Tributação da distribuição de dividendos à conta de reserva de capital

Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf em que se discute a tributação ou não da distribuição de dividendos quando os recursos que a operacionalizam se originam nominalmente de reservas de capital.

Com relação às contas de reservas de capital, é importante destacar que o §1º do artigo 182 de Lei nº 6.404/76 [1] determina que elas são formadas pela contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social, inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes beneficiárias, assim como pelo produto da alienação de partes beneficiárias e bônus de subscrição.

Dessa forma, a hipótese mais comum de formação de reservas de capital se refere ao montante que os acionistas contribuem para a aquisição de ações que ultrapassa o valor nominal das ações adquiridas ou a parte do preço da emissão das ações sem valor nominal que ultrapassa o valor destinado à formação do capital social. Comumente as contas de reservas de capital utilizadas com a referida finalidade se denominam “Ágio na Emissão de Ações”.

Nos termos do artigo 200 da Lei nº 6.404/76, as reservas de capital somente podem ser utilizadas para algumas finalidades específicas: (1) absorção de prejuízos que ultrapassarem os lucros acumulados e as reservas de lucros; (2) resgate, reembolso ou compra de ações; (3) resgate de partes beneficiárias; (4) incorporação ao capital social; e (5) pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa vantagem lhes for assegurada.

Conforme se observa, uma das possibilidades de uso das reservas de capital diz respeito ao pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa vantagem lhes for assegurada. Tal possibilidade está autorizada no artigo 17, §6º, da Lei nº 6.404/76 que prevê que o estatuto social pode conferir às ações preferenciais com prioridade na distribuição de dividendo cumulativo, o direito de recebê-lo, no exercício em que o lucro for insuficiente, à conta das reservas de capital.

Dessa forma, ainda que em um determinado exercício social não haja lucro suficiente para a distribuição de dividendos, há possibilidade de distribuição deles à conta de reserva de capital.

Tal possibilidade é reforçada inclusive pelo artigo 201 da Lei nº 6.404/76, que dispõe que a companhia somente pode pagar dividendos à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de lucros; e à conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais de que trata o § 5º do artigo 17 (cujo teor corresponde ao atual §6º do artigo 17).

Excepcionalidade

Importa destacar também que §1º do artigo 201 da Lei nº 6.404/76 determina que a distribuição de dividendos com inobservância do referido artigo implica responsabilidade solidária dos administradores e fiscais, que deverão repor à caixa social a importância distribuída, sem prejuízo da ação penal que no caso couber, bem como o §2º do mesmo artigo 201 menciona que os acionistas não são obrigados a restituir os dividendos que em boa-fé tenham recebido, sendo que se presume a má-fé quando os dividendos forem distribuídos sem o levantamento do balanço ou em desacordo com os resultados deste.

Como se observa, a distribuição de dividendos com base nas reservas de capital é algo excepcional, sendo necessária previsão estatutária expressa e somente os acionistas preferencialistas poderão ser beneficiários de tais dividendos. Qualquer deslize no tocante a este tipo de tributação poderá implicar a responsabilização solidária dos administradores, assim como uma eventual presunção de má fé dos acionistas ao receberem os dividendos (sobretudo na hipótese dos acionistas controladores) a depender do caso concreto.

Tributação

Diante de todo este cenário societário restritivo, resta saber como se dará a tributação da distribuição de dividendos à conta de reservas de capital.

O artigo 10 da Lei nº 9.249/95 estabeleceu que os lucros ou dividendos serão distribuídos com isenção de IRRF e não serão tributáveis pelos seus beneficiários desde que tenham sido “calculados com base nos resultados apurados” pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, conforme pode ser observado abaixo:

“Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.”

A princípio, é importante ressaltar que o artigo 10 da Lei nº 9.249/95 pressupõe que a isenção dos lucros ou dividendos distribuídos estaria ao que resultado esteja apurado, no sentido que esteja amparado pela escrituração contábil feita de acordo com a legislação comercial.

Assim, a escrituração contábil é o meio de comprovação de que o lucro efetivo é maior que o determinado segundo as normas para apuração da base de cálculo do imposto ao amparo do regime adotado pela pessoa jurídica – seja ele lucro real ou presumido.

Na hipótese em que o lucro distribuído for maior do que o escriturado contabilmente, ainda há a possibilidade de distribuição do saldo das reservas de lucros ou lucros acumulados de períodos anteriores, tal qual prevê o artigo 238 da Instrução Normativa RFB nº 1.700/17.

Todavia, caso o lucro a ser distribuído não possua amparo no resultado do exercício e tampouco no saldo das reservas de lucros ou lucros acumulados de períodos anteriores, haveria tributação do montante distribuído em excesso nos termos do artigo 61 da Lei nº 8.981/95.

Tendo em vista que a hipótese de distribuição de lucros à conta de reservas de capital ocorre exatamente quando o estatuto social possibilita tal distribuição no exercício em que o lucro for insuficiente, nos termos do artigo 17, §6º, da Lei nº 6.404/76, resta saber se tal dividendo deverá ser tributado ou se ainda será possível aplicar o raciocínio disposto no artigo 10 da Lei nº 9.249/95.

No âmbito doutrinário, Ramon Tomazela defende a isenção dos dividendos ainda que pagos à conta de reservas de capital, uma vez que tal isenção possui nítida função indutora, como instrumento para aliviar a dupla tributação econômica, assim como há autorização societária para pagamento de dividendos fixos aos acionistas preferencialistas na Lei nº 6.404/76 [2].

Precedentes

Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf que tratam do assunto.

No Acórdão nº 1202-00.461[3] (de 25/01/2011), a turma julgou de forma unânime pela impossibilidade de caracterização como dividendos dos montantes pagos aos acionistas em contrapartida à conta de reserva de capital (Reserva Especial de Ágio).

Como consequência de tal decisão, os valores recebidos ainda que nominalmente a título de dividendos pela recorrente foram entendidos como rendimentos tributáveis que deveriam fazer parte das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL (no caso em tela, a autuação diz respeito tão somente à CSLL, uma vez que o contribuinte tributou o rendimento em questão para fins de IRPJ).

Para fins de contextualização do caso concreto, cumpre notar que a investida da Recorrente possuía saldo de ágio na aquisição de investimento a ser amortizado. Considerando que tal amortização traria um impacto negativo no fluxo de dividendos da investida, a Aneel e a CVM teriam condicionado a aprovação da incorporação da investida a um mecanismo de compensação aos acionistas minoritários dos dividendos que eles deixariam de ganhar.

Daí surgiu o “Desdobramento e Resgate de Ações”, por meio do qual a investida aumentou o seu número de ações com base no valor patrimonial antes do desdobramento e passou a resgatar as ações com o pagamento aos acionistas, utilizando do montante da reserva de capital (Reserva Especial de Ágio).

A recorrente (investidora) alega que os montantes recebidos da investida a título de “Desdobramento e Resgate de Ações” (que na investida foram contabilizados em contrapartida à conta de reserva de capital) não seriam tributáveis como rendimentos para fins de CSLL em razão de seu caráter de dividendos e/ou valores destinados a restabelecer o patrimônio investido da Recorrente naquela sociedade, por meio da operação denominada resgate de ações pelo valor patrimonial.

No voto, o conselheiro relator manifesta o entendimento de que o presente caso não se enquadra na situação descrita no então artigo 17, §5º (atual §6º), da Lei nº 6.404/76, isto é, pagamento de dividendo de acionista preferencialista à conta de reserva de capital.

