Tributação da partilha desigual dos dividendos como doação

Os projetos de leis complementares sobre a reforma tributária seguem tramitando no Congresso e nos trazendo diversas surpresas. Uma das mais recentes consta do relatório aprovado na Câmara dos Deputados sobre o PLP 108, cujo foco é regulamentar o funcionamento do Comitê Gestor, mas que traz algumas novidades polêmicas sobre incidências tributárias.

Trato da incidência de ITCMD, sobre a vertente de tributação das doações, que incidiria (ou incidirá, se o texto vier a ser transformado em lei) sobre a partilha desigual de dividendos. O texto em debate no Congresso estabelece o seguinte (artigo 164, §5, I):

“Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas: I – os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados.”

A situação fática que a norma pretende alcançar, de modo a tributar como doação, ocorre quando o capital social prevê que o sócio João tem 50% das quotas sociais e Maria tem os outros 50%. Porém, quando partilham o lucro, João fica com 20% e Maria fica com 80%. Haveria aqui, segundo o que a regulamentação deseja alcançar, uma doação de 30 pontos percentuais de João a Maria, pois ele tem metade do capital social, mas teria doado 30% do lucro daquele período para Maria. Consequentemente, Maria teria que pagar ITCMD sobre esse montante que recebeu em percentual superior à sua participação no capital social, pois teria recebido uma doação de João.

Será isso verdadeiro e constitucional?

Observemos uma típica sociedade de pessoas, como as sociedades de advogados, que tenha apenas dois sócios, cada qual com 50% do capital social. É extremamente usual que um dos sócios, em certo período, receba honorários em valor superior ao outro, e, portanto, não se utilize da regra do capital social para realizar a partilha, que ficaria despareada naquele mês ou durante certo período. Teria havido doação?

Para ser um pouco mais rigoroso na apresentação do problema: a regra do capital social é algo a ser rigorosamente seguida, ou podem os sócios, consoante seus interesses na organização de seus negócios, estabelecer regras diferenciadas de partilha do lucro (os dividendos)?

Entendo que nas sociedades de pessoas os sócios podem estabelecer as regras que melhor lhe aprouverem na divisão dos lucros, sem que isso se caracterize como doação. Trata-se de liberdade de iniciativa econômica, visando organizar os negócios internos da empresa como melhor aprouver aos sócios.

A regra do percentual do capital social não deve ser usada para fins de obrigatória divisão de lucros, tratando-se de indevido avanço do poder de tributar no âmbito da liberdade de iniciativa econômica da sociedade, o que se configura como uma inconstitucionalidade, por infração ao at. 1º, IV, e ao caput do artigo 170, CF. O mesmo raciocínio vale para as demais hipóteses pretendidas nesse mesmo texto em debate no Congresso.

Suponhamos que na dissolução dessa hipotética sociedade de advogados, um dos sócios decida ficar com todas os processos (as ações) em curso e o outro com os móveis e equipamentos que guarneciam o escritório; haveria aqui uma doação de um para outro? Como apurar isso? Do mesmo modo, se um receber maior valor em honorários do que o outro em determinado período, isso se caracterizará como doação, caso a partilha dos lucros não siga a regra da composição do capital social? Pois é exatamente isso que o texto em debate no Congresso pretende fazer: tributar o que for dividido de forma desigual entre os sócios, observada a composição do capital social.

Até entendo que o escopo seja o de evitar fraudes, que sempre podem ocorrer, mas, tal como redigido, toda e qualquer partilha desigual acabará sendo objeto de autos de infração, tendo o contribuinte que justificar sua conduta perante o Fisco. Melhor será deixar tudo como está, ao invés de trilhar esse caminho perigoso e potencialmente litigioso, como prevê o texto em debate no Congresso.

Se identificadas de forma ativa pelo Fisco, as fraudes deverão ser coibidas, e não fazer como proposto, que coloca o contribuinte sob prévia suspeita, caso promova partilha desigual e seja levado a pagar imposto sobre doação, quando doação não há, mas liberdade de iniciativa econômica. Incumbe ao Fisco exercer a fiscalização e coibir as fraudes, e não considerar de antemão os contribuintes como praticantes de condutas irregulares.

Urge modificar esse texto no Congresso, simplesmente retirando esse inciso do projeto.

A cada vez que um disparate como esse surge nos debates parlamentares, cresce minha convicção de que a advocacia tributária será a profissão do futuro no Brasil, em razão da forma como essa reforma tributária vem sendo conduzida.

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Direito intertemporal e cautelar de indisponibilidade de bens nas ações de improbidade

A Lei nº 14.230/2021 alterou diversos dispositivos da LIA (Lei de Improbidade Administrativa). Entre eles, os requisitos para decretação da indisponibilidade de bens — alterando-se a natureza da medida para qualificá-la como tutela provisória de urgência — e a previsão expressa de que a indisponibilidade será limitada ao valor necessário para a reparação ao dano ao erário — excluídos a multa civil e os valores decorrentes de atividade lícita (artigo 16, §§ 3º e 10).

Afrânio Vilela 2024 – Gustavo Lima/STJ

Em maio de 2024, a 1ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou o assunto à sistemática do julgamento de recursos repetitivos o Tema nº 1257, sob relatoria do ministro Afrânio Vilela, para “definir a possibilidade ou não de aplicação da nova lei de improbidade administrativa (Lei 14.230/2021) a processos em curso, iniciados na vigência da Lei 8.429/1992, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, inclusive a previsão de se incluir, nessa medida, o valor de eventual multa civil”.

Ao afetar o Tema Repetitivo nº 1257, a 1ª Seção determinou a suspensão de todos os processos que versem sobre a mesma matéria nos quais tenha sido interposto recurso especial ou agravo em recurso especial, ou que estejam em trâmite no STJ. Também foi decidido que a suspensão dos processos não afetaria o curso dos prazos prescricionais.

Como representativos da controvérsia, foram selecionados os Recursos Especiais nº 2074601/MG, 2076137/MG, 2076911/SP, 2078360/MG e 2089767/MG. Dos cinco recursos, somente o REsp 2076911 de São Paulo (sigiloso) foi interposto por pessoa física. Todos os demais os recursos especiais selecionados foram interpostos pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

 

Em análise às teses discutidas nos recursos especiais afetados, destacam-se os três principais assuntos que deverão ser enfrentados pelo STJ para o julgamento do tema.

Primeiro, e mais evidente, é a definição das regras de direito intertemporal que serão aplicáveis para reger a alteração normativa. Afinal, a Lei nº 14.230/2021 não trouxe regras de transição ou sobre a aplicabilidade retroativa da norma.

Normas sobre indisponibilidade de bens

Para decidir sobre o direito intertemporal, será preciso definir a natureza das normas que versam sobre indisponibilidade de bens; isto é, se possuem natureza processual, material ou mista.

Se for considerada uma norma processual, o STJ terá a oportunidade de se pronunciar sobre o postulado “tempus regit actum” e a teoria do isolamento dos atos processuais no contexto de decisões interlocutórias que possuem natureza precária e modificável a qualquer tempo (artigo 296 do Código de Processo Civil — CPC) e cujo conteúdo ainda não precluiu. Logo, não poderiam ser consideradas ‘ato jurídico perfeito’ ou ‘direito adquirido processual’ para efeitos do artigo 5º, XXXVI da Constituição, artigo 14 do CPC e artigo 6º da Lindb.

Por outro lado, se as normas sobre indisponibilidade de bens forem classificadas como normas materiais ou mistas, a discussão envolverá a aplicabilidade ou não do princípio da retroatividade da norma mais benéfica ao réu, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição, ao sistema de direito administrativo sancionador.

Em segundo lugar, deverá ser decidida pelo STJ a aplicabilidade aos processos em curso da nova redação do artigo 16, caput e § 10, da LIA, que hoje exclui o valor da multa civil dos valores que poderão ser alcançados pela medida de indisponibilidade de bens.

