medida, exceto em casos de acréscimo de demanda, onde será considerado o maior valor entre a demanda medida e a demanda contratada anteriormente.

Diz-se que há uma pegadinha pois, segundo a resolução, se a demanda medida exceder em mais de 35% a demanda inicial contratada na hipótese de início de fornecimento ou se a demanda medida exceder somatório da nova demanda contratada, 5% da demanda anterior e 30% da demanda adicional no caso de ligações já existentes e que apenas solicitaram aumento de demanda, a distribuidora aplicará uma multa pela ultrapassagem de demanda, com a cobrança de tarifa que pode ser até três vezes mais cara que a tarifa regular da demanda contratada.

Exemplo prático: imagine que um consumidor tenha contratado em início de fornecimento uma demanda inicial de 100 kW. Durante o período de testes, sua demanda medida foi de 140 kW. A distribuidora não pode cobrar multa, pois a demanda medida não excedeu 135 kW (100 kW + 35%). Se a demanda medida fosse 140 kW, a multa seria aplicada.

Para consumidores que já possuíam o fornecimento e apenas solicitaram aumento de demanda, pode-se ilustrar da seguinte forma: consumidor possuía uma demanda contratada de 100 kW e contratou uma nova demanda de 120 kW. Caso a demanda medida seja superior 131 kW (120 kW + 5 kW + 6 kW), o consumidor estará sujeito ao pagamento da tarifa excedente que pode ser até três vezes mais cara que a tarifa regular da demanda contratada.

4. Dever de informação

O Superior Tribunal de Justiça em diversos julgados tem afirmado que a Informação é um dos direitos básicos do consumidor, talvez o mais elementar de todos na classe dos instrumentais (em contraste com direitos substantivos, como proteção da saúde e segurança), daí a sua expressa prescrição pelo artigo 5º , XIV , da Constituição de 1988 e no artigo 6º , III e IV do CDC.

No julgamento do Recurso Especial nº 1.447.301 CE 2014/0052859-2, pela 2ª Turma do STJ [1], sob a relatoria do ministro Herman Benjamin, DJe 26/08/2020, o tribunal afirmou que: “a falta ou a deficiência material ou formal de informação não só afrontam o texto inequívoco e o espírito do CDC , como também agridem o próprio senso comum, sem falar que convertem o dever de informar em dever de informar-se, ressuscitando, ilegitimamente e contra legem, a arcaica e renegada máxima caveat emptor (=o consumidor que se cuide)”.

Destacou o relator que “só respeitam o princípio da transparência e da boa-fé objetiva, em sua plenitude, as informações que sejam “corretas, claras, precisas, ostensivas” e que indiquem, nessas mesmas condições, as “características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados” do produto ou serviço, objeto da relação jurídica de consumo (art. 31 do CDC)”.

Cláudia Lima Marques [2], uma das mais renomadas juristas em Direito do Consumidor no Brasil, aborda o dever de informação de forma detalhada em suas obras. Ela define o dever de informação como um dos pilares da proteção do consumidor, sustentando que:

“O dever de informar é uma obrigação fundamental no direito do consumidor, que visa equilibrar a relação contratual, tornando-a mais justa e transparente. Esse dever impõe ao fornecedor a responsabilidade de fornecer todas as informações necessárias para que o consumidor compreenda plenamente o produto ou serviço adquirido, incluindo características, riscos, preços, condições de pagamento, entre outros aspectos relevantes” (MARQUES, 2015, p. 103).

Marques enfatiza que a falha no cumprimento desse dever pode ser considerada uma prática abusiva e, em alguns casos, pode gerar a responsabilidade civil do fornecedor por eventuais danos causados ao consumidor devido à ausência ou insuficiência de informações.

5. Considerações finais

A REN Aneel nº 1.059/2023 trouxe mudanças importantes para a regulamentação do setor elétrico, mas sua implementação destacou falhas significativas na comunicação e na educação dos consumidores, o que tem provocado cobranças abusivas e, por consequência, o ajuizamento de inúmeras ações judiciais que buscam dizer o óbvio, é dever do fornecedor informar e esclarecer o consumidor.

Ao tempo em que mundialmente se busca por iniciativas e geração de energias limpas e renováveis, alguns aspectos legais e regulamentares parecem andar na contramão, na medida em que encarece o custo de geração de energia por consumidores com micro e minigeração de distribuição de energia instalado.

É essencial que a Aneel e as distribuidoras melhorem a clareza e a acessibilidade das informações fornecidas aos consumidores para evitar cobranças abusivas e garantir que todos estejam plenamente cientes de suas obrigações contratuais.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1.447.301 CE 2014/0052859-2, relator: ministro HERMAN BENJAMIN, data de julgamento: 08/11/2016, T2 – 2ª Turma, data de publicação: DJe 26/8/2020

[2] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

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Um ano após entrada em vigor, Lei da Igualdade Salarial resulta em batalha de liminares

Um ano após sua publicação, a Lei da Igualdade Salarial vem sendo contestada por empresas na Justiça. A principal regra questionada é a da publicação dos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios. Algumas liminares já foram concedidas para afastar tal exigência por violações à liberdade empresarial e à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), embora especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico não concordem com essa interpretação.

A lei contestada, de julho do último ano, trata da igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres. Ela estabeleceu obrigações para empresas com cem ou mais empregados. A norma foi regulamentada pelo Decreto 11.795/2023. Este, por sua vez, foi regulamentado pela Portaria 3.714/2023 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Ambos trouxeram regras sobre o relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios, que busca comparar de forma objetiva os salários, as remunerações e a proporção de ocupação de cargos. O relatório é elaborado pelo MTE com base em dados do sistema de prestação de informações trabalhistas ao governo federal.

A regulamentação da Lei da Igualdade Salarial estipulou, por exemplo, que o relatório precisa ser publicado nos sites ou nas redes sociais das empresas. Também é preciso apresentar um plano de ação para corrigir eventuais discrepâncias salariais.

O decreto e a portaria ainda citam diversas informações que devem constar do relatório, o que inclui os cargos ou as ocupações, com as respectivas atribuições, e os valores das remunerações.

Já existem decisões liminares que suspendem a divulgação do relatório, mas há também decisões que negam pedidos do tipo e determinam a aplicação da regra.

As empresas defendem que o relatório contém dados pessoais sensíveis dos empregados e seus salários. Outro argumento é que sua imagem poderia ser abalada com a divulgação de tais informações. Há ainda alegações de que as regras de elaboração do documento não são tão claras e de que a regulamentação extrapolou as previsões da lei.

Por outro lado, a Advocacia-Geral da União argumenta que os dados são anonimizados e que não há danos à imagem ou violação da liberdade porque o relatório traz estimativas, e não dados individualizados.

Polêmica judicializada

Em março deste ano, a 7ª Vara Cível Federal de São Paulo proibiu a União de fazer a uma empresa diversas exigências previstas na Lei da Igualdade Salarial, entre elas a divulgação e publicação do relatório de remuneração e critérios remuneratórios em site ou redes sociais.

A juíza Paula Lange Canhos Vieira citou receio de desrespeito à LGPD caso todas as informações fossem fornecidas: “Em empresas com estruturas gerenciais reduzidas, será perfeitamente possível identificar a remuneração de seus funcionários, o que contrasta com a determinação de fornecimento de ‘dados anonimizados’ determinada pela lei”, concluiu a julgadora.

Naquele mesmo mês, a juíza plantonista Pollyanna Kelly Maciel Martins Alves concedeu, no mesmo dia, duas liminares semelhantes em Varas Federais Cíveis do Distrito Federal: uma (na 14ª Vara) para 11 empresas de um mesmo grupo econômico e outra (na 8ª Vara) para as sociedades de advogados representadas pelo respectivo sindicato nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro (Sinsa).

A juíza suspendeu a divulgação dos relatórios, pois entendeu que a Lei da Igualdade Salarial criou obrigações que invadem a “liberdade da atividade econômica e negocial das empresas”.

Segundo ela, as diferenças salariais por motivos de gênero podem ser evitadas por meio da “regular fiscalização dos órgãos competentes” e sem a “publicização das informações da empresa”.

A lei já foi contestada no Supremo Tribunal Federal em duas ações diretas de inconstitucionalidade. Em uma delas, as autoras — a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC) — afirmam que a divulgação do relatório causa dano injusto à reputação das empresas e que a elaboração de plano de carreira corporativo vai muito além da questão de gênero.