Ademais, ao analisar a situação fática como um todo, o conselheiro relator conclui que os recebimentos percebidos pela investidora relativos ao desdobramento e resgate de ações com a utilização de lastro proveniente da Reserva Especial de Ágio, registrada como Reserva de Capital no Patrimônio Líquido da investida, não possuem a característica de dividendos, devendo tais recebimentos integrarem o lucro tributável pela CSLL.

Conclusão

Diante de todo o exposto, nota-se que a tributação da distribuição de dividendos à conta de reserva de capital ainda é um assunto pouco discutido no âmbito do Carf. Por mais que haja uma decisão em sentido negativo ao contribuinte, é importante destacar que se tratava de caso mais complexo envolvendo o resgate de ações com pagamento à conta de reserva de capital.

– Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Lei nº 6.404/76: “Art. 182. (…) § 1º Serão classificadas como reservas de capital as contas que registrarem:

a) a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social, inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes beneficiárias;

b) o produto da alienação de partes beneficiárias e bônus de subscrição;”.

[2] Santos, Ramon Tomazela. A Isenção Outorgada aos Dividendos e Integração da Tributação das Pessoas Jurídicas e das Pessoas Físicas: o Pagamento de Dividendos à Conta de Reserva de Capital e a Influência da Recente Edição da Lei nº 12.973/2014. Revista Direito Tributário Atual, (32), 297–320.

[3] Conselheiro relator Carlos Alberto Donassolo.

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ABA publica cartilha para advogados evitarem ajudar clientes em crimes

O Comitê Permanente sobre Ética e Responsabilidade Profissional da American Bar Association (ABA) divulgou, na sexta-feira (23/8), novas diretrizes sobre a representação de clientes que buscam assistência jurídica para facilitar o cometimento de crimes.

ABA divulgou novas diretrizes sobre a representação de clientes que buscam assistência jurídica para facilitar o cometimento de crimes – 123rf

As diretrizes, expressas na Formal Opinion 513, recomendam aos advogados, entre outras coisas, “detectar e evitar envolvimento com atividades criminosas de atuais e, particularmente, de novos clientes” e, se for o caso, rejeitar a representação.

A ABA afirma que a aprovação das diretrizes por seu comitê de ética é necessária para orientar os advogados dos EUA, porque alguns descuidados têm ajudado, talvez inadvertidamente, clientes a “cometer crimes e fraudes”, por não dar a devida atenção ou não fazer a devida diligência sobre certas transações propostas por eles.

Especificamente, o documento cita como exemplo transações efetuadas com fundos vindos do exterior, cuja finalidade era promover lavagem de dinheiro ou financiamento de atividades terroristas.

 

As diretrizes estabelecem que um dos deveres do advogado é “investigar e avaliar os fatos e circunstâncias das situações e circunstâncias reais e potenciais de cada cliente, para se assegurar que a representação não contribua ou promova atividades criminosas”.

Para a ABA, a investigação das pretensões do cliente deve ser “razoável” e não apenas “superficial”. Mas também não precisa ser “do tipo operação policial, para elucidar todos os fatos sobre uma transação proposta pelo cliente”.

“O advogado não precisa resolver todas as dúvidas. Se restar alguma dúvida depois de o advogado realizar uma investigação razoável, ele pode prosseguir com a representação — desde que ele conclua que não está se envolvendo em um esquema criminoso”.

Mas se o advogado tiver conhecimento de que há uma alta probabilidade de que seus serviços jurídicos irão ajudar o cliente no cometimento de crime ou fraude, ele deve rejeitar a representação. Caso contrário, irá prestar assistência consciente e deliberada à realização de um crime.

De acordo com as diretrizes, em algumas circunstâncias o advogado deve interrogar o cliente, solicitar a apresentação de documentos e checar fontes públicas de informação. Se não estiver satisfeito com os resultados desse esforço, “o advogado deve rejeitar ou se retirar do caso”.

Na abertura de sua “Formal Opinion 513”, com o título de “Dever de investigar e avaliar fatos e circunstâncias de cada representação”, o documento resume o texto das diretrizes, dizendo:

“Conforme revisado recentemente, a Regra Modelo 1.16(a) prevê que: ‘Um advogado deve investigar e avaliar os fatos e circunstâncias de cada representação para determinar se pode aceitar ou continuar a representação’. Para reduzir o risco de aconselhar ou auxiliar um crime ou fraude, algum nível de investigação e avaliação é necessário antes de realizar cada representação. Investigação e avaliação adicionais são necessárias quando o advogado toma conhecimento de uma mudança nos fatos e circunstâncias relacionadas à representação, que levanta questões sobre se o cliente está usando os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude.

A investigação e avaliação do advogado serão informadas pela natureza e extensão do risco de que o cliente atual ou potencial busque usar, ou persista em usar, os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude. Se, após ter conduzido uma investigação razoável e baseada em risco, o advogado determinar que a representação provavelmente não envolverá assistência em um crime ou fraude, o advogado pode empreender ou continuar a representação. Se o advogado tiver ‘conhecimento real’ de que os serviços do advogado serão usados ​​para cometer ou promover atividade criminosa ou fraudulenta, o advogado deve recusar ou retirar-se da representação.

Quando a investigação inicial do advogado deixa o advogado com questões de fato não resolvidas sobre se o cliente atual ou potencial busca usar ou persiste em usar os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude, o advogado deve fazer esforços adicionais para resolver essas questões por meio de investigação razoável antes de aceitar ou continuar a representação. O advogado não precisa resolver todas as dúvidas. Em vez disso, se alguma dúvida permanecer mesmo depois que o advogado tiver conduzido uma investigação razoável, o advogado pode prosseguir com a representação, desde que conclua que isso provavelmente não envolverá auxiliar ou promover um crime ou fraude.”

Sobre a obrigação de rejeitar a representação, as diretrizes da ABA dizem textualmente:

“Um advogado normalmente deve recusar ou retirar-se da representação se o cliente exigir que o advogado se envolva em conduta que seja ilegal ou viole as Regras de Conduta Profissional ou outra lei. O advogado não é obrigado a recusar ou retirar-se simplesmente porque o cliente sugere tal curso de conduta; um cliente pode fazer tal sugestão na esperança de que um advogado não seja restringido por uma obrigação profissional. De acordo com o parágrafo (a)(4), a investigação e avaliação do advogado sobre os fatos e circunstâncias será informada pelo risco de que o cliente ou cliente potencial busque usar ou persista em usar os serviços do advogado para cometer ou promover um crime ou fraude.”

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Lei Maria da Penha e seus reflexos no trabalho da mulher

Neste mês de agosto, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) completa 18 anos. São quase duas décadas de uma legislação voltada ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra mulheres, que são vítimas de múltiplas formas de violação, como a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

A lei estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica que podem repercutir no âmbito das relações do trabalho.

O inciso II, do § 2º, do artigo 9º da Lei Maria da Penha, por exemplo, garantiu à mulher vítima de violência doméstica o direito de não ser dispensada quando for necessário o seu afastamento do local de trabalho, por até seis meses:

“Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

[…]

§2º. O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:

[…]

II – Manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.”

Deste modo, a empregada que sofre violência doméstica e corre perigo em sua integridade física ou psicológica se permanecer em seu posto de trabalho, poderá ser afastada de suas atividades, pelo prazo de seis meses, com o direito de retornar à sua rotina, sem prejuízo do emprego.

Pode-se dizer, que neste caso, a mulher, durante o prazo de seis meses de afastamento do trabalho, tem uma garantia de emprego, já que não pode ser dispensada nesse período.

