A montanha-russa regulamentar do Ex-tarifário

O regime de Ex-tarifário instituído pela Lei nº 3.244/1957 é um importante mecanismo de política comercial que permite a isenção ou redução do Imposto de Importação para bens de capital (BK) e bens de informática e telecomunicações (BIT), bem como suas partes, peças e componentes, quando não há produção nacional equivalente, ou esta é insuficiente para atender ao consumo interno. [1]

Sua base normativa encontra-se também no inciso I do artigo 14 do Decreto-Lei nº 37/1966, na Decisão Mercosul/CMC/Dec 34/03, em seu artigo 1º, e no Decreto no 5078, de 11/05/04. Sua importância está sintetizada pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), como sendo: (i) viabilizar o aumento de investimentos em bens de capital (BK) e de informática e telecomunicação (BIT); (ii) possibilitar o aumento da inovação por parte de empresas, com a incorporação de novas tecnologias inexistentes no Brasil, ampliando produtividade e competitividade; (iii) promover  um efeito multiplicador de emprego e renda da economia nacional.” [2]

Como o imposto de importação atende a objetivos muito diversos do que meramente ser fonte de arrecadação de receitas para o Governo Federal, dentro da sua função regulatória e extrafiscal, promove-se a sua redução por meio da concessão de um regime de exceção tarifária. Esse permite zerar a cobrança do imposto de importação, quando a entrada do produto estrangeiro no território nacional for de interesse do país. Importar máquinas e equipamentos sem produção nacional equivalente estimula o setor produtivo, a inovação, a utilização de tecnologia de ponta, gerando desenvolvimento econômico, social, tecnológico, renda e empregos.

Como o imposto de importação é uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade, nos termos do artigo 153, §1º da CF/88, o uso do Ex-tarifário serve legitimamente às políticas de governo, ora se reduzindo, ora se ampliando sua concessão, atendendo a interesse de maior proteção da indústria nacional, ou estímulo às importações.

Para regular a previsão da exceção às tarifas da TEC (Tarifa Externa Comum), o Poder Executivo, através dos Ministérios competentes, da Fazenda (outrora da Economia) e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem editado resoluções e portarias ao longo dos anos para estabelecer as regras procedimentais para a análise e deferimento dos pleitos de Ex-tarifário.

A aplicação desse benefício a bens usados e destinados à revenda têm sido, nos últimos anos, um ponto de câmbios regulatórios, gerando incertezas para os importadores e acerbas discussões. A análise das normas que regularam o Ex-tarifário nos últimos dez anos revela uma trajetória de idas e vindas e, notadamente quanto à possibilidade de importação de bens usados com o benefício, é possível distinguirmos três momentos principais, a saber:

1º momento: vedação expressa (Resolução Camex nº 66/2014)

A Resolução Camex nº 66, de 14 de agosto de 2014, nesse período, foi a primeira norma a dispor sobre a redução temporária e excepcional da alíquota do imposto de importação para BK e BIT sem produção nacional equivalente, estabelecendo também as regras procedimentais para se requerer o benefício. Durante sua vigência essa resolução limitava expressamente a concessão dos Ex-tarifários exclusivamente a bens novos, excluindo, portanto, os bens usados, conforme previsão expressa do §3º do seu artigo 1º. Assim, qualquer Ex-tarifário analisado e deferido nesse período não abarcava a importação de bens usados.

2º momento: a abertura e a interpretação da Receita (Portaria ME nº 309/2019 e Soluções de Consulta Cosit)

Em 24 de junho de 2019 foi editada a Portaria ME nº 309/2019 revogando a Resolução Camex nº 66/2014. Uma novidade relevante na nova regulamentação foi que ela não manteve dentre seus dispositivos a vedação expressa à utilização do Ex-tarifário para bens usados, tampouco para bens de consumo. Embora a Portaria Sepec nº 324/2019 orientasse pela recomendação negativa para pedidos visando aplicação a bens usados na análise técnica, conforme disposição do seu artigo 3º, essa recomendação não possuía caráter vinculante, conforme entendimento 6ª Turma do TRF 3ª Região estabelecida no julgamento da apelação em remessa necessária, no 50018206720204036104 SP, Relator: Desembargador Federal Luís Antonio Johonsom Di Salvo, publicada em 18/02/2021. [3]

Diante da ausência de previsão normativa no texto da Portaria ME nº 309/2019 vedando a aplicação do Ex-tarifário a bens usados, a Receita Federal, respondendo a questionamento de um interveniente, publicou a Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 consignando que o Ex-tarifário concedido nos termos da Portaria ME nº 309/2019 seria aplicável tanto à importação de bens novos, quanto de bens usadosincluindo os remanufaturados ou “refurbished[4]

A Solução de Consulta Cosit nº 122/2020 analisou especificamente um caso em que um Ex-tarifário, inicialmente concedido sob a Resolução Camex nº 90/2017 (que se submetia à vedação da Resolução Camex nº 66/2014), foi prorrogado pela Portaria Secint nº 461, de 26 de junho de 2019, já sob a égide da Portaria ME nº 309/2019. A Receita entendeu à época que deveria prevalecer o regramento procedimental vigente quando da concessão, ou prorrogação, do benefício e que, portanto, esse Ex-tarifário poderia ser aplicado a bens usados. Essa interpretação foi reafirmada de modo ainda mais claro na Solução de Consulta Cosit nº 174, de 18 de setembro de 2023, que reiterou a aplicabilidade do Ex-tarifário, indistintamente, a bens novos e usados, bem como para bens de consumo, isso em relação àqueles concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019, dentro do prazo de vigência do ato concessório.

3º momento: o retorno à vedação e a proteção das expectativas legítimas. (Resolução Gecex nº 512/2023 e Solução de Consulta Cosit nº 76/2024)

Em 18 de agosto de 2023, foi publicada a Resolução Gecex nº 512, de 16 de agosto de 2023, que revogou as Portarias ME nº 309/2019 e Sepec nº 324/2019. Essa nova resolução voltou a prever, nos mesmos moldes da Resolução Camex nº 66/2014, a vedação da aplicação do Ex-tarifário para bens usados, conforme se verifica na disposição do seu art. 2º, §2º, inciso II.

A partir da publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, em resposta a outra consulta de um importador, a Receita Federal estabeleceu sua interpretação das normas por meio da Solução de Consulta Cosit nº 76, de 09 de abril de 2024. Essa esclareceu que até 17 de agosto de 2023 (ou seja, para Ex-tarifários concedidos sob égide da Portaria ME nº 309/2019), a redução de alíquota podia ser utilizada para importação de bens novos e usados.

Contudo, a partir de 18 de agosto de 2023, com a publicação da Resolução Gecex nº 512/2023, o benefício não se aplicaria mais a importação de bens de capital usados e de consumo, restando prejudicado o entendimento exposto na Solução de Consulta Cosit nº 122/2020. [5]

É fundamental ressaltar que essa mudança não possui efeito retroativo, sendo inservível para interpretar e aplicar as exceções tarifárias concedidas anteriormente e com prazo fixo, inclusive prazo fixo posterior à data de publicação da Resolução Gecex nº 512/2023. [6] Ex-tarifários concedidos e válidos sob a vigência da Portaria ME nº 309/2019 podem e devem continuar a ser aplicados para bens usados e independente de sua destinação.

A não retroatividade da nova orientação procedimental da Resolução Gecex nº 512/2023, norma destinada à análise de novos pedidos de Ex-tarifário, é um imperativo legal, sob pena de violação do art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) e do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb).

O artigo 178 do CTN estabelece que a isenção, salvo se concedida por prazo certo [7] e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei a qualquer tempo, mas o benefício concedido por prazo certo passa a ser um direito e uma expectativa legítima do contribuinte. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 24, proíbe que a autoridade dê aplicação retroativa a uma nova interpretação ou critério jurídico, vedando a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral. Princípios magnos como da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da confiança legítima do administrado nos atos da administração são pilares do Estado Democrático de Direito e garantem a estabilidade das situações jurídicas conformadas sob sua vigência.

Nesse quadro, qualquer tentativa de impedir o desembaraço aduaneiro de bens importados com Ex-tarifário válido, sob o fundamento de vedação de sua aplicação a bens usados e importados para revenda, hipóteses previstas na Resolução Gecex nº 512/2023, quando o benefício tenha sido concedido sob vigência da norma anterior, ou seja da Portaria ME nº 309/2019, constitui uma ofensa clara a tais princípios essenciais da ordem jurídica, em confronto com a  jurisprudência já firmada sobre o tema. A título de ilustração, tome-se a decisão do eg. TRF 6ª Região por sua 3ª Turma, no AI nº 6000696-85.2024.4.06.0000, publicado no D.E. 05/02/2024 [8], cujos principais pontos do venerando acórdão, destacamos:

Concessão válida do ex-tarifário antes da nova restrição normativa
A impetrante obteve regularmente, em 04/08/2023, a concessão do benefício ex-tarifário para a importação de bem usado (um bulldozer), antes da entrada em vigor da Resolução Gecex nº 512/2023 (de 16/08/2023), que passou a vedar o benefício a bens usados.