Já na outra ADI, o Partido Novo diz que a divulgação do relatório é inconstitucional, pois expõe informações sensíveis sobre estratégia de preços e custos das empresas, o que viola o princípio da livre iniciativa.

A advogada Gisela da Silva Freire, presidente do Sinsa e sócia do escritório Peixoto & Cury Advogados, diz que a publicação das informações salariais pode, de fato, “expor as políticas de remuneração da empresa a concorrentes, em especial em alguns setores mais competitivos, em que as políticas salariais são um diferencial importante”. Segundo ela, isso pode causar uma “desvantagem competitiva”.

Para a advogada, a exigência de divulgação é “questionável do ponto de vista legal” e “desproporcional”, pois “vai além do necessário para o atingimento dos objetivos da lei e pode causar grandes prejuízos à imagem da empresa”.

Gisela explica que a empresa exposta pode sofrer “críticas e julgamentos precipitados, especialmente nas plataformas onde a opinião pública é formada de maneira imediata, sem o conhecimento profundo da situação”.

Ana Paula Oriola de Raeffray, sócia do Raeffray Brugioni Advogados e doutora em Direito pela PUC-SP, afirma que a lei é “muito importante para reduzir as desigualdades salariais em razão do gênero”, mas aponta que “sua regulamentação tem lacunas”.

De acordo com ela, o decreto e a portaria deixam dúvidas “acerca das premissas para a elaboração do relatório, o que pode levar a distorções no seu resultado”.

Violações negadas

Por outro lado, em abril, a 8ª Vara Federal de Campinas (SP) negou o pedido de uma empresa e manteve a obrigação de divulgação do relatório. Da mesma forma, no último mês de junho, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região suspendeu uma decisão que isentava um supermercado de divulgar o documento.

A advogada Gisele Truzzi, especialista em Direito Digital, explica que não há infração à LGPD se os dados estiverem anonimizados. E a própria Lei da Igualdade Salarial determina tal anonimização dos dados do relatório.

A anonimização, explica ela, é a exclusão de informações como o nome do empregado, o CPF ou qualquer outro dado que permita a identificação do indivíduo. Com isso, a pessoa não fica exposta.

A lei de 2023 determina que a divulgação do relatório deve observar a proteção de dados pessoais tratada na LGPD. Já a regulamentação não prevê a divulgação de qualquer dado que identifique os empregados.

Maria Lucia Benhame, advogada especialista em Direito do Trabalho, lembra que as empresas, especialmente aquelas ligadas ao Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) — iniciativa para engajar companhias na adoção de certos princípios em áreas como direitos humanos e trabalho —, já publicam vários dados, muitos deles em seus programas de governança ambiental, social e corporativa (ESG).

No âmbito do Pacto Global, existem, por exemplo, os princípios de empoderamento das mulheres (WEPs), compromissos assinados pelas companhias para promover a igualdade de gênero. Empresas engajadas nisso e em outros movimentos similares costumam publicar relatórios com dados de empregados.

De acordo com Maria Lucia, a lógica de relatórios públicos com verificação estatal e participação sindical “existe em diferentes países do mundo, especialmente na Europa”.

Apesar da resistência das empresas à divulgação de dados, a advogada trabalhista Amanda Paoleli, do escritório Calcini Advogados, entende que a medida, assim como a elaboração dos planos de mitigação, é uma oportunidade “para as empresas contextualizarem e explicarem as estatísticas, auxiliando os órgãos competentes na fiscalização”.

Ela lembra que o inciso XXX do artigo 7º da Constituição proíbe a diferença de salários “por motivo de sexo”. O artigo 461 da CLT, por sua vez, determina salários iguais para trabalhos de igual valor no mesmo estabelecimento, “sem distinção de sexo”.

Para a advogada, a Lei da Igualdade Salarial “se insere no contexto dos princípios constitucionais do artigo 170, que orientam o exercício da livre iniciativa empresarial, incluindo a proteção dos empregados e a redução das desigualdades”.

Segundo Amanda, o poder público tem competência para legislar sobre os assuntos listados nesse artigo, de forma a concretizar os princípios, “inclusive diante do dever de fiscalizar contratos de trabalho visando à proteção dos direitos humanos, à garantia do não retrocesso social e à efetividade das normas já vigentes, que estabelecem há muito o princípio da igualdade”.

Alegação que não se sustenta

Na visão da também advogada trabalhista Fabíola Marques, professora da PUC-SP, “a alegação das empresas de que (a lei) viola a liberdade de contratação e administração não se sustenta”. Segundo ela, “as empresas não querem mostrar a verdade” — que o número de homens contratados é superior ao de mulheres.

Da mesma forma, “não interessa mostrar que existem poucas mulheres em cargos de direção e gestão e que as poucas que existem têm salários inferiores aos dos homens na mesma posição” — o que também ocorre em atividades mais simples.

“Como as empresas não querem ser vistas pelo público como empresas que discriminam e não incentivam o trabalho das mulheres, como não querem ser vistas como machistas, recorrem ao Judiciário para tentar justificar o injustificável”, assinala Fabíola.

Ela recorda que, conforme pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres têm uma taxa de desemprego maior do que a dos homens, apesar da escolaridade superior.

Amanda Paoleli cita estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que mostra as disparidades: mulheres ganham cerca de 20% menos do que os homens e foram afetadas de forma desproporcional pela crise da Covid-19 — tanto em termos de segurança de renda quanto de responsabilidades familiares.

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Blackbox e manipulação de sistemas de IA na prática forense

São cada vez mais intensas e controversas as discussões de como a inteligência artificial (IA) tem se tornado uma ferramenta essencial na prática forense, facilitando a resolução de crimes e a análise de evidências (Russell; Norvig, 2016). No entanto, surgem preocupações éticas e de segurança quando se tenta contornar os “filtros” internos de sistemas de IA, como o ChatGPT, para obter informações de forma ilegal. Este Op-Ed examina brevemente os riscos ocultos dessas práticas e como a opacidade dos modelos de “caixa preta” pode minar a confiança nas análises forenses.

As discussões sobre a utilização de modelos de IA já estão focadas na produção de decisões judiciais em matéria penal, ou seja, no debate sobre as (im)possibilidades de modelos de apoio à decisão penal. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções 332/2020 e 363/2021 e a Portaria 271/2020, regulamentando a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de Modelos nos Tribunais (Peixoto, 2020). No entanto, muitas iniciativas acontecem “fora do radar”, sem um mínimo de maturidade tecnológica, no “oba-oba” da aparente facilidade da inteligência artificial generativa.

Embora não proibida no domínio penal, a IA “não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas” (Resolução 332/2020, artigo 23). Confira a publicação sobre “O Manto de Invisibilidade do uso da Inteligência Artificial no Processo Penal” ler (aqui) pois, este artigo já chamava a atenção para a complexidade do tema e para a questão relevante e pouco problematizada do “uso” de prova adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle, em desconformidade com as normas de transparência, produção, tratamento de dados e auditabilidade algorítmica.

Filtros

Os filtros internos são cruciais para impedir o uso mal-intencionado da IA protegendo a integridade dos dados e garantindo conformidade com normas legais e éticas (Floridi; Cowls, 2019). Esses filtros atuam como barreiras, evitando que informações sensíveis ou ilegais sejam acessadas ou manipuladas. A transparência desses filtros é essencial para manter a confiabilidade e a legitimidade das ferramentas de IA na prática forense (Goodman; Flaxman, 2017).

Qualquer uso de IA em contextos forenses deve respeitar as regras do jogo para evitar abusos e garantir a integridade das provas. No entanto, oportunistas operam sob o manto aparente da invisibilidade, mas deixam pegadas digitais que podem ser identificadas. Basta saber pedir as informações de acesso [logs, p.ex.].

Onde está o problema? Os modelos de “caixa preta” são frequentemente criticados pela falta de explicabilidade e transparência. Na prática forense tanto clareza quanto precisão são indispensáveis, razão pela qual a utilização desses modelos pode ser problemática (Doshi-Velez; Kim, 2017).

A incapacidade de explicar como um modelo de IA chegou a uma determinada conclusão compromete a integridade das análises forenses e a confiança pública nos resultados apresentados em tribunal (Lipton, 2018). Além disso, a utilização de modelos de IA por órgãos estatais sem a devida conformidade com normas de transparência e auditabilidade algorítmica impõe um sério risco à concretização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.