Direito de defesa impactado

A importância dessa questão vai além da simples diminuição da parcela de patrimônio do réu exposta ao risco de constrição. Impacta o direito de defesa, sobretudo nas ações em que a petição inicial não especificou o valor do dano ao erário e o valor estimado da multa civil. O não conhecimento sobre esses valores impossibilita que a cautelar de indisponibilidade seja decretada sem violação ao direito de defesa do réu, em especial quanto aos eventuais valores excedentes.

Em terceiro lugar, o julgamento do Tema 1257 deve ensejar a revisão do Tema Repetitivo nº 701, que estabeleceu a natureza de tutela de evidência para a indisponibilidade de bens no contexto da redação anterior da LIA. E, o Tema nº 1055, pois trata da inclusão do valor da multa civil nos valores acautelados por indisponibilidade.

Por fim, considerando o interesse geral na formação desse importante precedente, é notável que a União teve deferido seu pedido de ingresso nos recursos afetados como amicus curie. De outro lado, até a publicação do presente artigo, não há pedidos de ingressos de terceiros a favor da aplicabilidade da Lei nº 14.230/2021.

Em suma, a afetação do Tema Repetitivo nº 1257 veio em boa hora para trazer mais segurança jurídica e pacificar o entendimento da jurisprudência nacional sobre as tutelas provisórias nos processos de improbidade após as alterações da Lei nº 14.230/2021 e revisitar temas repetitivos proferidos na vigência da redação antiga da lei e ainda não expressamente revogados pelo STJ.

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Supremo dá mais poderes para DPU defender povos indígenas isolados

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, autorizou na segunda-feira (12/8) a Defensoria Pública da União a atuar como custos vulnerabilis (guardiã dos vulneráveis) na ação que discute medidas de proteção a povos indígenas isolados e de recente contato.

Ação no STF discute medidas de proteção a povos isolados e de recente contato – Joédson Alves/Agência Brasil
 

A decisão garante à DPU “poderes e faculdades processuais semelhantes àqueles conferidos às partes no processo” — mais amplos do que o órgão tinha até então, na condição de amicus curiae (amigo da corte).

A DPU poderá fazer requerimentos autônomos (como de medidas cautelares e de produção de provas), interpor recursos e fazer sustentação oral em tempo semelhante ao das partes do processo.

O órgão já havia pedido para atuar como custos vulnerabilis, mas o relator havia autorizado apenas seu ingresso como amicus curiae — que apenas fornece subsídios às decisões e não tem os mesmos poderes das partes.

Socialmente expostos

Em novo pedido, a DPU insistiu na possibilidade de admissão como custos vulnerabilis, para o cumprimento da sua missão de defesa dos “socialmente mais expostos a situações de vulnerabilidade”.

Fachin reconsiderou sua decisão e explicou que a intervenção como custos vulnerabilis permite ao órgão “figurar no processo na defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade, de maneira diretamente interessada e parcial”.

Ele ressaltou a “extrema vulnerabilidade” dos povos indígenas isolados e de recente contato, “com risco real de desaparecimento caso as medidas de impedimento ou mitigação do contato com a sociedade envolvente e de garantia dos territórios em que habitam não forem concretizadas”.

O magistrado destacou que a Defensoria atua em “diversas demandas com temática de proteção aos direitos indígenas” que tramitam no STF, e também indicou que tais povos são representados por organizações indígenas e não atuam em nome próprio, justamente devido à sua situação de isolamento voluntário.

A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Apib), autora da ação, concordou com a pretensão da DPU.

Clique aqui para ler a decisão
ADPF 991

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PEC 65/2023: BC como empresa pública e lawfare

Tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023 [1], com o objetivo de transformar o BC (Banco Central) em empresa pública. Recentemente, a LC (Lei Complementar) 179/2021 o transformou em autarquia de natureza especial, aproximando-o do regime jurídico de maior autonomia das agências reguladoras federais. Na justificação, os autores da PEC alegam que o BC não possui autonomia orçamentária e financeira para garantir a plena execução de suas atividades; e que a recente autonomia formal, concedida em 2021, não é possível de ser materializada sem uma alteração da Constituição que traga uma previsão constitucional de sua autonomia orçamentária e financeira.

Banco Central sede

Também defendem que o orçamento da autarquia deve ter tratamento distinto do Orçamento Geral da União, uma vez que a execução das funções de autoridade monetária não poderia se sujeitar ao mesmo tratamento e às mesmas restrições aplicáveis à execução das demais despesas do OGU. Além disso, a proposta inova ao prever o uso de receitas de senhoriagem para pagar suas despesas. Senhoriagem é a prática dos antigos reis que, para cunhar moedas de prata e ouro, cobravam um percentual que ficava em seus cofres.

Naquela época, ainda havia lastro em metais preciosos. Porém, no caso atual, a senhoriagem se refere ao fato de reservar parte do papel-moeda impresso pelo banco central para se autofinanciar. É criação de moeda pura. Nesse caso, a atividade de custeio do aparato administrativo se apoia não mais nos limites da tributação e na vinculação ao orçamento público, que dá sustentação ao regime monetário em uma economia de produção.

Aqui, já se pode tecer uma crítica: o viés inflacionário da proposta. Em uma economia monetária de produção, a moeda precisa ser neutra. Nesse sentido, os gastos da administração pública devem decorrer de um rígido controle fiscal, que é um dos pilares da manutenção do valor do Real. Não à toa o BC e seu próprio presidente defendem a necessidade de se garantir equilíbrio de gastos a partir da receita dos tributos, cumprindo as metas fiscais, como um dos pilares do próprio regime monetário doméstico.

Propor o financiamento do BC a partir da simples criação de moeda, desvinculada da produção econômica e da respectiva tributação e custeio do setor público, desvirtua a construção do regime fiscal-monetário do país, que se baseia em parte do valor gerado em riquezas no país para sustentar os gastos públicos. Não há, mais, criação de moeda para pagar despesas públicas, um descontrole que ocorria no país até os anos 1980, e que explica, em grande medida, o processo inflacionário histórico da economia brasileira.

No caso, a proposta envolve um custeio alto do BC, em torno de R$ 4 bilhões. Alternativamente, poder-se-ia pensar em separar uma parte das receitas do orçamento federal diretamente ao BC, constituindo uma exceção à inclusão das despesas de custeio do BC no OGU. Porém, sob a ótica do Direito Financeiro, a opção também contraria o princípio da unicidade orçamentária, insculpido no artigo 165, § 5º, da CF, e que segue uma tradição já posta na Lei 4.320/1964.

Em se tratando de proposição legislativa, é preciso, preliminarmente, questionar a problemática e a realidade subjacente à alteração almejada, que se trata de mudança constitucional sobre matéria relevante para a administração pública federal.

Por um lado, questionamos se há, de facto, um problema a ser equacionado pela PEC e qual sua real natureza. Parte-se da percepção de que o BC, pós-LC 179/2021, já dispõe atualmente de autonomia suficiente para o cumprimento adequado de suas atribuições, com manutenção de suas atividades sem restrições relevantes. A discussão também envolve avaliar se a função do BC justifica o proposto tratamento fiscal privilegiado, e quais as implicações para a administração pública federal.

Restrições fiscais da União e orçamento dual da autarquia

As únicas restrições orçamentárias e financeiras enfrentadas pelo BC se referem a despesas de pessoal e custeio administrativo e investimentos. Tais restrições podem, efetivamente, criar algumas dificuldades para a instituição, como limitações para a contratação de pessoal, restrições na fixação da remuneração dos servidores da instituição, como, de resto, todo o serviço público. No entanto, não se pode sustentar que sejam tão expressivas, ainda mais quando a entidade se encontra em fase de processo seletivo para contratação de mais 300 analistas com salário inicial de quase R$ 21 mil – as provas ocorreram no dia 4 de agosto de 2024.