Registro da Declaração de Importação posterior à concessão
O registro da Declaração de Importação (DI) ocorreu em 26/12/2023, ou seja, após a vigência da Resolução GECEX nº 512/2023. Contudo, como o benefício foi concedido antes disso, deve prevalecer a norma vigente à época da concessão do ex-tarifário.

Prevalência de jurisprudência e orientação da PGFN
O acórdão destaca a jurisprudência pacificada do STJ (REsp 1.821.992/RS e outros) e a posição da PGFN (Nota SEI nº 28/2019), que reconhecem que os efeitos do ex-tarifário concedido antes da importação estendem-se até o desembaraço aduaneiro, mesmo para bens usados.

Caráter não retroativo das Resoluções Gecex/Camex
A Resolução Gecex nº 512/2023 não pode retroagir para prejudicar concessões anteriores. Como a concessão do benefício se deu antes da publicação da nova norma, não se aplica a vedação posterior.

Conclusões

A jornada regulatória do Ex-tarifário para bens usados e destinados à revenda é um exemplo claro da necessidade de se conhecer os princípios e regras aplicáveis a cada área e tema do Direito, sendo eles sensíveis para assegurar a previsibilidade nas relações entre a Aduana e os intervenientes, e como as mudanças, ainda que legítimas, do ponto de vista das fontes normativas e autoridades competentes, provocam incertezas e dúvidas que desestimulam a produção e novos investimentos.

Embora a legislação tenha oscilado entre a vedação e a permissão, a interpretação consolidada pela Receita Federal, reiterada em diversas soluções de consulta, é de que a regra aplicável à interpretação é aquela vigente no momento da concessão, ou prorrogação, do Ex-tarifário.

Isso significa que, mesmo com a atual e vigente Resolução Gecex nº 512/2023 vedando a importação de bens usados com aplicação de exceção tarifária, os benefícios que tenham sido concedidos sob a Portaria ME nº 309/2019 — que permitia tal importação, como vimos de ver — permanecem válidos, enquanto perdurar o prazo do ato concessório.

Impedir o desembaraço aduaneiro, ou exigir tributos, em casos de Ex-tarifário concedido sob o regramento anterior configura afronta aos princípios da irretroatividade, segurança jurídica e confiança legítima, garantias fundamentais para o Estado democrático de Direito, para o ambiente de negócios e a relação entre a Administração Pública e os administrados, cabendo ao administrado, se necessário, buscar amparo para o seu direito junto ao judiciário.

A compreensão e o respeito a essa linha temporal de vigência das diferentes normas e aos princípios constitucionais aplicáveis são essenciais para se evitar litígios desnecessários, assegurando um ambiente de negócios estimulante à produção, pautado no respeito às normas vigentes.

No que se refere aos pedidos de renovação de Ex-tarifário, comunicado do site do MDIC [9] estabelecendo o prazo limite até o dia 30 de junho de 2025 para protocolo do pedido em relação àqueles vigentes até 31/12/2025, está em flagrante conflito com o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023, que dispõe, ipsis litteris: Os pleitos de renovação de Ex-tarifários concedidos poderão ser solicitados dentro do período de vigência do Ex-tarifário, com antecedência máxima de 180 (cento e oitenta) dias do seu vencimento.

A mudança do prazo em desafio à norma procedimental também ofende expectativa legítima das empresas interessadas em investir na modernização do seu parque industrial. A ilegalidade merece corrigenda com base no princípio da autotutela administrativa, sem que seja necessária a judicialização da controvérsia. É o que se espera possa ocorrer o quanto antes, restabelecendo-se o prazo previsto no artigo 5º da Resolução Gecex no 512/2023.

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[1] Sobre o tema Ex-tarifário recomendamos a leitura do artigo publicado na coluna por nossa colega Fernanda Kotzias. Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[2] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

[3] Entendimento firmado pela RFB na Solução de Consulta Cosit n76/2024, em seus itens 10 a 14. Disponível em: link. Acesso em 13/06/2025.

[4] Segue trecho da Solução de Consulta n 122/2020 nesse sentido:  -se que não mais consta como requisito à concessão do Ex-tarifário que o bem importado seja novo, requisito existente quando em vigor a Resolução Camex nº 66, de 2014, que, no § 3º do art. 1º, que determinava que a redução da alíquota do Imposto de Importação fosse concedida exclusivamente para bens novos.  (…) quanto a se o bem remanufaturado é novo ou usado. Desde que o bem importado corresponda à descrição do bem constante do Ex-tarifário, terá direito à alíquota reduzida prevista para esse Ex-tributário.

[5] O colega de coluna Leonardo Branco defendeu a ilegalidade da restrição a importação de bens usados incluída na Resolução 512/2023, posição com a qual concordamos. Recomenda-se a leitura do artigo. Disponível em: link Acesso em 13/09/2025.

[6] No mesmo sentido, já escreveu Thales Belchior. Disponível em: link. Acesso: 13/09/2025.

[7] “Trata-se de uma isenção do imposto, concedida por prazo certo, com fundamento no art. 4º da Lei nº 3.244/1957, na redação do Decreto-Lei nº 63/1966:(…)”, in SEHN, Solon. Curso de Direito Aduaneiro. 3ª ed. São Paulo: Ed. Forense, 2025, p. 131.

[8] TRF6, AI 6000696-85.2024.4.06.0000, 3ª Turma, Relator Álvaro Ricardo de Souza Cruz, D.E. 05/02/2024

[9] Disponível em: link . Acesso em 13/06/2025.

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O século 19 e um manual de Direito Civil

Os acontecimentos da história e da política, ao lado dos traços culturais e linguísticos, serviram de combustão para o intercâmbio do ensino jurídico entre Brasil e Portugal. Um deles, o golpe que implantou o Estado Novo entre nós, do qual resultou a Lei Constitucional de 1937, permitindo aos portugueses a acolhida, pelo regime de Oliveira Salazar [1], dos professores brasileiros da Universidade de São Paulo exilados [2].

Posteriormente, após a Revolução dos Cravos Vermelhos (25 de abril de 1974), foi a vez da reciprocidade brasileira. Aqui tiveram acolhida Marcelo Caetano (Uerj), Manuel Antunes Varela (UFBA), José de Oliveira Ascensão (FDR-UFPE) e Alberto Xavier (PUC-SP).

Pouco conhecido é que, mesmo antes da independência, tal acolhimento chegou a se manifestar, muito embora numa experiência singular da qual foi protagonista Lourenço Trigo de Loureiro. Nascido em Viseu (Portugal) em 1793, matriculou-se no Curso de Direito da Universidade de Coimbra, quando ocorreram as invasões francesas ao território lusitano, forçando a fuga de vários estudantes, dentre as quais a sua, cujo desembarque no Rio de Janeiro teve lugar em março de 1810.

Daí a oportunidade aproveitada para integrar a primeira turma de bacharéis do Curso Jurídico de Olinda em 1832, vindo a tornar-se lente substituto em 1833, sendo designado como catedrático em 1852, inicialmente da disciplina “Economia Política” e, posteriormente, em 1855, da cadeira de “Direito Civil” do 4º ano.

A sua excepcional tenacidade organizatória — ressaltada por Gláucio Veiga [3] — permitiu-lhe que desse à estampa vários livros [4], sendo o de maior realce o “Instituições de direito civil”, em dois volumes [5], publicados em 1851, sobrevindo vários reedições, sendo a quinta e última pela Editora Garnier do Rio de Janeiro em 1884 [6].

A obra, adotada nos dois cursos jurídicos em funcionamento, no dizer de Bevilaqua, restou amplamente popularizada, legando bons préstimos “a estudantes, advogados e juízes, porque era a única exposição sistemática do direito civil em português, ao lado de Coelho da Rocha, a quem muito se achegou LOUREIRO” [7].

É preciso advertir que o compêndio foi escrito à época na qual a disciplina da matéria civilística entre nós, representada pelo Livro IV das Ordenações Filipinas de 1603 e leis posteriores esparsas, era anterior à nossa primeira codificação civil (1916) e até mesmo à Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas (1857). Nem mesmo Portugal tinha um Código Civil, o que somente veio acontecer em 1867.

A circunstância, ainda atual, do direito civil ser considerado o direito privado comum ou geral [8], sem contar a centralidade das codificações civis nos sistemas jurídicos do direito europeu continental do século 19, superando em prestígio as constituições [9], fez com que o autor se ocupasse inicialmente das noções gerais sobre o direito e suas fontes [10].

Lançou-se o autor a uma definição de direito, consubstanciada como sendo tudo que está em conformidade com uma regra geral e obrigatória, que pode ser física ou moral, consoante se lastreie em uma necessidade física, moral, ou da razão, frisando que a ciência do direito somente se ocupa das regras ou leis morais. Não lhe passou despercebido a pluralidade significativa em torno da expressão “direito” (direito objetivo, subjetivo e positivo), bem como das classificações que então ensejava o seu conteúdo, não somente a bipartição entre direito público e direito privado [11], mas também a classificação geral dos direitos civis (direitos relativos à capacidade civil, direitos das relações de família e direitos que se referem aos bens, subdivididos entre reais e pessoais) e das obrigações (geral negativa e particular positiva).