A ausência de controle efetivo sobre a aquisição e o processamento de dados materializados em provas judiciais pode “legitimar” comportamentos oportunistas e abusivos, criando um “Manto da Invisibilidade” (Bierrenbach, 2021).

Contornar os filtros internos de sistemas de IA não só compromete a segurança, mas também a legalidade das operações forenses. Vamos além…a manipulação desses filtros pode levar a falhas graves na análise de evidências, prejudicando investigações e julgamentos. Além disso, tais práticas podem resultar em sanções legais severas e minar a confiança na aplicação da lei e na justiça (Mittelstadt et al., 2016).

A questão do “uso de prova”, por exemplo, já dito anteriormente, adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle em desconformidade com a normativa do CNJ e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra bem os perigos envolvidos. O paradoxo se estabelece quando práticas vedadas internamente são aceitas externamente, criando um dualismo incoerente.

Em face do exposto, manter filtros robustos e transparentes nos sistemas de IA é essencial para proteger contra o uso ilegal e antiético dessas tecnologias na prática forense. A confiança nas análises forenses depende de um equilíbrio (…) de práticas éticas e de segurança no desenvolvimento de IA. Qual é o desafio?

O desafio é desenvolver IA que seja ao mesmo tempo poderosa e transparente, promovendo uma prática forense que respeite tanto a precisão quanto a ética (Rudin, 2019). Ao que tudo indica, a utilização responsável da IA alinha-se melhor com a proteção dos direitos fundamentais e o Devido Processo Legal.

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Referências

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resoluções 332/2020 e 363/2021.

DOSHI-VELEZ, F.; KIM, B. Towards a Rigorous Science of Interpretable Machine Learning. [ArXiv:1702.08608], 2017. Disponível em: https://arxiv.org/abs/1702.08608. Acesso em: 18 jul. 2024.

FLORIDI, L.; COWLS, J. et al. An Ethical Framework for a Good AI Society: Opportunities, Risks, Principles, and Recommendations. Minds and Machines, v. 28, n. 4, p. 689-707, 2018. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11023-018-9482-5. Acesso em: 18 jul. 2024.

GOODMAN, B.; FLAXMAN, S. European Union Regulations on Algorithmic Decision-Making and a “Right to Explanation”. AI Magazine, v. 38, n. 3, p. 50-57, 2017. Disponível em: https://ojs.aaai.org/index.php/aimagazine/article/view/2741. Acesso em: 18 jul. 2024.

LIPTON, Z. C. The Mythos of Model Interpretability. Communications of the ACM, v. 61, n. 10, p. 36-43, 2018. Disponível em: https://dl.acm.org/doi/10.1145/3233231. Acesso em: 18 jul. 2024.

MITTELSTADT, B. D.; ALLAIRE, J. C.; TSAMADOS, A. The Ethics of Algorithms: Mapping the Debate. Big Data & Society, v. 3, n. 2, p. 2053951716679679, 2016. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/2053951716679679. Acesso em: 18 jul. 2024.

PEIXOTO, Fabiano Hartmann. “Referenciais Básicos”.

RUDIN, C. Stop Explaining Black Box Machine Learning Models for High Stakes Decisions and Use Interpretable Models Instead. Nature Machine Intelligence, v. 1, n. 5, p. 206-215, 2019. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s42256-019-0048-x. Acesso em: 18 jul. 2024.

RUSSELL, S.; NORVIG, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 3. ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2016.

BIERRNEBACH, Juliana. Manto da Invisibilidade. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-07/limite-penal-manto-invisibilidade-uso-ia-processo-penal.

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Afastamento por doença causada pelo empregador não retira adicional de atividade

A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve, por unanimidade, adicional de atividade a uma carteira que teve de ser readaptada após ter sido afastada das funções de distribuição e coleta de correspondências e encomendas em vias públicas pelos Correios.

trabalhadora deposita envelope em caixa de correio
Trabalhadora teve lesão causada por esforço excessivo em manejar entregas

O afastamento se deu por doença profissional causada pelo esforço excessivo ao manejar, sacudir e arremessar objetos. Segundo os autos, a profissional foi removida das atividades externas em maio de 2022, inicialmente por 90 dias, mas as restrições foram mantidas após esse período.

Com isso, em janeiro de 2023, a empresa cortou o pagamento do adicional de atividade. No entanto, o TRT-2 interpretou que, ainda que a trabalhadora tenha deixado de realizar tais tarefas, não pode ter prejuízo devido a um quadro de saúde provocado pelo próprio empregador.

A magistrada Eliane Aparecida da Silva Pedroso, relatora do caso, destacou no acórdão que a conduta dos Correios é indevida, uma vez que a profissional foi vítima de doença de trabalho e não deu causa à readaptação funcional, compatível com as limitações adquiridas em decorrência de suas atividades. “Inadmissível, portanto, onerar a própria vítima, impondo-se a manutenção da verba.”

A decisão se baseia no artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal, que consagra a irredutibilidade salarial, e nos artigos 187, 927 e 950 do Código Civil, que determinam o dever objetivo de reparação àqueles que causam dano. Fundamenta-se, também, em jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho envolvendo o mesmo adicional.

Com a decisão, a instituição terá que restabelecer o pagamento do adicional, desde a data da supressão, com todos os reflexos em férias, 13º salário e depósitos do FGTS. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-2.

Clique aqui para ler o acórdão
Processo 1000422-32.2023.5.02.0434

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TJ-RJ tem plataforma online de resolução de conflitos com uso de IA

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro lançou a primeira plataforma institucional de resolução online de conflitos de uma corte do país, a Plataforma + Acordo. O objetivo é aumentar a celeridade e reduzir custos e burocracia.

O público-alvo da plataforma é o advogado, que para acessar a + Acordo, basta clicar em um botão na página principal do portal do TJ-RJ, na aba do advogado ou por meio do acesso rápido.

Plataforma do TJ-RJ acelera a celebração de acordos e a resolução de conflitos

Na plataforma, o profissional do Direito insere os dados do cliente, como documentos e procuração e, por meio da inteligência artificial, recebe ou não uma proposta de acordo. Se receber e aceitar, o acordo será distribuído automaticamente para a homologação no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania da Capital (Cejusc). O advogado opera a plataforma em nome do cliente.

“É um projeto pioneiro. O objetivo é facilitar a solução dos conflitos já conhecidos pelo Tribunal. Aquelas questões que já são pacificadas pelo Tribunal, nas quais há pouca oscilação na jurisprudência, são transferidas para a plataforma”, ressalta o desembargador Cesar Cury, presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec).

O desembargador destaca os pontos positivos da nova plataforma. “O projeto torna mais simples a vida do cidadão, porque ele tem a previsibilidade do que vai acontecer com a sua questão; o advogado tem um gerenciamento melhor dos seus casos e a condição de resolver imediatamente a questão. Já para os juízes, há uma redução no volume de trabalho, permitindo que eles se dediquem mais aos processos verdadeiramente complexos; e para o Tribunal, a plataforma gera também uma economia na gestão de um modo geral, na medida em que temos a solução do conflito sem o processo”.

O presidente do Nupemec explica que o projeto está dividido em quatro fases. Na primeira etapa o interessado dialoga apenas com a máquina com o conteúdo que já está disponibilizado; se não houver acordo, na segunda etapa o interessado pode pedir para conversar com alguém da empresa, de forma síncrona ou assíncrona; na terceira etapa, caso não haja convergência, um mediador pode ser chamado a participar; e ainda não havendo acordo, numa quarta etapa, o interessado recebe todo o conteúdo produzido, já preparado para entrar com uma ação judicial.

Parceria com a Light

A primeira fase do projeto tem uma parceria com a Light, concessionária de energia elétrica no Rio de Janeiro. A empresa foi escolhida com base nos dados estatísticos do TJ-RJ, que a apontam como a maior litigante privada do estado. Serão inicialmente tratados os casos pré-processuais do assunto mais recorrente relativo à empresa, o TOI (Termo de Ocorrência e Inspeção).

“A grande vantagem é a celeridade para o jurisdicionado. Em um dia ou em minutos, o caso pode ser resolvido”, afirma o juiz Francisco Emílio Carvalho Posada, da 2ª Vara de Itaguaí e do Nupemec.

