STF vai reiniciar análise sobre multa de 150% por sonegação fiscal

Um pedido de destaque do ministro Flávio Dino interrompeu, na última sexta-feira (21/6), o julgamento de repercussão geral no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal discute a validade da multa de 150% aplicada pela Receita Federal em casos de sonegação, fraude ou conluio.

Com isso, a análise do caso será reiniciada em sessão presencial, ainda sem data marcada. Antes do pedido de destaque, o julgamento era virtual, com término previsto para a próxima sexta-feira (28/6).

Até então, apenas dois ministros haviam se manifestado. Ambos consideraram legítima a aplicação da multa de até 150% do débito tributário em casos de reincidência.

Multa de 150% é aplicada pela Receita em casos de sonegação, fraude ou conluio

Contexto

O recurso em questão contesta uma multa de 150% aplicada com base na antiga redação do inciso II do artigo 44 da Lei 9.430/1996, que previa tal sanção nos lançamentos de ofício em casos de sonegação, fraude ou conluio.

 

No último ano, essa lei foi alterada. Na redação atual, a multa para tais casos é de 100% do débito tributário. Se houver reincidência, a taxa sobe para 150%.

No caso concreto, a Receita multou um posto de combustível em 150%, por entender que o estabelecimento fazia parte de um grupo econômico, mas se separava das demais empresas com o intuito de não pagar impostos.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região validou a multa. Em recurso extraordinário, o posto alegou que o percentual tinha caráter confiscatório e argumentou que o inciso IV do artigo 150 da Constituição proíbe o uso de tributo com efeito de confisco.

Voto do relator

Antes do pedido de destaque de Dino, o ministro Dias Toffoli, relator do caso, já havia depositado seu voto, acompanhado por Alexandre de Moraes.

Para os dois ministros, até que seja aprovada uma lei complementar sobre o tema, os percentuais definidos em 2023 (100% para primeiras ocasiões e 150% em caso de reincidência) são os tetos para multas tributárias por sonegação, fraude ou conluio.

Eles propuseram que o entendimento tenha validade a partir da data da publicação da ata do julgamento e não seja aplicado a ações judiciais pendentes de conclusão até essa data.

Além disso, sugeriram que os entes federados ainda tenham competência para criar regras diferentes, desde que mais favoráveis ao contribuinte.

No voto, Toffoli considerou que a gravidade das condutas justifica o percentual elevado da multa, proporcional ao ilícito cometido.

De acordo com ele, não é justo penalizar no mesmo patamar um contribuinte que deixa de pagar ou de declarar um tributo sem intenção e outro contribuinte que sonega, frauda ou age em conluio.

Neste último caso, a punição deve ser mais severa. Para o relator, o percentual de 150% é razoável, porque reprime tais condutas.

O magistrado ainda destacou que a ideia de confisco envolve atingir uma parcela significativa do patrimônio ou da renda do contribuinte, capaz de ameaçar sua sobrevivência.

Em casos de sonegação, fraude ou conluio, há enriquecimento ilícito. Por isso, é difícil diferenciar a riqueza lícita da ilícita, e consequentemente saber se a multa ultrapassa as possibilidades do contribuinte.

Toffoli ainda ressaltou a necessidade de gradação da multa até o teto de 150%, “levando-se em conta a individualização da conduta do agente”.

No caso concreto, como o TRF-4 não mencionou reincidência do posto, o ministro considerou necessário reduzir a multa para 100% do débito tributário.

Clique aqui para ler o voto de Toffoli
RE 736.090

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Contratação de empresas sancionadas? Exceção da MP nº 1.221/2024

O § 2º do artigo 13 da Medida Provisória nº 1.221/2024, que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública, aponta que “na situação excepcional de, comprovadamente, haver apenas uma fornecedora do bem ou prestadora do serviço será possível a sua contratação, independentemente da existência da sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o Poder Público”.

Certamente um dos artigos mais polêmicos da referida MP, tendo em vista o habitual rigorismo adotado pelo legislador brasileiro, nos mais variados diplomas normativos, quanto à impossibilidade de contratação de empresas e demais licitantes que tenham sido, em processos sancionatórios, impedidos de contratar ou de participar de licitações com o Poder Público, tendência também seguida pelos órgãos de controle.

Trata-se de um dispositivo legal cuja aplicação é altamente restringida, não sendo, portanto, um autorizativo para que a Administração priorize contratação com empresas já penalizadas, tanto que o § 3º do mesmo artigo 13 da referida Medida Provisória exige a obrigatoriedade de prestação de garantia nas modalidades de que trata o artigo 96 da Lei nº 14.133, de 2021, que não poderá exceder a 10% do valor do contrato.

A contratação pública franqueada pela norma prevista no referido § 2º do artigo 13, por ser excepcional, tem de ser amplamente motivada, havendo uma circunstância fática exclusiva que deve ser comprovada na prática: ser a única fornecedora do bem ou a única prestadora do serviço.

Ocorre que a MP nº 1.221/2024 não menciona qual critério territorial deve ser levado em consideração quanto à correta interpretação do referido § 2º do artigo 13. É dizer, não há qualquer menção de como proceder à comprovação de ser a empresa contratada a única fornecedora do bem ou a única prestadora do serviço, razão pela qual a motivação dada pela Administração Pública pode, posteriormente, ser considerada inservível.

A insuficiência da motivação, nesse cenário, é um tanto mais gravosa, porque tem, inclusive, o potencial de atrair uma tipificação penal, especialmente o crime de contratação direta ilegal (artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro).

Partamos para uma situação em concreto. Um município do interior do estado do Rio Grande do Sul pretendeu adquirir um bem de um pretenso fornecedor único, assim considerado nos limites territoriais do mesmo município, o qual fora, em outra quadra sancionatória, impedido de contratar com o Poder Público, nos termos previstos na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Claramente, não restam dúvidas de que o possível licitante se encontra apenado.

Entretanto, suponhamos que no Rio Grande do Sul (ou na vizinha Santa Catarina) existam outros fornecedores aptos a contratarem com o município, porém, apesar de não terem sofrido quaisquer sanções, possuam restrições trabalhistas e fiscais, além de um preço significativamente superior ao preço praticado pelo licitante que tenha sido sancionado, seja quanto ao impedimento ou quanto à suspensão.

Considerando tais apontamentos, quem contratar?

Percebe-se, portanto, que a MP nº 1.221/2024 não elimina tais questionamentos de difícil solução consensual e, ao tempo em que contempla a possibilidade de contratação, não exclui possível ilicitudes (penais, cíveis e administrativas).

Dito isso, para que seja factível efetivar a contratação com empresas impedidas de contratar ou suspensas de licitar não devem restar quaisquer alternativas ao gestor público, razão pela qual o motivo da escolha deve ser precedido de fundamentação que demonstre, cabalmente — e após método excludente —, restar apenas um licitante.

Cabe ao gestor reunir elementos mínimos que evidenciem a restrição no fornecimento do bem ou serviço objeto da contratação, bem como a comprovação de haver uma única (e disponível) fornecedora, além de ser obrigatória a relação de pertinência entre o objeto licitado e o enfrentamento da situação emergencial ou de calamidade.

Evidentemente, é imprescindível que os órgãos de controle devem ponderar os motivos pelos quais se efetivou a contratação, não se descuidando de agravantes específicas, como a negativa de um ou mais fornecedores em concretizar a relação contratual com o Poder Público.

Pragmaticamente, o controlador tem o dever legal de avaliar que nem todos fornecedores de bens ou prestadores de serviço público encontram-se obrigados a contratarem com a Administração, fato este que, em situações de calamidade ou emergência, são acentuados pela demanda oriunda da iniciativa privada, desgarrada da burocracia que chicoteia — e, necessariamente, estorva — o Poder Público.

Fonte: Conjur

Limites do poder judicial na democracia: o óbvio que ainda precisa ser dito

No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem sido intensamente discutida devido ao seu papel mais ativo nos últimos anos. As decisões a respeito das eleições de 2022, Inquérito das Fake News, 8 de janeiro, uso da tese de legítima defesa da honra no júri, prisão em segunda instância… são vários os exemplos de temas que geraram intensas discussões na imprensa, entre especialistas e na sociedade civil.

O ponto comum de todas essas questões é: qual o papel do Judiciário e qual é o limite do seu poder? Qual a linha que difere a atuação judiciária republicana, que respeita a separação de poderes, e o ativismo judicial?

Há quem defenda que não existe ativismo no Brasil, e que o papel do Poder Judiciário é de ser luz para guiar o povo, fazendo avanços democráticos que as vias legislativas não permitem, ou seja, defende-se uma postura iluminista do Judiciário, que deveria proteger direitos fundamentais e promover justiça, especialmente quando os demais Poderes falham (Barroso, 2019).