Especialmente quanto às fontes do direito civil pátrio observou:

“Como a legislação civil, por que o Brasil ainda se rege, além de desordenada, sem sistema, e sem nexo, e omissa, ou defeituosa em uma infinidade de assuntos da ciência legislativa, convém indicar as fontes a que devemos recorrer, enquanto não tivermos um Código Civil, que nos dispense da necessidade de recorrermos a fontes estranhas. Essas fontes podem ser reduzidas a duas classes, compreendendo-se na primeira as que têm força de lei, e na segunda, as subsidiárias.” [12]

Uma curiosidade é a de que, mesmo situando os assentos da Casa de Suplicação no rol das fontes subsidiárias, o autor permite a compreensão da precedência da jurisprudência vinculativa na civil law, uma vez as ordenações atribuírem força de lei aos Assentos da Casa de Suplicação, contanto que confirmados pelo rei [13].

Versou com maestria sobre hermenêutica [14], avivando regras gerais e especiais de interpretação, em mais de duas dezenas, o que fez merecer a consideração de Carlos Maximiliano [15].

Discorreu sobre o direito das pessoas [16], seja quanto ao estado de liberdade — a revelar, na disciplina jurídica, o infame retrato da nossa sociedade da época — seja quanto à condição política, extremando os cidadãos dos estrangeiros.

A obra contém uma ordenada exposição sobre as relações familiares [17], na qual se destaca o enfoque do poder paterno e marital, nota característica do patriarcalismo predominante. Abordou-se, com a antecedência dos esponsais, o matrimônio, cuja natureza é bipartida, pois ora “encerra entre nós um contrato e um sacramento; e por isso se regula pelas leis civis, e conjuntamente pelas leis eclesiásticas” [18].  Tratava-se de reflexo do catolicismo como religião oficial do Império.

Não olvidou o autor o tratamento das relações patrimoniais resultantes do casamento, abordando-se com detença, talvez pelo traço agrário da economia brasileira, o regime dotal. Da mesma forma, versou sobre a tutoria e a curadoria.

Alguns aspectos aguçam a curiosidade

Um deles é referência ao instituto da restituição in integrum [19]. Revogado com o Código Civil de 1916 (artigo 8º [20]), cuidava-se de benefício conferido por lei aos menores e pessoas que lhes eram equiparadas (interditos e ausentes), de poderem reclamar contra quaisquer atos judiciais, ou extrajudiciais, válidos, mas injustos, que lhes tenha causado prejuízo ou dano, durante a menoridade, a interdição ou ausência, em consideração de cada uma destas circunstâncias.

Tinha lugar, em regra, em todos os atos, ou omissões, judiciais ou não, de que tenha emanado lesão ao menor ou a quem lhe fosse equiparado, quer decorresse ou não de dolo e ainda que o ato fosse praticado pelo tutor ou pelo menor ou a este equiparado, com o consentimento do tutor ou curador. A não aplicação do remédio extraordinário aos atos nulos não privava o menor, o interdito ou ausente, de proteção, a qual deveria ser manifestada em ação de nulidade ou em embargos de nulidade opostos à execução.

Há pelo autor uma exposição detalhada sobre as coisas [21], com uma classificação minudente, nas quais não constante o reconhecimento, na categoria das incorpóreas, das derivadas da produção intelectual (direitos autorais). E, diversamente dos tempos que correm, há a classe das coisas em relação ao seu destino, a qual inclui as coisas sagradas, santas e religiosas.

Não restou esquecido o tratamento do domínio e da posse, e, em seguida, das sucessões, com ênfase aos testamentos, prosseguiu, numa sistemática não rigorosa, ao exame das servidões, dos direitos reais de garantia, incluindo-se o concurso de credores, consagrado numa feição bem mais restrita que a sua configuração atual, da enfiteuse e da prescrição aquisitiva e extintiva [22].

Finalizando, o autor aborda o direito obrigacional [23], e neste, as obrigações, os pactos, as convenções, os quase-contratos, discorrendo sobre as espécies contratuais, das condições que lhes são acrescentadas, e, por fim, quanto aos modos da correspondente extinção.

A leitura, de fácil apreensão, sem a perda do conteúdo essencial dos institutos enfocados, é confirmado na justiça que lhe fez Paulo Távora:

“O mestre de Olinda e Recife realizou trabalho desbravador de nosso Direito Civil, e sua contribuição serviu de compêndio de ensino nas primeiras academias do Império, bem como de referência a jurisconsultos, advogados e juízes. A presença de Trigo de Loureiro no rol dos livros pioneiros da memória jurídica nacional faz justiça ao emérito civilista.” [24]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] Não sei se por ironia, ou por falta de imaginação, copiamos de Portugal a nomenclatura para o regime político iniciado em 10 de novembro de 1937.

[2] Marcelo Caetano, por ocasião de palestra que ministrou na Faculdade de Direito da USP, em 20 de junho de 1966, recordou a atitude de Abel de Andrade, então Diretor da Faculdade de Direito de Lisboa, em acolher os mestres paulistas que se encontravam no exílio, disponibilizando a escola para a usarem e utilizarem, o que foi aproveitado por Waldemar Ferreira (CAETANO, Marcelo. Tendências do direito administrativo europeu, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXI, p. 92, 1967).

[3] VEIGA, José Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1984. Vol. IV, p. 275.

[4] De autoria de Trigo de Loureiro são os títulos “Gramática razoável da língua portuguesa” (1828), “Os elementos de prática do processo” (1850), “Elementos de economia política” (1854) e “Fedra, Andrômaca e Ester” (1851), este último na área teatral.

[5] Recife: Tipografia Comercial de Meira Henriques.

[6] Em janeiro de 2004, a Coleção História do Direito Brasileiro, editada em colaboração pelo Senado Federal e o Superior Tribunal de Justiça, republicou no seu nº 5 as “Instituições de Direito Civil”.

[7] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 453.

[8] Para Menezes Cordeiro, o direito civil não é apenas o direito comum do privatismo, mas de toda a ordem jurídica (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. 2ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000. Tomo I, p. 33).

[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos – Da Idade Média a o século XXI. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 108-109.

[10] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 10-31. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[11] As leis que o estado civil e político das pessoas pertencem necessariamente ao direito público, por influírem, as do estado político, diretamente no governo do Estado e no bem-geral da sociedade, enquanto as do estado civil interessam eminentemente à ordem pública (LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 19. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004).

[12] Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 23. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[13] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 27. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004. Observando os arts. 163 e 164 da Constituição Imperial, os quais, mesmo silentes em atribuir força obrigatória aos julgados do Supremo Tribunal de Justiça, Pimenta Bueno destaca a sua relevantíssima função para a uniformidade interpretativa do direito positivo pátrio, explicitando: “480. Do que expusemos no parágrafo antecedente já se infere quanto é a importância do Supremo Tribunal em relação à ordem civil ou judiciária; a Justiça é uma religião social, e o Supremo Tribunal é o grande sacerdote dela, é o guarda de sua pureza, de sua igualdade protetora, o espírito conservador dos seus decretos. Ele regulariza a ação dos tribunais, retifica as suas decisões irregulares, fixa os verdadeiros princípios dessa religião civil” (BUENO, José Antônio Pimenta. InDireito público brasileiro e a análise da Constituição do Império. Coleção Formadores do Brasil. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 423. A edição original recua a 1857).

[14] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 228-35. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[15] SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 4, 87, 123, 128, 135, 137, 149, 162, 175, 262 e 263.

[16] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 37-56. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[17] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 37-205. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[18] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 76. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[19] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 196-200. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[20] “Art. 8. Na proteção que o Código Civil confere aos incapazes não se compreende o benefício de restituição” (Disponível em: www.planalto.gov.br).

[21] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 207-222. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[22] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p.  223-324; Tomo II, p. 5-201. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[23] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 203-298. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004. Conforme o autor, não há uma diferença substancial entre contrato e pacto (p. 230), sendo de observar que os quase-contratos (p. 271-272) se referem a obrigações que nascem de um consentimento ficto, presumido, tal como sucede na gestão de negócios.

[24] TÁVORA, Paulo. Prefácio. In: LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. XIV. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

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O backlash da grande feitiçaria que é a inteligência artificial

Quase todos “os desafios do século 21”, diz Ronai, implicam alguma reflexão sobre as ciências e as tecnologias. A Filosofia tem feito isso, mas, ao menos um dos temas indicados acima, os desafios da IA, é novo para nós.

Ronai faz parte, como eu, de uma geração que pensou sobre a tecnologia usando metáforas, alegorias, metonímias, perguntas e premissas simples… mas complexas.  A principal metáfora foi a do aprendiz de feiticeiro.