A plataforma + Acordo é extensível e adaptável, o que possibilita ampliar seu uso para qualquer caso de acordo e, também, para outros tribunais brasileiros. “Uma outra fase do projeto já está sendo desenvolvida para casos processuais com outros litigantes e outras competências”, pontuou o juiz.

A iniciativa foi desenvolvida pelo Instituto Tecgraf da PUC-Rio em parceria com o Legalite e outros departamentos da universidade. A equipe envolve profissionais de diversas áreas, entre as quais Ciência da Computação, Ciência de Dados, Direito e Design. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-RJ.

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Clássicos aduaneiros: Introdução ao Direito Aduaneiro, de Claude Berr

Foram lançadas luzes, em 12/7/2022, em coluna publicada aqui no Território Aduaneiro, sobre os “clássicos aduaneiros” (Por que ler os clássicos? — versão Direito Aduaneiro[1], lá entendidos, com inspiração em Italo Calvino, como os livros aduaneiros que você teria vergonha de dizer que não leu.

Em 09/04/2024, também nesta coluna, deu-se origem à série de resenhas e traduções de clássicos aduaneiros, com texto sobre o “Direito da Integração” [2], já alertando que o objetivo das resenhas (e traduções) não era “ser um clássico” ou poupar o leitor de efetivamente acessar as obras clássicas, “simplificando-as” [3], mas apenas servir aperitivo que convidasse à prazerosa degustação do original, para poder saborear o texto autêntico, esse sim “clássico”.

O autor e a obra clássica

A menos de uma semana das Olimpíadas de Paris, elegemos para analisar na coluna de hoje a obra Introduction au Droit Douanier, originalmente lançada em 1997 [4], por Henri Trémeau e Claude Berr, que figuram entre os pioneiros do Direito Aduaneiro na França, e são ainda autores do conhecido Le Droit Douanier, que teve a primeira edição publicada em 1975 [5], e a sétima (e mais recente) publicada em 2006 [6]. Trataremos mais especificamente da segunda edição da Introdução ao Direito Aduaneiro, que consta na autoria exclusiva de Claude Berr, publicada em 2008 [7].

Claude Joseph Berr é professor emérito da Universidade Pierre-Mendès-France – Grenoble [8], e autor de diversas obras na área aduaneira, sendo membro ocupante da cadeira 26 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro [9].

A obra, sintética e efetivamente introdutória [10], com apenas 70 páginas de texto, conta com uma Introdução, composta por três Seções (dedicadas à “Noção de Direito Aduaneiro”, a “Questões Fundamentais” e ao “Campo e Aplicação do Direito Aduaneiro”), três Títulos e “uma Conclusão Geral”. O Título I se refere à “Função do Direito Aduaneiro”, sendo desmembrado em dois Capítulos (que tratam da “Proteção de um Território Aduaneiro” e da “Eficiência da Proteção Aduaneira”); o Título II, a “Princípios Fundamentais de Direito Aduaneiro Comunitário”, sendo igualmente subdividido em dois Capítulos (sobre “Elementos característicos das mercadorias” e “Tratamento Aduaneiro da Mercadoria”); e o Título III dispõe sobre a “Aplicação Nacional do Direito Aduaneiro”, sendo constituído por dois capítulos, versando a respeito de “Relações da Administração Aduaneira com Usuários” e “Contencioso Aduaneiro”.

Apesar de nenhuma das obras aqui mencionadas possuir edição recente, o leitor atento encontrará esses clássicos ainda à venda em livrarias especializadas e na internet, além de obras que comentam a atual codificação europeia [11].

Reflexões iniciais e Introdução

O Direito Aduaneiro frequentemente carrega a reputação de ser um campo complexo e restritivo. No entanto, essa percepção é apenas um reflexo das contradições inerentes à vida comercial internacional, na qual a busca pela liberdade de comércio deve ser balanceada com a regulação necessária à proteção da sociedade e do próprio livre comércio, em bases não discriminatórias. Não são antagônicos os interesses das empresas, que desejam que as técnicas aduaneiras evoluam para se adequarem à globalização, e os dos estados, que precisam proteger os cidadãos das diversas ameaças que surgem em decorrência do comércio.

Berr explora, na obra, como o Direito Aduaneiro tem logrado encontrar um equilíbrio entre esses imperativos, e que a União Aduaneira, na Europa, demonstrou sucesso considerável na conciliação de tais interesses, ao eliminar a maior parte das barreiras comerciais entre os estados membros e estabelecer regras comuns para o comércio com o resto do mundo, posicionando o bloco como ator dinâmico no comércio global.

O texto ilustra, em geral, como o direito aduaneiro evoluiu em resposta às mudanças e reviravoltas do cenário internacional, tornando-se acessível e relevante para todos que se dedicam a tal área. Assim, o texto, apesar de escrito há mais de uma década, oferece visão abrangente e atual sobre como o Direito Aduaneiro se ajusta e responde às demandas contemporâneas.

Nesse escopo, o estudo já inicia com alerta de que não serão tratados, exceto em casos excepcionais, nem aspectos da organização da aduana, nem seu funcionamento, nem os problemas que isso possa ter ocasionado no passado (como sua vinculação aos Ministérios das Finanças, da Economia, da Indústria etc.) ou atualmente (tais como suas relações com outros órgãos, como a polícia civil e militar).

Adverte-se ainda para o anacronismo da intervenção dos agentes aduaneiros, considerando que a maior parte das transações ocorre entre empresas multinacionais e que as transferências de tecnologia têm mais relevância do que o transporte físico de mercadorias. No entanto, não faria sentido estudar o Direito Aduaneiro sem considerar os agentes responsáveis por sua aplicação, porque, muitas vezes, esses agentes não apenas aplicam as leis, mas também as inspiram e permanecem sendo seus intérpretes privilegiados.

O papel dos agentes aduaneiros teve que evoluir à medida que novas funções lhes foram atribuídas, as quais tendem menos a regular o fluxo de mercadorias e mais a garantir que estas (e aqueles que as transportam) não representem riscos para a saúde pública, ao meio ambiente, aos consumidores, e ao patrimônio nacional, entre outros. E, nesse aspecto, a União Aduaneira Europeia é rica em lições: a supressão das barreiras aduaneiras entre os estados membros da União, longe de tornar obsoleta a utilidade do Direito Aduaneiro, só reforçou sua importância. E isso ocorre não apenas porque há uma Tarifa Externa Comum, mas também porque mesmo nos intercâmbios intracomunitários, a liberdade de circulação de mercadorias demanda mais do que simplesmente a abolição de regulamentações existentes, pois não basta “desregular” para liberalizar.

Atualmente, o Direito Aduaneiro busca um equilíbrio complexo entre facilitação do comércio e reforço da segurança pública, promovendo mudanças substanciais nas tradicionais normas da função aduaneira em vários domínios, sendo o processo profundamente influenciado pela crescente adoção de tecnologias de informação, com o objetivo de estabelecer uma “aduana sem papel”.

Os alertas iniciais são seguidos por uma Introdução, que trata, preliminarmente, das definições possíveis de Direito Aduaneiro (e da dificuldade de delimitação teórica satisfatória de tais definições), e das questões fundamentais nesse campo de estudo, como a unidade ou dualidade do direito aduaneiro e sua excepcionalidade quanto ao direito comum. Fechando a parte introdutória, Berr apresenta o que entende como o campo de aplicação do Direito Aduaneiro, mais bem delimitado que as definições e questões fundamentais, precisamente a operações envolvendo exclusivamente intercâmbio internacional de mercadorias.

A função do Direito Aduaneiro

Berr salienta que a função primordial do Direito Aduaneiro (Capítulo 1) é, efetivamente, garantir a proteção do território aduaneiro de maneira eficaz. E essa proteção engloba objetivos econômicos e não econômicos. Sobre a proteção do território aduaneiro, são trazidos dois aspectos importantes: o primeiro (Seção 1) focado nos objetivos econômicos, discutindo, primeiramente, a transição de uma proteção passiva para uma proteção ativa, e, em seguida, a mudança de uma proteção autônoma para uma proteção negociada; e o segundo (Seção 2) destinado a examinar os objetivos não econômicos, destacando o papel preponderante das autoridades nacionais e o controle das autoridades comunitárias.