A crítica não tarda e nem é nova. A defesa do “papel iluminista” das cortes constitucionais sugere uma ausência de limitações externas, confiando apenas na vontade dos juízes – os iluminados.

É bom lembrar

Obviamente que não é possível defender, de igual forma, que o papel dos juízes se limita a ser uma máquina de aplicação da lei. O Judiciário é um espaço de tensionamentos e construções sociais, o que, por isso mesmo, exige um estudo atento de suas funções e limitações. Importa lembrar que não existe texto totalmente descolado da norma, mas a interpretação judicial não pode ser arbitrária.

O óbvio que continua sendo necessário reafirmar é: a interpretação deve estar sempre vinculada à lei.

O problema surge quando a expansão resulta em “decisionismos”, em que as decisões judiciais se baseiam mais na vontade individual dos magistrados do que em princípios jurídicos sólidos. Essa abordagem, embora pretenda corrigir falhas representativas, corre o risco de se distanciar de uma interpretação estritamente legal em favor de considerações morais ou pessoais.

Vácuo de representação

A crise de representação enfrentada pelas democracias modernas é um fator chave para compreensão da expansão do Poder Judiciário. Muitos cidadãos sentem que não são ouvidos ou que seus representantes não agem em seu interesse, gerando uma desconfiança crescente nas instituições democráticas. Essa desconexão incentiva a busca por respostas nas decisões judiciais, criando a ideia de que o STF (e as instâncias infraconstitucionais) é uma espécie de guardião mais próximo dos direitos individuais e coletivos, o que, ironicamente, tem um potencial enorme de violar esses mesmos direitos a eles confiados.

Além disso, esse tensionamento entre os poderes – que tem um sem-número de outras razões além dessas explicitadas aqui – mostra a debilidade das funções governamentais e sua falha em cumprir as promessas constitucionais pós 88.

Esse vácuo de representação cria espaço para que o Judiciário assuma um papel mais ativo e interventivo, na tentativa de suprir as falhas dos outros Poderes. No entanto, a história recente demonstra que essa expansão tem ocorrido sem o devido controle democrático, libertando-o das amarras constitucionais.

Essa crise de representação, uma das causas “de baixo” dos “poderes selvagens” que Ferrajoli enumera, é alimentada e retroalimentada pela própria incapacidade das instituições em responder às demandas sociais de maneira efetiva, do que se aproveitam alguns setores da magistratura para ocupar esse espaço de poder, decidindo de acordo com suas consciências e valores.

Salvadores da pátria

Ainda que se argumente que há pautas necessárias, que jamais avançariam sem a intervenção do Judiciário, é preciso também reconhecer que o “ativismo do bem” também é “ativismo do mal”, especialmente quando degenera para deturpar, distorcer e negar direitos fundamentais, gerando a revolta e desconfiança do jurisdicionado.

Quando isso ocorre, o que se vê é uma verdadeira autofagia do Poder Judiciário. Quando expande, degenera. Quando cresce, reduz confiança. Quando é preponderante, ameaça o próprio poder.

Ter um Judiciário “pop” — cujas pautas são constantemente discutidas na imprensa e seus membros estão assiduamente concedendo entrevistas, que são replicadas e comentadas infinitamente nas redes sociais — tem um preço alto para a democracia: cria um imaginário de juiz herói, apresentado como salvador da pátria, como ocorreu, por exemplo, no caso do mensalão com o então ministro Joaquim Barbosa e com Sergio Moro na Operação Lava-Jato.

Incomoda a visão de que essas figuras heroicas sejam apontadas como necessárias – e incensadas – para tutelar o povo, como se este não soubesse o que é melhor para si.

O populismo, como ideia de chefe como encarnação da vontade popular, ou seja, pela sua personalização – um dos poderes selvagens “do alto” – mostra que não apenas o chefe do Executivo pode se utilizar dessa forma de governar. O populismo se infiltra na esfera judicial, tornando os limites constitucionais um obstáculo ilegítimo à ação do poder daqueles que utilizam desse artifício.

Mais uma ironia. O “guardião e intérprete da Constituição” se descolando da própria em prol de um dito avanço civilizacional.

Constranger os excessos

Um Judiciário que atua como instância moral suprema, escapando aos controles democráticos essenciais, tenta se mostrar como um “superego da sociedade” (Maus, 2000), tornando crucial que a sociedade civil constantemente constranja os excessos para garantir que o Judiciário não se transforme em uma instância hegemônica, mas sim uma peça equilibrada dentro da democracia.

Não se quer, com essa constatação, sustentar a volta do juiz “boca da lei”, mas apontar o perigo da quebra dos limites constitucionais na função de julgar, permitindo que os magistrados apliquem, como regra, seus valores e ideologia, denunciando a elevação destes a fontes do Direito, transformando a esfera judicial em um jogo de azar.


Referências:

ABBOUD, Georges. Direito Constitucional pós-moderno. São Paulo: Thompson Reuters, 2021. E-book.

ABBOUD, Georges. Ativismo Judicial: os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situações e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004

BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalismo Democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 9ª ed, São Paulo: SaraivaJur, 2022. E-book.

FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexander Araújo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014.

MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. In: Novos Estudos, nº 58, 2000, p. 183-202.

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Ao limitar efeitos da confissão no campo penal, STJ ajuda a reduzir erros judiciários

decisão do Superior Tribunal de Justiça de limitar os efeitos da confissão é positiva, pois o Brasil só terá menos erros em casos penais quando exigir provas mais sólidas para prender, indiciar, denunciar e condenar, de acordo com o entendimento dos especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Na semana passada, a 3ª Seção da corte aprovou posições jurisprudenciais destinadas a limitar os efeitos da confissão da pessoa suspeita de um crime no destino da investigação e do processo penal.

STJ sede prédio
STJ vem atuando para melhorar a qualidade das provas no processo penal, de acordo com especialistas no assunto  – Gustavo Lima/STJ

Ficou decidido que a confissão extrajudicial (aquela feita antes do processo) só terá alguma validade se for feita em ambiente institucional (delegacia). Ainda assim, não servirá para embasar uma decisão judicial, apenas para indicar possíveis fontes para investigação.

Já a confissão judicial (feita perante o juiz) poderá ser usada na sentença para corroborar as provas produzidas no processo, mas não para, isoladamente, levar à condenação do réu.

Avanço, ainda que pequeno

A decisão do STJ representa um avanço no processo penal, mas não resolve o grande problema, que é cultural, segundo Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

“Nós só vamos ter processos de qualidade, o que significa ter uma margem pequena de erro, quando entendermos que prova se faz no processo, não na investigação. Porque o que se faz no processo é com contraditório, independentemente de o réu confessar ou negar o fato.”

De acordo com Lopes Jr., o Brasil precisa se libertar da ideia autoritária e inquisitória de que a confissão é “a rainha das provas”. Hoje, a confissão não é suficiente para provar a materialidade do crime, nem a autoria. Portanto, não exime o Estado do dever de investigar, diz o professor.

“É preciso combater a ideia de que a confissão tem algum valor probatório, pois isso fomenta a cultura de torturar, de pressionar pessoas para obter a confissão. Agora, caso se entenda a confissão apenas como um meio de defesa, pode ser positivo. Se a pessoa confessa algo que possa servir para se defender, ou seja, apenas um indicativo para que se investigue, tira-se o peso e reduz-se o nível de violência para obter a confissão”, opina o processualista.

Qualidade das provas

A limitação dos efeitos da confissão é uma medida que pode melhorar a qualidade das provas dos processos penais, afirma Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“A admissão da confissão extrajudicial, no local dos fatos, confirmada posteriormente pelos policiais, diz respeito à validade do depoimento dos próprios policiais. Em realidade, trata-se de depoimento policial, e não de confissão, depoimento policial por ‘ouvir dizer’. O debate se insere na linha do necessário estabelecimento de critérios para validação do testemunho policial, o que o próprio STJ já está, corretamente, realizando. O impacto é grande e reforça a posição de que o depoimento policial não pode ser tomado como prova suficiente para condenação.”

É próprio da lógica inquisitória que a confissão ou os testemunhos sejam suficientes para a condenação, diz Carvalho. Devido ao peso da confissão, ressalta ele, isso estimula todas as formas de adquiri-la, incluindo a tortura. Por isso, é fundamental e democrático que os tribunais exijam provas técnicas de qualidade, o que deve incentivar o investimento em tecnologia nas polícias e no Ministério Público, opina o professor.