Dispensas anuladas

Esse foi o caso do Processo nº 0010252-38.2020.5.03.0136 [1], julgado pelo TRT da 3ª Região (MG), que declarou nula a dispensa da autora por justa causa e determinou sua reintegração.

A relatora, juíza Adriana Campos de Souza Freire Pimenta, e os desembargadores da 1ª Turma entenderam que:

“Pelas particularidades do caso e em virtude da situação referida pela Lei Maria da Penha, deverá a reclamante ser reintegrada em outro posto de trabalho, como forma de preservação de sua integridade física e psicológica.”

E, ao final, além de majorar a condenação da empresa ré, concluíram por:

“a) declarar nula a dispensa da autora e determinar sua reintegração, observando-se as mesmas condições anteriores e relacionadas ao cargo ocupado;

b) condenar a ré a pagar à autora os salários, vencidos e vincendos, observando os reajustes concedidos após a dispensa, se houver, bem como as parcelas de décimos terceiros salários, férias acrescidas de um terço e vale-alimentação, devidos da data da dispensa até a data da efetiva reintegração, conforme se apurar em liquidação;”

A 11ª Turma do TRT da 2ª Região (SP), por sua vez, considerou injusta a dispensa de uma empregada que teve seu contrato de trabalho rescindido em decorrência de oito faltas “injustificadas” e reiteradas “condutas desidiosas” no exercício das funções [2].

O acórdão foi relatado pelo desembargador Sérgio Roberto Rodrigues que entendeu que as faltas não foram injustificadas, uma vez que a empresa tinha conhecimento de que a empregada sofria de violência doméstica o que lhe impediu de comparecer ao trabalho em algumas oportunidades.

A referida decisão não se confunde com o direito de permanecer no emprego pelo período de seis meses, mas demonstra que o fato de a empregada deixar de comparecer ao serviço em algumas oportunidades em razão da violência doméstica sofrida, não pode ser considerada uma falta grave. Afinal, a situação não decorreu de uma atitude desidiosa (negligente ou preguiçosa), como prevê a alínea “e” do artigo 482 da CLT.

No mesmo sentido foi a decisão do TRT da 23ª Região (MT) que também reverteu a dispensa por justa causa, aplicada à empregada de um hospital, no qual trabalhava desde 2010, por ter faltado a vários plantões [3]. O acórdão entendeu que as ausências da trabalhadora foram justificadas pelo contexto de violência sofrida pelo ex-companheiro, contra quem tinha até mesmo uma medida protetiva concedida pela Justiça.

Conclusão

Por fim, a Lei 11.340/2006, além de ser um marco no combate à violência doméstica e familiar, provocou reflexos na área trabalhista, seja para possibilitar a manutenção do emprego em caso de afastamento pelo prazo de seis meses, seja para justificar as ausências de empregadas vítimas de violência doméstica e não confundir tal situação com a prática de falta grave.

Basta de violência!


[1] TRT-3 – RO: 00102523820205030136 MG 0010252-38.2020.5.03.0136, relator: Adriana Campos de Souza Freire Pimenta, data de julgamento: 14/10/2020, 1ª Turma, data de publicação: 14/10/2020.

[2] https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/trt-2-reverte-justa-causa-de-mulher-que-faltou-ao-trabalho-por-violencia-domestica?utm_smid=11277829-1-1

[3] https://portal.trt23.jus.br/portal/radioag%C3%AAncia-trt/revertida-justa-causa-de-trabalhadora-que-faltou-por-ser-vitima-de-violencia

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Ajuizamento de ações iguais justifica imposição de multa a autor e advogado

O ajuizamento de duas ações iguais e com o mesmo propósito configura litigância de má-fé, o que justifica a imposição de multa a ser paga solidariamente à parte contrária pelo autor e por seu procurador na causa.

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A partir desse entendimento, a juíza Andréia Terre do Amaral, do Núcleo Bancário de Justiça 4.0 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, determinou que a autora de uma ação contra um banco indenize a parte contrária em quantia equivalente a 5% do valor corrigido da causa, em solidariedade com o escritório que atuou na ação.

Litispendência

A autora alegava haver abusividade em um contrato de empréstimo, o que o banco afirmava inexistir, além de argumentar que a cliente havia pactuado o acordo livremente. A instituição financeira também argumentou haver litispendência no processo, uma vez que uma ação semelhante havia sido ajuizada sete meses antes no tribunal.

A juíza do caso acolheu o argumento do banco por entender que houve litigância de má-fé por parte da autora, o que justificou a imposição da indenização e a revogação da gratuidade judiciária antes concedida a ela. A cliente ainda terá de arcar com as custas processuais e os honorários da defesa do banco, fixados em R$ 1 mil pela julgadora.

 

Atuou na causa em favor do banco o escritório Hoepers, Campos & Noroefé Advogados Associados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5001583-07.2023.8.21.0118

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Lentidão do Poder Judiciário leva STJ a negar repatriação de crianças

A demora do Poder Judiciário para julgar uma ação que pedia a repatriação de menores sequestrados pela mãe levou o Superior Tribunal de Justiça a negar o pedido feito pelo pai, que reside no exterior.

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O caso foi julgado pela 1ª Turma do STJ, com críticas feitas pelo relator, ministro Paulo Sérgio Domingues, à demora. A votação foi unânime.

A mãe retirou as crianças do país de residência sem autorização do pai e as trouxe ao Brasil em 2015. O pai, então, ajuizou ação pedindo a repatriação dentro do prazo de um ano exigido pela Convenção de Haia. Nesse caso, a devolução dos menores deveria ser imediata.

No entanto, nunca houve o cumprimento de qualquer medida de urgência, o que permitiu que os menores permanecessem no Brasil por cerca de dez anos, enquanto a ação tramitava muito lentamente.

A ação ajuizada pelo pai não discute onde os filhos devem residir. Em vez disso, contesta a retirada dos menores do país de residência habitual e visa a decidir em qual país a questão da residência deles será julgada e onde eles permanecerão até que saia uma decisão.

O problema é que a ação, ajuizada em junho de 2016, só foi sentenciada pela Justiça Federal de São Paulo em dezembro de 2019. A apelação foi julgada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em outubro de 2021 e o caso chegou ao STJ em novembro de 2023.

Novos contornos

O ministro Paulo Sérgio Domingues explicou que essa demora deu novos contornos jurídicos ao caso, os quais justificam a permanência dos filhos no Brasil. Quase uma década depois de ajuizada a ação, eles hoje têm 13 e 11 anos e demonstram idade e grau de maturidade suficientes para terem suas opiniões levadas em consideração.

Nessa situação, o artigo 13 da Convenção de Haia determina que o Brasil não é obrigado a ordenar o retorno das crianças. Portanto, caberá à autoridade judiciária brasileira decidir sobre residência e visitação, levando em consideração a vontade dos menores.

Para o ministro relator, ainda que a vinda dos menores ao Brasil tenha representado aparente prejuízo a eles e ao pai, impor o repatriamento forçado agora, no momento em que eles têm preferências pessoais em razão da idade, representaria agressão ainda maior.

“A aplicação imediata (da regra de repatriação) neste momento iria contra a possibilidade de os próprios adolescentes participarem da decisão sobre local onde desejam residir e com qual genitor pretendem morar.”

O ministro classificou como “inadmissível” a demora na tramitação do feito e que a consequência direta da demora do Poder Judiciário seja usada como fundamento para a manutenção dos menores no país.