No que se refere à eficácia da proteção aduaneira (Capítulo 2), Berr explora (Seção 1) o enfraquecimento dos instrumentos tarifários (grosso modo, tributários), incluindo a queda dos direitos de aduana (imposto de importação) e a flexibilização da legislação tarifária. Quanto a esse tema, destaca que a tributação aduaneira representa o mais antigo e sofisticado meio de proteção contra a invasão de mercadorias estrangeiras em competição com a produção interna e que tributar a mercadoria importada, elevando seu preço, objetiva restabelecer, de forma praticamente mecânica, o equilíbrio entre os produtores nacionais e estrangeiros.

Contudo, para que esse reequilíbrio ocorra, é fundamental que os direitos de aduana sejam estabelecidos em um nível apropriado e que as modalidades de seu cálculo, conforme previsto pela legislação tributária, estejam adaptadas a esse propósito. A observação do comércio mundial demonstra, por um lado, que os tributos aduaneiros sofreram um desgaste tão significativo que sua capacidade compensatória é questionável e, por outro lado, que as legislações tributárias (incluindo a legislação comunitária) têm seguido uma tendência de flexibilização contínua.

A Seção 2, por sua vez, analisa o triunfo dos instrumentos não tarifários, discutindo a diversidade de tais instrumentos e sua legitimidade.

Os princípios fundamentais do Direito Aduaneiro Comunitário

O Direito Aduaneiro Comunitário é fundamentado em princípios específicos (Capítulo 1), destacando os elementos característicos da mercadoria: a classificação tarifária (Seção 1), tratando da nomenclatura tarifária e das regras de classificação da mercadoria; a origem (geográfica) da mercadoria (Seção 2), discutindo os desafios da atribuição de uma origem e a complexidade das regras de origem; e o valor aduaneiro (Seção 3), detalhando sua definição e o cálculo correspondente, destacando que o primeiro método de valoração previsto no Acordo de Valoração Aduaneira se aplicaria, provavelmente, a mais de 95% dos casos, sendo os demais método excepcionais.

Sobre o tratamento aduaneiro da mercadoria (Capítulo 2), discute-se a mercadoria destinada a permanecer no território aduaneiro (Seção 1), diferenciando entre a introdução em livre prática (livre circulação no espaço comunitário em condições semelhantes a uma mercadoria de origem comunitária) e a introdução a consumo (com o pagamento de tributos devidos, no destino), tratando-se ainda da cobrança da dívida aduaneira.

É ainda analisada a mercadoria destinada a não permanecer no território aduaneiro (Seção 2), apresentando-se regras gerais relativas aos “regimes econômicos aduaneiros”, que são subdivididos em regimes com “vocação comercial” (como o entreposto aduaneiro e a admissão temporária), “regimes de vocação industrial” (o aperfeiçoamento ativo e o reembolso-drawback), “regimes de transporte” (como o trânsito aduaneiro, comunitário e internacional), e as “zonas francas”.

Aplicação nacional do Direito Aduaneiro

Em relação à aplicação nacional do Direito Aduaneiro, Berr explora as relações entre a administração aduaneira e o que denomina de “usuários” (Capítulo 1), examinando os controles aduaneiros (Seção 1), que já não se restringem aos movimentos físicos das mercadorias, e utilizam medidas a posteriori, para permitir a libração mais rápida de mercadorias sem prejuízo dos controles, inclusive no que se refere à salvaguarda do interesse do tesouro (Seção 2).

Sobre o Contencioso Aduaneiro (Capítulo 2), são analisados os aspectos gerais do Direito Penal Aduaneiro (Seção 1), incluindo a falta de harmonização comunitária e os contornos do Direito Penal Aduaneiro, buscando identificar, de forma geral, as principais infrações aduaneiras (Seção 2), destacando o contrabando (abrangendo a importação e a exportação de mercadorias no território aduaneiro com violação às disposições normativas aduaneiras, entre outras condutas, buscando subtrair as mercadorias ao controle aduaneiro) e as ausências de declaração e falsidades na declaração.

Conclusão geral

Em suma, a obra de Claude Berr oferece um panorama enriquecedor, ainda que introdutório, de uma disciplina frequentemente negligenciada e por vezes considerada ingrata pelos juristas, objetivando não necessariamente reabilitar o Direito Aduaneiro, mas destacar seus aspectos essenciais e situá-lo dentro do contexto mais amplo do Direito Econômico contemporâneo.

Apesar da crescente globalização e liberalização do comércio internacional, o Direito Aduaneiro continua a desempenhar papel crucial na segurança das transações comerciais transfronteiriças. As fontes inspiradoras que moldaram o Direito Aduaneiro, com o impacto histórico do Gatt e o papel que veio a ser assumido pela Organização Mundial do Comércio contribuíram para a transparência regulatória, e para uma visão mais dinâmica das administrações aduaneiras, com redução de obstáculos artificiais ao comércio, acompanhando as transformações radicais ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial, como o colapso dos impérios coloniais, a ascensão de novas economias industrializadas e a revolução tecnológica.

O mais notável, nesse processo, é a capacidade de o Direito Aduaneiro se modernizar sem abrir mão dos avanços históricos que o fundamentam, dos conceitos e mecanismos básicos que têm raízes que remontam a séculos. Essa capacidade, no entanto, não isenta o Direito Aduaneiro de críticas, pois, como toda construção humana, enfrenta desafios e limitações, sendo por vezes visto como excessivamente formalista ou insuficientemente preparado para enfrentar novas ameaças, como a entrada de mercadorias falsificadas e problemas sanitários.

A experiência da União Aduaneira Europeia demonstra a relevância contínua e crescente do tema, pois a remoção das barreiras aduaneiras entre os Estados membros não diminuiu, mas ampliou o interesse por questões aduaneiras, tanto entre profissionais quanto estudiosos.

Eis a grande lição que Berr nos deixa, a partir da experiência europeia: a diminuição de fronteiras, com a adoção de territórios aduaneiros comuns, não mitiga, mas acentua a importância das Aduanas.


[1] TREVISAN, Rosaldo. Por que ler os clássicos? (versão Direito Aduaneiro). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/territorio-aduaneiro-ler-classicos-versao-direito-aduaneiro/. Acesso em 21.jul.2024.

[2] TREVISAN, Rosaldo; FAZOLO, Diogo Bianchi. Clássicos aduaneiros: o direito da integração. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/territorio-aduaneiro-ler-classicos-versao-direito-aduaneiro/. Acesso em 21.jul.2024.

[3] Sobre os riscos que envolve a atividade de “explicar de forma simplificada” obras clássicas, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Para entender Kelsen… (e os riscos do “telefone sem fio”). In: VALLE, Maurício Dalri Timm do; COSTA, Valterlei da (Coord.). Estudos sobre a Teoria Pura do Direito: homenagem aos 60 anos de publicação da 2ª edição da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Almedina, 2023, p. 575-601.

[4] Pela editora Dalloz, em fevereiro de 1997, curiosamente, na coleção “Conaissance du Droit – Droit Privé” (“Conhecimentos de Direito – Direito Privado”), como o leitor pode atestar em: https://www.eyrolles.com/Entreprise/Livre/introduction-au-droit-douanier-9782247026302/. Acesso em 21.jul.2024.

[5] A primeira edição do “Le Droit Douanier”, publicada por Berr com seu parceiro Henri Trémeau, doutor em Ciências Econômicas, e que foi Diretor-Adjunto de Aduanas, foi prefaciada pelo então Presidente da Comissão das Comunidades Europeias, F.X. Ortoli (BERR, Claude J.; TRÉMEAU, Henri. Le Droit Douanier. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1975).

[6] BERR, Claude J.; TRÉMEAU, Henri. Le Droit Douanier: Communautaire et national. 7. Ed. Paris: Economica, 2006.

[7] BERR, Claude J. Introduction au Droit Douanier. Nouvelle édition. Paris: Economica, 2008.

[8] Em 1975, quando da edição do “Le Droit Douanier”, Berr era Professor de Direito na Universidade de Ciências Sociais de Grenoble. A Universidade Pierre-Mendès-France, conhecida como UPMF ou Grenoble II, hoje faz parte da Université Grenoble Alpes. Disponível em: https://www.grenoble.fr/lieu/1453/137-universite-pierre-mendes-france.htm. Acesso em 21.jul.2024.