Salo de Carvalho também afirma que estabelecer standards mínimos, como o de que a confissão judicial só serve para corroborar as provas já produzidas, reforça o dever de fundamentação dos magistrados e “cria blindagens contra decisionismos e subjetivismos”.

“Qualquer manifestação deve ser amparada por provas de corroboração autônomas e independentes. Por outro lado, a atividade do juiz não é livre, no sentido de que pode concluir algo apesar da prova. A sentença deve guardar coerência com a prova produzida e, no processo penal, essa prova deve garantir certeza fática, o que não se tem apenas com a confissão.”

Memórias falsas

A exigência de que a confissão extrajudicial ocorra em um ambiente institucional assegura o direito à não autoincriminação, avalia Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo.

“Não era incomum que alguém, por exemplo, preso em flagrante delito chegasse à delegacia e dissesse ‘vou me reservar o direito de permanecer calado’ quando alertado pela autoridade policial. Mas, antes disso, os policiais militares que fizeram abordagem na rua o interrogaram informalmente. E, nesse caso, embora a pessoa presa dissesse em um ambiente institucional que desejava permanecer calado, os policiais eram ouvidos e diziam o que eles teriam ouvido daquele investigado, o que era uma forma de burlar o direito à não autoincriminação.”

Isso também afasta a presunção de veracidade do depoimento dos policiais, algo que não se justifica do ponto de vista epistêmico, conforme Badaró. Primeiro porque a memória humana é falha e, na maioria das vezes, os erros são inocentes, e não decorrentes de má-fé, segundo o docente.

“O policial participa de várias ocorrências semelhantes. Quando comparece em juízo para depor, muito tempo depois, pode lembrar do fato de forma diferente do que aconteceu devido a fatores intercorrentes, confusões com eventos posteriores, dificuldades de evocação daquele acontecimento ou problemas na percepção no momento que ele se realizou. O depoimento do policial, assim como o de qualquer ser humano, deveria ser insuficiente para qualquer conclusão sobre o fato”, opina o processualista.

Além disso, destaca ele, o entendimento do STJ também evita a má qualidade das investigações diante do que pode ser denominado de “visão de túnel” — por exemplo, quando os policiais se prendem a uma confissão e descartam outras linhas de apuração. Fora que há confissões falsas, como quando alguém busca proteger outro acusado.

“Com essa decisão, o STJ continua a promover uma verdadeira revolução epistêmica em termos de prova no processo penal. Foi assim com o reconhecimento pessoal e fotográfico, com as buscas pessoais, com as buscas domiciliares, com a cadeia de custódia da prova digital, e agora com a confissão. A corte vem procurando fazer um diálogo importantíssimo entre o regime legal da prova, a epistemologia e ciências afins, como psicologia cognitiva e outras áreas do conhecimento, para que tenhamos decisões mais bem fundamentadas, reduzindo a chance de erros judiciários e de condenações de inocentes”, opina Badaró.

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Juiz não pode decretar prisão preventiva na sentença sem requerimento do MP

Desde a entrada em vigor da lei “anticrime”, em 2019, o sistema acusatório não permite mais a decretação da prisão cautelar de ofício — seja na conversão da prisão em flagrante, durante a tramitação da ação penal ou na sentença condenatória. A prisão preventiva depende sempre de requerimento prévio do Ministério Público, do autor da queixa-crime ou do assistente de acusação.

Prisão, presídio, grades
Juiz decretou prisão preventiva de ofício na sentença condenatória

Assim, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, revogou na última sexta-feira (14/6) uma preventiva que havia sido decretada sem requerimento do MP. No processo, a defesa ainda apontou que os crimes foram cometidos em 2016 e que o réu permaneceu em liberdade desde então.

O homem foi condenado a três anos e seis meses de reclusão e a dois anos e dois meses de detenção em regime fechado por posse irregular de arma de fogo de uso permitido e disparo em local habitado.

Antecedentes criminais

Na sentença, o juiz decretou a prisão preventiva de ofício. Ele ressaltou que o acusado era reincidente e tinha diversos antecedentes criminais.

Os advogados Lucas Ferreira Mazete Lima e Núbia Martins da Costa, responsáveis pela defesa, tentaram a anulação da decisão pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mas o pedido foi negado.

No STJ, o ministro Reynaldo da Fonseca notou que o MP pediu apenas a condenação e, após o trânsito em julgado, a suspensão dos direitos políticos do réu — e não a prisão preventiva.

O magistrado ainda ressaltou que a decretação da prisão na sentença, “sem a apresentação de fato novo a justificar a instauração da custódia, revela-se ilegal”.

Isso porque, conforme precedente da 6ª Turma do STJ, a prisão cautelar exige “a contemporaneidade dos fatos justificadores dos riscos que se pretende com ela evitar”.

Clique aqui para ler a decisão
HC 920.825

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Aprovada sem dados sobre impacto no DF, nova lei limita eleição de foro

Sancionada no último dia 5, a Lei 14.879/2024 alterou as regras sobre eleição de foro para ações judiciais relacionadas a contratos privados. E os advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico entendem que a norma restringe a liberdade das partes de escolher o melhor local para resolver eventuais disputas.

A proposta foi concebida com o pretexto de desatolar a Justiça do Distrito Federal, mesmo sem dados que corroborassem tal necessidade. Profissionais que trabalham com Direito Civil, Processual e Empresarial percebiam, na verdade, uma preferência muito maior por São Paulo, que não era contestada.

O texto da lei diz que a escolha do foro precisa “guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação” — exceto em contratos de consumo nos quais o foro eleito seja favorável ao consumidor.

Com a nova regra, se as partes escolherem um foro aleatório, que não cumpra tais requisitos, o juiz poderá, de ofício, declinar a competência para analisar a ação e enviá-la a outra comarca.

SP fora da rota

De acordo com a experiência de advogados que lidam com casos do tipo, especialmente envolvendo empresas, os clientes tinham preferência por determinadas comarcas. A Justiça de São Paulo era um dos alvos prediletos.

A advogada Renata Cavalcante de Oliveira, sócia do Contencioso Cível do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, conta que muitos clientes de outros estados costumavam eleger foros em São Paulo, devido principalmente à “celeridade” e à “especialidade” das varas.

Além disso, segundo ela, o Tribunal de Justiça paulista “tende a ser mais pró-contratual”. Ou seja, as decisões costumam ter “menos surpresas”. E a nova lei limita essa opção.

Carlos Braga, sócio da área de resolução de disputas do escritório Cescon Barrieu, afirma que existia, no geral, uma “tendência de eleição de foro em São Paulo” nos casos de empresas estrangeiras.

O advogado indica que isso é especialmente forte com relação às Varas Empresariais do estado, “reconhecidas por serem especializadas, técnicas e eficientes” — em outras palavras, “dão muita segurança para as partes”.

Mas, mesmo empresas brasileiras, principalmente de maior porte, tinham costume de eleger a Justiça paulista. É o que aponta Giuliana Schunck, sócia de Contencioso Cível do Trench Rossi Watanabe.

Isso acontecia porque o estado tem “uma boa Justiça, com Varas Empresariais bastante especializadas, que se destacam pela capacitação e sofisticação dos juízes”. Tais magistrados “estão acostumados a decidir casos grandes e complexos, o que muitas vezes se traduz em bons julgamentos (bem técnicos)”.

Assim, o Judiciário de São Paulo era bastante escolhido como “um foro isento”, mesmo quando não era o local de domicílio de qualquer uma das partes.

A preferência também ocorria para evitar insegurança jurídica. Oliveira exemplifica: em Minas Gerais, a comarca de Belo Horizonte possui a Central de Cumprimento de Sentença (Centrase), especializada nesta fase do processo para casos cíveis.

“Essa vara é super abarrotada”, diz a advogada. “As coisas lá não andam”. Por isso, quando havia possibilidade de escolher foro em MG ou SP, ela sempre optava por levar os casos para São Paulo, para evitar que as ações ficassem travadas na Centrase mineira.

De acordo com Diego Herrera de Moraes, sócio de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho, o impacto negativo da nova lei é amplo e atinge não só o Judiciário paulista.

Ele acrescenta que a escolha do foro levava em conta não apenas a especialização das varas, mas também o “nível de congestionamento do tribunal”, a “estabilidade da jurisprudência” e outros fatores.

Já Braga acredita que, com a nova regra, haverá “um novo impulso para as arbitragens” — outra alternativa que as partes têm no momento da contratação para encaminhar eventuais disputas relacionadas ao negócio.

Liberdade afetada

Oliveira diz que a nova legislação “limita a liberdade das partes de colocar o foro que entendem como o melhor para decidir um eventual litígio”.

Na sua visão, isso viola a Lei da Liberdade Econômica, segundo a qual “os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes”.