As restrições orçamentárias do BC são as mesmas de outras autarquias como a CVM e as agências reguladoras, e demais órgãos públicos, que observam a rigidez e controle de gastos da máquina pública federal, de modo consolidado. Trata-se de uma preocupação premente para a União, que se encontra em situação fiscal deteriorada desde 2015, e está atualmente em contingenciamento fiscal. Tais restrições apenas refletem as limitações fiscais da União, bem como a necessidade de alcançar as metas fiscais, como sempre ressaltado em pronunciamentos públicos pelo presidente do BC.

De todo modo, as restrições fiscais são apenas parciais para o BC. Há uma lógica dual do orçamento do BC, que se divide em orçamento administrativo e orçamento de autoridade monetária. O orçamento administrativo engloba os gastos da autarquia que entram na LOA e nos gastos primários da União, e que alcançaram R$ 3,8 bilhões em 2023. Isso segue o estipulado pelo artigo 5º, § 6º, da LC 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina a inclusão do orçamento administrativo do BC no OGU.

Já o orçamento de autoridade monetária, que é aquele referente a receitas e despesas ligadas às políticas monetária e cambial, é aprovado pelo CMN, nos termos da Lei 4.595/1964. Este está, portanto, fora da LOA, que já é uma das grandes críticas à política de juros do país, cujos gastos oscilam em torno de 5% do PIB sem restrição ou contingenciamento fiscal algum. Ou seja, independe de qualquer meta fiscal, e mesmo de aprovação pelos parlamentares, além de não enfrentar qualquer restrição de gastos. O arcabouço legal garante, inclusive, cobertura pelo Tesouro Nacional de resultados negativos do BC, nos termos da Lei 13.820/2019. O controle público ocorre apenas por prestação de contas a posteriori ao Congresso, algo de natureza apenas protocolar.

Isso já aponta que a justificação quanto a suposto impedimento de funcionamento do BC e de suas atribuições é pouco aderente à realidade fática.

Problema de facto a ser equacionado pela PEC

A transformação do BC em empresa pública implica a sua não sujeição aos limites de gastos impostos a todos os órgãos da administração pública, nem ao teto de salários no serviço público, com regras de contratação de pessoal e aquisição de bens e serviços mais flexíveis. Isso permite maior autonomia na contratação de pessoal, fixação dos salários de servidores e diretores, e realização de outras despesas de custeio e investimento de forma mais flexível, sem observar as regras de controle da administração federal, que são mais rígidas do que para instituições públicas de direito privado, como os Correios, por exemplo.

Em nossa visão, isso servirá para majorar os salários de membros da diretoria colegiada do BC, que têm remuneração considerada inferior à de diretores de instituições financeiras do setor privado e mesmo de instituições financeiras públicas, como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. Isso tem especial relevância para aqueles diretores (e presidente) que vêm do setor privado.

Questões relevantes

A matéria suscita uma série de questionamentos. O primeiro é se é possível transformar autarquia em empresa pública? A resposta é positiva, apesar de não ser comum, até pela natureza jurídica muito distinta entre os dois regimes. Há o registro da conversão da Casa da Moeda de autarquia em empresa pública pela Lei 5.895, de 19 de junho de 1973. A peculiaridade, entretanto, é que não há função de Estado envolvida, mas efetivamente uma empresa que produz papel-moeda, produto que pode ser, inclusive, exportado para outros países.

1. Precedente para outras agências reguladoras e órgãos da administração pública

A criação de exceção ao princípio da unidade orçamentária significa um precedente para outras autarquias reivindicarem autonomia semelhante, visando a mesma prerrogativa de financiar suas despesas permanentes a partir de receitas próprias. Isso inclui: CVM, Previc, Susep, Aneel, Anatel, ANP, Anvisa, ANS, ANA, Ancine, ANTT, Antaq e Anac.

Também significa potencial risco de demandas de outros órgãos da administração direta do Poder Executivo (como universidades públicas) e do próprio Poder Judiciário, que tem elevado potencial de obter receitas próprias. Tanto os incentivos para aumento de despesas permanentes como para expansão de receitas podem ser substanciais, com a cobrança de taxas diretamente pela prestação de serviços e que não entrariam mais no caixa único da União.

Isso fortalece também a pauta de outros setores como os militares, que buscam a garantia constitucional de 2% do PIB para seus gastos (atualmente, em 1,4% do PIB, ou R$ 123 bilhões). Pode-se deduzir que o resultado esperado seja a perda de controle sobre o orçamento da União, com a sua fragmentação em várias partes autônomas, com aumento das despesas públicas, sem preocupações com a eficiência e economicidade desses gastos como um todo. Pode-se até sugerir que esse tipo de agenda favoreça, basicamente, grupos seletos de funcionários públicos.

2. As atribuições do BC são compatíveis com a natureza de empresa pública?

BC não exerce especificamente uma atividade econômica, mas presta atividade estatal fundamental. Trata-se de atividade típica de Estado. O BC é executor de políticas públicas delineadas nas Leis 4.595/1964 e LC 179/2021. Em nosso ordenamento jurídico, as atividades típicas de Estado são desempenhadas sob regime de direito público, pela administração direta ou pelas autarquias, neste caso se for recomendada gestão administrativa descentralizada para seu melhor funcionamento.

Além disso, diferentemente de empresas privadas ou mesmo públicas, o BC não objetiva lucro. O BC não explora atividade econômica, como faz, por exemplo, na área financeira, os bancos públicos Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, e que justifica um regime jurídico de direito privado para essas instituições financeiras. Não é o caso da autoridade monetária.

Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias são instituições estatais caracterizadas pela exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (artigo 173 da CF). Esses bens ou serviços produzidos geram as receitas que irão pagar suas despesas. O artigo 5º do Decreto-lei 200/1967 delineia claramente a diferença de natureza entre os dois regimes jurídicos. Nesse sentido, pode-se concluir por uma incompatibilidade entre o modelo de empresa pública e as atribuições típicas de Estado exercidas pelo BC.

3. Delegação de poder de polícia a pessoa jurídica de Direito Privado?

Juridicamente, o STF já entendeu a viabilidade de delegação administrativa do poder de polícia estatal a “pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial” (Recurso Extraordinário nº 633.782, do Relator Min. Luiz Fux). Todavia, a Suprema Corte deixou claro que não estava compreendido, nessa possibilidade, o exercício de capacidades normativas, que são essenciais para o BC.

A autarquia regula não apenas a moeda e o mercado de câmbio, mas o sistema financeiro como um todo. De fato, o BC exerce poder de polícia sobre o sistema financeiro nacional, atividade típica da Administração Pública. Isso inclui: regimes de autorização e de resolução, pelos quais a autarquia intervém diretamente na gestão de instituições privadas do sistema financeiro, e quanto ao direito sancionador, no exercício de supervisão prudencial.

4 Outros aspectos

É provável a judicialização pelos servidores do BC de demandas trabalhistas, diante da mudança de regime estatutário para CLT, o que envolverá valores bilionários. Com efeito, a PEC não está lidando com o impacto orçamentário-financeiro em termos previdenciários que derivarão da PEC em sendo aprovada, o que contraria o espírito de responsabilidade fiscal que se tem construído no país desde os anos 1990, nos termos do próprio artigo 113 do ADCT.

Outra crítica é que não há estipulação de teto remuneratório aos novos servidores. O Substitutivo apresentado pelo relator na CCJ prevê apenas um teto global para crescimento de despesas de pessoal e custeio, a ser futuramente definido por LC. Isso significa dizer que haverá limite global para as despesas, mas os diretores e funcionários da empresa pública BC não estarão limitados individualmente ao teto dos servidores públicos.

Conclusão

Como se procurou mostrar, o arcabouço jurídico de sustentação orçamentária e financeira às políticas monetárias e cambial não impõe restrição que justifique a alteração constitucional. O BC não possui constrangimentos para execução de política monetária e cambial, o que contesta a necessidade de transformação da autarquia em empresa pública.