A principal pergunta era sobre a natureza das tecnologias, se eram neutras ou não. A principal premissa era a do perigo eminente que elas traziam. Para quem ainda não sabe, Ronai explica a metáfora do aprendiz de feiticeiro, que se refere a situações nas quais, movidos por algum desejo pouco refletido, começamos a fazer algo que, logo a seguir, não conseguimos mais controlar; surgem consequências que não previmos, que podem ser desastrosas.

A história original chama-se exatamente O Aprendiz de Feiticeiro e foi escrita por Goethe, faz mais de 200 anos. Nela, um aprendiz de feiticeiro, na ausência de seu mestre, usa uma fórmula mágica para fazer com que uma vassoura faça o trabalho de limpeza que cabia a ele.

No entanto, o aprendiz não conhece o feitiço para parar a vassoura. Ela segue trazendo água até que a casa fica inundada.

Aprendeu-se essa história sem saber que era de Goethe. Nem Disney contou pra gente. Veja-se o filme Fantasia, em que Mickey era o aprendiz, que tinha que esperar a volta do mestre para resolver o problema. A metáfora firmou-se, pois era boa para falar dos riscos inerentes a novos conhecimentos e tecnologias.

Não quero a volta do lápis. Nem do ábaco. Ou da Olivetti. Lembro de quando escrevi minha dissertação de mestrado. Com uma máquina de escrever. O xerox desbotava, lembram?  Mas daí a que um robô escreva em meu lugar… a distância vai até a vassoura do aprendiz de feiticeiro.

A metáfora do aprendiz de feiticeiro pode ser vista como uma variação sobre um tema filosófico venerável, a questão dos efeitos colaterais da ação humana. As nossas ações não se resumem às intenções declaradas. E acrescenta Ronai: quando compro pão e queijo na padaria da esquina, para ter algo de comer, eu movo a corrente do mundo das vacas, das farinhas, do dinheiro, dos impostos, da minha saúde. O mundo não é movido apenas pelas nossas intenções. A metáfora do aprendiz vale não apenas para os efeitos colaterais das coisas e tecnologias que criamos (a energia nuclear) mas para ações humanas triviais, como dar (ou não) “bom dia” a alguém.

E o tema do perigo? Para Ronai, a metáfora do aprendiz de feiticeiro sugere que podemos desencadear forças que escaparão de nosso controle. É isso mesmo. Cada um de nós já experimentou isso, de alguma forma, de algum jeito. Em certo sentido somos todos aprendizes de feiticeiros.

Exercemos a arte da feitiçaria quando falamos: fazemos coisas com palavras, como no livro de John Austin: promessas, votos, juramentos, declarações, desculpas, apostas, mentiras, perdões, pedidos e dezenas de outras formas de fazer coisas com palavras que sempre tem consequências. E que nem sempre avaliamos bem.

O Direito parece ser o locus privilegiado em que habitam os aprendizes de feiticeiro. E já sentimos o perigo. Picaretagens a mil. Advogados fraudadores querendo enganar os tribunais. Juízes utilizando robôs para limpar a pauta e poder jogar golfe. Estagiários terceirizando trabalho ao ChatGPT. E gente que nunca escreveu um fonograma na vida agora escreve livros… com ChatGPT. Outro dia um italiano enganou o mundo, lançando um novo conceito (hipnocracia). E a malta acreditou. Bem-feito (leiam aqui). Torço para a briga.

Os robôs já podem fazer desenhos tão ou mais bem elaborados que os humanos. Agora surgiu um novo robô da Google. Os chineses também inventaram um novo. Os robôs já fazem dublagem. Imitam vozes. E falam.

No Direito, fazem petições melhores que os advogados, que nem se dão conta de que isso mostra o fracasso da humanidade. Se uma máquina faz coisas melhores que o homem, então teríamos que, até por vaidade, parar para pensar. Eis o paradoxo: se a IA der certo, dará errado. Porque nos ultrapassa(rá).

Lembremos do cão que atirava crianças na água para ganhar suculentos bifes, caso contado por dois cientistas de Oxford no Parlamento britânico e que contei aqui no ConJur. O cachorro também aprendeu de forma generativa.

Por enquanto o robô alucina quando alguém lhe pede pesquisas – afinal, ele precisa dar uma resposta, mesmo que alucinadamente.

Daí a pergunta: e quando o robô conseguir encontrar, por exemplo, no Direito, a resposta certa para os casos mais complexos, buscando os corretos precedentes, com inclusão das técnicas de overruling e distinguishing em dimensão superior a qualquer humano com razoável formação? O que será do Direito? E o que sobrará para os estudiosos, se o robô faz tudo melhor?

Outro dia um querido amigo disse, corretamente, que a doutrina jurídica ainda tinha muito valor; só que ele mesmo dias antes fazia uma ode ao ChatGPT. E aos precedentes (que não são precedentes).

Eis a questão. O perigo está na máxima representada pela alegoria do trapezista que, de tão competente e treinado, achou que poderia voar. E se estatelou no chão. Porque trapezista, por melhor que seja, não sabe voar.

O consolo? Talvez esteja no fato de que robô não desce escada. Por enquanto.

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STJ vai fixar teses sobre tráfico privilegiado; corte concedeu 1,5 mil HCs sobre o tema em 2024

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça deve fixar nesta quinta-feira (5/6) teses vinculantes sobre a aplicação do tráfico privilegiado. O tema tem abarrotado a corte com centenas de HCs, que versam principalmente sobre a tese de que a quantidade de droga apreendida não afasta o reconhecimento da minorante.

O colegiado vai julgar em conjunto dois temas de recursos repetitivos. No Tema 1.154, a 3ª Seção vai decidir se, isoladamente consideradas, natureza e quantidade da droga podem afastar o reconhecimento do tráfico privilegiado. Já no Tema 1.241, o objetivo é avaliar a possibilidade da utilização da quantidade e da variedade da droga apreendida para estabelecer a fração da minorante.

Questão de tráfico privilegiado

Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, a questão da influência da quantidade de drogas apreendida para reconhecimento da minorante é a que mais gera concessão de Habeas Corpus em favor das defesas no STJ.

HCs e RHCs sobre tráfico privilegiado no STJ

Motivo da concessãoQuantidade
Quantidade1.044
Ação penal/IP em curso327
Ato infracional99
Quantidade e ação penal/IP em curso62
Ação penal/IP em curso e ato infracional10
Quantidade, ação penal/IP em curso e ato infracional2
Total1.549

O benefício está previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas e prevê a redução da pena mínima do tráfico para até um ano e oito meses. É destinado a réus primários, com bons antecedentes e que não estão inseridos em organizações criminosas.

Dados de 2024 levantados pelo advogado e pesquisador David Metzker indicam que, dos 1.549 HCs e recursos em HCs concedidos para aplicar a minorante do tráfico privilegiado, 1.044 (67,3%) decorrem apenas do fato de o benefício ter sido negado por conta da quantidade de drogas apreendida.

Há outros casos em que a quantidade de drogas é um dos motivos para a negativa do redutor de pena, aliado a questões como o fato de o réu ter contra si inquérito penal (IP) ou ação penal em andamento.

Somados todos os casos de 2024 em que houve a concessão da ordem porque a quantidade de drogas foi indevidamente usada para negar o benefício, o STJ alcança 1.108 HCs e RHCs concedidos — ou 71,5% do total das concessões relacionadas ao tráfico privilegiado.

Jurisprudência pacífica

A fixação de tese vinculante serve, portanto, para forçar as instâncias ordinárias a, finalmente, observar uma jurisprudência que já está pacificada no STJ.

As turmas criminais entendem que quantidade e variedade das drogas apreendidas podem ser usadas para aumentar a pena-base ou modular a fração de redução da pena, mas não para fundamentar a negativa do benefício.

Isso porque a quantidade e a variedade das drogas apreendidas, por si sós, não comprovam que uma pessoa esteja ligada a uma facção criminosa ou que se dedique a atividades criminosas.

É o que será discutido no Tema 1.154 dos repetitivos, sob relatoria do ministro Messod Azulay. A questão ainda pode passar por alguma adequação para os casos em  que pessoas são presas transportando grandes quantidades de drogas.

A indicação foi feita em fala do ministro Rogerio Schietti, em fevereiro. Sem adiantar voto, ele destacou que essa é uma situação que foge da intenção do legislador ao criar a figura do tráfico privilegiado, que era penalizar menos o pequeno traficante.

A jurisprudência do STJ também é pacífica no sentido de que quantidade e natureza da droga podem ser utilizadas para modular a fração de diminuição da pena, desde que não consideradas na primeira fase da dosimetria.

Foi assim que votou o ministro Ribeiro Dantas, relator do Tema 1.241. O julgamento foi iniciado em fevereiro e interrompido por pedido de vista do ministro Rogerio Schietti.