Já Moraes entende que “a nova lei vai na contramão do espírito do Código de Processo Civil, que permite de forma ampla a realização de negócios jurídicos processuais”.

Schunck concorda que a mudança promovida pela nova lei foi “ruim para o ambiente dos negócios”. De acordo com a advogada, a Lei 14.879/2024 não é positiva porque acabou com a possibilidade de escolha do foro mais conveniente e isento.

Para ela, a regra que obriga a escolha do foro de domicílio de uma das partes pode restringi-las a varas menos especializadas ou mesmo “com mais vieses, que podem levar a algum tipo de proteção (ainda que inconsciente) para a empresa local”.

O advogado Júlio César Bueno, sócio do Pinheiro Neto Advogados e coordenador da área contenciosa do escritório, considera que “a alteração contraria a tendência de consensualidade e contratualização do processo, estabelecida pelo CPC e pela Lei de Liberdade Econômica”.

Outro problema, segundo ele, é a incerteza gerada pela indefinição quanto à vara para o qual o processo deve ser enviado caso o juiz decline a competência. Bueno ainda ressalta que “já existia previsão legal para o controle de ofício de cláusulas abusivas pelo magistrado”.

Já Moraes acredita que a norma também gera insegurança jurídica aos contratos “sujeitos à cláusula arbitral, em especial nos casos em que a arbitragem é antecedida ou sucedida de disputa perante o Poder Judiciário”.

Isso porque, agora, há uma “incongruência” entre a escolha do foro arbitral — que ainda é ampla, pois não sofreu alterações — e a eleição do foro estatal (judicial), restringida pela nova lei.

Forum shopping em Brasília?

A Lei 14.879/2024 foi aprovada com a justificativa de evitar a sobrecarga de processos na Justiça do Distrito Federal. O deputado federal Rafael Prudente (MDB-DF), autor do projeto de lei aprovado, disse ter identificado nas comarcas locais muitas ações com partes de outros estados.

Já a deputada Érica Kokay (PT-DF), relatora do PL na Câmara, apontou que a Justiça distrital acumulava tais processos porque é mais rápida e tem custas mais baratas.

A justificativa da proposta, assinada por Prudente, dizia que o TJ-DF vinha “recebendo uma enxurrada de ações decorrentes de contratos que elegeram o Distrito Federal como foro de eleição para julgamento da causa, mesmo sem qualquer relação do negócio ou das partes com a localidade”.

Mas, na opinião de Schunck, a alegação de que a Justiça brasiliense estaria atolada não é suficiente para “uma mudança tão importante e impactante para os negócios do país inteiro”.

A advogada também afirma que as empresas do Sul e Sudeste, com as quais ela costuma lidar, geralmente optam pelos foros de São Paulo ou outros da região, e não do Distrito Federal.

Se a ideia da lei é evitar a prática do forum shopping — ou seja, a escolha dos foros mais favoráveis aos interesses da parte —, Bueno alerta: “Não há evidências empíricas de que o congestionamento do Judiciário seja causado pela eleição de foro”.

Em dezembro do último ano, quando o PL ainda tramitava no Congresso, o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) se manifestou de forma contrária à proposta. A entidade apontou justamente a falta de estudos e estatísticas que comprovassem “congestionamentos processuais” ou a escolha reiterada de varas e tribunais com “melhor desempenho”.

Segundo o IBDP, “pode até existir a preferência de empresas estatais federais pelo foro de Brasília, mas nenhuma tendência similar é visível a olho nu na iniciativa privada”. O instituto apontou a inexistência de uma “rota migratória única” ou de “oásis jurisdicionais que atraiam os litigantes aos milhares”.

Na justificativa do PL de Prudente, não havia qualquer dado sobre o suposto acúmulo de processos na Justiça do DF em função de cláusulas de eleição de foro.

Questionada pela ConJur, a assessoria de imprensa do deputado disse não ter um levantamento do tipo. Já o TJ-DF afirmou que não é possível levantar tais dados, pois as estatísticas são feitas com “base nas tabelas processuais unificadas do Conselho Nacional de Justiça”.

Injustiça injustificada

Durante a cerimônia de sanção, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, defendeu a nova lei e criticou a regra que valia até então: “Se o particular puder escolher o foro, ele penaliza a parte contrária, que terá de se deslocar, ou penaliza os tribunais mais eficientes”.

Mas Oliveira explica que a lógica do deslocamento não se aplica, pois a escolha do foro ocorre apenas em comum acordo entre as partes, no momento da assinatura do contrato.

Isso é diferente da situação em que uma das partes aciona a Justiça e a outra é pega de surpresa. Nesses casos, em que o autor teve tempo para se preparar, há critérios mais benéficos à parte contrária: o foro deve ser o local de domicílio do réu ou o local de cumprimento da obrigação.

A advogada discorda que a regra antiga penalizava a parte contrária, porque a cláusula de eleição de foro é estabelecida com antecedência. “Não pega ninguém de surpresa”, pontua.

De acordo com Schunck, na prática, “as partes escolhiam de livre vontade” e o foro podia ser o de domicílio de uma delas. Nesses casos, a parte que não fosse do mesmo local “já sabia de antemão que teria que se deslocar”.

Da mesma forma, era possível escolher um local em que nenhuma das partes estivesse localizada, o que seria mais “imparcial”.

Braga ressalta que o foro eleito não é necessariamente mais benéfico para o autor. “Quem tem mais poder de barganha no momento do contrato vai puxar para onde acha melhor”, assinala.

Schunck ainda lembra que, com o processo eletrônico, praticamente tudo é feito de forma virtual e o deslocamento quase não acontece.

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Destinatário da prova não é mais apenas o juiz

O destinatário da prova não é mais apenas o juiz [1]. Essa afirmação fica exposta com a leitura do disposto no artigo 381 do Código de Processo Civil e, também, o parágrafo segundo do artigo 382 [2]. A prova poderá ser produzida sem ter o juiz como destinatário, pelo simples fundamento de poder viabilizar conciliação entre as partes (artigo 381, II) ou para justificar ou evitar o ajuizamento da ação (artigo 381, III).

O juiz, que não é o único destinatário, não poderá até mesmo se pronunciar sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas (artigo 382, §2º). Destacamos que essa mudança de paradigma de não ser o juiz o único destinatário da prova se aplica em qualquer processo e não somente da produção antecipada da prova (embora seja ela um ótimo exemplo dessa comprovação).

Pé de igualdade

Assim, o direito constitucional de serem assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, artigo 5º, LV), não é apenas na visão do réu, mas também do autor. Deve a ele também ser assegurado o amplo direito de produção de provas.

O “direito à prova” é um desdobramento do direito de ação e de defesa e a ausência da prova tornaria a parte indefesa. Assim, quanto “maior ênfase se dá ao poder do órgão judicial, menor relevância se tende a dar ao papel das partes em relação à atividade probatória” [3]. As partes, dessa forma, são colocadas em pé de igualdade, ou até de prevalência, em relação ao juiz, quanto à faculdade de determinar o recolhimento do material probatório [4], é garantido o direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado [5].

Tem-se, então, que “a prova” passou a ser considerada também como uma garantia [6].

Destacamos que, como certamente o “momento central do processo” é a atividade probatória (a prova é a “alma do processo” [7], “parte decisiva” [8]), como é reconhecido um direito à prova para as partes, a atividade deve se concentrar em suas mãos, pois sãos elas, as partes, titulares do direito à prova e os sujeitos principais da sua produção [9].

É, portanto, inquestionável o direito fundamental autônomo à prova.

Máxima eficiência da prova

Frisamos que a análise de indeferimento do pedido de produção da prova, no processo principal indenizatório ou até mesmo na produção antecipada da prova, poderá ser feito pelo juiz. Esse é o disposto no artigo 370, em seu parágrafo único [10], a respeito de provas inúteis ou meramente protelatórias. Dessa maneira, há um princípio de eficácia jurídica da prova legal [11]. A prova produzida, se produzida, deve ser eficaz, do contrário será inútil.

Necessário, então, uma “máxima eficiência da prova” (princípio este fundamental) [12], ou máxima potencialidade e efetividade possível [13]. Desse modo, toda prova deferida deverá ter potencialidade de ser útil e eficiente e, se deferida, “traz intrinsecamente garantia a maximização da utilidade” [14].

O fundamento pelo indeferimento deve ser pela inutilidade da prova ou por ser meramente protelatória, não com o fundamento de ser a prova requerida não necessária, pois tendo o juiz como destinatário das provas, não entende ele ser necessário. São argumentos completamente distintos.