As restrições que observa são apenas aquelas típicas do serviço público. Nesse sentido, a PEC consiste em uma “jabuticaba” que desvirtua a natureza jurídica do BC, que decorre de sua atividade estatal e que não é de empresa. Além disso, constitui perigoso precedente para aprovar novas proposições em desmonte ao regime fiscal federal.

A proposta é clara no sentido de enfraquecer o regime fiscal do país, em benefício dos dirigentes do BC, mas não da administração pública. Rompe-se a unicidade orçamentária e a eficiência da alocação de recursos federais. Além de desnecessária, identifica-se um desacoplamento da justificação com a realidade fática, apontando para uma problemática muito pontual, para aumentar salários dos dirigentes, que sugere constituir caso de lawfare. Há a instrumentalização do Direito sem correspondência com a promoção de eficiência da administração pública ou de outro parâmetro coletivo que aprimore a atuação estatal.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161269. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Direito Administrativo da organização e as relações organizativas

A organização administrativa brasileira exige para o seu estudo mapas e roteiros: conhecimento das estruturas organizacionais e, igualmente, ciência do modo de interação entre os órgãos e as entidades públicas.

As estruturas de organização típicas aparecem no mapa da administração e facilitam identificar a individualidade organizatória, os traços presumidos de determinada entidade ou órgão (sempre sujeitos a confirmação ou transformação ao longo do tempo). As relações organizativas informam, por outro lado, o modo efetivo de funcionamento das estruturas organizacionais e o seu grau de independência ou subordinação, isolamento ou integração, em face das demais unidades do aparato administrativo.

Surpreendentemente, as relações organizativas são amplamente subestimadas, objeto de abusos e incompreensões, manejadas por atos secundários ou individuais pouco transparentes da autoridade pública. Essa situação cria insegurança jurídica para indivíduos, empresas e para os próprios gestores, pois a indeterminação das fronteiras da atuação legítima de autoridades públicas prejudica a agilidade e a estabilidade das decisões administrativas. Sem roteiros claros quanto ao tráfego real das competências ou do exercício das competências a informação caminha enviesada na intimidade da organização e a decisão é adiada ao máximo, atitude defensiva de gestores que compromete a produtividade das estruturas públicas.

Relações organizativas ou atos de organização?

Hierarquia, autonomia, supervisão, coordenação, cooperação e controle — para referir apenas as mais usuais — não são atos ou fatos administrativos e sim relações organizativas densificadas por atos administrativos. É equívoco ainda as definir como um “estado natural” ou “uma relação entre indivíduos/autoridades”, desconsiderando relações interorgânicas e interadministrativas dentro da complexa pluralidade das estruturas públicas.

O direito administrativo da organização não é exclusivamente um direito de sujeitos administrativos, mas igualmente um direito de relações organizativas. E por sujeitos administrativos não se alude necessariamente a pessoas, pois há sujeitos administrativos que não são pessoas jurídicas (por exemplo, os órgãos, que são unidades de atuação despersonalizadas e ao mesmo tempo sujeitos administrativos na medida em que a lei lhes atribua identidade organizatória, direitos-função e sejam centros individualizados de imputação jurídica) [1].

As normas de organização podem ser primárias (legais e constitucionais) e secundárias (regulamentares ou derivadas), mas é grave quando relações de organização e prorrogativas derivadas não encontram balizas claras em normas antecipadamente estabelecidas. O jogo mais perigoso é o jogo sem regras. Há necessidade de o legislador voltar os olhos com maior atenção para as relações organizativas como elemento essencial à garantia dos cidadãos, pois a distribuição de tarefas e encargos, competências e prerrogativas, no interior da administração não deve ser imprevisível. Este não é um problema de determinado governo, ou do governo do momento, mas do Estado brasileiro.

A determinação da competência como problema organizatório

A Constituição e as leis criam as competências públicas. E não pode ser de outro modo: “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, artigo 5, II). No entanto, a distribuição concreta das competências legais, a sua abrangência prática e o grau de sua definitividade no âmbito público dependem de relações mantidas na intimidade da organização dos poderes. E assim também ocorre na organização administrativa.

A  transferência de competências de um para outro órgão na administração direta, possível de realizar-se por simples decretos de organização (CF, artigo 84, VI, a);  a decisão de recursos hierárquicos e de recursos hierárquicos impróprios (em verdade, recursos de supervisão), no segundo caso quando isto seja expressamente admitido por lei (CF, artigo 37 XIX e XIX); a arbitragem administrativa de conflitos interorgânicos ou conflitos de competência; medidas de desconcentração de competências na intimidade de uma mesma pessoa administrativa ou de descentralização de competências de uma pessoa administrativa para outra, inclusive em termos interfederativos (CF, artigo 241), são algumas hipóteses que evidenciam a distância que separa a dinâmica da organização do quadro geral estático das formas de organização.

A exigência de autorização legal para o exercício da competência material pelos órgãos e entidades públicas indiscutivelmente é garantia fundamental de liberdade, mas é insuficiente: ela oferece segurança apenas quando há regras que definem antecipadamente o como, o quando e a extensão possível relativamente às transferências de competências (ou de exercício de competência) na intimidade da organização administrativa. Essas regras devem ser flexíveis, permitir o manejo seguro e facilitado de encargos e prerrogativas no interior da organização, mas devem existir com precisão e serem conhecidas de todos, para a segurança dos próprios gestores.

Por exemplo, hoje não há regras para definir claramente as prerrogativas decorrentes do artigo 84, VI, a, da Constituição. Pode o presidente, por decreto de organização, esvaziar amplamente as competências de órgãos públicos, sem extingui-los, transferindo-as para outros órgãos? Pode invocar a previsão do artigo 84, VI, a (“dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal”), combinada com prerrogativa constante do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) para transferir competências inseridas na esfera de pessoas descentralizadas ou apenas manejar e redistribuir competências de órgão da administração direta? Se não pode, com decreto de organização, aumentar despesa, criar ou extinguir órgãos públicos, pode inviabilizar o exercício dessas mesmas competências com a omissão, sem limite, do ato de nomear dirigentes ou integrantes de órgãos colegiados essenciais ao funcionamento desses órgãos ou de entidades supervisionadas? Pode reduzir despesas, e a liberação financeira de recursos orçamentários, suprimir ou transferir todo o pessoal de determinado órgão sem que essas ações sejam consideradas “extinção de órgão”? Pode fundir órgãos subordinados, preservadas todas as competências materiais estabelecidas pelo legislador, para evitar a duplicidade de estruturas organizativas? Em outras palavras, a proibição de extinção de órgãos por decreto de organização é material ou formal? Órgãos devem ser considerados extintos quando a previsão orçamentária aprovada não se converter em liberação financeira efetiva em termos relevantes e substanciais?

Na supervisão ministerial, por igual, permanecem incertos os limites dos recursos de supervisão. Cabem para atos normativos ou apenas para atos administrativos concretos? Podem ser consideradas implícitas na competência do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) ou exigem lei expressa autorizativa, dada a natureza da entidade supervisionada de possuir personalidade autônoma, destacada da administração direta por decisão do legislador (CF, artigo 37, XIX e XX)? O legislador pode afastar completamente os poderes de tutela quando adotadas decisões finais em diretoria colegiada, como parece ter fixado o artigo 3º, da Lei 13.848/2019? Quais os limites da supervisão ministerial em termos de “adequação das entidades às políticas públicas”? Como assegurar a efetiva ampliação de autonomia gerencial, orçamentária e financeira de órgãos e entidades que assinarem contratos de desempenho, na forma do artigo 37, §8º, da Constituição, sem que os compromissos assumidos sejam comprometidos por contingenciamentos ou lentidão na liberação financeira?

Na relação de hierarquia, do mesmo modo, há limites pouco explorados. Além dos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público, Defensoria, Tribunais de Contas), mesmo na intimidade dos órgãos exclusivamente administrativos da administração direta há alguns que não podem, pela natureza das funções, subordinarem estas a determinações hierárquicas. É o caso dos colegiados consultivos, com frequência não remunerados e de representação social; os colegiados deliberativos, presididos pela autoridade máxima do órgão, mas que deliberam em votação e discussão as matérias a seu cargo; os órgãos periciais e policiais na matéria pertinente às investigações e perícias a serem produzidas.