[9] International Customs Law Academy. Members. Disponível em: https://www.iclaweb.org/membership. Acesso em 8.abr.2024. Nos Anais do 4º Encontro Iberoamericano de Direito Aduaneiro, em Cartagena/Colômbia, Berr contribuiu com um artigo sobre o Código Aduaneiro Europeu de 1992 (BERR, Claude J. El Codigo de Aduanas Comunitario o la Perpetua Búsqueda de Compromisoin 4º Encuentro Iberoamericano de Derecho Aduanero. Cartagena de Indias: ISEF, 19-20 de junho de 2008, p. 203-218.

[10] A obra representa excelente porta de entrada para o Direito Aduaneiro, tratando apenas de elementos essenciais, com reflexões (sem referências bibliográficas específicas) derivadas da experiência do autor no manejo da temática aduaneira. Recorde-se que, ao tempo em que foi publicada a primeira edição, grande parte da filosofia das aduanas modernas ainda não estava consignada em documentos oficiais, e a União Europeia recém apresentava sua primeira codificação aduaneira comunitária (Regulamento CEE 2913/1992). Por isso, as reflexões são consideradas de vanguarda.

[11] Apesar de se referirem a codificações europeias anteriores, as obras permanecem como importantes referências em termos conceituais e de visão da evolução do papel das aduanas. A quem desejar comentários da nova codificação europeia (Regulamento UE 952/2013), remete-se a: ALBERT, Jean Luc. Le Droit Douanier de l’Union Européenne. 2. Ed. Bruxelas: Bruylant, 2023; RIJO, José. Direito Aduaneiro da União Europeia: notas de enquadramento normativo, doutrinário e jurisprudencial. Coimbra: Almedina, 2020; ARMELLA, Sara. EU Customs Code. Milão: Bocconi University, 2017; e FABIO, Massimo. Manualle di Diritto e Pratica Doganale. VI ed. Vicenza: Wolters Kluwer, 2017.

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Audiência no STF debaterá se orçamento secreto persiste em ’emendas pizza’

Nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 854, o ministro Flávio Dino determinou uma audiência de conciliação para debater denúncia de permanência do “orçamento secreto” no manejo de emendas parlamentares, o que, caso venha a se confirmar, implicaria descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em 19 de dezembro de 2022,  que reputou o instituto inconstitucional.

O despacho do novo ministro relator sobre a matéria — que sucedeu a ministra Rosa Weber —, respondeu a pedido dos amici curiae Associação Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional Brasil. Tais entidades levaram ao conhecimento da Corte, conforme excertos citados pelo próprio ministro Flávio Dino,

elementos que configuram a persistência do descumprimento da decisão adotada por esta Eg. Corte no âmbito das referidas ações, assim como dos preceitos fundamentais que a embasaram”, em função do “uso indevido das emendas do relator-geral do Orçamento para efeito de inclusão de novas despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual da União”; “emendas individuais na modalidade transferência especial (emendas Pix: alta opacidade, baixo controle”; e “descumprimento da determinação de publicar informações relativas à autoria das emendas RP 9 e à sua aplicação.

Foram intimadas a comparecer na audiência do dia 1º de agosto as seguintes autoridades: procurador-geral da República; presidente do Tribunal de Contas da União; ministro-chefe da Advocacia Geral da União; chefe da Advocacia do Senado; chefe da Advocacia da Câmara dos Deputados e advogado do partido autor da ADPF 854/DF (PSOL).

Diante da falta de comprovação de que teriam sido extintas as práticas abusivas nas emendas de relator (RP 9) e dado o risco de descumprimento de ordem judicial por meio da sua continuidade em outros tipos de emendas, o Ministro Flávio Dino alertou enfaticamente que “não importa a embalagem ou o rótulo (RP 2, RP 8, ’emendas pizza’ etc.)”. “A mera mudança de nomenclatura não constitucionaliza uma prática classificada como inconstitucional pelo STF, qual seja, a do “orçamento secreto.”

Como em um sistema de vasos comunicantes, os recursos anteriormente alocados em emendas de relator (RP 9) foram redistribuídos primordialmente em prol das emendas individuais impositivas (RP 6), as quais, por força da Emenda 126/2022, passaram de 1,2% da receita corrente líquida federal para 2% da RCL;  bem como das emendas de comissão (RP 8), além de inicialmente haverem sido remanejados recursos para dotações supostamente discricionárias do Executivo (RP 2), mas que estavam comprometidas  com as indicações feitas pelo Legislativo.

A ironia do ministro Flávio Dino em designar as emendas parlamentares como “emendas pizza” decorre desse contexto de fatiamento dos recursos públicos, de forma opaca, pouco aderente ao planejamento e fisiológica. A imagem de “emendas pizza” traz consigo uma síntese apropriada e bastante didática do polvilhamento irrefletido de recursos, tal como ocorre com a farinha jogada dispersamente sobre a massa da pizza, sem que haja clareza ou intencionalidade planejada de onde cada montante cairá. Quem distribui recursos públicos desse modo o faz mirando primordialmente ganhos de curto prazo eleitoral em conduta que, por vezes, majora o risco de enriquecimento ilícito e dano ao erário, na medida em que opera analogamente como uma espécie de execução privada de dinheiro público.

Entre os cerca de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares previstos no orçamento geral da União de 2024, R$ 25 bilhões referem-se a emendas individuais impositivas, R$15,2 bilhões estão alocados em  emendas de comissão e R$ 11,3 bilhões em emendas de bancada impositivas.

Diante da premência do calendário eleitoral municipal, já foram liberados e pagos R$ 30 bilhões das emendas parlamentares, ou seja, aproximadamente 60%. Considerando o contingenciamento que se avizinha na execução orçamentária federal, os outros R$ 20 bilhões em emendas parlamentares começaram a ser um alvo potencial de restrição fiscal, tal como se sucede com as despesas discricionárias a cargo do Executivo.

Dado o estreito calendário das eleições já em curso, tempo é o bem mais precioso do presente exercício financeiro. Todavia, a gestão do ritmo mensal da execução orçamentária é competência privativa do Executivo e ocorre no âmbito do decreto de programação financeira, para resguardar o alcance da meta de resultado primário da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, tal competência passa pela elaboração de metas bimestrais de arrecadação (artigo 13) e de cronograma mensal de desembolso (artigo 8º), o que deve ocorrer nos primeiros 30 dias após a promulgação da LOA. Ao longo do exercício, o monitoramento da execução orçamentária deve ser realizado mediante relatórios resumidos publicados bimestralmente (na forma do artigo 53, III da LRF).

Caso haja risco de frustração das receitas estimadas, poderão ser contingenciadas as despesas primárias que não forem obrigações legais e constitucionais (marcadas pelo identificador de resultado primário 1 e incluídas formalmente na Seção I do Anexo III da LDO/2024), para que seja cumprida a meta de resultado primário (artigo 9º da LC 101/2000).

Eis o contexto em que o Executivo anunciou que promoverá contingenciamento e bloqueios em 30 de julho de aproximadamente R$15 bilhões, montante que ultrapassa a dotação disponível de 19 ministérios do governo federal.

Diferentemente das despesas obrigatórias a que se refere o §2º do artigo 9º da LRF, as emendas parlamentares, mesmo as que têm natureza impositiva (emendas individuais e de bancada), são suscetíveis de contingenciamento, por força do §18 do artigo 166 da Constituição de 1988,

Apesar de poder vir a ser relativamente elevado o nível de contingenciamento necessário para cumprir a meta de resultado primário equilibrado (“déficit zero”) ao longo de 2024, o Congresso conseguiu antecipar a execução de 60% das suas emendas parlamentares, resguardando-as dos efeitos da incidência dos decretos de programação financeira controlados pelo Executivo.

Não é demasiado reiterar que, em ano de eleições municipais, a opção por assegurar que tais emendas fossem repassadas às bases locais de cada deputado federal e de cada senador, antes de 30 de junho, era uma questão de sobrevivência política que refutava qualquer restrição fiscal. A bem da verdade, tentou-se contornar factualmente a vedação inscrita no artigo 73, inciso VI, alínea “a” da Lei 9.504/1997. Vale lembrar que o artigo 2º da Emenda 105/2019 previra algo semelhante em relação às anteriores eleições municipais, para garantir o efetivo repasse financeiro de 60% do total das transferências especiais (“pix orçamentário”) até 30 de junho de 2020.