Tema 1.154
REsps 1.963.433, 1.963.489 e 1.964.296

Tema 1.241
REsp 2.059.576 e REsp 2.059.577

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STJ pode criar regras para o tráfico privilegiado? A resposta está na Constituição

A iminente apreciação dos Temas Repetitivos 1.154 (REsp 1.963.433/SP, REsp 1.963.489/MS e REsp 1.964.296/MG) e 1.241 (REsp 2.059.576/MG e REsp 2.059.577/MG) pelo Superior Tribunal de Justiça desperta grave preocupação no campo da Teoria Geral da Constituição e da legalidade penal. O ponto central em debate — a possibilidade de o Judiciário modular a aplicação da causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei de Drogas com base em critérios objetivos como quantidade ou variedade da substância apreendida — ultrapassa os limites interpretativos admissíveis no regime constitucional vigente.

A Lei nº 11.343/2006 nasceu de um processo legislativo minucioso, iniciado com o PLS 115/2002, apresentado pelo então senador Ramez Tebet. Durante a tramitação, foram incorporadas diversas propostas legislativas (PLs 6.108/2002 e 7.134/2002), consolidando um texto que buscou equilibrar repressão ao narcotráfico com um olhar diferenciado sobre o réu primário, de bons antecedentes e não vinculado a organizações criminosas.

O próprio texto da exposição de motivos do projeto de lei foi categórico:

“Não olvidando a importância do tema, e a necessidade de tratar de modo diferenciado os traficantes profissionais e ocasionais, prestigia estes o projeto com a possibilidade […] de redução das penas […]”.

É nesse ponto que se evidencia a essência normativa da causa de diminuição prevista no §4º do artigo 33: um dispositivo de clemência penal calibrado por critérios subjetivos — primariedade, bons antecedentes, não envolvimento com organização criminosa e não dedicação a atividades criminosas. Nada além disso foi exigido pelo legislador. Portanto, a tentativa de criar um “padrão de modulação” com base quantitativa ou qualitativa, por via judicial, representa indevida extrapolação do papel que a Constituição reserva ao Judiciário.

A Constituição de 1988 delineia com clareza a repartição de funções entre os Poderes (artigo 2º). A competência para legislar sobre matéria penal é exclusiva do Congresso Nacional. O Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102, caput), não pode criar norma penal nova, sob pena de violação direta aos princípios da legalidade estrita (artigo 5º, II) e da reserva legal penal (artigo 5º, XXXIX). Criar um critério novo — como tornar a quantidade da droga um fator isolado para afastar o tráfico privilegiado — equivale, em última análise, a editar nova norma penal sem respaldo do Poder Constituinte Derivado. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria legitimidade da jurisdição penal.

Mais grave ainda: ao vincular a concessão do tráfico privilegiado a marcos objetivos rígidos, a jurisprudência propõe um verdadeiro rebaixamento da individualização da pena e da isonomia penal. Resta, então, uma política punitiva enviesada, desprovida de base empírica, que trata desiguais como se iguais fossem — primando por um simbolismo penal que não encontra respaldo constitucional nem eficácia real.

A tentativa de fixar balizas quantitativas para o §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 revela um fenômeno perigoso: a judicialização da política criminal em sua forma mais aguda. A jurisprudência deixa de ser instrumento de concretização da norma e se torna mecanismo de criação normativa — invertendo a lógica democrática da separação de Poderes.

Exemplo disso é a atual tramitação no Senado do PLS 4.999/2024, que propõe disciplinar expressamente o uso da quantidade como critério modulador da causa de diminuição. A simples existência do projeto já é suficiente para demonstrar que o Legislativo entende tratar-se de matéria a ele reservada. Caso contrário, não haveria proposta de lei: bastaria aguardar o STJ decidir.

Não há evidência científica sólida, nem mesmo qualquer artigo científico, que assegure que o agravamento da pena, com base na quantidade e variedade da droga, reduza a criminalidade. Ao contrário, o excesso punitivo desarticula políticas públicas mais eficazes e reforça a seletividade penal — direcionada, quase sempre, à população mais vulnerável.

Não se trata, aqui, de negar a gravidade do tráfico de drogas. Mas sim de reafirmar que o combate ao crime deve se dar nos marcos do Estado Democrático de Direito. O Judiciário não pode, sob o pretexto de eficiência punitiva, invadir competência legislativa. Quando o faz, desrespeita a Constituição, viola o pacto federativo e compromete a legitimidade da jurisdição penal.

Extrapolação e fidelidade

A decisão a ser proferida nos Temas Repetitivos 1.154 e 1.241 pelo STJ tem o potencial de redefinir, de forma profunda e controversa, a aplicação do tráfico privilegiado. Ao fazê-lo com base em critérios que extrapolam o texto legal, o Judiciário se aproxima de um legislador positivo — em flagrante descompasso com os princípios estruturantes da Constituição de 1988.

O Direito Penal não pode ser reconstruído por interpretações, ainda que bem intencionadas. A fidelidade ao texto constitucional não é obstáculo à Justiça — é seu fundamento. E a Constituição não autoriza o Judiciário a substituir o Parlamento. Autoriza, apenas, a guardar a Lei Maior.

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Gafam x soberania digital: Brasil e União Europeia

Gafam é o acrônimo de gigantes da web, Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, que são cinco grandes empresas dos EUA. As plataformas digitais desempenham um papel cada vez mais importante na vida cotidiana de todos e são majoritariamente americanas (as “Mamaa”, sigla para Microsoft, Amazon, Meta, Apple e Alphabet) e chinesas (as “BATX”, sigla para Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi).

Brasil: a LGPD

No Brasil, vigora a Lei n˚ 13.709/2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que possui o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Notadamente e principalmente, são protegidos os dados pessoais sensíveis sobre  origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.

A Autoridade Nacional para a Proteção de Dados (ANPD) é estabelecida como o órgão da administração pública responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da Lei em todo o território nacional.

Contudo, o artigo 33 da LGPD permite a transferência internacional de dados pessoais em diversas hipóteses, tornando a exceção praticamente uma regra:

1. para países ou organismos internacionais que proporcionem grau de proteção de dados pessoais;
2. quando o controlador oferecer e comprovar garantias de cumprimento dos princípios, dos direitos do titular e do regime de proteção de dados previstos na Lei;
3. quando a transferência for necessária para a cooperação jurídica internacional entre órgãos públicos de inteligência, de investigação e de persecução, de acordo com os instrumentos de direito internacional;
4. quando a transferência for necessária para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;
5. quando a autoridade nacional autorizar a transferência;
6. quando a transferência resultar em compromisso assumido em acordo de cooperação internacional;
7. quando a transferência for necessária para a execução de política pública ou atribuição legal do serviço público, sendo dada publicidade nos termos do inciso I do caput do artigo 23 desta Lei;
8. quando o titular tiver fornecido o seu consentimento específico e em destaque para a transferência, com informação prévia sobre o caráter internacional da operação, distinguindo claramente esta de outras finalidades
9. quando necessário para atender as hipóteses previstas nos incisos II, V e VI do artigo 7º desta Lei.

A LGPD permite a transferência internacional de dados pessoais em nove hipóteses, o que causa espécie se comparado com o sistema europeu de proteção aos dados pessoais. Nesse sentido, é salutar lembrar que o parágrafo único do artigo mencionado permite que as pessoas jurídicas de direito público do Brasil requeiram, no âmbito de suas competências, a avaliação do nível de proteção a dados pessoais conferidos por país ou organismo internacional, o que exige uma observação e análise constante da jurisprudência estrangeira. É exatamente o parágrafo único do artigo 33 que resguarda a nossa soberania digital e a proteção dos dados dos residentes no Brasil.

Devido à ausência de um órgão regional de proteção de dados como ocorre na UE, seria salutar que as autoridades brasileiras considerassem com rigor o parágrafo único do artigo 33 da LGPD a fim de proteger com eficácia a sua soberania digital brasileira. O ideal seria um banco de dados global, já que as ações dos Gafam não possuem fronteiras. O modelo europeu, abarcado pelo TFUE, pela RGPD, pelo DSA e pelo DMA, pode ser um parâmetro inicial.

UE: tratado sobre o funcionamento

Na União Europeia, o abuso de posição dominante dessas empresas é sancionado pelos artigos n˚ 101 e n˚ 102 do tratado sobre o funcionamento da UE — TFUE. Em 2004, por exemplo, a Microsoft [1] foi condenada pela Comissão Europeia a pagar uma multa de 497,2 milhões de euros por ter abusado da sua posição dominante no mercado dos sistemas operativos para computadores.

No caso C-738/22 P – Google e Alphabet v Comissão, o Tribunal de Justiça da União Europeia ratificou a decisão no sentido de que o Google violou o artigo n˚ 102 do TFUE e o artigo n˚ 54 do Acordo EEE — Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, apesar da redução do montante da multa em grau recursal [2].

Em dois acórdãos proferidos em 10 de setembro de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) impôs sanções definitivas a duas multinacionais do setor digital, a Apple e a Google.

Em 10 de setembro de 2024 o  TJUE confirmou uma decisão da Comissão Europeia de 2016, que questionava as vantagens fiscais de que a Apple beneficiou na Irlanda: a empresa deve reembolsar 13 bilhões de euros a este Estado [3].