Por óbvio, para várias dessas perguntas professores de direito oferecem diferentes respostas. Respostas com frequência polêmicas, que dividem e apaixonam correntes de entendimento, suscitam questionamentos, repercutem no Poder Judiciário e deixam inseguros os próprios gestores.  Se desejamos uma administração pública mais eficiente e menos vacilante, mais econômica e menos redundante, socialmente mais efetiva e menos questionada em cada passo, devemos cuidar de disciplinar com maior clareza e precisão as suas normas de organização como tarefa urgente e estruturante do Estado, sobretudo as normas dedicadas às relações organizativas [2].

Comissão de Revisão do DL 200/67

No âmbito dessa missão de Estado, de complexidade indiscutível, o governo federal recentemente instituiu Comissão de Especialistas destinada a sugerir a revisão global do Decreto Lei 200/1967, editado em pleno período autoritário, ainda hoje considerado norma referencial em matéria de organização administrativa.

Embora amplamente superado pela legislação superveniente, o Decreto-Lei 200 segue sendo norma que suscita incompreensões e oculta lacunas relevantes da disciplina da organização administrativa no Brasil. Nessa missão de revisão, a Comissão dividiu os seus trabalhos em cinco eixos temáticos:

1) Eixo A – Estrutura Organizacional: Administração direta e supervisão ministerial; Autarquias, fundações e novas figuras; ⚬ Governança de estatais;

2) Eixo B – Governança, planejamento e orçamento: Ciclo de política pública; Tomada de decisão e sistemas de governança; Coordenação entre planejamento e orçamento; Metodologias e instrumentos para planejamento e acompanhamento da execução orçamentária; Monitoramento e avaliação;

3) Eixo C – Parcerias em políticas públicas: Articulação e atuação interfederativa; Parcerias com a sociedade civil ⚬ Participação social;

4) Eixo D – Inovação e controle: Inovação na gestão e em políticas públicas; Transformação digital na administração pública; Integridade e transparência; Sistema de controle; Relação entre gestão, inovação e controle.

Os eixos revelam a abrangência do trabalho, que pretende seguir metodologia participativa: realização de eventos em diversas capitais para debate ampliado dos tópicos referidos, oitiva de instituições interessadas e elaboração de relatórios propositivos para cada eixo antes da consolidação dos resultados dos debates em anteprojeto normativo a ser apresentado ao presidente da República. Trata-se de percurso mais demorado do que a simples elaboração de uma proposta normativa direta, porém uma escolha que pode render frutos e sugestões enriquecedoras.

Tendo sido convidado a integrar a Comissão, desta vez formada não apenas por professores de direito e integrada também por administradores e cientistas políticos, pretendo nos próximos meses – e colunas – abordar tópicos relacionados à organização administrativa brasileira e possíveis respostas para o seu desenvolvimento.

Há reformas administrativas que dispensam emendas constitucionais, proclamações solenes, balas de prata, enunciados eloquentes. A reforma da organização federal, que nos formatos organizacionais de direito privado aplica-se a todos os entes da Federação, pode eventualmente oferecer soluções para uma administração mais eficaz, eficiente e socialmente justa e sintonizada com o nosso tempo. Para a atender a esses fins ela deve cuidar com atenção especial, além das formas de organização, das relações organizativas que movimentam e articulam as decisões na intimidade da administração pública.


[1] Sobre o tópico dos órgãos como sujeitos administrativos, e a dissociação entre os conceitos de sujeito de direito e personalidade jurídica (presente também no direito privado), cf. MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo governo federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009; 2ed, 2011. Na internet, disponível no endereço: https://www.academia.edu/45494341 Sobre o conceito de direito-função, direito à própria função, reconhecido aos órgãos inclusive para a defesa judicial de atos contrários a suas prerrogativas institucionais, há inúmeros precedentes (entre muitos, STF, MS 21.239, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgamento 05/06/1991, DJ 23-04-1993; ADI 1557, rel. min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 18.06.2004; RE 595176 AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julg. 31/08/2010, DJe-235, 03-12-2010; ADI 5.275, rel.  Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julg. 11/10/2018, DJe-230, 26-10-2018). A doutrina administrativa repete como mantra que os órgãos não são pessoas, embora possam gozar de “personalidade judiciária, podendo demanda em juízo e defender os seus direitos institucionais” (STJ, Súmula 525). Mas não é isto que está em causa no plano interno da organização administrativa. Neste domínio, os órgãos possuem subjetividade organizatória, desde que a lei assim o estabeleça, seja diretamente (assegurando independência) seja indiretamente (fixando competências materiais incompatíveis com o exercício desimpedido de poderes hierárquicos). O direito real não está submetido a mantras.

[2] Sobre a tentativa anterior, na Gestão Lula I, de reforma da organização administrativa, conferir: MODESTO, Paulo. Anteprojeto de novas lei de lei de organização administrativa: síntese e contexto. REDE, n. 27, 2011. Disponível em https://www.academia.edu/7789782 ou http://www.direitodoestado.com.br/artigo/paulo-modesto/anteprojeto-de-nova-lei-de-organizacao-administrativa-sintese-e-contexto

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Erro em manuseio de sistema de tribunal afasta renúncia a prazo recursal, decide STJ

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que um recurso interposto após a parte ter renunciado ao prazo deve ser aceito para julgamento, pois foi reconhecido que a renúncia decorreu de erro no manuseio do sistema eletrônico. De acordo com o colegiado, esse entendimento privilegia os princípios da razoabilidade, da confiança e da boa-fé processuais.

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Parte selecionou campo de renúncia a prazo, apesar de ter peticionado agravo – Freepik

Em ação de execução de título extrajudicial, uma das pessoas envolvidas no processo renunciou ao prazo para recorrer no sistema eletrônico do tribunal de segundo grau, sem, contudo, peticionar nesse sentido, tendo apenas selecionado o campo correspondente no sistema.

Logo em seguida, a mesma parte interpôs agravo contra uma decisão da corte. A parte contrária, então, apresentou contrarrazões ao agravo, alegando que o recurso não poderia ser conhecido em virtude da expressa renúncia ao prazo.

O tribunal estadual, porém, considerou que os pressupostos de admissibilidade estavam presentes e que, diante da interposição do recurso dentro do prazo, a renúncia informada no sistema era irrelevante. A corte concluiu que houve apenas um erro material e conheceu do agravo.

Princípio da boa-fé

A relatora do caso na 3ª Turma, ministra Nancy Andrighi, explicou que, nos termos do artigo 225 do Código de Processo Civil, a parte poderá renunciar ao prazo estabelecido exclusivamente em seu favor, desde que o faça de maneira expressa.

A ministra também observou que, conforme preceitua a doutrina, a renúncia ao prazo se caracteriza como negócio jurídico, devendo ser interpretada de acordo com as normas respectivas previstas no Código Civil.

Apesar da previsão normativa, a relatora apontou que vícios de vontade podem contaminar negócios processuais. A partir da interpretação do artigo 138 do Código Civil, Nancy Andrighi afirmou que o negócio jurídico pode ser anulado devido a erro que, além de essencial, seja desculpável, resultante do manuseio equivocado do sistema eletrônico.

Para a magistrada, se houve renúncia ao prazo e, ainda assim, foi interposto recurso que cumpre os requisitos de admissibilidade, tendo a parte peticionado para informar que sua intenção era a de efetivamente recorrer e tendo o julgador concluído pela ocorrência de erro escusável no manuseio do sistema eletrônico, a renúncia deve ser anulada.

Esse entendimento está apoiado em jurisprudência do STJ, que demonstra a necessidade de tolerância em situações semelhantes (EAREsp 1.759.860).