Bentham já afirmava que “a exclusão de toda prova é negativa de jurisdição” [15].

indeferimento da produção probatória pela inutilidade pode ser, mesmo que realizado pelo julgador, feito de forma técnica, sem subjetividade, e com a devida fundamentação necessária (artigos 375 e 489, §1º).

Linha tênue

A prova pode ser ainda indeferida por ser fato notório, afirmado por uma parte e confessado pela parte contrária, admitidos no processo como incontroversos, em cujo favor milita a presunção legal de existência ou de veracidade (CPC, artigo 374). Contudo, mesmo fatos notórios, na dúvida, podem ser provados [16].

Assim, o indeferimento da produção da prova pode ter como fundamento a sua inutilidade ou superfluidade [17] diante de elementos técnicos do processo – para o deferimento, a prova precisa ser relevante. Mesmo assim, trata-se de linha muito tênue, pois a prova, mesmo aparentemente inútil, pode guardar certas peculiaridades para seu deferimento, sendo qualquer indeferimento, nesse sentido, um cerceamento de defesa.

Há um direito fundamental de não serem utilizados conhecimentos privados do julgador no julgamento e em questões probatórias (salvo fatos notórios, artigo 374) [18]. Esse direito tem clara ligação com ampla produção da prova e imparcialidade.

E destacamos que essa análise deve ser fundada em juízo hipotético pelo julgador, sendo um julgamento ex ante para definir a admissibilidade probatória, sendo a regra a admissão e a exceção a não admissão. Como defendido por Badaró, deve haver um regime de inclusão, ou seja, a regra é pelo deferimento (na dúvida a prova deve ser deferida) [19].

Destacamos, por fim, que deve o juiz pautar-se na persuasão racional, em que não se admite a utilização de conhecimentos privados. O legislador restringiu “o livre convencimento” (CPC/1973, artigo 131) ao retirar do Código a expressão “livremente” (CPC, artigo 371 [20]). Prestigia-se, desse modo, a persuasão racional e a devida “fundamentação na apreciação da prova”. O convencimento deve ser motivado, não pode ser livre e nem pode ser íntimo [21] e, também, não um “momento místico” [22].


Referências

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[1] Ver pesquisa completa em FUGA, Bruno Augusto Sampaio. Produção antecipada da prova: procedimento adequado para a máxima eficácia e estabilidade. Londrina/Pr. Editora Thoth. 2023.

[2]  2º O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas.

[3] YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova. Malheiros Editores. 2009, p. 121 e 136.

Ver pesquisa sobre “maior controle da atividade cognitiva do órgão julgador” em: AUILO, Rafael Stefanini. A valoração judicial da prova no Direito Brasileiro / (…), 2021.

[4] ZANETI Júnior, Hermes. O problema da verdade no processo civil: modelos de prova e de procedimento probatório. Revista de Processo | vol. 116/2004 | p. 334 – 371 | Jul – Ago / 2004, p. 11.

[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 15, 1998, p. 12.

[6] LOPES, João Batista; LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Modelo constitucional de processo, direito de defesa e paridade de armas. Revista de Processo. vol. 331. ano 47. p. 17-25. São Paulo: RT, setembro 2022, p. 1.

[7] SOUZA, Joaquim José Caetano Ferreira e, 1756-1819 Primeiras Linhas sobre o Processo Civil – Tomo I 1880, II 1879, III 1879 e IV 1880. /Joaquim José Caetano Ferreira e Souza. – Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 144.

[8] BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre as formalidades do processo civil – 2ª edição – 1858/ José Antonio Pimenta Bueno. – Londrina, PR: Thoth, 2021, p. 111.

[9] BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal / Gustavo Henrique Badaró. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 45.

[10] Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

[11] DEVIS ECHANDÍA, Hernando. Teoría general de la prueba judicial. Buenos Aires: Zavalia, 1976, p. 117. Tomo I.

[12] Sobre o tema, ver em FERREIRA, William Santos. Transições paradigmáticas, máxima eficiência e técnicas executivas típicas e atípicas no direito probatório. (…), 2014, p. 186.

[13] CAMBI, Eduardo. O direito à prova no processo civil. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 34, 2000, p. 148.

[14] FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível / William Santos Ferreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 186.

[15] “La esclusion de toda prueba sería la esclusion de toda justicia”. BENTHAM, Jeremy. Tratado de las pruebas judiciales – 2ª edição, 1847. Jeremy Bentham. Londrina, PR: Thoth, 2020, p. 44. (Coleção Clássicos de Processo Civil em Domínio Público, organizadores da Coleção: Antônio Pereira Gaio Júnior, Bruno Augusto Sampaio Fuga, William Santos Ferreira).

[16] Defendendo esse tema: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. Volume 1. 3ª edição correta e atualizada. Max Limonad, São Paulo, 1953, p. 157.

[17] “supérflua é aquela que tem o mesmo objeto de outra prova já produzida no processo” (…) “irrelevante é a que tem por objeto fatos que não integram o fato jurídico ou fato principal que constitui a regiudicanda” BADARÓ, Gustavo. Direito à prova e os limites lógicos de sua admissão: (…), 2015, p. 550; ver também em BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal (…), 2019, p. 161 e ss.

[18] “concepção racionalista da prova (que rechace a vinculação entre prova e convencimento puramente psicológico do juiz”.”. VÁZQUEZ, Carmem. Valoração racional da prova / (…), 2021, p. 81.

[19] BADARÓ, Gustavo. Direito à prova e os limites lógicos de sua admissão: os conceitos de pertinência e relevância. (…) 2015, p. 550; assim também em VÁZQUEZ, Carmem. Valoração racional da prova (…), 2021, p. 119.

[20] Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Sobre o tema, Barbosa Moreira já afirmava que “a rigor, talvez nem seja próprio aplicar o adjetivo ‘livre’, consoante não raro se faz, ao convencimento do juiz”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Alguns problemas atuais da prova civil. Revista de crítica judiciária. Imprenta: Rio de Janeiro, Forense, 1987. n. 4, p. 109–126, out./dez., 1987, p. 127; “Mas liberdade de valoração não significa arbítrio”, MOREIRA, José Carlos Barbosa. Provas atípicas. Revista de processo / Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Imprenta: São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, p. 125.

[21] DIDIER Jr, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, (…), 2015, p.102, v. 2 Sobre o tema: “o juiz não pode servir-se livremente dos fatos assim percebidos para suas deduções, senão que deve utilizá-los de acordo com determinadas regras. CARNELUTTI, Francesco. A prova civil / Francesco Carnelutti. – Campinas: Bookseller, 2001, p. 45.

[22] ABELLÁN, Marina Gascón. Os fatos no direito: bases argumentativas da prova / Marina Gascón Alellán – São Paula: Editora JusPodivm, 2022, p. 253.

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Limites entre liberdade de organização religiosa e direito à intimidade

Recentemente, no Rio de Janeiro, a ação de uma igreja evangélica causou algumas controvérsias. A denominação utilizou suas redes sociais para revelar pecados dos seus membros, nomeando-os e especificando as punições que receberiam.

Em uma carta aberta, assinada pelo presbitério, a Igreja One enfatiza questões de integridade e santidade. Os motivos para as ações disciplinares variam desde embriaguez até comportamento autoritário e manipulador.

Igreja One/Divulgação

Segundo a nota, os líderes afastados admitiram seus erros e se arrependeram. Ato contínuo, começaram um processo de restauração. Além disso, a igreja reconheceu falhas internas na comunicação e na definição de limites claros no discipulado, comprometendo-se a desenvolver protocolos para evitar que essas situações se repitam [1].

A escolha de divulgar publicamente os pecados e as punições dos membros provoca divergências. Alguns fiéis defendem que a transparência é essencial para preservar a integridade da igreja, ao passo que outros consideram a exposição pública desnecessária e prejudicial.

Analisando essa situação do ponto de vista jurídico, precisamos compreender duas questões:

1) Do ponto de vista do pastor e da igreja, como decorrência do direito constitucional à liberdade religiosa, temos a liberdade de organização religiosa, que consiste na capacidade de as igrejas se organizarem como pessoas jurídicas de direito privado, obtendo o reconhecimento, pelo Estado, dos seus estatutos, regimentos e códigos de conduta.

Essa questão é reforçada pelo Código Civil, quando este diz no artigo 44, IV, §1º, que: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”.

Em outras palavras, as igrejas possuem uma autodeterminação organizacional para definir suas regras sobre, por exemplo, corrente doutrinária, admissão e exclusão de membros, incluindo a disciplina eclesiástica de membros que incorrem em faltas ou pecados.

2) Por outro lado, do ponto de vista das pessoas expostas, a mesma Constituição estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (artigo 5º, X), além disso, o Código Penal institui os chamados crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação.