“É de se lamentar o problema real causado nos núcleos familiares pela demora do Judiciário na questão”, disse.

REsp 2.152.460

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Tributação da partilha desigual dos dividendos como doação

Os projetos de leis complementares sobre a reforma tributária seguem tramitando no Congresso e nos trazendo diversas surpresas. Uma das mais recentes consta do relatório aprovado na Câmara dos Deputados sobre o PLP 108, cujo foco é regulamentar o funcionamento do Comitê Gestor, mas que traz algumas novidades polêmicas sobre incidências tributárias.

Trato da incidência de ITCMD, sobre a vertente de tributação das doações, que incidiria (ou incidirá, se o texto vier a ser transformado em lei) sobre a partilha desigual de dividendos. O texto em debate no Congresso estabelece o seguinte (artigo 164, §5, I):

“Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas: I – os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados.”

A situação fática que a norma pretende alcançar, de modo a tributar como doação, ocorre quando o capital social prevê que o sócio João tem 50% das quotas sociais e Maria tem os outros 50%. Porém, quando partilham o lucro, João fica com 20% e Maria fica com 80%. Haveria aqui, segundo o que a regulamentação deseja alcançar, uma doação de 30 pontos percentuais de João a Maria, pois ele tem metade do capital social, mas teria doado 30% do lucro daquele período para Maria. Consequentemente, Maria teria que pagar ITCMD sobre esse montante que recebeu em percentual superior à sua participação no capital social, pois teria recebido uma doação de João.

Será isso verdadeiro e constitucional?

Observemos uma típica sociedade de pessoas, como as sociedades de advogados, que tenha apenas dois sócios, cada qual com 50% do capital social. É extremamente usual que um dos sócios, em certo período, receba honorários em valor superior ao outro, e, portanto, não se utilize da regra do capital social para realizar a partilha, que ficaria despareada naquele mês ou durante certo período. Teria havido doação?

Para ser um pouco mais rigoroso na apresentação do problema: a regra do capital social é algo a ser rigorosamente seguida, ou podem os sócios, consoante seus interesses na organização de seus negócios, estabelecer regras diferenciadas de partilha do lucro (os dividendos)?

Entendo que nas sociedades de pessoas os sócios podem estabelecer as regras que melhor lhe aprouverem na divisão dos lucros, sem que isso se caracterize como doação. Trata-se de liberdade de iniciativa econômica, visando organizar os negócios internos da empresa como melhor aprouver aos sócios.

A regra do percentual do capital social não deve ser usada para fins de obrigatória divisão de lucros, tratando-se de indevido avanço do poder de tributar no âmbito da liberdade de iniciativa econômica da sociedade, o que se configura como uma inconstitucionalidade, por infração ao at. 1º, IV, e ao caput do artigo 170, CF. O mesmo raciocínio vale para as demais hipóteses pretendidas nesse mesmo texto em debate no Congresso.

Suponhamos que na dissolução dessa hipotética sociedade de advogados, um dos sócios decida ficar com todas os processos (as ações) em curso e o outro com os móveis e equipamentos que guarneciam o escritório; haveria aqui uma doação de um para outro? Como apurar isso? Do mesmo modo, se um receber maior valor em honorários do que o outro em determinado período, isso se caracterizará como doação, caso a partilha dos lucros não siga a regra da composição do capital social? Pois é exatamente isso que o texto em debate no Congresso pretende fazer: tributar o que for dividido de forma desigual entre os sócios, observada a composição do capital social.

Até entendo que o escopo seja o de evitar fraudes, que sempre podem ocorrer, mas, tal como redigido, toda e qualquer partilha desigual acabará sendo objeto de autos de infração, tendo o contribuinte que justificar sua conduta perante o Fisco. Melhor será deixar tudo como está, ao invés de trilhar esse caminho perigoso e potencialmente litigioso, como prevê o texto em debate no Congresso.

Se identificadas de forma ativa pelo Fisco, as fraudes deverão ser coibidas, e não fazer como proposto, que coloca o contribuinte sob prévia suspeita, caso promova partilha desigual e seja levado a pagar imposto sobre doação, quando doação não há, mas liberdade de iniciativa econômica. Incumbe ao Fisco exercer a fiscalização e coibir as fraudes, e não considerar de antemão os contribuintes como praticantes de condutas irregulares.

Urge modificar esse texto no Congresso, simplesmente retirando esse inciso do projeto.

A cada vez que um disparate como esse surge nos debates parlamentares, cresce minha convicção de que a advocacia tributária será a profissão do futuro no Brasil, em razão da forma como essa reforma tributária vem sendo conduzida.

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Direito intertemporal e cautelar de indisponibilidade de bens nas ações de improbidade

A Lei nº 14.230/2021 alterou diversos dispositivos da LIA (Lei de Improbidade Administrativa). Entre eles, os requisitos para decretação da indisponibilidade de bens — alterando-se a natureza da medida para qualificá-la como tutela provisória de urgência — e a previsão expressa de que a indisponibilidade será limitada ao valor necessário para a reparação ao dano ao erário — excluídos a multa civil e os valores decorrentes de atividade lícita (artigo 16, §§ 3º e 10).

Afrânio Vilela 2024 – Gustavo Lima/STJ

Em maio de 2024, a 1ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou o assunto à sistemática do julgamento de recursos repetitivos o Tema nº 1257, sob relatoria do ministro Afrânio Vilela, para “definir a possibilidade ou não de aplicação da nova lei de improbidade administrativa (Lei 14.230/2021) a processos em curso, iniciados na vigência da Lei 8.429/1992, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, inclusive a previsão de se incluir, nessa medida, o valor de eventual multa civil”.

Ao afetar o Tema Repetitivo nº 1257, a 1ª Seção determinou a suspensão de todos os processos que versem sobre a mesma matéria nos quais tenha sido interposto recurso especial ou agravo em recurso especial, ou que estejam em trâmite no STJ. Também foi decidido que a suspensão dos processos não afetaria o curso dos prazos prescricionais.

Como representativos da controvérsia, foram selecionados os Recursos Especiais nº 2074601/MG, 2076137/MG, 2076911/SP, 2078360/MG e 2089767/MG. Dos cinco recursos, somente o REsp 2076911 de São Paulo (sigiloso) foi interposto por pessoa física. Todos os demais os recursos especiais selecionados foram interpostos pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

 

Em análise às teses discutidas nos recursos especiais afetados, destacam-se os três principais assuntos que deverão ser enfrentados pelo STJ para o julgamento do tema.

Primeiro, e mais evidente, é a definição das regras de direito intertemporal que serão aplicáveis para reger a alteração normativa. Afinal, a Lei nº 14.230/2021 não trouxe regras de transição ou sobre a aplicabilidade retroativa da norma.

Normas sobre indisponibilidade de bens

Para decidir sobre o direito intertemporal, será preciso definir a natureza das normas que versam sobre indisponibilidade de bens; isto é, se possuem natureza processual, material ou mista.

Se for considerada uma norma processual, o STJ terá a oportunidade de se pronunciar sobre o postulado “tempus regit actum” e a teoria do isolamento dos atos processuais no contexto de decisões interlocutórias que possuem natureza precária e modificável a qualquer tempo (artigo 296 do Código de Processo Civil — CPC) e cujo conteúdo ainda não precluiu. Logo, não poderiam ser consideradas ‘ato jurídico perfeito’ ou ‘direito adquirido processual’ para efeitos do artigo 5º, XXXVI da Constituição, artigo 14 do CPC e artigo 6º da Lindb.