“Com este entendimento, privilegiam-se os princípios de razoabilidade, confiança e boa-fé presentes no Código de Processo Civil, bem como interpreta-se o negócio jurídico processual conforme determina o Código Civil”, pontuou a ministra Nancy Andrighi. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 2.126.117

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Novo sistema de peticionamento usado no plantão judiciário passa a valer para todos os habeas corpus

O novo sistema de peticionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), adotado inicialmente para os dias de plantão judiciário (sábados, domingos e feriados), está disponível também para a impetração de habeas corpus a qualquer tempo. As petições continuam sendo enviadas pela Central do Processo Eletrônico (CPE), mas o ambiente atualizado torna a operação mais fácil e segura.

De acordo com a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, o aperfeiçoamento da plataforma tem importância estratégica, pois dá mais rapidez e segurança ao processamento dos pedidos. “O habeas corpus é uma das classes processuais com maior crescimento nos últimos anos. Aprimorar a tramitação desse instrumento de defesa dos direitos do cidadão é fundamental para que o tribunal possa dar respostas à sociedade de forma célere”, comentou a ministra.​​​​​​​​​

As vantagens do novo ambiente, criado para o peticionamento no plantão judiciário, agora estão a serviço da impetração de habeas corpus em qualquer dia da semana.

Atualmente, o habeas corpus é a segunda classe processual mais recebida pelo STJ, ficando atrás apenas do agravo em recurso especial. Em 2024, até o mês de agosto, foram recebidos cerca de 53,3 mil habeas corpus, o que corresponde a aproximadamente 18% de todos os processos em tramitação na corte.

Somente durante as férias forenses de julho, a Presidência e a Vice-Presidência receberam mais de 10 mil processos, a maioria dos quais – 6.856 – era constituída de habeas corpus.

Peticionamento mais rápido e seguro para advogados

O novo sistema traz atualizações baseadas em visual law (uso de recursos visuais para facilitar a compreensão de mensagens na área do direito) e linguagem simples, para evitar equívocos quanto às possibilidades de peticionamento. Além disso, ele é capaz de fazer perguntas direcionadas e solicitar dados e documentos com base nas respostas fornecidas pelo usuário.

Nas palavras de Augusto Gentil, titular da Secretaria Judiciária (SJD), a plataforma foi totalmente repaginada para oferecer mais segurança e assertividade aos advogados no ato de peticionar. “O novo formato trará mais celeridade ao processamento inicial dos habeas corpus e permitirá ao STJ promover a automação de rotinas cartorárias a partir das informações obtidas”, disse o gestor.

O novo ambiente de peticionamento foi inaugurado durante os dias de plantão judiciário de julho, e os primeiros resultados positivos já apareceram. A funcionalidade foi aprovada pelos advogados, que destacaram a interatividade do sistema e a facilidade de peticionar.

Essa percepção foi compartilhada pelo coordenador de Classificação e Distribuição de Processos da SJD, Jorge Gomes, que revelou os avanços da nova plataforma: “Observamos uma redução no número de processos encaminhados. Isso indica que o sistema está mais claro e tem ajudado os advogados, pois os processos passaram a ser recebidos com mais informações preenchidas e documentos devidamente identificados. Diante desses resultados, decidiu-se expandir o uso da versão interativa”.

Fonte: STJ

Restrição do STJ à judicialização do Carf valoriza tribunal administrativo

Ao restringir o uso da ação popular para atacar acórdãos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), o Superior Tribunal de Justiça valoriza a função exercida pelo órgão dentro da administração tributária.

Acórdão do Carf foi atacado por ação popular ajuizada por auditor fiscal inconformado com resultado pró-contribuinte – André Corrêa/Agência Senado

A conclusão é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em relação ao julgamento da 1ª Turma do STJ, concluído na terça-feira (6/8).

O colegiado definiu que a ação popular só serve para contestar acórdãos do Carf se as posições assumidas forem ilegais, contrárias a precedentes sedimentados ou maculadas por abuso de poder.

Presidente do Conselho entre 2022 e 2023 e conselheiro de 2012 a 2018, Carlos Henrique de Oliveira, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, avalia que a posição do STJ é pertinente, por demonstrar uma visão sistêmica.

Embora o Carf faça parte da administração tributária, é um tribunal administrativo de composição paritária — metade composto por representantes da Receita, metade por indicados por entidades empresariais — que se pauta pelo respeito ao equilíbrio entre o Fisco e os contribuintes.

“O Carf só tem relevância pública se efetivamente pacificar os litígios tributários. Se ele não tiver essa função pacificadora, não adianta. Aí vai tudo pro Judiciário. E ele exerce essa função proferindo decisões justas”, disse o advogado.

“A visão do STJ valoriza o tribunal administrativo, permitindo que suas decisões sejam atacadas desde que eivadas de ilegalidade”, afirmou.

A ex-conselheira Mírian Lavocat, sócia do Lavocat Advogados, também elogiou a posição do STJ, ao destacar que as decisões pró-contribuinte do Carf passam por um processo amplo, com contraditório e ampla defesa respeitado para ambas as partes.

“É bom que o STJ uniformize essa questão, no sentido de que a ação popular não pode ser diminuída para combater vícios inexistentes. Não se pode diminuir o objeto de uma ação popular.”

Respeitem o Carf

A posição do STJ é benéfica para os contribuintes porque a ação popular, regulada pela Lei 4.717/1965, é o meio à disposição de qualquer cidadão para invalidar atos que considere lesivos ao patrimônio público.

Quando usadas contra o Carf, elas apontam que esse prejuízo seria causado pelas posições contrárias ao Fisco tomadas pelo conselho, ao entender não serem devidos os créditos tributários alegados pela Receita Federal.

Esse uso da ação popular, portanto, será sempre contrário às pretensões do contribuinte. Até porque as empresas que são derrotadas administrativamente não têm qualquer restrição ao ajuizamento de ações para discutir judicialmente as mesmas questões tributárias.

O recurso julgado partiu de uma entre centenas de ações populares ajuizadas por um único auditor fiscal contra o Carf. Só no STJ há mais de 200 recursos especiais e agravos, segundo a ministra Regina Helena Costa.

Esse grau de litigiosidade decorre de uma opção pessoal do auditor fiscal e não reflete uma visão institucional. Ainda assim, um procurador da Receita Federal fez sustentação oral na 1ª Turma para defender o uso da ação popular, invadindo o mérito da discussão.

Esse fator não passou despercebido e gerou críticas. A ministra Regina Helena Costa disse que nota uma cruzada contra o Carf em andamento e que a própria União, por vezes, não o reconhece como um órgão de sua própria estrutura.

“Se não for assim, que se extinga o Carf. Se não se aceita que um órgão de composição paritária possa julgar favoravelmente ao contribuinte, então para que existe esse órgão?”, provocou a relatora.

Bronca propícia

Para Carlos Henrique de Oliveira, a bronca chama atenção para o fato de que Carf, Fisco e Procuradoria-Geral da Receita Federal estão do mesmo lado e em pé de igualdade. “Se o Carf faz parte da administração tributária, não faz sentido a procuradoria se insurgir.”

“Pena que, nesses casos de ação popular, não existe sucumbência”, disse Mirian Lavocat. “Em situações como essa, de litígio despropositado, mereceria uma sucumbência inclusive recursal no STJ.”

Ela avalia que, desde 2015, após a “operação zelotes”, há uma tentativa de diminuir e desmoralizar o Carf, órgão que é prolator de decisões citadas nas jurisprudências de STJ e do Supremo Tribunal Federal.

A investigação citada envolveu denúncia de redução e anulação de créditos tributários de grandes empresas, mediante suposto pagamento de propina a conselheiros.

Ela gerou auditoria do Tribunal de Contas da União, que concluiu que o Carf tinha risco de conflito de interesse no sistema de escolha dos conselheiros, além de problemas de transparência, gestão da ética, processo de responsabilização e morosidade dos julgamentos.