De 1991 a 2004, a Apple beneficiou de duas decisões fiscais (rulings) que “reduziram artificialmente os impostos” que a empresa deveria pagar na Irlanda. Em uma decisão de 2016, a comissão considerou que se tratava de uma aplicação incorreta das regras tributárias irlandesas.

Destinados a atrair investimentos de multinacionais, tais “acordos fiscais agressivos” eram, para a comissão, auxílios estatais dissimulados que prejudicam a concorrência na UE. O acórdão especificou: “a Irlanda concedeu à Apple um auxílio ilegal que este Estado é obrigado a recuperar”, no valor de 13 bilhões de euros.

No segundo acórdão, o TJUE confirmou uma multa de 2,4 milhões de euros imposta ao Google por abuso de posição dominante. O processo foi instaurado pela Comissão Europeia em 2010 [4]. O Google foi multado em 2,42 bilhões de euros por favorecer seu sistema de comparação de preços Google Shopping nos resultados do seu motor de busca. Essa “auto-referência” constitui um abuso de posição dominante nos termos do artigo 102 do TFUE.  Inclusive, foi esse precedente que levou a UE a adotar, em 2022, um regulamento sobre práticas anticoncorrenciais no domínio digital: o DMA.

Em 2023, a Meta, empresa controladora do Facebook, foi condenada a pagar uma multa de 1,2 bilhão de euros pela Comissão de Proteção de Dados (DPC)órgão regulador da privacidade na Irlanda. Um valor sem precedentes na União Europeia, que supera em muito o que a Amazon foi condenada a pagar em julho de 2021, que na época era de 746 milhões de euros.

Regulamento geral de proteção de dados (RGPD)

Posteriormente, o Regulamento geral de proteção de dados (RGPD), aprovado em 2016, foi utilizado pela Comissão Irlandesa para a Proteção de Dados como fundamento para sancionar a Meta, após a empresa ter transferido dados pessoais para os Estados Unidos em violação das disposições do RGPD.

Digital Markets Act (DMA) e o Digital Services Act (DSA)

Em 2022, no âmbito da União Europeia, foram aprovadas duas normativas importantes: o Digital Markets Act (DMA) e o Digital Services Act (DSA). O DMA institui um controle prévio da atividade das plataformas digitais com fins concorrenciais, impondo várias obrigações destinadas a garantir a abertura e a equidade dos mercados digitais. Ainda, impõe às plataformas digitais várias obrigações, tais como permitir aos seus utilizadores cancelar facilmente a subscrição e desinstalar as aplicações que oferecem, garantir a interoperabilidade dos seus principais serviços de mensagens com outros serviços semelhantes ou ter o cuidado de não favorecer os seus produtos e serviços em relação aos de terceiros vendedores.

Por sua vez, o DSA protege os direitos fundamentais dos consumidores online, impondo às plataformas digitais diversas restrições em matéria de transparência e informação (moderação de conteúdos, etc.), luta contra conteúdos ilícitos (criação de sinalizadores de confiança, etc.) ou ainda publicidade (proibição de publicidade dirigida a menores, etc.).

No âmbito europeu, há dois controles: administrativo e judicial, e cada controle depende do seu fundamento jurídico. Se o fundamento jurídico é o artigo 102 do TFUE o controle é efetuado pela Comissão Europeia e pela autoridade nacional de cada país, na França, é a Autoridade da Concorrência.

Por outro lado, se o fundamento jurídico é o RGPD, o Comitê Europeu para a proteção de dados é o responsável na região e o Cnil [5] na França. Ainda, para a proteção das disposições do DSA é competente a Comissão Europeia e na França a Arcom [6] (Autoridade de regulação da comunicação audiovisual e digital). Para a fiscalização das regras do DMA, cabe exclusivamente à Comissão Europeia.

No âmbito global, um necessário diálogo transnacional.

Assim, no âmbito global, é preciso o estabelecimento de um diálogo transnacional entre as comissões nacionais e regionais para a criação de um banco de dados, por exemplo, com as condenações administrativas e judiciais, que reconheceram práticas ilícitas por parte das empresas pertencentes ao Gafam (e outras). As razões para a construção de um diálogo global são diversas. Primeiro, para vedar a transferência internacional de dados pessoais de residentes no Brasil às empresas estrangeiras que já foram condenadas.

Segundo, para que nos lembremos que o (s) Gafam (e plataformas similares) não possuem limites culturais [7] ou geográficos como as leis nacionais. Majoritaramente, somos vistos pelas big techs como meros seguidores e consumidores de algorítimos. Terceiro, para compreendermos que a proteção da soberania deve se desenhar de inéditas formas em um mundo sem fronteiras que tende a se reger pela anomia e pela anarquia digitais.


[1] https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/fr/ip_04_382

[2]https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=265421&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2712626

[3]https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=289923&pageIndex=0&doclang=fr&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2717336

[4] https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=fr&td=ALL&num=C-48/22%20P

[5] Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés.

[6] Autorité de régulation de la communication audiovisuelle et numérique – https://www.arcom.fr/nous-connaitre/decouvrir-linstitution

[7] Na França, por exemplo, verifica-se maior cautela pelos direitos de imagem e pelos dados pessoais em geral, no entanto, no Brasil a cultura de dependência pelo pertencimento às redes sociais torna ainda mais complexa a proteção da soberania digital no Brasil, basta comparar a proporção de usuários nos dois países.

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Julgamento virtual sem intimação dos advogados é nulo, diz STJ

É nulo o julgamento de recurso de apelação em sessão virtual realizada sem a intimação dos advogados das partes.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial para anular um julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso é de ação de indenização por danos materiais e morais contra uma construtora, por particulares que compraram um apartamento térreo pelo atrativo de ter uma área privativa externa.

A construtora instalou nesse local a caixa de gordura para armazenamento de dejetos de todo o sistema de esgoto do edifício, o que causou transtornos com mau cheiro, infestação de insetos e manutenção periódica para limpeza.

A ação foi julgada procedente para condenar a construtora a pagar indenização pela desvalorização do imóvel, além de R$ 10 mil por danos morais.

Julgamento virtual relâmpago

A apelação foi distribuída ao relator no TJ-SP em 22 de setembro de 2020 e julgada no dia seguinte, de forma virtual e sem intimação das partes. A corte deu provimento ao recurso da construtora e afastou a condenação por danos morais.

O tribunal paulista afastou nulidade pela ausência de prejuízo pelo julgamento virtual. Relator do recurso especial, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reformou essa posição e anulou o acórdão, determinando novo julgamento.

Para ele, houve violação do artigo 935 do Código de Processo Civil, prevê que entre a data da publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, no mínimo, o prazo de cinco dias.

Prejuízo evidente

O julgamento sem a intimação das partes ainda ofende o artigo 937 do CPC, segundo o qual será dada a palavra aos advogados das partes para oferecerem sustentação oral.

“Diversamente do afirmado pela Corte de origem nos aclaratórios, não há como afastar a existência de prejuízo para os recorrentes, mormente tendo sido provido o recurso da recorrida, sem que lhes fosse oportunizada a devida sustentação oral e a entrega de memoriais”, disse.

“Cumpre assinalar que a celeridade não autoriza o afastamento de regras que garantem a observação do contraditório”, acrescentou o ministro Cueva. A votação na 3ª Turma do STJ foi unânime.

Clique aqui para ler o voto de Villas Bôas Cueva
REsp 2.136.836

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Cabe penhora de quota de sociedade limitada unipessoal para quitar dívida

É juridicamente possível a penhora da participação em sociedade limitada unipessoal (SLU) para quitar dívidas particulares do sócio único.

A conclusão é da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso especial ajuizado por um empresário que é alvo de cobrança de dívida.

O resultado representa uma unificação da jurisprudência do STJ, já que a 4ª Turma acaba por aderir à forma como a 3ª Turma, que também julga casos de Direito Privado, vem decidindo.

Sociedade limitada unipessoal

O caso concreto é de execução de título extrajudicial, na qual houve decisão que deferiu a penhora integral das cotas do devedor em uma empresa limitada unipessoal de marketing e eventos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo avaliou como possível a penhora porque o objetivo não é que os exequentes assumam as quotas sociais da SLU, mas que ofereceram à desapropriação judicial.

Ao STJ, o dono da empresa defendeu a impossibilidade jurídica da penhora de quotas sociais por se tratar de modalidade empresarial incompatível com a divisibilidade de capital.

A pessoa jurídica em questão é uma antiga empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli), que foi convertida em sociedade limitada unipessoal pela Lei do Ambiente de Negócios (Lei 14.195/2021).

Penhora das quotas sociais

Relator do recurso especial, o ministro Antonio Carlos Ferreira explicou que a jurisprudência do STJ é pacífica em admitir a penhora de quotas sociais, mesmo que existam restrições contratuais, pois não há óbice legal para tanto.