Por outro lado, se as normas sobre indisponibilidade de bens forem classificadas como normas materiais ou mistas, a discussão envolverá a aplicabilidade ou não do princípio da retroatividade da norma mais benéfica ao réu, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição, ao sistema de direito administrativo sancionador.

Em segundo lugar, deverá ser decidida pelo STJ a aplicabilidade aos processos em curso da nova redação do artigo 16, caput e § 10, da LIA, que hoje exclui o valor da multa civil dos valores que poderão ser alcançados pela medida de indisponibilidade de bens.

Direito de defesa impactado

A importância dessa questão vai além da simples diminuição da parcela de patrimônio do réu exposta ao risco de constrição. Impacta o direito de defesa, sobretudo nas ações em que a petição inicial não especificou o valor do dano ao erário e o valor estimado da multa civil. O não conhecimento sobre esses valores impossibilita que a cautelar de indisponibilidade seja decretada sem violação ao direito de defesa do réu, em especial quanto aos eventuais valores excedentes.

Em terceiro lugar, o julgamento do Tema 1257 deve ensejar a revisão do Tema Repetitivo nº 701, que estabeleceu a natureza de tutela de evidência para a indisponibilidade de bens no contexto da redação anterior da LIA. E, o Tema nº 1055, pois trata da inclusão do valor da multa civil nos valores acautelados por indisponibilidade.

Por fim, considerando o interesse geral na formação desse importante precedente, é notável que a União teve deferido seu pedido de ingresso nos recursos afetados como amicus curie. De outro lado, até a publicação do presente artigo, não há pedidos de ingressos de terceiros a favor da aplicabilidade da Lei nº 14.230/2021.

Em suma, a afetação do Tema Repetitivo nº 1257 veio em boa hora para trazer mais segurança jurídica e pacificar o entendimento da jurisprudência nacional sobre as tutelas provisórias nos processos de improbidade após as alterações da Lei nº 14.230/2021 e revisitar temas repetitivos proferidos na vigência da redação antiga da lei e ainda não expressamente revogados pelo STJ.

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Supremo dá mais poderes para DPU defender povos indígenas isolados

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, autorizou na segunda-feira (12/8) a Defensoria Pública da União a atuar como custos vulnerabilis (guardiã dos vulneráveis) na ação que discute medidas de proteção a povos indígenas isolados e de recente contato.

Ação no STF discute medidas de proteção a povos isolados e de recente contato – Joédson Alves/Agência Brasil
 

A decisão garante à DPU “poderes e faculdades processuais semelhantes àqueles conferidos às partes no processo” — mais amplos do que o órgão tinha até então, na condição de amicus curiae (amigo da corte).

A DPU poderá fazer requerimentos autônomos (como de medidas cautelares e de produção de provas), interpor recursos e fazer sustentação oral em tempo semelhante ao das partes do processo.

O órgão já havia pedido para atuar como custos vulnerabilis, mas o relator havia autorizado apenas seu ingresso como amicus curiae — que apenas fornece subsídios às decisões e não tem os mesmos poderes das partes.

Socialmente expostos

Em novo pedido, a DPU insistiu na possibilidade de admissão como custos vulnerabilis, para o cumprimento da sua missão de defesa dos “socialmente mais expostos a situações de vulnerabilidade”.

Fachin reconsiderou sua decisão e explicou que a intervenção como custos vulnerabilis permite ao órgão “figurar no processo na defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade, de maneira diretamente interessada e parcial”.

Ele ressaltou a “extrema vulnerabilidade” dos povos indígenas isolados e de recente contato, “com risco real de desaparecimento caso as medidas de impedimento ou mitigação do contato com a sociedade envolvente e de garantia dos territórios em que habitam não forem concretizadas”.

O magistrado destacou que a Defensoria atua em “diversas demandas com temática de proteção aos direitos indígenas” que tramitam no STF, e também indicou que tais povos são representados por organizações indígenas e não atuam em nome próprio, justamente devido à sua situação de isolamento voluntário.

A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (Apib), autora da ação, concordou com a pretensão da DPU.

Clique aqui para ler a decisão
ADPF 991

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PEC 65/2023: BC como empresa pública e lawfare

Tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023 [1], com o objetivo de transformar o BC (Banco Central) em empresa pública. Recentemente, a LC (Lei Complementar) 179/2021 o transformou em autarquia de natureza especial, aproximando-o do regime jurídico de maior autonomia das agências reguladoras federais. Na justificação, os autores da PEC alegam que o BC não possui autonomia orçamentária e financeira para garantir a plena execução de suas atividades; e que a recente autonomia formal, concedida em 2021, não é possível de ser materializada sem uma alteração da Constituição que traga uma previsão constitucional de sua autonomia orçamentária e financeira.

Banco Central sede

Também defendem que o orçamento da autarquia deve ter tratamento distinto do Orçamento Geral da União, uma vez que a execução das funções de autoridade monetária não poderia se sujeitar ao mesmo tratamento e às mesmas restrições aplicáveis à execução das demais despesas do OGU. Além disso, a proposta inova ao prever o uso de receitas de senhoriagem para pagar suas despesas. Senhoriagem é a prática dos antigos reis que, para cunhar moedas de prata e ouro, cobravam um percentual que ficava em seus cofres.

Naquela época, ainda havia lastro em metais preciosos. Porém, no caso atual, a senhoriagem se refere ao fato de reservar parte do papel-moeda impresso pelo banco central para se autofinanciar. É criação de moeda pura. Nesse caso, a atividade de custeio do aparato administrativo se apoia não mais nos limites da tributação e na vinculação ao orçamento público, que dá sustentação ao regime monetário em uma economia de produção.

Aqui, já se pode tecer uma crítica: o viés inflacionário da proposta. Em uma economia monetária de produção, a moeda precisa ser neutra. Nesse sentido, os gastos da administração pública devem decorrer de um rígido controle fiscal, que é um dos pilares da manutenção do valor do Real. Não à toa o BC e seu próprio presidente defendem a necessidade de se garantir equilíbrio de gastos a partir da receita dos tributos, cumprindo as metas fiscais, como um dos pilares do próprio regime monetário doméstico.

Propor o financiamento do BC a partir da simples criação de moeda, desvinculada da produção econômica e da respectiva tributação e custeio do setor público, desvirtua a construção do regime fiscal-monetário do país, que se baseia em parte do valor gerado em riquezas no país para sustentar os gastos públicos. Não há, mais, criação de moeda para pagar despesas públicas, um descontrole que ocorria no país até os anos 1980, e que explica, em grande medida, o processo inflacionário histórico da economia brasileira.

No caso, a proposta envolve um custeio alto do BC, em torno de R$ 4 bilhões. Alternativamente, poder-se-ia pensar em separar uma parte das receitas do orçamento federal diretamente ao BC, constituindo uma exceção à inclusão das despesas de custeio do BC no OGU. Porém, sob a ótica do Direito Financeiro, a opção também contraria o princípio da unicidade orçamentária, insculpido no artigo 165, § 5º, da CF, e que segue uma tradição já posta na Lei 4.320/1964.

Em se tratando de proposição legislativa, é preciso, preliminarmente, questionar a problemática e a realidade subjacente à alteração almejada, que se trata de mudança constitucional sobre matéria relevante para a administração pública federal.