“Acredito que essa postura busca desacreditar o tribunal administrativo e consequentemente, diminuir as garantias constitucionais dos contribuintes, eis que a composição do Carf é paritária, ou seja, composto por representantes da Receita Federal e dos contribuintes”, opinou a advogada.

REsp 1.608.161

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Acidente de trabalho: obrigações para um meio ambiente preventivo

No último dia 27 de julho foi celebrado o marco nacional pela prevenção dos acidentes do trabalho nas organizações, de sorte que a referida data visa alertar e conscientizar sobre a importância da adoção de práticas que possam minimizar a redução dos acidentes e das doenças relacionadas ao trabalho, e, por certo, proporcionar um meio ambiente do trabalho seguro e saudável [1].

Dada a sensibilidade e a importância do assunto, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Dados estatísticos

De plano, impende frisar que as pesquisas revelam dados alarmantes. De acordo com o Ministério Público do Trabalho, entre os anos de 2012 e 2022, o Brasil registrou aproximadamente 6,7 milhões de acidentes de trabalho, sendo que o país lidera o ranking mundial [3]. Outro estudo indicou que uma pessoa morre a cada 3 horas em razão de acidente típico de trabalho sofrido no Brasil, de modo que os gastos com afastamentos previdenciários ultrapassaram a quantia de R$ 150 bilhões [4].

De outro norte, somente no ano de 2022, o país registrou 612,9 mil notificações de CAT (Comunicação de Acidentes do Trabalho), resultando em mais de 148,8 benefícios concedidos pelo INSS e mais de 2.500 óbitos por acidentes [5]. O estado de São Paulo, aliás, foi o que apresentou maior volume de notificações por acidentes de trabalho, seguido por Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Dentre os setores da economia que mais registraram casos de acidentes de trabalho está o segmento da saúde, justamente por conta do atendimento hospitalar, e, na sequência, os profissionais que atuam nos setores da construção civil, transporte rodoviário de cargas e comércio [6].

Legislação

Do ponto de vista normativo no Brasil, de um lado, a Constituição, em seu artigo 7º, inciso XXII [7], estabelece como um direito social dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio das normas de saúde e segurança. Lado outro, a CLT possui um capítulo específico sobre a temática, de sorte a disciplinar acerca dos deveres da empresa [8] e dos empregados [9] quanto à segurança e à medicina do trabalho.

De outro norte, não se pode esquecer das conhecidas “Normas Regulamentadoras – NR”, que consistem em obrigações, direitos e deveres que devem ser respeitados pelos empregadores e pelos empregados [10], sendo válido lembrar que, para a elaboração e revisão dessas normas regulamentares, adota-se um sistema tripartite paritário, que é proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como por grupos e comissões de representantes do governo, de empregadores e trabalhadores.

Aliás, no ano de 2018, o Ministério do Trabalho publicou a Portaria nº 787, de 27 de novembro de 2018 [11], que dispõe sobre as regras de aplicação, interpretação e estruturação das Normas Regulamentadoras, tal como dispõe o artigo 155 da Consolidação das Leis do Trabalho [12].

Já do ponto de vista internacional, a Convenção 155 da OIT sistematiza a segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, com o objetivo de prevenir acidentes e danos, reduzindo, pois, os riscos laborais [13].

Entrementes, é relevante registrar a existência da American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH) [14], uma organização sem fins lucrativos que se dedica a fornecer informações e orientações sobre saúde ocupacional e higiene industrial, fundada em 1938 por um grupo de higienistas industriais governamentais dos Estados Unidos [15].

E no que tange ao aspecto previdenciário, intrínseco aos acidentes laborais, cabe destacar que a Lei nº 8.213, de julho de 1991 [16], que dispõe sobre os planos de benefícios da previdência social, cujo artigo 118 [17] traz a estabilidade no emprego em caso de acidente de trabalho pelo prazo mínimo de 12 meses. De igual modo, a Súmula 378 da Corte Superior Trabalhista enfrenta e questão envolvendo a estabilidade do trabalhador acidentado [18].

Lição de especialista

A propósito da temática, no que se referem aos deveres gerais das empresas e dos trabalhadores em torno da prevenção dos acidentes de trabalho, oportunos são os clássicos ensinamentos de Arnaldo Sussukind, Delio Maranhão, Segadas Viana e Lima Teixeira [19]:

“A legislação brasileira deu ênfase especial a prevenção dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Como veremos adiante, as empresas estão obrigadas – dependendo do respectivo porte e da atividade que empreende – a manter serviço especializado em segurança e medicina do trabalho, além da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), integrada por representantes dela e dos trabalhadores.

Os empregadores têm o dever de instruir seus empregados sobre as precauções a tomar, a fim de evitar acidentes do trabalho, doenças e intoxicações ocupacionais e ainda, colaborar com as autoridades na adoção de medidas que visem à proteção dos empregados e a fiscalização, como veremos adiante, especialmente quanto a comissão de prevenção. Mas a verdadeira prevenção decorre da conscientização do empresário, uma vez que, além do aspecto humano e social, o acidente de trabalho acarreta prejuízo à empresa. E também necessária é a conscientização do trabalhador de que mais graves e dolorosas consequências recaem sobre ele próprio e de sua família”.

Portanto, indubitavelmente, tanto o empregado quanto o empregador possuem obrigações quanto à prevenção aos acidentes, sendo de suma relevância o estudo aprofundado e aplicação das normas regulamentares, que para além de garantirem uma maior segurança e um ambiente laboral equilibrado, previnem casos de doenças e acidentes do trabalho típicos.

Bem por isso, é preciso uma mudança de mentalidade para entender que a prevenção não se trata de um custo para empresa (monetização da saúde), mas sim de um investimento. Vale dizer, é muito mais benéfico a prevenção do acidente do que a reparação em si pelos danos e prejuízos daí resultantes.

Portanto, é imprescindível que haja uma melhor conscientização a respeito da problemática, sobretudo por meio de maior acesso à informação, como também de realização de treinamentos, fornecimento de equipamento de proteção, dentre outros mecanismos. Em arremate, é preciso que sejam adotadas medidas estratégicas e práticas efetivas para a implementação das medidas de segurança, vez que a redução dos acidentes não só garante a proteção e a dignidade dos trabalhadores, mas também proporciona benefícios à sociedade, inclusive, à própria saúde financeira das empresas.


[1] Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/27-7-dia-nacional-da-prevencao-de-acidentes-do-trabalho-7/. Acesso em 30/7/2024.

[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[3] Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2024/04/6847365-brasil-e-um-dos-paises-mais-perigosos-do-mundo-para-trabalhar-diz-mpt.html. Acesso em 30/7/2023.

[4] Disponível em https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/especial-publicitario/soc/noticia/2024/03/26/uma-pessoa-morre-a-cada-3-horas-vitima-de-acidente-de-trabalho-no-brasil.ghtml. Acesso em 30/7/2024.

[5] Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-07/acidentes-de-trabalho-no-brasil-chegaram-612-mil-no-ano-passado. Acesso em 30/7/2024.

[6] Disponível em https://www.cut.org.br/noticias/brasil-registra-mais-de-612-mil-acidentes-de-trabalho-e-mais-de-2-500-mortes-em-f130. Acesso em 30/7/2024.

[7] CRFB, Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XXII redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

[8] CLT, Art. 157 – Cabe às empresas: I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.

[9] CLT, Art. 158 – Cabe aos empregados: I – observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior. Il – colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo. Parágrafo único – Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada: a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior; b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.

[10] Disponível em https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/normas-regulamentadoras-nrs . Acesso em 30/7/2024.

[11] Disponível em https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/inspecao-do-trabalho/seguranca-e-saude-no-trabalho/sst-portarias/2018/portaria_sit_787_-estrutura_e_interpretacao_de_nrs-_atualizada_2019.pdf/view. Acesso em 30/7/2024.