Disciplina religiosa

Pois bem. No caso em tela, é preciso considerar o seguinte: quando alguém adere a uma religião, o faz de maneira livre, pois ninguém pode ser obrigado a se filiar ou associar-se a uma denominação religiosa. É prudente que quem faz parte de uma igreja busque conhecer seu estatuto e regimento interno, para saber acerca dos seus direitos e deveres enquanto membro daquela comunidade, inclusive as regras sobre a disciplina eclesiástica dos que incorrem em pecados.

Não tivemos acesso ao estatuto da igreja em comento, todavia, caso nesse documento fosse previsto expressamente que aqueles que fossem flagrados em faltas e pecados seriam expostos por meio de cartas abertas nas mídias sociais como parte da disciplina religiosa, como pessoas que se associaram livremente àquela denominação, eles deveriam aceitá-la.

Responsabilização

Por outro lado, caso essa decisão de publicizar as condutas dos membros tenha partido de maneira arbitrária pela liderança da igreja, por mera vingança e sem nenhuma previsão normativa nesse sentido nos documentos da igreja (estatuto, regimento interno, etc.), a igreja e o pastor responsável podem sim ser responsabilizados, tanto na esfera cível, podendo ser obrigada a arcar com uma indenização por danos morais devido à ofensa à imagem dos membros, bem como na esfera penal: por injúria (artigo 140, do Código Penal), que consiste em ofender a dignidade ou o decoro de alguém, atingindo diretamente a honra subjetiva da vítima, ou seja, a percepção que ela tem de si mesma; ou por difamação (artigo 139, do Código Penal) que envolve a imputação de fato ofensivo à reputação de alguém, atingindo a honra objetiva, que é a reputação da pessoa perante terceiros.

Isso posto, em nossa compreensão, e salvo melhor juízo, a disciplina eclesiástica, sob a ótica teológica e do direito religioso, deve ser aplicada com rigor, justiça, transparência e sabedoria. Esta deve sempre se basear nas escrituras sagradas e nos documentos eclesiásticos. Contudo, é prudente que tal gestão ocorra internamente. Isto é, os pecados devem ser expostos e tratados confidencialmente entre os membros da comunidade, visando restaurar o pecador e prevenir que testemunhos negativos recaiam sobre a organização religiosa.

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Taxação das blusinhas oculta debate mais complexo do que se parece

Nos últimos dias, ganhou enorme destaque nas manchetes dos principais veículos jornalísticos a tramitação do PL 914/2024, cujo objeto consistia, segundo sua ementa inicial, na instituição do Programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação). A despeito da importância do projeto de lei e suas implicações de cunho social, econômico, tributário e ambiental, o principal destaque ficou por conta de um outro assunto: a chamada “taxação de compras internacionais” — ou “taxação das blusinhas”, em referência às lojas que se popularizaram com a venda de roupas.

Em meio às controvérsias, convém um olhar mais atento sobre a tributação dos bens provenientes das remessas internacionais no valor de até US$ 50. O aumento do uso da internet e a pandemia de Covid-19, em conjunto com investimentos que reduziram o tempo de entregas estrangeiras, colocaram os sites internacionais para concorrer com o comércio nacional.

O fenômeno não deixou de suscitar controvérsias jurídicas, inclusive no âmbito tributário, colocando o Estado brasileiro diante da necessidade de adequar a tributação sobre novas formas de desenvolvimento da atividade econômica.

Portarias e mais portarias

Diante desse contexto é importante relembrar que, em junho de 2023, o Ministério da Fazenda, valendo-se da permissão contida no Decreto-Lei 1.804/1980 (que será retomado mais adiante), editou a Portaria MF 612/2023.

Em suma, essa portaria reduziu a zero por cento (0%) a alíquota do Imposto de Importação (II) sobre os bens integrantes das remessas internacionais enviadas por empresas de comércio eletrônico, destinadas a pessoa física, no valor de até US$ 50, desde que respeitados os requisitos de programa de conformidade da Receita Federal [1].

Anote-se que o programa Remessa Conforme foi instituído ainda em junho de 2023 por meio da Instrução Normativa RFB 2.146/2023 e sua regulamentação se deu pouco menos de um mês após, com a edição da Portaria Coana 130/2023.

Com essas alterações normativas — todas infralegais, diga-se de passagem — o Poder Executivo foi capaz de reagir às alterações conjunturais que ocorreram no comércio eletrônico internacional de bens para adequar sua política fiscal e econômica. Todavia, essas sensíveis mudanças provocaram a reação (em alguns casos negativa) de diferentes atores políticos, econômicos e sociais, especialmente com relação às implicações das medidas na atuação do varejo brasileiro.

Um capítulo importante que aumentou a polêmica foi a edição, em fevereiro de 2024, da Portaria Coana 149/2024, que flexibilizou diversas exigências referentes à adesão ao Remessa Conforme, possibilitando que mais empresas fizessem jus à benesse fiscal.

Mas onde entra o PL 914/2024 nessa história?

A data é 21 de março de 2024. Apresentado o PL 914/2024 à Câmara dos Deputados. Inicia-se o processo legislativo e as nuances que apenas a política brasileira pode proporcionar. Conforme adiantado no início do texto, o citado Projeto versava unicamente acerca do Programa Mover. [2]

E assim se permaneceu até 3 de maio de 2024, data em que foi designado o deputado Átila Lira (PP-PI) como Relator do Projeto, que no dia seguinte apresentou Parecer Preliminar de Plenário incluindo a revogação do inciso II do artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.804/1980 [3] — que, como visto anteriormente, é exatamente o suporte legal para que o Ministro da Fazenda pratique os atos infralegais mencionados anteriormente.

Ressalte-se que a inclusão da revogação foi desacompanhada de qualquer justificativa e não há sequer remissão a ela na íntegra do parecer.

O trâmite do PL 914/2024 seguiu com essa sutil inclusão, que não escapou dos olhos de outros deputados, na medida em que a Emenda 1 ao Projeto sugeriu a supressão da revogação da “isenção de impostos para importações abaixo de US$ 50”.

A emenda não só foi rejeitada como a redação final aprovada pela Câmara dos Deputados promoveu outra alteração no Decreto-Lei 1.804/1980: a inclusão do § 2º-A no art. 1º, prevendo alíquota de 20% do Imposto de Importação nas compras de até US$ 50.

A favor ou contra da “taxação”?

Em meio à controvérsia em torno da tributação sobre os bens provenientes das remessas internacionais de até US$ 50, cumpre-nos pontuar que há argumentos robustos para ambos os lados.

De um lado, entendemos que os principais argumentos favoráveis quanto à derrubada da isenção podem ser resumidos em dois.

O primeiro deles consiste na premissa de que a tributação via Imposto de Importação dos bens provenientes das remessas internacionais promoveria maior isonomia tributária e concretizaria o princípio da livre concorrência, na medida em que as empresas nacionais poderiam competir de forma mais igualitária com as empresas estrangeiras.

Vale notar que argumento muito semelhante foi utilizado pelo STF (Tema 906) e pelo STJ (Tema 912) ao decidir acerca da incidência de IPI no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno [4].

Essa compreensão é corroborada pelo posicionamento da CNI [5], para quem a isenção cria uma competição desleal entre as indústrias estrangeiras e brasileiras, uma vez que os produtos nacionais acabam sendo sobrecarregados por uma alta carga tributária.

O segundo argumento diz respeito à perda de arrecadação tributária (estimada em R$ 3 bilhões) ocasionada pela renúncia de receita a ser auferida pelo Estado em função da isenção. Dessa forma, para os técnicos da Fiemg (Federação da Indústria do Estado de Minas), a arrecadação adicional poderia chegar a até R$ 19,1 bilhões [6].

Do outro lado, os principais argumentos favoráveis à manutenção da isenção também se resumem a dois.

O primeiro deles fundamenta-se na premissa de que tais bens já estão sendo tributados através do ICMS-Importação de modo que não haveria que se falar em desoneração plena de tais produtos. Isto é, não haveria necessidade em se tributar tais operações via Imposto de Importação, pois a equalização da carga tributária já estaria sendo realizada via ICMS.

O segundo argumento se pauta no raciocínio de que a maior parte dos consumidores brasileiros recorre às plataformas internacionais precisamente por causa dos altos preços e da limitada diversidade de produtos no mercado nacional. Assim, o fim da isenção estaria retirando a única alternativa para que os consumidores tenham acesso a diversos produtos que não teriam condições de adquirir.

Particularmente, acreditamos que o fim da isenção seria a medida mais adequada para o atual momento. Porém, a conclusão da Câmara dos Deputados em restabelecer a tributação ao patamar de 20% foi tomada às pressas e demanda-se maior reflexão para se atingir a alíquota ideal, bem como a coleta de dados e estudos que poderiam fornecer a solução mais justa sob o ponto de vista tributário.