Por um lado, questionamos se há, de facto, um problema a ser equacionado pela PEC e qual sua real natureza. Parte-se da percepção de que o BC, pós-LC 179/2021, já dispõe atualmente de autonomia suficiente para o cumprimento adequado de suas atribuições, com manutenção de suas atividades sem restrições relevantes. A discussão também envolve avaliar se a função do BC justifica o proposto tratamento fiscal privilegiado, e quais as implicações para a administração pública federal.

Restrições fiscais da União e orçamento dual da autarquia

As únicas restrições orçamentárias e financeiras enfrentadas pelo BC se referem a despesas de pessoal e custeio administrativo e investimentos. Tais restrições podem, efetivamente, criar algumas dificuldades para a instituição, como limitações para a contratação de pessoal, restrições na fixação da remuneração dos servidores da instituição, como, de resto, todo o serviço público. No entanto, não se pode sustentar que sejam tão expressivas, ainda mais quando a entidade se encontra em fase de processo seletivo para contratação de mais 300 analistas com salário inicial de quase R$ 21 mil – as provas ocorreram no dia 4 de agosto de 2024.

As restrições orçamentárias do BC são as mesmas de outras autarquias como a CVM e as agências reguladoras, e demais órgãos públicos, que observam a rigidez e controle de gastos da máquina pública federal, de modo consolidado. Trata-se de uma preocupação premente para a União, que se encontra em situação fiscal deteriorada desde 2015, e está atualmente em contingenciamento fiscal. Tais restrições apenas refletem as limitações fiscais da União, bem como a necessidade de alcançar as metas fiscais, como sempre ressaltado em pronunciamentos públicos pelo presidente do BC.

De todo modo, as restrições fiscais são apenas parciais para o BC. Há uma lógica dual do orçamento do BC, que se divide em orçamento administrativo e orçamento de autoridade monetária. O orçamento administrativo engloba os gastos da autarquia que entram na LOA e nos gastos primários da União, e que alcançaram R$ 3,8 bilhões em 2023. Isso segue o estipulado pelo artigo 5º, § 6º, da LC 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina a inclusão do orçamento administrativo do BC no OGU.

Já o orçamento de autoridade monetária, que é aquele referente a receitas e despesas ligadas às políticas monetária e cambial, é aprovado pelo CMN, nos termos da Lei 4.595/1964. Este está, portanto, fora da LOA, que já é uma das grandes críticas à política de juros do país, cujos gastos oscilam em torno de 5% do PIB sem restrição ou contingenciamento fiscal algum. Ou seja, independe de qualquer meta fiscal, e mesmo de aprovação pelos parlamentares, além de não enfrentar qualquer restrição de gastos. O arcabouço legal garante, inclusive, cobertura pelo Tesouro Nacional de resultados negativos do BC, nos termos da Lei 13.820/2019. O controle público ocorre apenas por prestação de contas a posteriori ao Congresso, algo de natureza apenas protocolar.

Isso já aponta que a justificação quanto a suposto impedimento de funcionamento do BC e de suas atribuições é pouco aderente à realidade fática.

Problema de facto a ser equacionado pela PEC

A transformação do BC em empresa pública implica a sua não sujeição aos limites de gastos impostos a todos os órgãos da administração pública, nem ao teto de salários no serviço público, com regras de contratação de pessoal e aquisição de bens e serviços mais flexíveis. Isso permite maior autonomia na contratação de pessoal, fixação dos salários de servidores e diretores, e realização de outras despesas de custeio e investimento de forma mais flexível, sem observar as regras de controle da administração federal, que são mais rígidas do que para instituições públicas de direito privado, como os Correios, por exemplo.

Em nossa visão, isso servirá para majorar os salários de membros da diretoria colegiada do BC, que têm remuneração considerada inferior à de diretores de instituições financeiras do setor privado e mesmo de instituições financeiras públicas, como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. Isso tem especial relevância para aqueles diretores (e presidente) que vêm do setor privado.

Questões relevantes

A matéria suscita uma série de questionamentos. O primeiro é se é possível transformar autarquia em empresa pública? A resposta é positiva, apesar de não ser comum, até pela natureza jurídica muito distinta entre os dois regimes. Há o registro da conversão da Casa da Moeda de autarquia em empresa pública pela Lei 5.895, de 19 de junho de 1973. A peculiaridade, entretanto, é que não há função de Estado envolvida, mas efetivamente uma empresa que produz papel-moeda, produto que pode ser, inclusive, exportado para outros países.

1. Precedente para outras agências reguladoras e órgãos da administração pública

A criação de exceção ao princípio da unidade orçamentária significa um precedente para outras autarquias reivindicarem autonomia semelhante, visando a mesma prerrogativa de financiar suas despesas permanentes a partir de receitas próprias. Isso inclui: CVM, Previc, Susep, Aneel, Anatel, ANP, Anvisa, ANS, ANA, Ancine, ANTT, Antaq e Anac.

Também significa potencial risco de demandas de outros órgãos da administração direta do Poder Executivo (como universidades públicas) e do próprio Poder Judiciário, que tem elevado potencial de obter receitas próprias. Tanto os incentivos para aumento de despesas permanentes como para expansão de receitas podem ser substanciais, com a cobrança de taxas diretamente pela prestação de serviços e que não entrariam mais no caixa único da União.

Isso fortalece também a pauta de outros setores como os militares, que buscam a garantia constitucional de 2% do PIB para seus gastos (atualmente, em 1,4% do PIB, ou R$ 123 bilhões). Pode-se deduzir que o resultado esperado seja a perda de controle sobre o orçamento da União, com a sua fragmentação em várias partes autônomas, com aumento das despesas públicas, sem preocupações com a eficiência e economicidade desses gastos como um todo. Pode-se até sugerir que esse tipo de agenda favoreça, basicamente, grupos seletos de funcionários públicos.

2. As atribuições do BC são compatíveis com a natureza de empresa pública?

BC não exerce especificamente uma atividade econômica, mas presta atividade estatal fundamental. Trata-se de atividade típica de Estado. O BC é executor de políticas públicas delineadas nas Leis 4.595/1964 e LC 179/2021. Em nosso ordenamento jurídico, as atividades típicas de Estado são desempenhadas sob regime de direito público, pela administração direta ou pelas autarquias, neste caso se for recomendada gestão administrativa descentralizada para seu melhor funcionamento.

Além disso, diferentemente de empresas privadas ou mesmo públicas, o BC não objetiva lucro. O BC não explora atividade econômica, como faz, por exemplo, na área financeira, os bancos públicos Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, e que justifica um regime jurídico de direito privado para essas instituições financeiras. Não é o caso da autoridade monetária.

Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias são instituições estatais caracterizadas pela exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (artigo 173 da CF). Esses bens ou serviços produzidos geram as receitas que irão pagar suas despesas. O artigo 5º do Decreto-lei 200/1967 delineia claramente a diferença de natureza entre os dois regimes jurídicos. Nesse sentido, pode-se concluir por uma incompatibilidade entre o modelo de empresa pública e as atribuições típicas de Estado exercidas pelo BC.

3. Delegação de poder de polícia a pessoa jurídica de Direito Privado?

Juridicamente, o STF já entendeu a viabilidade de delegação administrativa do poder de polícia estatal a “pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial” (Recurso Extraordinário nº 633.782, do Relator Min. Luiz Fux). Todavia, a Suprema Corte deixou claro que não estava compreendido, nessa possibilidade, o exercício de capacidades normativas, que são essenciais para o BC.