Assim, deve ser possível a penhora das quotas da sociedade limitada unipessoal, seja integral ou parcial, independentemente de o capital social estar dividido formalmente em quotas.

“Essa medida constritiva permite a satisfação dos credores particulares do sócio único, respeitando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas reconhecendo que tais quotas integram o patrimônio pessoal do devedor e, portanto, constituem garantia de suas obrigações”, destacou.

O que acontece com a empresa

A partir da penhora, segundo o ministro, surgem duas possibilidades. Uma delas é a liquidação parcial da sociedade, com a correspondente redução do capital social, mantendo seu funcionamento sob gestão do sócio original.

A outra é a penhora sobre todas as quotas sociais, com a consequente alienação da sociedade em sua integralidade. Embora seja uma solução mais grave, harmoniza-se com o princípio da preservação da empresa, ao manter a unidade produtiva.

“É importante enfatizar que a penhora deve ser realizada de modo que não imponha ao sócio um vínculo involuntário com terceiros, respeitando o princípio da affectio societatis”, ressaltou o ministro Antonio Carlos Ferreira.

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REsp 2.186.044

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Pela segunda vez, STF derruba vínculos empregatícios reconhecidos pelo TRT-4

Os ministros do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin e Luiz Fux precisaram anular novamente vínculos empregatícios reconhecidos entre uma imobiliária gaúcha e duas corretoras de imóveis após o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) ignorar decisões anteriores.

Os magistrados decidiram ao analisar reclamações (Rcls) ajuizadas pela defesa da empresa. Como acontece em outros processos sobre reconhecimento de vínculo de trabalho, as peças apontavam violação da jurisprudência firmada pelo STF nos julgamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.625 e do Tema 725.

Além disso, porém, sustentaram que decisões anteriores de Zanin e Fux, que já haviam afastado a existência de vínculo entre as partes no mesmo processo, foram desrespeitadas pela 8ª e pela 2ª Turmas do TRF-4, respectivamente.

Ao cassar os acórdãos pela primeira vez, os ministros do STF determinaram o reenvio do processo ao tribunal de origem para a realização de novos julgamentos que respeitassem a jurisprudência do Supremo.

Os colegiados da corte regional, então, voltaram a analisar os recursos pelos quais a imobiliária contestava os vínculos reconhecidos em primeira instância e chegaram ao mesmo entendimento dos primeiros julgamentos.

De volta ao Supremo

“Constato que o TRT-4, ao reanalisar o feito, descumpriu a decisão expressa proferida por esta Suprema Corte na Rcl 65.991, que havia afastado o vínculo de emprego entre as partes, e, sob os mesmos fundamentos antes utilizados, insistiu em manter o vínculo empregatício entre a beneficiária, corretora de imóveis, e a reclamante”, escreveu Cristiano Zanin em sua nova decisão, proferida em 30 de abril.

“Posto isso, com fundamento no artigo 992 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e no artigo 161, parágrafo único, do Regimento Interno do STF, julgo procedente o pedido para cassar a decisão reclamada e, desde logo, julgar improcedente a reclamação trabalhista de origem”, concluiu o magistrado.

O ministro Luiz Fux, na decisão proferida em 2 de maio, também voltou a validar a argumentação da imobiliária.

“Diante do cotejo analítico entre o paradigma invocado e a decisão reclamada, proferida pelo TRT-4, constata-se claro descompasso entre o que restou decidido na origem e o quanto afirmado na Rcl 65.647, na medida em que o acórdão ora impugnado reconheceu novamente a existência de vínculo empregatício entre as partes”, escreveu.

Ex positis, julgo procedente a presente reclamação, para cassar o acórdão proferido pelo TRT-4, julgando improcedente a reclamação trabalhista de origem”.

“Desserviço”

O escritório Corrêa da Veigas advogados representou a imobiliária. O sócio Luciano Andrade Pinheiro falou sobre a importância das decisões à revista eletrônica Consultor Jurídico:

“Algumas turmas isoladas dos TRTs insistem em descumprir a decisão do Supremo que já está mais que sedimentada. É um desserviço. O sistema de precedentes veio para evitar decisões conflitantes para que haja estabilidade e segurança. Esse tipo de decisão do TRT-4 mostra de um lado a incompreensão do regime de precedentes e de outro um inaceitável desafio à autoridade do STF.”

Clique aqui para ler a decisão de Cristiano Zanin
Clique aqui para ler a decisão de Luiz Fux
Reclamação 78.523
Reclamação 72.552

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Despesas com correspondentes bancários deve gerar créditos de PIS/Cofins

O correspondente bancário constitui-se como agente de continuidade e extensão dos serviços oferecidos na intermediação financeira entre as instituições financeiras e os correntistas, consumidores de serviços ou usuários do sistema.

Correspondentes bancários integram a intermediação bancária, não são mediadores ou comissionários, a exemplo dos agentes de investimentos, cuja autonomia os caracterizam ao lado de outras notas distintivas. O comissário opera em nome próprio, para atender aos propósitos do comitente, mediante contrato oneroso.

Como sabido, os serviços dos correspondentes bancários integram a atividade de intermediação financeira realizada pelas instituições financeiras, com relevante impacto social relacionado na ampliação do crédito em regiões desprovidas da rede bancária regular, especialmente em regiões carentes e distantes dos grandes centros urbanos [1].

Os correspondentes bancários são, pois, agentes que, conforme estabelecido com precisão técnica tanto pelo Banco Central do Brasil quanto pelo Conselho Monetário Nacional, prestam os mesmos “serviços da instituição contratante”, atuando como verdadeiros extensores dos serviços bancários.

Neste sentido, todas as operações que são autorizadas para serem realizadas pelos correspondentes bancários são, por sua própria natureza e características essenciais, igualmente típicas e constitutivas da atividade de intermediação financeira.

Nas palavras de Pontes de Miranda:

“A intermediação é inconfundível com a mediação. São dois contratos diferentes. Se A incumbe C de interpor-se, em contatos com B, para a conclusão de determinado negócio jurídico bilateral entre A e B, sendo a sua atividade no exclusivo interêsse de A, que lhe prestará a remuneração, se concluído o negócio jurídico, há contrato de intermediação, e não mediação ou contrato de mediação. Não se pode admitir que se trate de ‘mediação negocial’, porque então se aludiria ao fato da conclusão desde o início da atividade e não haveria razão para se considerar espécie: a mediação é negocial, caracteriza-a o tempo que permanece no mundo fáctico a atividade do mediador; a negocialidade estaria ‘antecipada’, e não se trataria de mediação. (Tão pouco, a intermediação é locatio operis) Há na intermediação a parcialidade. O intermediário está ou é de esperar-se que esteja do lado de A. Perante A é que é responsável pelas informações o intermediário.”

Claramente, o agente de investimento ou de qualquer outro fim negocial não tem esse compromisso e função jurídica.

Expansão e consolidação

Se olharmos para a evolução normativa dos regimes jurídicos dos correspondentes bancários no Brasil, observa-se um processo gradual de expansão e consolidação de suas atribuições. Tudo a refletir um esforço do sistema financeiro pela acessibilidade e flexibilização da atividade das instituições como formas de democratização do acesso aos serviços financeiros, constituindo um importante mecanismo de inclusão financeira para os consumidores [2].

A título exemplificativo, em 2020, da totalidade de municípios brasileiros, 408 dependiam exclusivamente dos correspondentes bancários para acesso a serviços financeiros básicos. Neste contexto, é fundamental destacar que, especialmente nas comunidades de baixa renda, o correspondente bancário estabelece-se como o principal e, muitas vezes, único elo e prestador de serviço financeiro acessível à população local. [3]

A análise cronológica da regulamentação da atuação dos correspondentes bancários evidencia três fases distintas: inicialmente, uma fase restritiva, marcada pela Circular nº 220 de 1973, que limitava as atividades dos correspondentes à cobrança de títulos e execução de ordens de pagamento. Posteriormente, uma fase de expansão gradual, iniciada com a Resolução nº 562/79 e consolidada pela Resolução nº 2.166/95, que introduziu a possibilidade de intermediação financeira mais ampla.

O marco mais significativo ocorreu em 1999, quando o Conselho Monetário Nacional, por meio da Resolução nº 2.640/99, motivada pela necessidade de redução da rede física bancária e suas consequências para localidades economicamente menos expressivas, instaura uma etapa na qual o correspondente opera para cumprir verdadeira estratégia de política pública para a manutenção do acesso aos serviços financeiros.

Esta política ampliou-se ainda mais com a Resolução nº 3.954/11, que estabelece o atual arcabouço normativo dos correspondentes bancários, consolidando sua função como importantes agentes de intermediação financeira [4], inclusive em operações com moeda estrangeira [5].

A correta qualificação dos correspondentes bancários como agentes indissociáveis da intermediação financeira das instituições financeiras é fundamental para os fins de aplicação das normas de direito tributário. Veja-se o caso da aplicação da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS), seguindo a sistemática cumulativa estabelecida e regulamentada pela Lei nº 9.718/98.