A alternativa sugerida pela deputada Adriana Ventura [7] de se isentar os impostos federais sobre compras nacionais de até R$ 250, mostra-se interessante sob o ponto de vista de se assegurar a competição entre as empresas nacionais e estrangeiras e igualmente em se baratear os preços dos produtos – levantando-se dúvidas tão somente quanto aos impactos arrecadatórios dessa solução.

A discussão, entretanto, está excessivamente centrada em uma perspectiva dualista entre “taxar ou não taxar”. Embora os argumentos se concentrem na alta carga tributária, pouco se discute a alternativa de reduzi-la, conforme sugerido pela deputada.

A proposta de isentar impostos federais sobre compras nacionais de até determinada quantia também merece espaço, sobretudo para verificar sua viabilidade, pois pode assegurar a competitividade entre empresas nacionais e estrangeiras, bem como contribuir para a redução dos preços dos produtos e garantir justiça social.

Necessidade de debate para preservar a segurança jurídica

Qualquer que seja a posição a ser adotada, compartilhamos da visão de que essa temática precisa ser mais bem debatida pelo Congresso. Afinal, trata-se de um fenômeno de grande impacto econômico e social, especialmente sobre a população de menor renda, que não pode ser decidida de modo açodado.

O debate, a propósito, fortalecerá a segurança jurídica e poderá traçar um panorama normativo que regerá o contexto atual e futuro de forma mais efetiva, justificando-se o papel do Estado e da tributação no Brasil. O alerta quanto à complexidade do tema já foi abordado em outras ocasiões nesta ConJur, especialmente em artigo de autoria de Fernando Pieri Leonardo [8].

Por fim, merece destaque que a inclusão da temática no PL 914/2024 não atende à melhor técnica legislativa (vide LC nº 95/98) e representa verdadeiro “jabuti”, o que não nos parece o melhor caminho a ser seguido. Então, inobstante o presidente da Câmara dos Deputados ter afirmado que o mais importante do fim da isenção de pequenas compras internacionais foi “a discussão longa” e “que foi o possível para esse momento” [9], acreditamos que ainda há muito a se discutir sobre o tema.

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[1] Portaria MF nº 156, de 24 de junho de 1999. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=23977.

[2] Cf. EMI nº 00006/2024 MDIC MCTI MF. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2398197&filename=Tramitacao-PL%20914/2024.

[3] “Art. 2º O Ministério da Fazenda, relativamente ao regime de que trata o art. 1º deste Decreto-Lei, estabelecerá a classificação genérica e fixará as alíquotas especiais a que se refere o § 2º do artigo 1º, bem como poderá:

(…) II – dispor sobre a isenção do imposto de importação dos bens contidos em remessas de valor até cem dólares norte-americanos, ou o equivalente em outras moedas, quando destinados a pessoas físicas.”

[4] Cf. STF, Pleno, RE 946.648/SC, Red. p/Acórdão Min. Alexandre de Moraes, DJe de 13/11/2020; e STJ, 1ª Seção, EREsp 1.403.532/SC, Red. p/Acórdão Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 18/12/2015.

[5] Cf. https://www.poder360.com.br/economia/imposto-de-20-para-compras-ate-us-50-e-insuficiente-diz-cni/.

[6] Cf. https://static.poder360.com.br/2024/01/estudo-fiemg-impactos-sobre-compras-internacionais-taxacao.pdf. Acesso em 03/06/2024.

[7] Cf. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/relator-quer-votar-taxacao-de-blusinhas-nesta-segunda-feira-mesmo-sem-acordo/.

[8] LEONARDO, Fernando Pieri. Cross-border e-commerce, descaminho digital e algumas reflexões. ConJur, 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-25/territorio-aduaneiro-cross-border-commerce-descaminho-digital-algumas-reflexoes/.

[9] Cf. https://www.camara.leg.br/noticias/1067312-para-lira-fim-da-isencao-de-pequenas-compras-internacionais-foi-um-acordo-possivel-e-justo/.

Fonte: Conjur

PLP 68/2024 e o IBS sobre a atividade financeira: requentando normas?

A Emenda Constitucional nº 132 alterou o sistema tributário nacional introduzindo, dentre outras novidades, imposto de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), bem como Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), essa de competência da União  que tributa operações com bens e serviços.

Em fins de abril foi apresentado pelo Poder Executivo, à Câmara dos Deputados, em atendimento ao disposto no artigo 156-A da Constituição, o Projeto de Lei Complementar 68/2024 que institui, dentre outras providências, o IBS e a CBS. No dia de hoje, o que nos interessa, é seu Capítulo II que contempla as regras de incidência desses tributos sobre os serviços financeiros.

O artigo 170, do PLP 68/2024, dispõe que os serviços financeiros ficam sujeitos a regime específico de incidência do IBS e da CBS. Isso significa que os serviços financeiros estarão submetidos a um tratamento na cobrança desses tributos diverso daquele aplicável aos demais serviços, seja por sua base de cálculo seja por sua alíquota. De sua vez, o artigo 171 elenca os serviços financeiros objeto de tributação atendo-se, fortemente, às definições contempladas nas normas regulatórias que tratam dessa atividade no sistema jurídico brasileiro.

Assim o PLP considera como serviços financeiros aqueles objeto de normatização pelos componentes do Sistema Financeiro Nacional (SFN), que estão assim segmentados: (1) moeda, crédito, capitais e câmbio, normatizados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e tendo como agentes fiscalizadores o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM); (2) seguros privados, normatizados pelo Conselho Nacional de Seguros (CNSP) e tendo como agente fiscalizador a Superintendência  de Seguros Privados (Susep) e (3) previdência fechada, tendo como agente normalizador e fiscalizador o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) [1].

Indagação

A leitura do artigo 170 do PLP 68/2024 gera, de imediato, uma primeira indagação visto que o Código Tributário Nacional (CTN), fruto da Emenda Constitucional nº 18/1965, editado em 1966, contempla um capítulo voltado aos tributos sobre a produção e a circulação, dentre eles o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, e sobre Operações Relativas a Títulos e Valores Mobiliários, em seu artigo 63, depois incorporado à Constituição vigente, em seu artigo 153, sob a mesma denominação.

A regulação do artigo 63 do CTN ocorreu ao longo do tempo, mediante a edição de vários atos normativos, que sempre se referem a operações, e, a despeito de seu complexo nome, como acima, por envolver diversas hipóteses de incidência, acabou sendo tratado na lei, na jurisprudência e na doutrina como IOF, Imposto sobre Operações Financeiras, por conta da Lei nº 5.143/1966, que introduziu tal incidência no cenário brasileiro, antecedendo o próprio CTN e cujo texto foi por ele incorporado.

No que tange à denominação genérica adotada pelo CTN, tributo sobre a circulação (de bens, no caso a mercadoria dinheiro), ela sempre nos pareceu adequada e segue sendo adequada, visto que tributa fluxos de recursos, capitais investidos independentemente de seus resultados, positivos ou negativos, aplicados em negócios de caráter financeiro, que envolvem o dinheiro [2]. O IOF entra na categoria de tributo extra fiscal, pois mais do que se prestar a “encher” os cofres públicos, volta-se a regular a moeda e o crédito.

Dito isso o que, rigorosamente, diferencia o IOF do IBS sobre “serviços financeiros”?  As que operações esses dois tributos se referem: as mesmas ou elas se diferenciam? A competência estadual para o IBS confronta com a competência federal do IOF? O que as distingue? Deveria a Constituição ter sido alterada para extinguir o IOF ou há algum detalhe específico que sustenta essa “dupla” tributação? O tema, para nós, ainda é obscuro e envolve questão a nosso ver de cunho constitucional, que não abordaremos, para tratar de outros aspectos que nos preocupam e que também podem comprometer o novo modelo tributário desenhado para o segmento financeiro se não devidamente resolvidos.

Concessão de crédito

Dada a amplitude da incidência do IBS sobre serviços financeiros, como se observa da lista proposta no artigo 170 do PLP 68/2024, examinaremos, de forma breve, apenas as operações que envolvem a concessão de crédito, próprias das instituições financeiras, normatizadas pelo CMN e fiscalizadas pelo BC.

De acordo com o artigo 171 do PLP 68/2024 consideram-se, dentre outros, como serviços financeiros, as operações de crédito, assim entendidas as operações de adiantamento, empréstimo, financiamento e desconto de títulos. Essa repartição das operações de crédito corresponde à definição contemplada no Cosif, Padrão Contábil das Instituições Reguladas pelo BC.