[12] CLT, Art. 155 – Incumbe ao órgão de âmbito nacional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho:  I – estabelecer, nos limites de sua competência, normas sobre a aplicação dos preceitos deste Capítulo, especialmente os referidos no art. 200; II – coordenar, orientar, controlar e supervisionar a fiscalização e as demais atividades relacionadas com a segurança e a medicina do trabalho em todo o território nacional, inclusive a Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes do Trabalho; III – conhecer, em última instância, dos recursos, voluntários ou de ofício, das decisões proferidas pelos Delegados Regionais do Trabalho, em matéria de segurança e medicina do trabalho.

[13] Disponível em https://www.trt2.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_155.html. Acesso em 30/7/2024.

[14] Disponível em https://www.acgih.org/ . Acesso em 30/7/2024.

[15] A ACGIH é reconhecida internacionalmente como uma autoridade líder no campo da higiene industrial e saúde ocupacional.

[16] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em 30.7.2024.

[17] Lei 8.213/1991, Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente.

[18] Súmula nº 378 do TST. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ACIDENTE DO TRABALHO. ART. 118 DA LEI Nº 8.213/1991. (inserido item III) – Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I – É constitucional o artigo 118 da Lei nº 8.213/1991 que assegura o direito à estabilidade provisória por período de 12 meses após a cessação do auxílio-doença ao empregado acidentado. II – São pressupostos para a concessão da estabilidade o afastamento superior a 15 dias e a conseqüente percepção do auxílio-doença acidentário, salvo se constatada, após a despedida, doença profissional que guarde relação de causalidade com a execução do contrato de emprego. III – O empregado submetido a contrato de trabalho por tempo determinado goza da garantia provisória de emprego decorrente de acidente de trabalho prevista no  n  no art. 118 da Lei nº 8.213/91

[19] Instituições de direto do trabalho, volume 1 – São Paulo: LTr, 2005. Página 940.

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Agravamento do risco no contrato de seguro

O contrato de seguro é essencialmente marcado pelo risco. Enquanto elemento que independe da vontade das partes, o risco se caracteriza pela possibilidade da ocorrência de um evento futuro e incerto que ameaça o interesse do segurado [1], de modo a justificar a necessidade de proteção, “relativo à pessoa ou a coisa”, por meio do contrato de seguro (artigo 757 do Código Civil). A obrigação do segurador é, portanto, a de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados mediante o recebimento de uma contraprestação. É dizer, o seguro é a transferência do risco do segurado para o segurador.

 

O mutualismo é também uma característica fundamental do seguro. A partir da contribuição dos prêmios, os riscos são pulverizados entre os segurados, formando um fundo comum que suportará o ônus em caso de sinistro. Daí porque a boa-fé no contrato de seguro desempenha um papel crucial na análise precisa do risco assumido pela seguradora, uma vez que essa avaliação é resultado das informações fornecidas pelo segurado.

Qualquer desajuste nesta etapa — seja por omissão de dados, seja pela prestação de informações distorcidas ou imprecisas — pode desequilibrar o contrato.  Afinal, “a qualidade, a transparência e a veracidade das informações transmitidas ao segurador são requisitos que impactam a possibilidade de obter uma cobertura de seguro-garantiadesde a formação, interpretação, execução e extinção contratual” [2].

Essa assimetria também decorre de outro aspecto. O risco não é estático e pode ser alterado durante a vigência do contrato, seja por ação do segurado ou por fatores alheios ao seu controle.  A primeira hipótese interessa à reflexão, isto é, quando o segurado é o agente responsável pela modificação do risco, agravando a probabilidade de sinistro (ou suas consequências) a ponto de perder a garantia.

O artigo 768 do Código Civil estabelece que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. Doutrina e jurisprudência não conseguiram alcançar um consenso a respeito da temática do agravamento do risco, especialmente no tocante ao requisito da “intencionalidade”, devido à subjetividade do conceito. Apesar das divergências, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) delimitou como característica de conduta capaz de gerar a perda do direito à garantia a intencionalidade do agente, ou seja, a existência de conduta volitiva capaz de aumentar o risco.

Além da intencionalidade, é essencial analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro. O STJ enfatiza a necessidade de que exista um nexo de causalidade entre o comportamento do agente e o evento. Um exemplo disso ocorre nos casos de embriaguez ao volante, hipótese em que a conduta do sujeito deve ser determinante para o evento.

Nesse sentido: “[…] o estado de embriaguez do condutor de veículo, caso seja determinante para a ocorrência do sinistro, é circunstância apta a excluir a cobertura do seguro contratado, por constituir causa de agravamento do risco [3]“. Do mesmo modo: “[…] o entendimento jurisprudencial recente procurou buscar amenizar os efeitos do agravamento dos riscos por ato voluntário do segurado, pendendo para a solução de que se deve analisar a conduta do segurado no contexto do sinistro”. [4]

Seguro para danos derivados de vendaval

Se a intencionalidade é atributo da conduta que agrava o risco, logo, aquilo que foge da vontade e do controle do segurado não tem aptidão para atrair a consequência prevista no artigo 768.

Essa reflexão pode ser ilustrada pela apelação cível nº 0003946-39.2012.8.26.0590, julgada pela 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo [5]. O caso envolvia reclamação de segurado de apólice de seguro empresarial (multirriscos) com cobertura para danos derivados de vendaval. Neste caso, embora comprovada a ocorrência de vendaval (risco coberto pela apólice), a seguradora argumentou que o segurado havia agravado o risco ao não realizar os reparos no telhado por ocasião de um primeiro sinistro decorrente do mesmo fator climático ocorrido no mesmo local.

O Juízo, no entanto, afastou a tese defensiva ao ponderar que os reparos não foram efetuados em virtude da ausência de pagamento da indenização securitária a tempo e modo. A conclusão prestigiou a boa-fé no sentido de que “não se poderia exigir que o segurado arcasse com o prejuízo decorrente do evento coberto para aguardar a boa vontade da seguradora em cumprir sua obrigação de indenizá-lo”.

A temática do agravamento do risco também foi debatida na apelação cível nº 1052968-83.2020.8.26.0100 pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, desta vez no contexto do seguro-garantia. O acórdão fundamentou-se na constatação de que alterações contratuais significativas foram realizadas sem o conhecimento da seguradora, o que resultou em um claro agravamento do risco e ofensa aos artigos 768 e 769 do Código Civil.

No caso em análise, o tribunal registrou que os atrasos e falhas da empresa tomadora no curso do contrato de empreitada não foram comunicados à seguradora e que a providência era necessária para que a companhia, então, “pudesse reavaliar o risco do negócio à luz da nova realidade”.

A decisão enfatizou que a comunicação dessas alterações era não apenas uma obrigação contratual, mas também uma medida necessária para que a seguradora pudesse ajustar sua avaliação de risco de acordo com os novos termos estabelecidos. Essa interpretação consagra a boa-fé objetiva especialíssima aplicável ao seguro e sintetiza em que medida a conduta do segurado pode resultar em desequilíbrio da equação econômica do contrato.

Como visto, os atributos do agravamento do risco capazes de resultar na perda do direito à garantia estão sendo moldados e definidos à luz da casuística. A jurisprudência tem desempenhado papel fundamental nesse processo, buscando interpretar e aplicar os requisitos legais de forma a equalizar os interesses das partes envolvidas. Além disso, a boa-fé tem sido o princípio orientador dessas decisões, garantindo que seja preservado o equilíbrio da mutualidade.


[1] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 3ª edição, Rio de Janeiro, 1999. p. 215.

[2] POLETTO, Gladimir Adriani. O seguro-garantia. São Paulo: Editora Roncarati, 2021. p. 53 e 183

[3] AgInt no AREsp 1.629.694/PB, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 21/09/2020, DJe de 24/09/2020.

[4] STJ – REsp: 1175577 PR 2010/0004761-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/11/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/11/2010

[5] TJ-SP 00039463920128260590 SP 0003946-39.2012.8.26.0590, Relator: Mariella Ferraz de Arruda Pollice Nogueira, Data de Julgamento: 24/04/2018, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/04/2018.

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