A autarquia regula não apenas a moeda e o mercado de câmbio, mas o sistema financeiro como um todo. De fato, o BC exerce poder de polícia sobre o sistema financeiro nacional, atividade típica da Administração Pública. Isso inclui: regimes de autorização e de resolução, pelos quais a autarquia intervém diretamente na gestão de instituições privadas do sistema financeiro, e quanto ao direito sancionador, no exercício de supervisão prudencial.

4 Outros aspectos

É provável a judicialização pelos servidores do BC de demandas trabalhistas, diante da mudança de regime estatutário para CLT, o que envolverá valores bilionários. Com efeito, a PEC não está lidando com o impacto orçamentário-financeiro em termos previdenciários que derivarão da PEC em sendo aprovada, o que contraria o espírito de responsabilidade fiscal que se tem construído no país desde os anos 1990, nos termos do próprio artigo 113 do ADCT.

Outra crítica é que não há estipulação de teto remuneratório aos novos servidores. O Substitutivo apresentado pelo relator na CCJ prevê apenas um teto global para crescimento de despesas de pessoal e custeio, a ser futuramente definido por LC. Isso significa dizer que haverá limite global para as despesas, mas os diretores e funcionários da empresa pública BC não estarão limitados individualmente ao teto dos servidores públicos.

Conclusão

Como se procurou mostrar, o arcabouço jurídico de sustentação orçamentária e financeira às políticas monetárias e cambial não impõe restrição que justifique a alteração constitucional. O BC não possui constrangimentos para execução de política monetária e cambial, o que contesta a necessidade de transformação da autarquia em empresa pública.

As restrições que observa são apenas aquelas típicas do serviço público. Nesse sentido, a PEC consiste em uma “jabuticaba” que desvirtua a natureza jurídica do BC, que decorre de sua atividade estatal e que não é de empresa. Além disso, constitui perigoso precedente para aprovar novas proposições em desmonte ao regime fiscal federal.

A proposta é clara no sentido de enfraquecer o regime fiscal do país, em benefício dos dirigentes do BC, mas não da administração pública. Rompe-se a unicidade orçamentária e a eficiência da alocação de recursos federais. Além de desnecessária, identifica-se um desacoplamento da justificação com a realidade fática, apontando para uma problemática muito pontual, para aumentar salários dos dirigentes, que sugere constituir caso de lawfare. Há a instrumentalização do Direito sem correspondência com a promoção de eficiência da administração pública ou de outro parâmetro coletivo que aprimore a atuação estatal.


[1] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161269. Acesso em: 4 ago. 2024.

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Direito Administrativo da organização e as relações organizativas

A organização administrativa brasileira exige para o seu estudo mapas e roteiros: conhecimento das estruturas organizacionais e, igualmente, ciência do modo de interação entre os órgãos e as entidades públicas.

As estruturas de organização típicas aparecem no mapa da administração e facilitam identificar a individualidade organizatória, os traços presumidos de determinada entidade ou órgão (sempre sujeitos a confirmação ou transformação ao longo do tempo). As relações organizativas informam, por outro lado, o modo efetivo de funcionamento das estruturas organizacionais e o seu grau de independência ou subordinação, isolamento ou integração, em face das demais unidades do aparato administrativo.

Surpreendentemente, as relações organizativas são amplamente subestimadas, objeto de abusos e incompreensões, manejadas por atos secundários ou individuais pouco transparentes da autoridade pública. Essa situação cria insegurança jurídica para indivíduos, empresas e para os próprios gestores, pois a indeterminação das fronteiras da atuação legítima de autoridades públicas prejudica a agilidade e a estabilidade das decisões administrativas. Sem roteiros claros quanto ao tráfego real das competências ou do exercício das competências a informação caminha enviesada na intimidade da organização e a decisão é adiada ao máximo, atitude defensiva de gestores que compromete a produtividade das estruturas públicas.

Relações organizativas ou atos de organização?

Hierarquia, autonomia, supervisão, coordenação, cooperação e controle — para referir apenas as mais usuais — não são atos ou fatos administrativos e sim relações organizativas densificadas por atos administrativos. É equívoco ainda as definir como um “estado natural” ou “uma relação entre indivíduos/autoridades”, desconsiderando relações interorgânicas e interadministrativas dentro da complexa pluralidade das estruturas públicas.

O direito administrativo da organização não é exclusivamente um direito de sujeitos administrativos, mas igualmente um direito de relações organizativas. E por sujeitos administrativos não se alude necessariamente a pessoas, pois há sujeitos administrativos que não são pessoas jurídicas (por exemplo, os órgãos, que são unidades de atuação despersonalizadas e ao mesmo tempo sujeitos administrativos na medida em que a lei lhes atribua identidade organizatória, direitos-função e sejam centros individualizados de imputação jurídica) [1].

As normas de organização podem ser primárias (legais e constitucionais) e secundárias (regulamentares ou derivadas), mas é grave quando relações de organização e prorrogativas derivadas não encontram balizas claras em normas antecipadamente estabelecidas. O jogo mais perigoso é o jogo sem regras. Há necessidade de o legislador voltar os olhos com maior atenção para as relações organizativas como elemento essencial à garantia dos cidadãos, pois a distribuição de tarefas e encargos, competências e prerrogativas, no interior da administração não deve ser imprevisível. Este não é um problema de determinado governo, ou do governo do momento, mas do Estado brasileiro.

A determinação da competência como problema organizatório

A Constituição e as leis criam as competências públicas. E não pode ser de outro modo: “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, artigo 5, II). No entanto, a distribuição concreta das competências legais, a sua abrangência prática e o grau de sua definitividade no âmbito público dependem de relações mantidas na intimidade da organização dos poderes. E assim também ocorre na organização administrativa.

A  transferência de competências de um para outro órgão na administração direta, possível de realizar-se por simples decretos de organização (CF, artigo 84, VI, a);  a decisão de recursos hierárquicos e de recursos hierárquicos impróprios (em verdade, recursos de supervisão), no segundo caso quando isto seja expressamente admitido por lei (CF, artigo 37 XIX e XIX); a arbitragem administrativa de conflitos interorgânicos ou conflitos de competência; medidas de desconcentração de competências na intimidade de uma mesma pessoa administrativa ou de descentralização de competências de uma pessoa administrativa para outra, inclusive em termos interfederativos (CF, artigo 241), são algumas hipóteses que evidenciam a distância que separa a dinâmica da organização do quadro geral estático das formas de organização.

A exigência de autorização legal para o exercício da competência material pelos órgãos e entidades públicas indiscutivelmente é garantia fundamental de liberdade, mas é insuficiente: ela oferece segurança apenas quando há regras que definem antecipadamente o como, o quando e a extensão possível relativamente às transferências de competências (ou de exercício de competência) na intimidade da organização administrativa. Essas regras devem ser flexíveis, permitir o manejo seguro e facilitado de encargos e prerrogativas no interior da organização, mas devem existir com precisão e serem conhecidas de todos, para a segurança dos próprios gestores.