Assim o Cosif define: empréstimo como operação de entrega de recursos realizada sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos; desconto de títulos como operação de adiantamento de numerário e financiamento como operação de entrega de recursos realizada com destinação específica, vinculada à comprovação da aplicação desses recursos.

É interessante destacar que a Lei nº 4.595/1964, que trata das instituições monetárias, bancárias e creditícias, em seu artigo 17 considera como instituição financeira, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.

Essa definição pode ser resumida para levar à conclusão de que a atividade principal das instituições financeiras é, estritamente, de intermediação do dinheiro: captar ou utilizar recursos próprios para mutuá-los no mercado, com remuneração (juros).

Os mútuos que não têm natureza econômica, não remunerados, não são praticados pelas instituições financeiras e tampouco interessam ao direito tributário, pois se colocam fora da economia (artigos 586 a 592, do Código Civil). Ainda que o mútuo transfira a propriedade dos recursos, por força da natureza do dinheiro (bem fungível) e da lei (artigo 587, do Código Civil), existe uma contrapartida que é a obrigação de devolvê-los por parte do mutuário, além de um direito a recebê-los de volta, por parte do credor.

A atividade bancária, pela forma como se desenvolve, é remunerada pelo chamado “spread” diferença entre o que se empresta e o que se recebe de volta. A atividade de custódia ou intermediação (aproximação de partes) é remunerada por taxas, tarifas e comissões e não se confunde, em nenhum momento, com o spread, ganho financeiro da instituição.

De forma resumida, até a Emenda Constitucional nº 132, a atividade econômica das entidades financeiras vinha sofrendo as seguintes incidências: (1) sobre o lucro: Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro, ambos calculados a partir do lucro líquido, apurado conforme as normas contábeis do BC; (2) sobre a receita operacional deduzida dos custos de captação: Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), no regime  cumulativo (Lei nº 9.718/98); (3) sobre a prestação de serviços: Imposto sobre Serviços conforme a Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2000.

A nova tributação que se está instituindo incide sobre os serviços financeiros assim entendidos como operações de crédito e elimina, a partir de 2027, as contribuições para o PIS e a Cofins, bem como o ISS. Cabem algumas anotações sobre o tema.

Tema 372

Quando introduzida a Lei nº 9.718/1998, que passou a tributar pelas contribuições para o PIS e a Cofins, o faturamento das pessoas jurídicas, assim entendido como a receita bruta (artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/1977), as instituições financeiras levaram o tema ao Poder Judiciário sob o argumento de que receitas financeiras não integrariam a base de cálculo dessas contribuições, devendo elas incidirem apenas sobre o fruto de serviços financeiros desenvolvidos, logo sobre taxas, tarifas e comissões.

A decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal na sessão virtual finalizada em 12/6/2023, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 609.096, com repercussão geral reconhecida (Tema 372) restando pacificada a tese no sentido de que “as receitas brutas operacionais decorrentes da atividade empresarial típica das instituições financeiras integram a base de cálculo PIS/Cofins cobrado em face daquelas ante a Lei nº 9.718/98, mesmo em sua redação original, ressalvadas as exclusões e deduções legalmente prescritas”.

O PIS e a Cofins sempre foram tributos controvertidos, por suas características regressivas, incidindo sobre receitas, afastando a não cumulatividade, na hipótese do regime cumulativo e, por fim, tendo a sua própria constitucionalidade discutida sob diversos ângulos e por um longo tempo. No caso específico das instituições financeiras, o PIS e a Cofins ao tomarem como base de cálculo a receita operacional deduzida dos correspondentes custos e despesas, tributam, na realidade, o lucro bruto, o que torna essa incidência ainda mais curiosa, assemelhando-a a um tributo sobre o lucro, a exemplo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro.

Para fins de ISS, a base de cálculo sempre foi o preço dos serviços contemplado na Lista de Serviços da Lei Complementar nº 116/2003, no caso o item 15, sob a designação de “Serviços relacionados ao setor bancário ou financeiro”. O preço desses serviços corresponde a taxas, comissões e tarifas vinculadas à atividade de intermediação bancária.

Distorção

O grande objetivo do PLP 68/2024 é tributar o consumo, mas o que é o consumo para fins de serviços financeiros? Consumo, de forma geral, é o ato de gastar/destruir algo. O que se consome para fins tributários? Riqueza ou utilidade? Riqueza é algo que acresce, do ponto de vista patrimonial, e assim integrada ao patrimônio de alguém se presta a gerar novas riquezas ou ser consumida/fruída na aquisição de utilidades. Quem consome serviços financeiros está apenas adquirindo utilidades ofertadas pelo sistema financeiro, como intermediação em negócios, administração e custódia de bens, dentre outros.

Esse conceito é utilizado em todos os países que adotaram o IVA, Imposto de Valor Agregado, como é o caso da União Europeia, onde o que se tributa são taxas, tarifas e comissões pagas por aqueles que se valem dos serviços prestados por essas instituições. A receita financeira originada por negócios de mútuo e similares não é objeto de tributação pelo IVA, estando tal desoneração expressamente prevista em lei. Por essa razão, adotar conceitos e orientação jurisprudencial do PIS, da Cofins e do ISS, no Brasil, pode não ser prudente quando se fala de tributo sobre o consumo.

De acordo com o artigo 174, do PLP 68/2024, o IBS e a CBS, incidem, de forma geral, sobre as receitas de serviços financeiros, “excluídas as reversões de provisões e as recuperações de créditos baixados como prejuízo”. Ora, se a receita gerada pela atividade financeira decorre da atividade de intermediação, não faz sentido considerar base de cálculo a receita financeira, o spread, originado de aplicações de recursos integrados ao patrimônio do banco, como no caso do PIS e da Cofins. Na realidade se está a importar a base de cálculo do PIS e da Cofins veiculada pela Lei nº 9.718/1998, como já comentado, trazendo imensa distorção nos critérios do IBS e da CBS.

É de pasmar que a Exposição de Motivos do PLP 68/2024, ao tratar do Capítulo II da Lei, esclareça em seu item 129 que os “(…)  países que adotam o IVA geralmente isentam os serviços financeiros, principalmente aqueles remunerados por margem (spread) (…)  Países com modelos de IVA mais modernos, como Canadá, África do Sul e Cingapura, passaram a tributar os serviços financeiros remunerados por tarifa ou comissão, mantendo a isenção para outras atividades. 130. A isenção total ou parcial dos serviços financeiros trouxe inúmeras distorções econômicas nos países, tais como cumulatividade (acúmulo de créditos não recuperáveis), incentivo à integração vertical (em detrimento da contratação de prestadores de serviços externos) e elevados custos administrativos, judiciais e de conformidade. (…) 131.O Brasil será pioneiro ao tributar os serviços financeiros remunerados por margem pelo IBS e pela CBS. que impliquem captação, repasse, intermediação, gestão ou administração de recursos”. De tudo isso, o que se infere é que o Brasil adotará um IVA que é diverso daquele adotado nos outros países, desprezando experiências anteriores, pois IBS/CBS incidirão sobre o lucro bruto das transações financeiras, onerando o spread, objeto, isso sim do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro.

Reflexos preocupam

Tudo isso gera reflexos preocupantes à luz da experiência brasileira, especialmente porque a atuação e desempenho do segmento sempre gera impactos no preço dos juros. O que se tem, portanto, é a manutenção de velhas práticas, “mais do mesmo”, podendo o  PIS e a Cofins adquirir uma sobrevida não esperada após o ano de 2027, ainda que revogados! Seria por isso que a lei esclarece que os serviços financeiros estarão submetidos a um tratamento diverso na cobrança, quer por sua base de cálculo quer por sua alíquota? Depreende-se que o principal objetivo, de curto prazo, é arrecadar e não reformar o sistema tributário, como tanto se propalou.

É interessante destacar que o Brasil utiliza o modelo e a experiência de IVA de outros países, no que lhe interessa, sendo certo que para instituições financeiras essa experiência é destituída de importância.

Em conclusão, nossa reforma tributária deve guardar coerência com o modelo eleito. O PLP 68/2024 se anuncia como gerador de futuros questionamentos, na medida em que repete, sem pudor, a incidência do PIS e da Cofins sobre o lucro bruto, fruto da remuneração das entidades responsáveis pela concessão de crédito, um dos mais importantes pilares de nossa economia.


[1] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sfn

[2] Veja-se Elidie Palma Bifano,  Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, e sobre Operações Relativas a Títulos e Valores Mobiliários (IOF), in Tratado de Direito Tributário , coord. Ives Gandra da Silva Martins et alt. ,  vol. 1, São Paulo:  Saraiva, 2011, pp. 468-499.

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