Ônus do Executivo

Diante do risco de não atingimento da meta de resultado primário da LDO/2024, as emendas parlamentares podem vir a ser contingenciadas na mesma proporção e na mesma velocidade das demais despesas discricionárias. Ter adiantado a execução orçamentária das emendas parlamentares para garantir sua quitação até 30 de junho foi uma controversa opção que empurrou exclusivamente para o Executivo o colossal ônus de realização do ajuste fiscal esperado para o ano em curso, o que afronta diretamente não só o já citado §18 do artigo 166 da Constituição, como também o §13 do mesmo dispositivo constitucional: “as programações orçamentárias previstas nos §§ 11 e 12 deste artigo não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica”.

Como o §2º do artigo 7º da Lei Complementar 200/2023 previu que “o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública é de 75% do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual”, a margem de provável contingenciamento das demais despesas discricionárias e, por tabela, das emendas parlamentares impositivas seria de 25%.

Em um raciocínio de fronteira, caso haja risco de frustração da arrecadação (até porque o Congresso tem rejeitado os esforços do Executivo em rever determinadas renúncias fiscais) e, por conseguinte, se houver risco de não atingimento da meta de resultado primário, um quarto das emendas parlamentares individuais e de bancada poderia vir a ter sido contingenciado.

Não obstante isso, como já foram pagos R$30 bilhões de emendas parlamentares até o final de junho, em face do montante inicial previsto de R$50 bilhões, houve uma clara e deliberada preterição das despesas planejadas que o Executivo conduz. Novos contingenciamentos não poderão reverter tal fato consumado e a margem de eventual restrição que venha a incidir sobre os R$ 20 bilhões restantes é bastante menor, algo que provavelmente não virá sequer à tona na audiência do dia 1º de agosto no STF.

Além da preterição, a disparidade de regime jurídico aplicável às despesas a cargo do Poder Executivo em face das emendas parlamentares (essas controversamente mais flexíveis do que aquelas) deveria ser o principal impasse a ser debatido nos autos da ADPF 854/DF. Ilustra tal assimetria desarrazoada e inconstitucional a possibilidade de indicação do beneficiário do repasse decorrente de emendas congressuais na forma do artigo 29 da Lei 13.019/2014, sem que se cumpra o rito da dispensa e/ou inexigibilidade de licitação, o que afronta o artigo 37, XXI da CF. As “emendas pizza” também podem ser empenhadas sem prévia licença ambiental ou projeto de engenharia, além de usufruírem de prazo mínimo de três anos para a resolução de condições suspensivas.

Para tentar aprimorar o regime jurídico de tais emendas, seria necessário alterar a redação do artigo 29 da Lei 13019/2014, ao que sugerimos que lhe seja acrescentado um parágrafo único que obrigasse ao cumprimento dos seguintes comandos legais:

I – conformidade com o artigo 72 da Lei 14133/2021, para que haja processo de motivação/demonstração de economicidade da contratação direta decorrente da emenda parlamentar, em consonância com o artigo 37, XXI da Constituição;

II – vinculação substantiva ao artigo 10 da Lei 13005/2014, ao artigo 36 da Lei 8080/1990 e ao artigo 30 da Lei Complementar 141/2012, que definem parâmetros de aderência aos instrumentos de planejamento setorial dos recursos vinculados à educação e à saúde, respectivamente;

III – ônus de provar o regular emprego dos recursos públicos conforme o artigo 93 do Decreto-lei 200/1967 e artigo 2⁰, parágrafo único da Lei 12.257/2011, de modo a obrigar as entidades beneficiárias da emenda parlamentar a prestarem contas dos recursos recebidos.

Às anomalias no âmbito da despesa se soma o fato de que as emendas parlamentares aspiram, cada vez mais, influenciar direta e imediatamente o processo eleitoral. Assume-se, com isso, o risco de proliferação irrefreada de toda sorte de abuso de poder político com recursos do orçamento, na medida em que as regras foram redigidas por quem sabia exatamente o que estava fazendo para dificultar ao máximo os controles.

É incontroverso que o Congresso tem buscado fugir ao controle, evitando a rastreabilidade dos recursos públicos pulverizados nas emendas parlamentares. A bem da verdade, as emendas parlamentares, sobretudo sob a modalidade de transferências especiais (vulgarmente conhecidas como “pix orçamentário”) potencializam os riscos de apropriação privada dos recursos públicos, tanto para os que almejam apenas satisfazer ao seu curto prazo eleitoral, quanto para o que buscam, por vezes, enriquecer-se ilicitamente.

Como antídoto parcial a isso, cabe resgatar o dever universal de transparência inscrito na Lei de Acesso à Informação em relação às entidades privadas beneficiárias dos repasses, no que se incluem, por óbvio, também aqueles oriundos de emendas parlamentares:

“Art. 2º. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.”

A sujeição universal aos deveres da transparência e de prestar contas precisa ser resgatada, inclusive com segregação de contas bancárias nas entidades beneficiárias dos repasses, sob pena de que seja negado o próprio sentido republicano da Lei de Acesso à Informação. É urgente que exigirmos a plena sindicabilidade das emendas parlamentares, submetendo-as aos influxos constitucionais do controle que regem toda a Administração Pública.

Muito embora as emendas parlamentares, em sua concepção teórica, visassem oxigenar democraticamente o processo de elaboração da lei orçamentária, algumas delas passaram a se comportar como instrumento de captura de significativa parcela do ciclo decisório estatal.

Como divulgado aqui, o Tribunal de Contas da União já havia alertado que: “O Executivo e o Legislativo estão retirando recursos das despesas obrigatórias para cobrir as emendas dos parlamentares. Isso significa que a dívida vai aumentar e, para saldá-la, será necessário recorrer ao endividamento”.

Ora, postergar a aplicação dos recursos vinculados, parcelar o pagamento de precatórios como feito nas Emendas 113 e 114/2021, gerar fila de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, dar causa a passivos judicializados por deliberada omissão quanto à regulamentação e à efetiva oferta de serviços públicos essenciais que amparam a consecução dos direitos fundamentais são exemplos dessa burla à ordenação legítima de prioridades inscrita na Constituição e nas leis de planejamento setorial e orçamentário que direcionam o percurso das políticas públicas.

Quando despesas discricionárias (a exemplo das emendas parlamentares, independentemente de serem individuais — RP 6, de bancada — RP 7 ou de comissão – RP 8) passam à frente e, por isso, direta ou indiretamente implicam o inadimplemento das obrigações legais e constitucionais de fazer, isso deveria gerar uma presunção de irregularidade do gasto, que deveria demandar o ônus da prova, na forma do artigo 93 do Decreto-lei 200/1967.

O que o país tem vivido é um paulatino retorno ao regime pré-Constituição de 1988 de execução privada do orçamento público: impessoalidade, moralidade, publicidade e legalidade não têm sido referências fortes de controle, tampouco há qualquer limite fiscal ou eleitoral na distribuição subjetiva/coronelista de novas benesses em meio ao pleito.

É preciso, nesse sentido, ressituar o debate em seus pilares óbvios: sem planejamento, impera o caos de curto prazo eleitoral e o risco de apropriação privada dos recursos públicos. Até porque, sem controle e com opacidade, o diagnóstico da corrupção resta pragmaticamente impossível. Aliás, a maior corrupção é exatamente essa: o rebaixamento institucional que nega a própria possibilidade de haver controle, transparência, impessoalidade e limites da lei.

A flexibilização irrefreada do regime jurídico das emendas parlamentares ao longo dos anos não foi contida sequer pela declaração do STF de inconstitucionalidade do orçamento secreto. O problema não só persiste, como tem se agravado, já que agora envolve a expressiva cifra anual de R$ 50 bilhões.

A cada burla hermenêutica em relação às vedações eleitorais e ao dever de contingenciamento equitativo, a cada ato de fuga ao controle e de opacidade, a cada indicação do CNPJ da entidade beneficiária sem devido processo de dispensa ou inexigibilidade, a cada desprezo pelo planejamento setorial das políticas públicas, entre outras burlas, as emendas parlamentares aceleram o processo de rebaixamento da credibilidade do arcabouço constitucional e literalmente implodem a noção de “limite da lei”.

Infelizmente, porém, é improvável que esse venha a ser o diagnóstico da audiência de “conciliação” do 1º de agosto, razão pela qual o decorrente prognóstico tenderá a ser aquém do necessário para que se possa estruturalmente enfrentar o problema.