Deveras, os bancos e demais instituições necessitam remunerar todos os correspondentes bancários de modo a cumprirem suas funções. E como se trata de custeio de atividade inerente ao trato da intermediação bancária, os pagamentos efetuados a tais agentes devem ser deduzidos da base de cálculo das contribuições ao PIS e da Cofins, conforme artigo 3º, § 6º, inciso I, “a”, Lei 9.718/98.

Com as significativas alterações da Lei nº 12.973/2014, o regime passou a estabelecer de forma mais abrangente a incidência daquelas contribuições sobre as receitas relacionadas à atividade ou objeto principal das instituições, mas admitida a dedução das despesas incorridas nas operações de intermediação financeira, conforme expressamente consta do artigo 3º, §6º, inciso I, letra “a”, da referida norma.

Em consonância com as definições estabelecidas inicialmente pelas Leis nº 9.701/1998 e 9.718/1998, e posteriormente complementadas e aperfeiçoadas por outras normas específicas que tratam da incidência do PIS e da Cofins devidos pelas instituições financeiras, a Instrução Normativa nº 1.285/2012 veio consolidar a possibilidade de exclusão ou dedução das despesas incorridas nas operações de intermediação financeira (artigo 8º, I) [6], abrangendo explicitamente em seu escopo as comissões pagas aos correspondentes bancários.

Assim, observa-se que a Lei n. 9.718/1998 proporcionou uma significativa expansão no escopo das despesas dedutíveis, pois enquanto a Lei 9.701/1998 limitava-se a permitir a exclusão das “despesas de captação” especificamente em operações do mercado interfinanceiro, a Lei n. 9.718/1998 inovou ao permitir a dedução mais ampla das “despesas de intermediação financeira”, incluindo expressamente as despesas relacionadas com operações de crédito das instituições financeiras.

Diante deste contexto evolutivo da legislação, é possível concluir que o legislador, ao promulgar a Medida Provisória n° 1.807-1/1999 (atual Medida Provisória n° 2.158-35/2001), tinha como objetivo claro e inequívoco permitir a exclusão e dedução integral de todas as despesas relacionadas com a intermediação financeira, expandindo significativamente o escopo anterior que se limitava às despesas de captação. Um exame das duas leis federais em questão evidencia a preocupação constante do legislador em estabelecer um sistema tributário justo, evitando a tributação sobre receitas que sejam meramente aparentes ou efetivamente inexistentes.

No âmbito das turmas que se dedicam à apreciação de matéria de direito privado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a atividade de correspondente tem sido considerada como instrumento fundamental para levar os serviços e produtos bancários mais elementares e necessários à população residente em localidades tradicionalmente desprovidas de tais benefícios essenciais, proporcionando assim uma verdadeira inclusão social e democratização do acesso ao sistema financeiro nacional, conferindo maior capilaridade e efetividade ao atendimento bancário, configurando-se, dessa forma, como nada menos que uma autêntica “longa manus” das instituições financeiras que, por si só, não conseguiriam atender adequadamente toda a sua demanda potencial. [7]

Ao analisar a responsabilidade civil da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) e de instituição financeira envolvida em um caso específico de assalto ocorrido no interior de uma agência dos Correios que operava como banco postal, a Corte aplicou a teoria da aparência, fundamentando sua decisão no entendimento de que, sob a perspectiva do consumidor médio, o banco postal é naturalmente percebido como uma extensão legítima e integral do banco dentro da estrutura física da agência dos Correios.

Especificamente sobre a natureza jurídica do serviço prestado pelos correspondentes bancários, o STJ firma categoricamente a compreensão destes sujeitos como preposto da instituição financeira, afastando sua caracterização como mero terceiro, ao tomar a remuneração do correspondente bancário como necessariamente inserida nos custos operacionais regulares da instituição financeira. [8]

Ademais, o STJ dedicou-se a analisar a validade da cobrança, em contratos bancários diversos, de tarifas e despesas relacionadas com serviços prestados por terceiros, registro formal do contrato ou avaliação técnica do bem, por serem os contratos bancários firmados especificamente no âmbito de uma relação de consumo, mesmo quando intermediadas por correspondentes bancários.

No entanto, remanesce em debate no âmbito do STJ a possibilidade jurídica da dedução das despesas com correspondentes bancários da base de cálculo das Contribuições ao PIS e à Cofins, mormente quanto ao tipo de relação do correspondente com a instituição financeira. [9]

Em contraste com os precedentes estabelecidos pela Seção de Direito Privado, a 1ª Turma adotou posicionamento divergente ao categorizar o correspondente bancário como “terceiro” na relação jurídica, rejeitando a natureza de preposto da instituição financeira. Esta nova abordagem interpretativa introduz um elemento significativo de insegurança jurídica em relação às diversas manifestações anteriormente emanadas pelo mesmo Tribunal, cuja missão institucional fundamental sempre foi a pacificação de controvérsias e a uniformização jurisprudencial, ao garantir que seja estável, íntegra e coerente, conforme estabelecido no artigo 926 do Código de Processo Civil.

A indedutibilidade, na base de cálculo do PIS e da Cofins, das despesas internas, típicas da intermediação bancária, com os correspondentes bancários, acarretará efetivo aumento dos custos operacionais e de crédito para a população em geral, com possível desestímulo à expansão dos serviços financeiros em áreas menos desenvolvidas do país, o que poderia resultar em uma grave exclusão financeira de populações que já se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica, agravando ainda mais as desigualdades existentes no acesso aos serviços financeiros básicos, bem como o encarecimento do crédito como um todo.

Os agentes autônomos de investimento, diferentemente dos correspondentes bancários, que atuam efetivamente nas operações de intermediação financeira, são agentes que integram o sistema de distribuição de valores mobiliários (artigo 15, III, da Lei 6.385/1976), regulamentados pela Instrução CVM 497/2011, atuando como especialistas independentes em consultoria e assessoria de investimentos. Atuam, em geral, sem vínculo empregatício direto com instituições financeiras, por meio de contratos de distribuição que permitem oferecer produtos diversificados do mercado financeiro.

Em conclusão, os correspondentes bancários integram a intermediação financeira dos bancos e equiparados, com papel fundamental na democratização do acesso aos serviços financeiros. Assim, a dedutibilidade dessas despesas, além de estar em consonância com a legislação vigente e com o entendimento jurisprudencial acerca da essencialidade dos serviços prestados, mostra-se fundamental para a preservação e ampliação da política pública para a democratização do acesso ao sistema financeiro nacional, ao garantir a sustentabilidade deste importante canal de prestação de serviços financeiros e a continuidade do processo de inclusão financeira no Brasil.

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[1] O Banco Postal é um dos exemplos mais conhecidos desse serviço, através da rede de atendimento da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Por meio dele, são oferecidos diversos serviços bancários: abertura de contas, pagamento de contas e tributos, solicitação de cartões e talões de cheque, pagamento de salários e benefícios, consulta de saldos e extratos, depósitos, saques, transferências, além do recebimento e encaminhamento de propostas de empréstimos e financiamentos. Sobre este aspecto, consultar: DIAS, Leila Christina Duarte. Correspondente bancário como estratégia de reorganização de redes bancárias e financeiras no Brasil. Geousp– Espaço e Tempo, v. 21, n. 2, 2017.

[2] DINIZ, Eduardo Henrique. Correspondentes bancários e microcrédito no Brasil: tecnologia bancária e ampliação dos serviços financeiros para a população de baixa renda. Relatório de pesquisa. São Paulo: EAESP-FGV, 2007, p. 7.

[3] Estas informações estatísticas oficiais – disponíveis para consulta pública – encontram-se detalhadamente documentadas no Relatório de Cidadania Financeira, publicado em 2021 pelo Banco Central do Brasil. BANCO CENTRAL. Relatório de Cidadania Financeira. Brasília, 2021. Disponível aqui.

[4] Nos termos do artigo 17 da Lei n.º 4.595/64, a intermediação financeira compreende “a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”.

[5] Analisando conjuntamente o artigo 17 da Lei n.º 4.595/64 e o artigo 8.º da Resolução n.º 3.954 do BACEN, que lista as atividades permitidas aos correspondentes bancários, observa-se que estes, como intermediadores das operações financeiras dos bancos comerciais, atuam tanto nas operações passivas (CDB, poupança, depósitos etc.) quanto nas operações ativas (empréstimos, financiamentos etc.).

[6] Art. 8º Além das exclusões previstas no art. 7º, os bancos comerciais, bancos de investimento, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, agências de fomento, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito e associações de poupança e empréstimo podem deduzir da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, os valores: (Redação dada pela Instrução Normativa RFB nº 1.314, de 28 de dezembro de 2012) (…) I – das despesas incorridas nas operações de intermediação financeira;

[7] REsp n. 1.183.121/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/2/2015, DJe de 7/4/2015.

[8] REsp n. 1.578.553/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 28/11/2018, DJe de 6/12/2018.

[9] AREsp n. 2.001.082/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 26/6/2024.

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