Por exemplo, hoje não há regras para definir claramente as prerrogativas decorrentes do artigo 84, VI, a, da Constituição. Pode o presidente, por decreto de organização, esvaziar amplamente as competências de órgãos públicos, sem extingui-los, transferindo-as para outros órgãos? Pode invocar a previsão do artigo 84, VI, a (“dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal”), combinada com prerrogativa constante do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) para transferir competências inseridas na esfera de pessoas descentralizadas ou apenas manejar e redistribuir competências de órgão da administração direta? Se não pode, com decreto de organização, aumentar despesa, criar ou extinguir órgãos públicos, pode inviabilizar o exercício dessas mesmas competências com a omissão, sem limite, do ato de nomear dirigentes ou integrantes de órgãos colegiados essenciais ao funcionamento desses órgãos ou de entidades supervisionadas? Pode reduzir despesas, e a liberação financeira de recursos orçamentários, suprimir ou transferir todo o pessoal de determinado órgão sem que essas ações sejam consideradas “extinção de órgão”? Pode fundir órgãos subordinados, preservadas todas as competências materiais estabelecidas pelo legislador, para evitar a duplicidade de estruturas organizativas? Em outras palavras, a proibição de extinção de órgãos por decreto de organização é material ou formal? Órgãos devem ser considerados extintos quando a previsão orçamentária aprovada não se converter em liberação financeira efetiva em termos relevantes e substanciais?

Na supervisão ministerial, por igual, permanecem incertos os limites dos recursos de supervisão. Cabem para atos normativos ou apenas para atos administrativos concretos? Podem ser consideradas implícitas na competência do artigo 84, II, fine (“exercer a direção superior da administração federal”) ou exigem lei expressa autorizativa, dada a natureza da entidade supervisionada de possuir personalidade autônoma, destacada da administração direta por decisão do legislador (CF, artigo 37, XIX e XX)? O legislador pode afastar completamente os poderes de tutela quando adotadas decisões finais em diretoria colegiada, como parece ter fixado o artigo 3º, da Lei 13.848/2019? Quais os limites da supervisão ministerial em termos de “adequação das entidades às políticas públicas”? Como assegurar a efetiva ampliação de autonomia gerencial, orçamentária e financeira de órgãos e entidades que assinarem contratos de desempenho, na forma do artigo 37, §8º, da Constituição, sem que os compromissos assumidos sejam comprometidos por contingenciamentos ou lentidão na liberação financeira?

Na relação de hierarquia, do mesmo modo, há limites pouco explorados. Além dos órgãos constitucionais autônomos (Ministério Público, Defensoria, Tribunais de Contas), mesmo na intimidade dos órgãos exclusivamente administrativos da administração direta há alguns que não podem, pela natureza das funções, subordinarem estas a determinações hierárquicas. É o caso dos colegiados consultivos, com frequência não remunerados e de representação social; os colegiados deliberativos, presididos pela autoridade máxima do órgão, mas que deliberam em votação e discussão as matérias a seu cargo; os órgãos periciais e policiais na matéria pertinente às investigações e perícias a serem produzidas.

Por óbvio, para várias dessas perguntas professores de direito oferecem diferentes respostas. Respostas com frequência polêmicas, que dividem e apaixonam correntes de entendimento, suscitam questionamentos, repercutem no Poder Judiciário e deixam inseguros os próprios gestores.  Se desejamos uma administração pública mais eficiente e menos vacilante, mais econômica e menos redundante, socialmente mais efetiva e menos questionada em cada passo, devemos cuidar de disciplinar com maior clareza e precisão as suas normas de organização como tarefa urgente e estruturante do Estado, sobretudo as normas dedicadas às relações organizativas [2].

Comissão de Revisão do DL 200/67

No âmbito dessa missão de Estado, de complexidade indiscutível, o governo federal recentemente instituiu Comissão de Especialistas destinada a sugerir a revisão global do Decreto Lei 200/1967, editado em pleno período autoritário, ainda hoje considerado norma referencial em matéria de organização administrativa.

Embora amplamente superado pela legislação superveniente, o Decreto-Lei 200 segue sendo norma que suscita incompreensões e oculta lacunas relevantes da disciplina da organização administrativa no Brasil. Nessa missão de revisão, a Comissão dividiu os seus trabalhos em cinco eixos temáticos:

1) Eixo A – Estrutura Organizacional: Administração direta e supervisão ministerial; Autarquias, fundações e novas figuras; ⚬ Governança de estatais;

2) Eixo B – Governança, planejamento e orçamento: Ciclo de política pública; Tomada de decisão e sistemas de governança; Coordenação entre planejamento e orçamento; Metodologias e instrumentos para planejamento e acompanhamento da execução orçamentária; Monitoramento e avaliação;

3) Eixo C – Parcerias em políticas públicas: Articulação e atuação interfederativa; Parcerias com a sociedade civil ⚬ Participação social;

4) Eixo D – Inovação e controle: Inovação na gestão e em políticas públicas; Transformação digital na administração pública; Integridade e transparência; Sistema de controle; Relação entre gestão, inovação e controle.

Os eixos revelam a abrangência do trabalho, que pretende seguir metodologia participativa: realização de eventos em diversas capitais para debate ampliado dos tópicos referidos, oitiva de instituições interessadas e elaboração de relatórios propositivos para cada eixo antes da consolidação dos resultados dos debates em anteprojeto normativo a ser apresentado ao presidente da República. Trata-se de percurso mais demorado do que a simples elaboração de uma proposta normativa direta, porém uma escolha que pode render frutos e sugestões enriquecedoras.

Tendo sido convidado a integrar a Comissão, desta vez formada não apenas por professores de direito e integrada também por administradores e cientistas políticos, pretendo nos próximos meses – e colunas – abordar tópicos relacionados à organização administrativa brasileira e possíveis respostas para o seu desenvolvimento.

Há reformas administrativas que dispensam emendas constitucionais, proclamações solenes, balas de prata, enunciados eloquentes. A reforma da organização federal, que nos formatos organizacionais de direito privado aplica-se a todos os entes da Federação, pode eventualmente oferecer soluções para uma administração mais eficaz, eficiente e socialmente justa e sintonizada com o nosso tempo. Para a atender a esses fins ela deve cuidar com atenção especial, além das formas de organização, das relações organizativas que movimentam e articulam as decisões na intimidade da administração pública.


[1] Sobre o tópico dos órgãos como sujeitos administrativos, e a dissociação entre os conceitos de sujeito de direito e personalidade jurídica (presente também no direito privado), cf. MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo governo federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009; 2ed, 2011. Na internet, disponível no endereço: https://www.academia.edu/45494341 Sobre o conceito de direito-função, direito à própria função, reconhecido aos órgãos inclusive para a defesa judicial de atos contrários a suas prerrogativas institucionais, há inúmeros precedentes (entre muitos, STF, MS 21.239, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgamento 05/06/1991, DJ 23-04-1993; ADI 1557, rel. min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 18.06.2004; RE 595176 AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, julg. 31/08/2010, DJe-235, 03-12-2010; ADI 5.275, rel.  Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julg. 11/10/2018, DJe-230, 26-10-2018). A doutrina administrativa repete como mantra que os órgãos não são pessoas, embora possam gozar de “personalidade judiciária, podendo demanda em juízo e defender os seus direitos institucionais” (STJ, Súmula 525). Mas não é isto que está em causa no plano interno da organização administrativa. Neste domínio, os órgãos possuem subjetividade organizatória, desde que a lei assim o estabeleça, seja diretamente (assegurando independência) seja indiretamente (fixando competências materiais incompatíveis com o exercício desimpedido de poderes hierárquicos). O direito real não está submetido a mantras.

[2] Sobre a tentativa anterior, na Gestão Lula I, de reforma da organização administrativa, conferir: MODESTO, Paulo. Anteprojeto de novas lei de lei de organização administrativa: síntese e contexto. REDE, n. 27, 2011. Disponível em https://www.academia.edu/7789782 ou http://www.direitodoestado.com.br/artigo/paulo-modesto/anteprojeto-de-nova-lei-de-organizacao-administrativa-sintese-e-contexto

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