Sem respostas abrangentes e consistentes, ao fim e ao cabo, o risco é de que, mais uma vez, todo esse esforço institucional do STF venha a acabar, mais cedo ou mais tarde, em normalização dos abusos das emendas parlamentares e, com o perdão do trocadilho, em pizza… O maior indicativo de fragmentação, por ora, reside no fato de que o ministro Flávio Dino apartou, de plano, o debate do Pix orçamentário no presente exame de descumprimento do julgamento pela inconstitucionalidade do orçamento secreto.

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Injustificada exigência de autorização judicial na doação para incapazes

O assunto de que se tratará neste breve escrito tem grande importância prática, afetando a vida de inúmeras pessoas. Há uma norma, passível de críticas, que estava no inciso III, do artigo 427, do Código Civil de 1916, e que foi repetida no Código Civil de 2002: trata-se da regra que exige autorização do juiz, em casos de tutela e curatela, para aceitação de “heranças, legados ou doações, ainda que com encargos” — o inciso II do artigo 1.748 do Código Civil em vigor. A norma indica que inclusive nas doações puras e simples seria necessária a autorização judicial (quanto a isso, a codificação anterior era mais clara em seu artigo 427, inciso III: “Acceitar por elle heranças, legados ou doações, com ou sem encargos”).

No tocante à doação em favor de pessoas absolutamente incapazes, o Código Civil, no artigo 543, estabelece uma dispensa de aceitação, “desde que se trate de doação pura”. No Código Civil de 1916 a redação era outra: “Art. 1.170. Às pessoas que não puderem contratar, é facultado, não obstante, aceitar doações puras”. Discutia-se se a norma se voltava aos absolutamente incapazes, aos relativamente incapazes, ou a ambos. [1]

O que se deseja destacar é o fato de que, neste ponto, o Código parte do pressuposto de que a doação pura e simples não pode gerar nenhum tipo de prejuízo ao donatário, como afirmavam expressamente Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda. [2] Esta presunção, embora questionável, também não será posta em causa neste breve escrito: o que se coloca em questão é a coerência do nosso sistema.

Incoerência

A incoerência pode ser demonstrada com um caso comum na prática. Imagine-se que se pretenda fazer doação pura e simples a uma pessoa relativamente incapaz em razão de curatela (segundo a literalidade da lei vigente, a incapacidade de todos os maiores de idade seria relativa). Neste caso, o artigo 1.774 do Código Civil estabelece que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela. Isso atrairá a incidência do artigo 1.748, relativo à tutela, que dispõe que “compete também ao tutor, com autorização do juiz: II — aceitar por ele heranças, legados ou doações, ainda que com encargos”.

Como se pode notar, o artigo indica que a aceitação de doação, ainda que pura e simples, por parte de pessoas curateladas, dependeria não apenas da assistência de um curador, mas também de autorização judicial. Chega-se ao ápice da incoerência: se há doação em favor de absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação; porém, havendo tutela ou curatela, o relativamente incapaz não poderia aceitar uma doação pura e simples, nem mesmo com a assistência de seu tutor ou curador — exigir-se-ia, ainda, autorização judicial. Neste caso, supõe-se tanta possibilidade de prejuízo, que não bastam os juízos do relativamente incapaz e do seu curador: impõe-se, mais, a análise de um juiz, movimentando-se o nosso já tão assoberbado Poder Judiciário. E o pior: onera-se, sobremaneira, o incapaz.

Embora a norma pareça merecer urgente reparo, não houve proposta para a sua modificação no relatório final apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Pergunta-se: qual a razão para se exigir a aceitação expressa, mais a assistência do curador, mais a autorização judicial, quando, para o absolutamente incapaz, a própria aceitação é dispensada?

No estado do Rio Grande do Sul, a Corregedoria Geral de Justiça editou uma norma interessante, a pretexto de conciliar os artigos 1.748 e 543 do Código Civil, estabelecendo no artigo 547 de sua Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR-RS):

“§1º. É dispensada a prova de aceitação nas doações puras feitas em benefício de absolutamente incapazes. Os relativamente incapazes poderão aceitá-las. Em qualquer caso, porém, não consistirá óbice ao registro a inexistência de representação ou assistência destas pessoas no título apresentado. (…) §3º. Não se exigirá alvará judicial para a realização de doação pura e simples para menores, na forma do artigo 543 do Código Civil.”

Acredita-se que o artigo 1.748 deve ser reformado, passando a exigir autorização judicial apenas quando houver encargo. Aliás, a atividade dos notários poderia ser mais bem aproveitada, deixando-se ao Tabelião de Notas a incumbência de aferir se há risco de prejuízo ao incapaz: assim, exigir-se-ia em tais casos a escritura pública e, havendo verdadeira contraprestação, disfarçada de encargo, o Tabelião recusaria a prática do ato.

Este breve escrito não poderia ser finalizado sem uma análise, ainda que superficial, da origem da norma que exige a autorização judicial para aceitação de heranças, legados ou doações. Pontes de Miranda [3] indica como fonte desta regra uma lição do Conselheiro Lafayette, sobre a norma do Direito anterior ao Código Civil, de que compete ao tutor, com dependência de autorização do juiz, “5. Aceitar herança a benefício de inventário”. Comentava Lafayette, em nota de rodapé: [4]

A addição da herança é um quase contracto que póde trazer e ordinariamente traz onus, ainda quando a herança é deferida sem imposição de condições. (Cfr. Mourlon cit., n. 1.190)

A liquidação do activo e passivo importa trabalhos e despezas que talvez o restante dos bens não compense.

Note-se, porém, que a crítica de Lafayette era voltada à herança, não tendo relação com a doação. Os melhores comentários críticos que este estudante conseguiu encontrar, quanto ao tema, foram os de Estevam de Almeida, no volume VI da célebre coleção Manual do Código Civil, coordenada por Paulo de Lacerda, que, depois de destacar que o artigo 506 do projeto primitivo só tratava da aceitação de “doação e legados sujeitos a encargos”, ensinava: [5]

Pelo projecto primitivo, no seu nº 7, a acceitação de legados e doações, pelo pupillo, dependia de autorização judicial, si eram sujeitos a encargo. A revisão extra-parlamentar e a da Camara exigem a autorização judicial na acceitação de heranças, doações e legados, ainda que não sujeitos a encargo. Dir-se-á que é a lição de Lafayette (…). Mas Lafayette refere-se á acceitação de herança, não podendo importar em onus, embora deferida sem imposição de encargo. O mesmo não parece se possa dizer do legado não gravado, da doação pura. Um luxo de cautela, tal exigencia.

Em conclusão, parece contraditório considerar, no regramento da tutela e da curatela, que a doação — ainda que pura e simples — é tão perigosa para o donatário, a exigir intervenção judicial, enquanto no regramento do contrato de doação o mesmo ato se presume inofensivo. Acredita-se que este “luxo de cautela” deveria ser removido do Código Civil, por configurar um obstáculo excessivo para os incapazes, especialmente para as pessoas com deficiência.

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

__________________________________

[1] Para Pontes de Miranda, não importava se a incapacidade era absoluta ou relativa: em qualquer dos casos, o ato-fato de recepção da coisa doada importava aceitação (Tratado de Direito Privado. Tomo XLVI. 3. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, §5.016, 2, p. 225-228 – neste local, chega a defender que a desnecessidade de assentimento dos pais, tutor ou curador do relativamente incapaz, quando não há encargo, seria “comum aos sistemas jurídicos”, embora afirme que não haveria contradição entre os artigos 427, III e 1.170). Ainda segundo o tratadista, esta regra adveio do art. 626 do Código Civil espanhol (Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 286-287). Porém, este artigo só exige a intervenção de “representantes” em caso de doações “condicionais ou onerosas”.

[2] PONTES DE MIRANDA, Fontes e Evolução…, cit., p. 287; BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. Vol. IV. 6. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942, p. 335 e p. 336, n. 2).

[3] Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 2. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, [s.d.], p. 294 (§1.021, 5).

[4] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889, p. 284 e nota 4 (§ 153 – em outras edições, nota 103).

[5] ALMEIDA, Estevam de. InManual do Código Civil Brasileiro: Direito de Família (Arts. 330-484) – Vol. VI. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, p. 457 (transcrito como consta no livro).

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